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Boletim Bibliográfico 6 - Os Escritores do mês - outubro de 2020 - Afonso Cruz

“Nunca pensei em ser escritor. Mas creio que o grande combustível, a grande maté-
ria-prima para depois escrever, foi gostar muito de ler. Leio diariamente desde que
me lembro de ser gente. E hoje sinto-me quase incapaz de escrever se não ler.”

Afonso Cruz é o autor escolhido nas Bibliotecas para este mês de outubro. Afonso
Cruz é um escritor multifacetado pelos livros que nos tem dado. É igualmente ilustra-
dor, cineasta e músico de uma banda designada The Soaked Lamb. Fez formação di-
versa e alargada na área das artes plásticas em diferentes institutos e escolas superio-
res do país e na Europa.
Já recebeu vários prémios, como sejam, o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo
Branco em 2010, o Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009, o Prémio da União Euro-
peia para a Literatura em 2012, Prémio Autores SPA /RTP, em 2011. Afonso Cruz teve
ainda outros prémios importantes, como uma menção especial no Prémio Nacional
de Ilustração de 2010 e na Lista de Honra do IBBY - Internacional Board on Books for
Young People. Foi ainda finalista dos prémios Fernando Namora e Grande Prémio de
Romance e Novela APE e conquistou o Prémio Autores para Melhor Ficção Narrativa,
atribuído pela SPA em 2014.
Afonso Cruz nasceu para a escrita a partir de uma dualidade muito presente na sua
vida, a leitura e as viagens. Foi com elas que se iniciou na atividade de imaginar histó-
rias. A sua curiosidade pela natureza e por diferentes culturas também o ajudou a
cultivar a sua expressão pelas palavras. Afonso Cruz é um bom exemplo para essa
ideia de aprendizagem que todos devíamos cultivar, isto é, desenvolver a curiosidade
e o gosto por algo e depois ir tentar aprender e fazer isso com dedicação.
Entre os seus diferentes livros são de destacar pelo tipo de proposta narrativa, ou pe-
la inovação com que as histórias nos surgem, Enciclopédia da estória Univer-
sal (2009), Jesus Cristo bebia cerveja (2014), Flores (2015), Nem todas as baleias vo-
am (2016) e Jalam Jalam de 2017.
A escrita de Afonso Cruz alimenta-se de livros, de palavras desenhadas na imagina-
ção, como quem cria novos significados, novos espaços para o que vê. Esta imagina-
ção é devolvida pelo mundo, pelas suas paisagens que são assim uma matéria-prima
para as palavras. A palavra e o mundo poderia ser a identificação dessa viagem que
tem em Afonso Cruz um significado de observação e de reconstrução.
A viagem apresenta-se como um reconhecimento, uma experiência, e por isso tam-
bém uma descoberta para novas formas de ver o mundo e do exprimir em histórias.
Conhecer o mundo é reconhecer culturas, observar diferentes formas de olhar e estar
assim mais perto para a expressão de uma palavra que o contemple na sua diversida-
de e beleza. Na cartografia das palavras o caminhar é uma forma de apreender o que
nos rodeia, a geografia do mundo e as suas histórias.
Afonso Cruz tem escrito diferentes livros, entre a poesia e a prosa e se a originalidade
marcam as suas palavras existe nele um sentido ético e estético. A procura de reco-
nhecimento do mundo e a criação de palavras e imagens que o integrem numa visão
particular que saiba ver a importância de um conjunto de valores. Os livros e o mun-
do reconhecido nas experiências de viagem, numa aprendizagem do natural e do vivi-
do procura que exista espaço para uma diversidade cultural, para o incentivo ao valor
das artes e das humanidades, no fundo, do espírito humano. A abordagem poética,
intimista e relacional das suas histórias procuram essa libertação das sombras que
esconde o belo e aquilo que pode encantar a vida na sua multiplicidade.
Numa sociedade marcada pelo afastamento aos valores do imaginários e do imateri-
al, falar sobre o que pode revelar encanto e esperança é um trabalho dos mais impor-
tantes a abraçar. Nesse sentido a escrita de Afonso Cruz é um importante contributo
para deixarmo-nos encantar pelas histórias, pelas suas emoções, pelas latitudes onde
elas desenham, como uma aprendizagem e uma experiência de vida.

