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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE


CURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA

BÁRBARA SENA CARVALHO

Da polca ao brazilian jazz:


A roda do choro em movimento

FORTALEZA
2013
BÁRBARA SENA CARVALHO

Da polca ao Brazilian Jazz: a roda do choro em movimento

Monografia apresentada ao Curso de


Comunicação Social da Universidade
Federal do Ceará como requisito para
a obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social, habilitação em
Publicidade e Propaganda, sob a
orientação do Prof. Me. Heriberto
Porto e coorientação da Profa. Ma.
Luciana Gifoni.

FORTALEZA
2013
BÁRBARA SENA CARVALHO

Da polca ao brazilian Jazz: a roda do choro em movimento

Esta monografia foi submetida ao Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do


Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel. A citação de qualquer trecho
desta monografia é permitida desde que feita de acordo com as normas da ética científica.
Aprovada em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________
Prof. Me Herberto Porto (Orientador)
Universidade Federal do Ceará

_________________________________________
Prof. Dr. Andrea Pinheiro (Membro)
Universidade Federal do Ceará

_________________________________________
Prof. Dr. Pedro Rogério (Membro)
Universidade Federal do Ceará

Fortaleza
2013
Às minhas famílias, de sangue, música e coração,
AGRADECIMENTOS

Agradeço infinitamente a Deus por ter colocado na minha vida tantas pessoas a quem
agradecer. Agradeço aos meus pais, Diana e Tarcísio, pelo amor maravilhoso que recebi a
vida inteira. Ao meu irmão, João, por cuidar tão bem de mim, mesmo sendo o caçula. A Vovó
Maria, por seu lindo amor de avó, e ao Vovô Ordônio, de quem sinto muitas saudades.
Agradeço também aos meus professores da UFC e aos meus queridos orientadores, Luciana e
Heriberto, por todo carinho e dedicação. Agradeço as minhas amigas do Fulô de Araçá, sem
as quais essa história não poderia ser escrita. Muito obrigada Marília, Branna, Clarissa, Cris,
por tantos momentos lindos divididos. Em especial agradeço a fulô Lidia pela parceria
incondicional até mesmo na monografia. Às minhas hermanas Débora e Cris por terem
dividido comigo tantos momentos inesquecíveis, bem além dos muros da faculdade. À Tatá,
minha pequena, e força loiras e morena queridas: Cacau, Jessyca, Olguinha, Fê, Yana e
Tamis, que sempre vinham com a palavra certa, na hora certa. Agradeço especialmente ao
Valdo, por tanta paciência, estimulo e carinho. Agradeço, finalmente a todos os músicos que
me ajudaram a construir esse trabalho, em especial aos meus queridos amigos chorões.
Nada me fará sofrer,
pois trago junto ao coração
o bojo do meu violão
cantando

(Paulo César Pinheiro)

SUMÁRIO

1. Introdução: a música e o cotidiano .......................................................................................... 10


1.1. O choro como objeto da comunicação ............................................................................. 11
1.2. A composição da pesquisa ............................................................................................... 13
2. O choro e a música popular brasileira ..................................................................................... 15
2.1 A gênese do choro ............................................................................................................. 15
2.2 A corda trançada do choro ................................................................................................ 18
2.2.1 A modinha e a lírica brasileira ................................................................................... 20
2.2.2 O lundu e o tempero musical dos afro-brasileiros ...................................................... 22
2.2.3 A schottisch, as bandas de música e as primeiras gravações mecânicas de choro ..... 23
2.2.4. A polca e a mudança de costumes ............................................................................. 25
2.2.5. O maxixe e o tango brasileiro na trança do choro ..................................................... 26
2.2. A definição do gênero ...................................................................................................... 28
3. O choro entre matrizes culturais e mediações comunicativas ................................................. 28
3.1. A mediação da tecnologia ................................................................................................ 28
3.2. Da difusão à criação e apropriação cultural ..................................................................... 30
3.3. O programa Brasileirinho ................................................................................................ 32
4. A sociabilidade dos novos chorões de Fortaleza ..................................................................... 35
4.1 O grupo Murmurando ....................................................................................................... 38
4.1.1 A formação do Murmurando...................................................................................... 38
4.1.2 Das influências a concepção musical ......................................................................... 41
4.2 O Vida Boêmia .................................................................................................................. 43
4.2.1 A formação do Vida Boêmia ...................................................................................... 44
4.2.2 Da prática de conjunto aos novos caminhos .............................................................. 46
4.3 O grupo Fulô de Araçá...................................................................................................... 47
4.3.1 A formação do Fulô de Araçá .................................................................................... 48
4.3.3. Os caminhos através do feminino ............................................................................. 51
5. Considerações finais................................................................................................................ 58

RESUMO

O presente trabalho trás um recorte de uma das muitas paisagens sonoras da sociedade –
fortalezense e brasileira. Aborda-se a mediação do choro na sociedade a partir da nova trama
comunicativa da cultura. O trabalho parte do contexto em que o choro surge – através dos
modos de apropriação de suas matrizes culturais - até as novas formas de sociabilidades entre
os jovens que atuam no contexto social interativo que o choro representa em nossa cultura
global, bem como os novos usos e sentidos construídos através de reconfiguração social.

Palavras-chave: choro; comunicação; mediação; paisagem sonora, sociabilidade.


