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SONIA REGINA VARGAS MANSANO é Pós-Doutora em Psicologia Clínica pela
PUC/SP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Administração e do Departamento de Psicologia
Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina.
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ALEJANDRA ASTRID LEÓN CEDEÑO é Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP.
Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina.
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Isso nos remete a uma aproximação Conhecer, agir e sofrer. Três verbos a
com o caráter trágico da existência, serem conjugados artisticamente sem se
aberto para acolher a criação como uma cair nas armadilhas dos saberes mais
multiplicidade de forças díspares que endurecidos, dos modelos instituídos ou
compõem e decompõem as maneiras de das dores romanceadas com as quais
existir e de se relacionar com o outro. nos tornamos piedosos e menores.
Tais forças não param de se movimentar Trata-se de uma abertura para conhecer
e, com isso, transformam a paisagem o que nos advém, por vezes de maneira
psicossocial, ao mesmo tempo em que violenta e cruel, mas também uma
os modos de subjetivação sofrem abalos abertura para agir diante desse adverso,
e rachaduras. Em face desses encontros redesenhando seus sentidos e
desconcertantes, existe a tendência para potencializando a existência para seguir
recuar e reassumir os modelos outros rumos. Aqui, o sofrer é vivido
identitários mais conhecidos que, como acolhimento das dores próprias de
supostamente, trariam certa segurança um corpo que é vivo, portanto, sensível
por prometer a retomada de hábitos tão e capaz de sustentar as rupturas e
conhecidos e longamente reproduzidos. despedidas que a vida nos impõe.
Entretanto, se a arte entra nesse diálogo Nietzsche assinala que essas três
com a psicologia para pensar outras redenções são artísticas e, como tais,
maneiras de conexão com o mundo, as colocam-nos o desafio de transmudar o
garantias são as primeiras a serem que nos advém: fazer do acontecimento
derrubadas. Nietzsche talvez seja quem uma vida artística, provocando
transformações, ebulições e convulsões na
teve mais sensibilidade para arriscar
cotidianidade imprevisível de encontros.
uma aproximação entre arte e vida
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momento que serviu para comprovar uma universidade que, cabe registrar, é
que ela podia continuar tendo contato pública e localizada no bairro vizinho
com outras experiências: sair da cidade, onde tais crianças moram.
fato que nunca ocorrera outrora e
conhecer lugares vizinhos; compartilhar É sabido que a universidade pública
um momento especial com o grupo e brasileira, apesar das políticas de
começar a aprender a pescar, prática que inclusão colocadas em prática nos
fazia parte das tradições da geração últimos anos pelo governo federal,
anterior da sua família, proveniente do ainda recebe estudantes que, em sua
meio rural. A “criança próxima do maioria, pertencem a uma classe social
tráfico”, que já se havia apresentado em mais elevada, em razão de todo o
um sarau na semana anterior, podia preparo recebido no ensino fundamental
agora ser apenas criança e brincar. e médio. O problema se agrava quando
Pode-se dizer que, nessas experiências, uma parte dos cidadãos brasileiros nem
outros territórios foram experimentados, sequer reconhece a universidade pública
ampliando-se a potência daquele corpo como um território possível e acessível
até então limitado a um registro afetivo por causa de seu nível socioeconômico.
mais “durão”. Visitar a universidade pode parecer algo
banal para uma parcela significativa da
Em outra ocasião, sete estudantes e uma população, mas, nesse caso, possibilitou
docente da universidade organizaram o acesso não só a um espaço físico
um passeio com o grupo do projeto e como também a um campo de
por sua solicitação: uma visita ao possibilidades a ser considerado e
câmpus. Conforme suas demandas, a explorado.