“Dizem que é bom transacionarmos afetos, liga as pessoas e gera uma espécie de lucro que,
não sendo um lucro de qualidade, já que não é material e não é redutível a números ou de-
dutível nos impostos ou gerador de renda, há quem acredite – é uma questão de fé –, que
pode trazer dividendos. O pai diz que são fantasmas, são coisas que não existem, matéria
imaterial, mas há estudos que confirma a hipótese de haver benefício em depositar uns mili-
litros de saliva na maçã do rosto de outra pessoa, por mais estranho e grotesco que isso nos
possa parecer.” Vamos comprar um poeta / Afonso Cruz. Alfragide: Caminho, 2016
Boletim Bibliográfico 6 - Os Escritores do mês - outubro de 2020 - Afonso Cruz

“ (Vivaldo] trabalhava no 7.º Bairro Fiscal e achava-se num mundo entediante, cha-
to, plano, aborrecido, cheio de papéis, papeladas e outras burocracias que se fazem
com a madeira das árvores. Era um mundo desprovido de literatura. A minha mãe
estava grávida de mim, eu nadava no seu útero, dava voltas como a roupa na má-
quina de lavar, nessa altura fatídica. O meu pai só pensava em livros (livros e mais
livros!), mas a vida não era da mesma opinião, a vida dele pensava noutras coisas,
andava distraída, e ele teve de se empregar.
A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos.
Contudo, o meu pai levava livros (livros e mais livros!) para a repartição de finanças
e lia às escondidas sempre que podia. Não é uma atitude que se aconselhe, mas era
mais forte do que ele. O meu pai amava a literatura acima de tudo. Punha sempre
um livro debaixo de modelos B, impressos de alteração de atividade e outros papéis
de nomes ilustres, e lia discretamente, fingindo trabalhar. Não era uma atitude
muito bonita, mas o meu pai só pensava nos livros. Foi isto que a minha avó me
contou com os seus pensamentos cheios de rugas na testa. Nunca conheci o meu
pai. Quando nasci já ele não andava aqui neste mundo. (...)
Uma biblioteca é um labirinto. Não é a primeira vez que me perco numa. Eu e o
meu pai temos isso em comum. Penso que foi isso que lhe aconteceu. Ficou perdi-
do no meio das letras, dos títulos, perdido no meio de todas as histórias que lhe
habitavam a cabeça. Porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-ênes e
códigos genéticos, nem de carnes e músculos e pele e cérebros. É de histórias. O
meu pai, tenho a certeza, perdeu-se nesse mundo e agora ninguém lhe consegue
interromper a leitura. Li, numa das minhas tardes passadas no sótão, um conto de
um escritor argentino chamado Borges, sobre um labirinto que é um deserto. Há
inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão
complexo como uma biblioteca. Mesmo um livro solitário é um local capaz de nos
fazer errar, capaz de nos fazer perder. Era nisto que eu pensava enquanto me sen-
tava no sótão entre tantos livros."
Os livros que devoraram o meu pai / Afonso Cruz. Lisboa: Caminho, 2010

"A poesia, diz-me ele, transfigura o universo e faz emergir a realidade descrita com
a absoluta precisão da ambiguidade. Nunca li um bom verso que não voasse da
página em que foi escrito. A poesia é um dedo espetado na realidade.
Um poeta é como quem sai do banho e passa a mão pelo espelho embaciado para
descobrir o seu próprio rosto.
Era isto que ele me dizia. Eu limpava os espelhos na esperança de me sentir assim,
tentava desembaciar a vida, como o poeta dizia que tínhamos de fazer, passar a
mão pela realidade até vermos um sorriso. Sei que é um trabalho árduo, há dema-
siado vapo a tornar a vida pouco nítida, desfocada. Mas vou insistir.
O poeta dizia que os versos libertam as coisas. Que quando percebemos a poesia
de uma pedra, libertamos a pedra da sua “pedridade”. Salvamos tudo com a bele-
za. Salvamos tudo com poemas. Olhamos para um ramo morto e ele floresce. Esta-
va apenas esquecido de quem era. Temos de libertar as coisas. Isso é um grande
trabalho.”
Vamos comprar um poeta / Afonso Cruz. Alfragide: Caminho, 2016.

“A viagem pertence ao domínio do invisível, do inimaginável. É.um espaço que está


para lá da nossa visão no momento, o que ainda não vimos, mas desejamos ver.
Quando começamos a caminhar tornamos o visível e o inimaginável tangível. Tal
como quando temos uma ideia e a executamos. Um passo fora de casa e começa-
mos a desenhar o mapa do mundo.
O passado é como uma resposta, fixo, mas o futuro porta-se como uma pergunta e
encerra inúmeras possibilidades. Devemos estar cientes da troca que fazemos a
todo o instante: converter perguntas em respostas, possibilidades em certezas,
futuro no passado. O futuro, pela sua indefinição, tem uma riqueza enorme, o pas-
sado é um caminho único, limitado à interpretação. Há um empobrecimento intrín-
Ficha Técnica: seco ao tempo, na medida em que converte a riqueza de inúmeros caminhos em
Redação: Equipa da Biblioteca apenas um só. Mas não nos importamos, uma vez que normalmente sacrificamos
Biblioteca: (Aears) - Agrupamento de Escolas António tudo por uma resposta, pela existência. Nesse sentido, parece-nos que o ato é su-
Rodrigues Sampaio perior à potência, mesmo que esta contenha todas as possibilidades e que ao esco-
lher, nos seja obliterada a liberdade. “
Periodicidade: Mensal
Distribuição/Publicitação: Redes digitais Jalam Jalam / Afonso Cruz. Lisboa: Companhia das Letras, 2019.

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