1. Introdução: a música e o cotidiano

São muitos os sons que compõem a sinfonia urbana da cidade de Fortaleza. O canto do
pássaro, o vento nas árvores, o latido dos cães, a buzinas dos carros, a sirenes das
ambulâncias, a fala dos transeuntes e a música que vem dos bares ou das casas são alguns
exemplos de fenômenos acústicos que arranjam as múltiplas paisagens sonoras de nossas
vidas cotidianas. As paisagens sonoras, assim como a geografia e a arquitetura, contribuem
para designar as feições de um lugar. Fortaleza é uma cidade composta por uma infinidade
dessas paisagens que, mesmo submersas nos ruídos de uma grande metrópole, nos contam
histórias do cotidiano e nos revelam uma variada gama de estilos de vida. Esse trabalho trata
de um pequeno recorte de uma das muitas paisagens sonoras da sociedade – fortalezense e
brasileira, através da “audição” do choro.
As paisagens sonoras nos falam de uma época e das culturas das pessoas dessa época.
Elas nos contam do dia-a-dia dessas pessoas, podemos descobrir, por exemplo, se os seus
habitantes preservam seus recursos naturais, como eles se locomovem, a maneira como eles se
comunicam, que tipos de música produzem e escutam etc. O conceito de paisagem sonora1
surgiu pouco antes da década de 30, quando o cineasta experimental alemão Walter Ruttman
gravava o filme Week-end – Fim de semana ou escapada de fim de semana. Sem utilizar
imagens, o filme relata, através de seu conjunto sonoro, a transição de um dia de trabalho a
um dia festivo, o domingo livre e a volta à rotina para se começar a semana. Nessa
experiência, veiculada pela Rádio Berlim em 1928, o artista conseguiu relacionar uma prática
cinematográfica com o rádio, inaugurando o que mais tarde o compositor e músico francês
Michael Chión chamou de rodagem sonora, uma inter-relação entre a forma de narrar com
sons do cinema e do rádio. Walter Ruttman conseguiu representar de maneira criativa fatos do
cotidiano, utilizando sons que de alguma maneira representavam aquela situação em sua
cultura. Mesmo uma circunstância tão comum como a narrada na rodagem sonora de
Ruttman, a transição de um dia de trabalho a um dia festivo, é vivida em cada lugar de uma
maneira diferenciada, assim como as músicas e os sons que lhes constituem. Vejamos a seguir
a definição de Shafer (2001, p.366) sobre o conceito de paisagem sonora:

O ambiente acústico. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como


um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a composições
abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando
consideradas como um ambiente.

Em busca dos sentidos e sensibilidades que emergem a partir do choro, dividimos esse
trabalho em três momentos: Primeiramente abordamos suas matrizes culturais, refletindo
sobre o contexto histórico em que o choro surge em nossa cultura. Em seguida, discutimos o
papel mediador do choro na sociedade, e concluímos o trabalho tratando da atividade do
choro em Fortaleza, enfocando as novas formas sociabilidade dos jovens fortalezenses através
do choro.

1.1. O choro como objeto da comunicação

A escolha do choro como objeto de estudo desse trabalho, decorre da noção de que o
objeto da comunicação trata-se sobretudo do que está disponível aos nossos sentidos (VEIGA,
2009, p.39), materializado em objetos e práticas que podemos ver, ouvir, tocar.

1
REZZA, Sol. El mundo es sonoro. Cara y señal. Abril de 2009. disponível em:
http://www.vivalaradio.org/gestion-radios-comunitarias/PDFs/GES_produccion_14paisaje-sonoro.pdf
A comunicação tem uma existência sensível, é do domínio do real, trata-se de um fato
concreto do nosso cotidiano, dotada de uma presença quase exaustiva na sociedade
contemporânea. Ela está ai, nas bancas de revista, na televisão da nossa casa, no rádio dos
carros nos outdoors da cidade, nas campanhas dos candidatos políticos e assim por diante.
Se estendemos mais os exemplos (e também nosso critério de pertinência), vamos incluir
nossas conversas do cotidiano, as trocas simbólicas de toda ordem (da produção dos corpos
às marcas de linguagem) que povoam nossa dia-a-dia. (VEIGA, 2009, p. 39)