visita incluía o Museu da Anatomia e a
Ludoteca. O grupo era formado por dez Em outra ocasião, o grupo de dança foi
crianças e adolescentes. Também nessa convidado de última hora para dançar
situação, Carmem teve papel em uma comemoração surpresa do dia
diferencial, pois foi ela quem organizou do professor. Era um evento organizado
e convidou o grupo, fazendo o possível pela Assistência Social dirigido para os
para viabilizar um passeio que incluísse educadores da área socioeducativa. Para
as amigas e os parentes. O contato com que o grupo de dança, formado por duas
uma instituição de ensino superior foi professoras e cinco alunas, participasse
uma novidade para todo o grupo. No do evento, foi preciso ensaiar
retorno para o bairro, as crianças, rapidamente, acordar cedo e atravessar a
eufóricas, cantaram sem parar a música cidade. Aquele dia começou mal, pois
“Monstro dos Monstros” do MC uma das participantes teve de ficar em
Daleste: “Eu sou monstrão, tu é casa cuidando de duas crianças
monstrão, nós é monstrão, mas eles menores, o que acontecia praticamente
não. Pode falar de boca cheia: todos os dias. A impossibilidade de sua
Ostentação”. A insistência na música e participação foi frustrante tanto para ela
a intensidade com que era cantarolada quanto para o grupo, mas, ao mesmo
deixava muito clara a necessidade de tempo, consolidou-se como um
dar voz ao que haviam acabado de disparador de relatos sobre a vida
experimentar: o acesso ao mundo de cotidiana. Uma das crianças, por
estudantes majoritariamente localizados exemplo, contou que a mãe estava presa
em outra classe socioeconômica. Parte e sugeriu ao grupo organizar uma
do grupo relatava que nunca havia apresentação na prisão no único dia do
pensado na possibilidade de estudar em mês em que as mulheres têm direito a
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visita; outra comentou sobre a sua irmã experiência, ficou claro que as pessoas
que, sob seu ponto de vista, estava presentes naquele evento estavam lá
perdendo “seu futuro de criança” por ter apenas por obrigação. A situação trouxe
que cuidar constantemente de crianças vários questionamentos sobre a inserção
menores. do grupo e o reconhecimento do seu
trabalho. Obviamente, os afetos
Quando chegaram ao lugar marcado, experimentados produziram efeitos
receberam um tratamento bastante frio, desagradáveis no grupo das crianças
distante e até desrespeitoso por parte da que, novamente, precisaram lidar com a
coordenadora. O grupo foi praticamente rejeição e o desprezo bastante presentes
“deixado” no terraço da casa para se em suas memórias afetivas. Aquele
preparar sozinho, o que tornou as movimento de elaboração, acionado
crianças mais ansiosas, uma vez que
também nas outras experiências
disputavam a atenção das poucas
relatadas, foi precipitado diante do
adultas, que estavam presentes, pedindo
vivido. Entretanto, agora ganhava um
ajuda para se maquiarem e se
contorno mais complicado, visto que a
prepararem para a apresentação. Depois
experiência de rejeição trazia à tona
de um discurso que não podiam ouvir e
componentes subjetivos ligados ao
preparando-se às escondidas para a
desrespeito, à indiferença e ao descarte,
apresentação surpresa, finalmente
tão conhecidos por aquele grupo.
começou a música. Na segunda dança,
Todavia, as crianças não estavam
vários educadores começaram a
passivas naquele encontro, o que ficou
conversar entre si e mostravam
evidente quando se jogaram na piscina
claramente o desinteresse pela
do lugar e recusaram-se a sair,
apresentação, o que tornava inviáveis os
reivindicando, junto à coordenação do
pedidos de silêncio. Outra intervenção
evento, poder ficar mais tempo
significativa foi da coordenadora do
divertindo-se. Conseguiram o que
evento: “vocês podem continuar
desejavam e, coincidência ou não, uma
dançando, mas simultaneamente vamos
delas machucou o pescoço,
servir o café da manhã para não
demandando cuidados ainda maiores
atrasar”. A professora da associação
por parte dos coordenadores.
negou-se a isso, visto faltar apenas uma
música para terminar a apresentação. Pode-se perceber aqui a dimensão
As professoras do grupo entenderam trágica dos encontros que, longe de
aquela situação como um desrespeito, apenas potencializar, por vezes também
porquanto tinham sido convidadas para decompõem e destroem. E isso ocorre
dançar, precisando atravessar a cidade num bailado complexo que não
de um lado a outro, em hora matinal de comporta previsões e prescrições, mas
um dia feriado. A coordenadora do que leva seus agentes a experimentar os
evento não percebeu todo esse trabalho limites e as potências de conexão de
e esforço e, sem especificar o que queria seus corpos no encontro imprevisível
ou mesmo sem dar atenção ao grupo, com o outro.
decidiu de maneira arbitrária mudar as
No decorrer do ano de 2013 foram
regras do jogo no meio da curta
realizadas outras apresentações e
apresentação de dança que duraria
passeios que garantiram o cuidado e a
apenas 12 minutos.
atenção às crianças, bem como a
Quando o grupo se reuniu ao final da possibilidade de expandir horizontes.
apresentação para conversar sobre a Houve apresentações de dança em mais
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