O choro sempre esteve à minha frente, parte do eu cotidiano. Ainda na infância


comecei a ter contato com o gênero, assistindo as rodas de choro das quais meu pai
participava, ou através dos discos que tocavam em casa. Vim de uma família de músicos com
formações diversas e se ouvia um pouco de tudo em minha casa, mas o choro, talvez por
haver sido uma das principais “escolas” do meu pai, era um gênero privilegiado em nossa
residência, sobretudo nas reuniões informais de músicos que eram promovidas em nossa casa.
Há muito anos vejo e escuto o meu objeto de estudo, mas foi a partir de sua prática,
estudando e tocando em grupo, que verdadeiramente comecei a conhecer o choro e despertei
para a possibilidade de transformar sua experiência num estudo acadêmico. A vivência de
tocar choro começou no final de 2007, após um curso de choro ministrado por meu pai, o
músico Tarcísio Sardinha, através da FUNCET (Fundação de Cultura, Esporte e Turismo). O
curso durou cerca de seis meses e a maior parte dos alunos, assim como eu, nunca havia
estudado choro antes. Alguns até mesmo desconheciam o gênero. Mais adiante, neste
trabalho, abordaremos o papel dos cursos e oficinas de choro para a formação musical e
profissionalização de jovens instrumentistas na cidade. Apesar de não ter participado do
projeto, participei juntamente com alunas do projeto, da criação do conjunto Fulô de Araçá,
primeiro conjunto de choro do Ceará formado unicamente por mulheres, e onde iniciei minha
vivência prática e profissional do choro.
Através desse grupo pude perceber, sob a perspectiva de quem atuava naquele
contexto social, o surgimento de outros grupos de choro organizados, formados
majoritariamente por jovens, num período muito próximo ao que o nosso foi criado. Por um
lado, meu interesse pelo choro aumentava na medida em que ele se fazia cada vez mais
presente no meu cotidiano, o que poderia me dar a falsa impressão de uma efervescência na
cena do choro em Fortaleza. Por outro, a mídia e aqueles que faziam parte do meio há muito
tempo, apontavam para o aumento do interesse da juventude fortalezense em tocar choro.
Comecei a pensar o choro como um objeto de estudo para a comunicação a partir de
2010, durante as disciplinas de pesquisa. Embora o recorte inicial focasse a atuação dos novos
grupos no cenário musical de Fortaleza, a pesquisa acabou tomando novos rumos, apontando
não apenas para os conjuntos, mas para a dinâmica de produção e circulação do choro na
cidade e para diversas sociabilidades a ele relacionadas. Parte daqueles grupos se
desarticulava e partia para a formação de outros projetos, a exploração de outros gêneros, etc.
Seria preciso olhar para o choro num sentido mais amplo.
O objeto começou a se revelar como um conjunto de questões correlacionadas. Esse
conjunto se refere ao modo de se transmitir e receber o choro pelo mundo inteiro a partir de
todo o movimento tecnológico; a maneira como esse gênero foi se conformando no novo
meio; a diversidade de produtos e eventos existentes relacionados ao gênero; à cultura
profissional adquirida através de sua prática, seja ela de maneira profissional ou amadora; às
características do processo de produção; à circulação e disputa de mercado; aos hábitos e
competências; às interpretações e usos específicos realizados pelos novos e experientes
músicos de choro; às influências a que esses músicos estão expostos; a recepção do público;
ao choro nos meios de comunicação de massa; e às modificações que o choro vem sofrendo
com a chegada do mundo da web. O objetivo desse trabalho não é, entretanto, aprofundar-se
em cada um dos aspectos que o choro articula, mas colocar em foco formas de interação e
apropriação do mundo que podem ser construídas a partir da música.

1.2. A composição da pesquisa

Este trabalho tomou como base a metodologia de pesquisa utilizada por Giovanni
Cirino em Narrativas Musicais: performance e experiência na música popular instrumental
brasileira. (2009) de. O livro aborda a música instrumental brasileira, tendo como seu objeto
empírico sua atividade na cidade de São Paulo. Além de pensar a música a partir de sua
perspectiva mediadora, nos empresta o conceito de corda trançada para definir a relação das
matrizes culturais em um gênero específico.
Em busca da mediação da sociedade na obra artística (COHN apud CIRINO, 2009,
232), ou seja, da compreensão do choro agindo como um contexto social interativo, me
dediquei à observação participante de conjuntura do choro em Fortaleza. Procurei conhecer a
programação do choro na cidade. Embora já frequentasse os ambientes de choro, e a cidade
oferecesse uma programação regular em locais habituais, programas diferentes relacionados
ao choro, como shows, oficinas, mostras e festivais, aconteciam regularmente na cidade.
Entrevistei e conversei informalmente com aqueles que vivenciam o choro em seu cotidiano:
instrumentistas, professores de música, estudantes, produtores culturais, e apreciadores,
incluindo chorões de outras regiões do país. Embora a maior parte dessas entrevistas não
conste no trabalho, devido ao recorte que lhe foi dado, essas conversas foram importantes não
na medida em que só me aproximaram do tema, mas também no sentido em que me ajudaram
a visualizar outros modos de interação a partir do choro. Entre os chorões de outros lugares do
país entrevistados (formal e informalmente) estão: Luciana Rabello (RJ), Pedro Amorim (RJ),
Maurício Carrilho (RJ), Reco do Bandolim (DF), Joel Nascimento (RJ). Exceto a entrevista
com Reco do Bandolim, todos os encontros aconteceram na cidade de Fortaleza, em
momentos de passagem dos artistas para realizar shows ou oficinas. A entrevista de Reco foi
feita em agosto de 2012 no clube do Choro de Brasília, do qual Reco é presidente. As
entrevistas com Luciana Rabello e Pedro Amorim, por sua vez, remetem a realização do
documentário Retratos de um som: um olhar sobre o choro em Fortaleza (2011), cujo
argumento e direção são meus. Sem maiores pretensão, o vídeo é o resultado de um curso de
produção de documentário para web com duração de seis meses, oferecido pela Escola de
Áudio Visual da Vila das Artes, equipamento cultural da Prefeitura. Seus principais
propósitos foram: primeiro, servir como um dispositivo para o estudo do choro como um
objeto da comunicação, e depois, contribuir minimamente para a propagação da música.
produzida na cidade. Apesar do vídeo só ter duração de 15 minutos, tempo máximo estipulado
para o projeto, realizamos cerca de cinco horas de gravação, entre músicas e entrevistas que
foram importante, sobretudo, para a definição do recorte desse trabalho.
A pesquisa também se deu através de folders, matérias de jornal, vídeos na internet e
programas de rádio e, sobretudo, através da minha imersão no cotidiano do choro na cidade,
nesses últimos cinco anos. Essa imersão, inicialmente me pareceu um fator facilitador para a
realização do trabalho, mas meu envolvimento afetivo com o objeto muitas vezes dificultou
uma leitura sobre do problema.
Em relação à bibliografia, tem-se uma literatura razoável relacionada ao choro: livros
tratando de sua história, da influência afro-brasileira em nossa música, e da trajetória da
música popular no Brasil e na América Latina. Também utilizamos obras que relacionavam
música popular à educação, à mídia e ao mercado fonográfico, além de livros técnico-
musicais. Entre as principais obras abordas estão os livros Choro do quintal ao municipal de
Henrique Cazes (2005), História e Música de Marcos Napolitano (2001), Os Sons dos Negros
no Brasil (2008) de José Ramos Tinhorão e A Canção do Tempo (2006), de Jairo Severiano e
Zuza Homem de Mello.
Serviram também de base os estudos sobre cultura e comunicação na América Latina.
Entre os principais, os estudos em recepção de Mario Wilton de Souza e Jesus Martin-
Barbero, organizados por Wilton em O sujeito e o lado oculto do recepto (1997), e as
considerações de Barbero sobre matrizes culturais e recepção, contribuíram para pensar o
choro a partir de sua atuação como um mediador da sociedade, que introduz novos usos do
social e novos usos sociais da mídia.

2. O choro e a música popular brasileira

Para uma melhor compreensão do tema, trataremos no primeiro capítulo do choro no


Brasil numa perspectiva histórica, situando-o em relação ao nascimento da música popular
urbana. Na primeira parte do capítulo, relacionaremos principalmente as circunstâncias
econômico-sociais, enquanto que, na segunda parte, enfocaremos suas matrizes culturais.

2.1 A gênese do choro


Segundo Napolitano (2001, p. 39), em um país acusado de não ter memória sobre si
mesmo, a longa história da música popular urbana no Brasil constitui uma das mais vigorosas
tradições da cultura brasileira. O choro, por sua vez, constitui um dos estilos musicais mais
antigos dessa tradição. Ele nasceu no Rio de Janeiro, por volta de 1870, a partir da forma
abrasileirada com que os músicos das classes médias e populares executavam as danças dos
salões da corte. Reconhecido como um gênero musical específico a partir da década de 1910,
pelas características interpretativas em comum com os quais músicos brasileiros executavam
diferentes danças europeias, o choro, em nossos dias, volta a ser considerado uma “maneira de
tocar”. Este capítulo não tem como objetivo remontar em detalhes a trajetória do choro em
nossa música, mas resumir e problematizar algumas questões sobre o processo de seu
reconhecimento sociocultural dentro da esfera da música brasileira.
O choro surgiu da música tocada nos momentos de lazer de funcionários públicos e
comerciantes cariocas. Nasceu do cotidiano de bares e residências, em uma cidade que se
modernizava de forma arrebatadora em relação ao restante do país. A tradição musical
brasileira e urbana, da qual o choro faz parte, nasce no Rio de Janeiro em consequência, da
centralidade social e econômica que essa cidade exerce, sobretudo a partir do século XIX:

A cidade do Rio de Janeiro, uma das nossas principais usinas musicais, teve um papel
central na construção e ampliação desta tradição. Cidade de encontros e mediações culturais
altamente complexas, o Rio forjou, ao longo do século XIX e XX, boa parte das nossas
formas musicais urbanas. (NAPOLITANO, id., ibid.)

Com a chegada da família real, em 1808, o país começou a se transformar, mas foi na
cidade carioca, sede da corte portuguesa, que as mudanças mais profundas ocorreram. A
cidade adquiria uma nova feição cultural: passou a receber muitos investimentos em
infraestrutura, foram criados serviços públicos essenciais, como correio e estradas de ferro e,
em poucos anos, se tornou não apenas capital do Brasil, mas também do Reino Unido de
Portugal. Outro fator de grande importância foi a abolição do tráfico de escravos, em 1850,
que além de liberar capital para grandes empreendimentos, inseriu o Brasil no rol das nações
civilizadas (CAZES, 2005, p. 17). Esses avanços levaram ao crescimento da cidade e ao
aparecimento de classes populares e médias urbanas formadas por pequenos comerciantes e
funcionários públicos. Dessas classes, compostas principalmente por afro-brasileiros - mas
também músicos eruditos em busca de uma identidade nacional como Henrique Alves de
Mesquita e Chiquinha Gonzaga -, vão surgir os primeiros músicos de choro, bem como seus
primeiros apreciadores, aos quais Cazes (id., ibid.) se refere como a mão-de-obra e o público
consumidor do choro. Em resumo, a cidade passava por uma profunda reforma urbana e
cultural que lhe forneceu os elementos-chave para o aparecimento dessa música. Segundo
Marcos Napolitano (op. cit.), a urbanização e o surgimento das classes populares e médias
urbanas, na passagem do século XIX para o século XX, se relacionam não somente ao
nascimento do choro, mas ao da música popular brasileira como um todo:

Esta nova estrutura socioeconômica, produto do capitalismo monopolista, fez com que o
interesse por um tipo de música, intimamente ligada à vida cultural e ao lazer urbano,
aumentasse. A música popular se consolidou na forma de uma peça instrumental ou
cantada, disseminada por um suporte escrito-gravado (partitura/fonograma) ou como parte
de espetáculo de apelo popular, como a opereta e o music-hall (e suas variáveis). (id., p. 12)

A estas formas de consumo da música popular, que se firmaram entre 1890 e 1910,
Clarke (1995, apud NAPOLITANO, id., ibid.) destaca a dança como o papel social básico que
a música sempre desempenhou, explicitando a importância das danças de salão trazidas da
Europa:

Elemento catalizador de reuniões coletivas, voltadas para a dança, desde os empertigados


salões vienenses ao mais popularesco “arrasta-pé”, passando pelos saraus familiares e pelos
não tão familiares bordéis e cais de porto, a música popular alimentou (e foi alimentada)
pelas danças de salão.

Segundo Napolitano (id.), o que hoje chamamos de música popular, em seu sentido
mais amplo, e especialmente, o que chamamos de “canção” é um produto do século XX, que,
ao menos em sua forma “fonográfica”, foi adaptada ao mercado urbano, com seu padrão de 32
compassos2. Essa música, de maneira geral, está intensamente ligada à procura de excitação
corporal, no caso da música para dançar, ou ao estímulo emocional, que poderia levar o
ouvinte a chorar de dor ou alegria. (id., ibid.)
Henrique Cazes (op. cit.), também destaca o papel das danças de salão para o
surgimento do choro. Segundo o autor, o processo que levou ao nascimento desse gênero
ocorreu de maneira parecida em diferentes países, onde, a partir dos mesmos elementos -
danças europeias, sobretudo a polca, somadas ao sotaque musical do colonizador e à
influência negra - foram surgindo gêneros que são a base da música popular urbana. Quanto
às influências culturais étnicas no choro, o violonista Maurício Carrilho3 defende, tanto no

2
Na notação musical, os compassos dividem quantitativamente os sons de uma composição em grupos, com base
em pulsos e repousos. Os compassos facilitam a execução musical, pois definem a unidade de tempo, o pulso e o
ritmo de uma composição.
3
Maurício Carrilho participou de importantes grupos da história do choro, como Camerata Carioca e Os
Carioquinhas, ao lado de alguns dos músicos mais influentes do choro contemporâneo. Ele é também um dos
documentário de Brasileirinho Mika Kaurismaki (2005) como em entrevista concedida a mim
em novembro de 2012, que temos três influências principais no choro: a estrutura melódica e
harmônica da dança de salão europeia, a rítmica da música africana e a melancolia no
tratamento de interpretação do índio brasileiro. Na bibliografia consultada, a respeito da
constituição do choro, não tivemos acesso a nenhuma discussão a respeito de contribuições
indígenas diretas para seu surgimento. Por outro lado, os estudos consultados sobre a história
do choro e das músicas e danças que compõem nosso painel nacional sempre destacam as
contribuições europeias e africanas, como podemos ver no discurso do pesquisador Tinhorão:

Toda a história das músicas e danças que compõem o vasto painel de criações
populares, quer na área do campo (onde se desenvolvem as tradições folclóricas),
quer na área na área da cidade (onde as mudanças são mais rápidas, pela
interferência da indústria cultural), só pode ser estudada a partir da realidade dessa
mistura de influências crioulo-africanas e branco-europeias. (2008, p.56)

2.2 A corda trançada do choro

A música popular instrumental brasileira começa a partir dos choromeleiros,


corporação de músicos de importância no período regencial, e dos primeiros grupos de choro
(CIRINO, 2009, pp. 48-49). Segundo Cirino, é possível perceber através da audição do
repertório de seus representantes que nossa música popular instrumental é multifacetada por
diversas linhas desde esse início. Essas linhas correspondem às diferentes matrizes presentes
em um mesmo gênero musical. No caso do choro, essas linhas correspondem, sobretudo, às
danças de salão que vigoraram durante o século XIX. Em seu estudo sobre a música popular
instrumental brasileira, Cirino (id.) nos apresenta uma versão do Brasil que abarca diversos
ritmos e estilos. Segundo o autor, a especificidade desse tipo de música produzida no país, a

principais responsáveis pela organização do ensino do choro, sendo um dos principais criadores da Escola
Portátil de Choro do Rio de Janeiro e da Editora Acari, voltada para a produção de álbuns independentes e
materiais musicais didáticos.
qual o autor se refere como MPIB, expõe diferentes formas de articular questões técnicas
provenientes do jazz e de outros gêneros, com os ritmos e melodias brasileiras. O gênero seria
então pensado como uma corda trançada, formada por diversas linhas. Se a MPIB pode ser
considerada um subgênero dentro da MPB (id.), podemos pensar o choro como um subgênero
em relação MPIB.
O pensamento de Cirino sobre a música popular instrumental brasileira discute a
respeito de como os aspectos musicais que caracterizam tais linhas agenciam o “diálogo”
entre sonoridades diferentes. Essa corda traçada a qual o autor se refere, significaria uma
“universalização das linguagens” e uma ruptura com rótulos mercadológicos. Segundo
Piedade (apud CIRINO, id., p. 13), o próprio termo música instrumental, amplamente usado
para designar a MPIB, seria sintomático da atual incerteza que envolve a dimensão de seu
campo musical e suas raízes históricas:

A incerteza sobre o termo é sintomática devido ao fato da música instrumental possuir


muitas matrizes musicais que dificilmente poderiam ser classificadas sob o mesmo rótulo.
Tal diversidade faz com que um termo genérico como este perca sua capacidade
representativa, pois abarcando uma totalidade, não dá conta das particularidades. Isto
acarreta imprecisão e perda de profundidade. (CIRINO, id., pp. 13-14)

O choro, ao mesmo tempo em que é parte integrante da corda trançada da MPIB, é


também formado a partir de diversas matrizes culturais. Numa analogia ao pensamento de
Cirino sob os fios constitutivos da MPIB enquanto gênero, podemos pensar o choro também
como uma trança formada por diversas linhas, que vão se sobrepondo, emergindo e
submergindo à medida que as percorremos. Segundo o pensamento do autor, quando uma
linha submerge, outras retomam seu papel e dão continuidade à trança.
As músicas dançadas nos salões da corte média foram as matrizes do Choro. Se
pensarmos as matrizes culturais (BARBERO, 2001) sob essa perspectiva da trança (CIRINO,
2009), temos que as músicas constitutivas de um gênero, não necessariamente se dissolvem a
partir do novo, elas se entrecruzam.
Apesar de sua origem remeter ao século XIX, é apenas a partir de 1910 que o choro
passa a ser considerado uma forma musical definida. Tango brasileiro era o nome mais usado
por alguns compositores como Ernesto Nazareth, enquanto choro significava a formação
musical, o conjunto. Por exemplo, “o choro da Chiquinha Gonzaga” era o grupo dela, mas
também o evento, a tocata. Dizia-se “vamos para o choro”, como se dizia “vamos ao samba”.
Segundo a visão de Cazes (op. cit., p. 19)4, o choro voltou mais recentemente a significar não
apenas um gênero de música, mas também uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de
música, brasileira ou não. Para refletirmos sobre essa situação, tomamos como base o
pensamento de Barbero (1991, p. 65) sobre a concepção de gênero:

Seguindo a linha de investigação do grupo de Bolonha, o gênero é uma estratégia de


comunicação, ligada profundamente aos vários universos culturais. Chegam a ser
verdadeiros idiomas que, se não pertencem à sua cultura, ficam de fora. O gênero não é só
uma estratégia de produção escrita, é tanto ou mais uma estratégia de leitura. Enquanto as
pessoas não encontram a chave do gênero, não entendem o que está se passando na história.

Cabe ressaltar que, embora existam muitos choros com letra, o rótulo choro se refere
fundamentalmente a um tipo de música instrumental. No início do século XX, as primeiras
letras foram colocadas após a composição da música, e em alguns casos contra a vontade ou
sem o conhecimento do autor. Por questões autorais e até mesmo pela qualidade duvidosa de
muitas letras, num período em que ainda havia poucos letristas no país, o choro cantado
representa ainda um assunto polêmico para a comunidade musical. (CAZES, op. cit.)
Além do choro, as danças de salão serviram de base para a criação de grande parte dos
gêneros de música de nossa tradição, como o samba, o maxixe, o xote, dentre outros. A
seguir, trataremos das principais matrizes do choro, resgatando um pouco do contexto
histórico em que vigoraram no Brasil, de sua representatividade para a sociedade da época e
para a constituição do choro.

2.2.1 A modinha e a lírica brasileira

A modinha é considerada a música mais lírica e sentimental do nosso cancioneiro, e


também a mais antiga. Apesar dos primeiros gêneros musicais surgidos no Brasil remeterem
ao final do século XIX, segundo Napolitano (op. cit.), pode-se dizer que a música urbana no
Brasil teve sua gênese ainda no final do século XVIII, capitaneada por duas formas musicais
básicas: a modinha e o lundu.
Derivada da moda portuguesa, a modinha surge no final do século XVIII. Na sua
forma clássica, adquirida ao longo do I Império, a modinha se assemelhava a ária operística,
com inclinações para o lírico e o melancólico. Domingos Caldas Barbosa, músico brasileiro e

4
Visão corroborada pelo discurso de muitos instrumentistas, nas entrevistas, conversas e audições musicais
durante a realização da pesquisa.
mestiço, é reconhecido como seu inventor, por haver temperado a moda com um pouco de
lundu negro e suavizado o vocabulário solene da corte com o mestiço da colônia.
(NAPOLITANO, op. cit.)
Ao longo das regências e do II Império, a modinha se enraíza de vez no Brasil,
tornando-se quase obrigatória nos salões da corte. A partir do trabalho das casas de edição
musical, introduzidas por volta dos anos 1830, ela torna-se, ao lado do lundu branqueado, um
dos gêneros de maior aceitação. Popularizada no final do império, a modinha sai dos salões e
torna-se uma das matrizes da seresta brasileira, estando entre os nomes mais famosos dessa
fase Xisto Bahia e Catulo da Paixão Cearense. (id.)
Apesar das restrições feitas a sua poesia, Catulo da Paixão Cearense é considerado o
mais importante letrista brasileiro de sua geração. No início do século XX, quando ainda
predominava a música instrumental e eram poucos os letristas no Brasil, além de alguns
poetas e autores de teatro de revista, Catulo especializou-se em fazer letras para melodias
consagradas de compositores contemporâneos. Apesar ter contribuído para aumentar a
popularidade de algumas músicas, Catulo de certa forma aproveitou-se do sucesso alheio para
aumentar seu prestígio, envolvendo-se ainda em questões polêmicas sobre a autoria de
algumas músicas, nas quais o nome do parceiro não aparecia em gravações e edições da
partitura, como na polca Choro e Poesia, cujo título foi alterado pelo letrista para Ontem ao
luar. Esta música teve a letra posta à revelia do autor Pedro de Alcântara, a quem a autoria só
seria restituída quase setenta anos depois, graças aos esforços de uma neta sua. Apesar de
notabilizar-se como um autor de canções seresteiras, Catulo pôs letras em músicas nos estilos
populares da época, entre os quais valsas, schottisch, tangos e canções. (SEVERIANO,
MELLO, 1997)
No início do século XX, entre 1901 e 1916, a música popular brasileira repetia
basicamente as características do século anterior: os mesmos gêneros, além da predileção da
sociedade por piano e da grande influência musical europeia, principalmente francesa. (id., p.
17) A modinha, por sua vez, surgida em fins do século XVIII, aparece ainda entre os gêneros
mais populares, mas, possivelmente, nenhuma seria tão gravada e cantada como “Casinha
Pequenina”, destaque do ano de 1906, e cuja autoria é desconhecida. Como os mesmos
gêneros musicais continuariam a vigorar na passagem do século (além da modinha, a
cançoneta, o schottisch, a polca), a maior novidade do início do século XX para a música, no
entanto, não aconteceria no âmbito estético, mas sim na área tecnológica com o advento do
disco brasileiro em 1902. (id., ibid.)
2.2.2 O lundu e o tempero musical dos afro-brasileiros

Segundo José Ramos Tinhorão (2008), o lundu teria surgido a partir da matéria-prima
do ritmo e da coreografia crioula dos batuques. Ele é posterior à fofa – dança sensual
semelhante ao lundu – e anterior ao fado – dança que daria origem à canção portuguesa que
herdaria seu nome ao ser transportada do Brasil para Portugal. Como dissemos anteriormente,
o lundu forma com a modinha o par consignador da música popular brasileira, e é a partir dos
dois que vão surgir nossas primeiras cantigas. (NAPOLITANO, 2001)
Desde o século XVI, os batuques constituíam para os escravos africanos, um dos raros
momentos de exercício de seus costumes originais, ricos de expressões de que os
colonizadores jamais poderiam imaginar a extensão. Até o correr do século XVIII, os
portugueses chamavam genericamente de batuques a quaisquer reuniões ruidosas de escravos
e descendentes crioulos. Segundo Tinhorão, essas reuniões não configuravam
necessariamente bailes ou folguedos, mas diversas práticas religiosas, danças rituais e formas
de lazer.

Quando, afinal, pelo correr do século XVIII, as autoridades começaram a distinguir nessas
reuniões à base de danças, cantos e ritmos de percussão o que era culto religioso daquilo
que constituía apenas ritos da vida social ou mera diversão para os escravos, os campos
começaram a ser delimitados. (TINHORÃO, 2008, p. 55)

A partir de então, as cerimônias religiosas passaram a ser realizadas em locais abertos,


às escondidas na mata – de onde vem o nome de roça, ainda hoje usado para os terreiros na
Bahia. Ao mesmo tempo, os batuques da área urbana ou da periferia dos núcleos povoados da
zona rural puderam ser oficialmente reconhecidos, afinal, como locais de diversão.

E foi assim que, com o paralelo crescimento da participação de brancos e mulatos das
camadas baixas das cidades e vilas nesses “batuques de negros”, começaram a surgir
adaptações provocadas pelo casamento da percussão, da coreografia e do canto responsorial
africano-crioulo com estilos de danças, formas melódicas e novo instrumental
(principalmente viola), introduzidos pelos herdeiros nativos da cultura europeia.
(TINHORÃO, id., p. 56)

Antes de chegar ao Brasil o lundu já havia se popularizado em Portugal o que,


segundo o historiador Marcos Napolitano (op. cit.), já aponta para influências suas em
algumas portuguesas que nos foram trazidas. Ao Brasil, entretanto, ele chegou através dos
escravos bantos. Considerado inicialmente uma dança “licenciosa e indecente”, ele acabou
sendo apropriado pelas camadas médias da corte, transformando-se numa forma-canção e
numa dança de salão. (id., p. 41)

A dança lundu, ou lundum estava destinada a subir aos palcos do teatro popular dos
entremezes de Portugal em meados de setecentos e a entrar nas salas das famílias brancas
ao despontar o século XIX no Brasil. E não apenas como dança de roda, mas como seus
antigos estribilhos de ritmo, marcado por palmas transformados em canção, quase sempre
entoada ao som da viola. (TINHORÃO, id., p. 53)

De andamento mais rápido que a modinha e uma marca rítmica mais acentuada e
sensual, o lundu se tornou em uma das primeiras formas culturais afro-brasileiras
reconhecidas como tal. Ao lado da modinha, ele influenciou não apenas o nascimento do
choro, mas da música popular brasileira em geral, e servindo de tempero melódico e
harmônico quando a febre das polcas, valsas, schottish e habaneras tomou conta do país, a
partir de 1840. (NAPOLITANO, id., p. 41). Dessa época, Cazes (op. cit., p. 25) destaca o
“Lundu característico”, de 1873. A peça de Antonio Callado, músico considerado um dos
primeiros e mais importantes flautistas da linhagem brasileira de flauta, traz em seis partes um
resumo das tendências da época, já apontando para o abrasileiramento da polca e o
surgimento do maxixe como acento musical.

2.2.3 A schottisch, as bandas de música e as primeiras gravações mecânicas de choro

Além de ser uma corruptela do nome, o xótis nordestino herdou da schottisch o uso de
figuras pontuadas5 na melodia, mas seus andamentos mais ligeiros e sua marcação rítmica, no
entanto, são totalmente diferentes da dança original. (CAZES, 2008, p. 27) Dança europeia de
andamento mais lento que a polca, a schottisch teve como seu principal representante no
Brasil o músico Anacleto de Medeiros. Considerado hoje um dos pilares do choro, Anacleto
compôs muitas schottisches que alcançaram sucesso e lhe tornaram conhecido como

5
Na notação musical, a figura ou nota pode ter seu som prolongado, acrescentando-se um ponto após a nota.
O ponto acrescenta à nota metade do valor que ela já tem.
compositor, e lhe fizeram ser apontado como o introdutor do sotaque brasileiro na schottisch.
Nascido em 13 de julho de 1866, Anacleto era filho de uma escrava liberta com um médico
que cuidava dos pobres da Ilha de Paquetá, onde nasceu. O músico começou a tocar flauta e
flautim em bandas já aos nove anos, tendo como seu primeiro mestre o compositor e regente
Antonio dos Santos Bocot, na Companhia de Menores do Arsenal de Guerra. (id., ibid.) Seu
mestre era autor de polcas conhecidas na época como “os bombeiros do Recife” e “Sofia”,
sendo assim, a iniciação musical de Anacleto foi feita por um chorão.
Formado como professor de clarineta através do Imperial Conservatório de Música,
onde ingressou em 1884, Anacleto dominava todos os instrumentos de sopro, mas tinha
especial predileção pelo sax soprano. Anacleto dedicou sua vida as bandas de música,
destacando-se como regente e organizador da Banda do Corpo de Bombeiros devido à grande
qualidade musical que o conjunto alcançou. Considerado um exímio melodista, excelente
harmonizador, Anacleto sabia orquestrar de forma bastante evoluída para o que o autor chama
de um músico de banda (grifo nosso) da época. (id., p.28)
Cazes defende que para muitos músicos brasileiros, mais do que o prazer da música, as
bandas de música representaram a diferença entre a miséria e a dignidade, pois tocar em uma
banda de música era também uma forma de inserção social. No Brasil o processo de
modernização das bandas de música ocorreu com atraso, mas, de acordo com Oswaldo Passos
Cabral (apud CAZES, id., p. 28), em seu livro intitulado A banda de música como fator
cultural de um povo, em 1870 o país já contava com mais de 3 mil bandas em todo o país e
em todas as pequenas cidades havia pelo menos uma corporação civil e militar. Cazes nos
esclarece a respeito da modernização das bandas de música:

Em meados do século XIX, as bandas de música passavam por um processo de


modernização com o advento dos saxofones e saxhorns, famílias de instrumentos criados
pelo belga Adolf Sax por volta de 1840. O advento do sax, juntamente com a progressiva
substituição das flautas de madeira pelas metálicas, entre outros aperfeiçoamentos
introduzidos nesse período, melhoraram de modo sensível a sonoridade e a afinação da
banda.

As bandas de música foram muito importantes para a história do choro e da música


brasileira como um todo, tanto em um sentindo estético, ou seja, pela sonoridade dos metais
emprestada a diversos estilos de música, como também pelo papel social que desempenharam
através da educação e profissionalização de muitos dos nossos músicos. Quanto à transmissão
do choro, mais especificamente, ela foi fundamental no sentido em que eram em geralmente
responsáveis pelo processo de educação musical de seus componentes. Como a maioria dos
mestres tocavam danças do choro, naturalmente as bandas tiveram um efeito multiplicador da
dessa cultura, contribuindo de maneira crescente para o surgimento de mais músicos que
dominavam a linguagem. (id., p. 29)
Outra grande contribuição das bandas de música foram as primeiras gravações
mecânicas do repertório de choro. Numa época em que não existia amplificação de som,
qualquer evento de maior porte exigia a presença de uma banda. Foi a potência desse tipo de
formação, capaz de superar a precariedade do sistema de gravação, que levou à escolha da
banda de música para os primeiros registros instrumentais. A escolhida para realizar a
primeira gravação, pela qualidade e delicadeza com os quais executava seus arranjos, foi
justamente a banda do Corpo de Bombeiros, comandada por Anacleto, segundo Henrique
Cazes (id., p. 39):

O registro sonoro mecânico acontecia a partir de um cone de metal que tinha em sua
extremidade um diafragma. Este comandava a agulha que cavava os sulcos na cera.
Portanto, era necessário potência sonora para garantir que a gravação do som fosse eficaz.
E já que iria ser uma banda, que fosse a melhor do Rio de Janeiro.

Além de músicas do próprio Anacleto, dentre elas polcas, tangos e schottisches, do


próprio Anacleto, o repertório dessas gravações contava ainda com músicas de outros
compositores, incluindo uma seleção de temas de Il Guarany de Carlos Gomes. Anacleto de
Medeiros foi autor de grandes sucessos dessa época, como o schottisch Iara, música que anos
depois recebeu letra de Catulo da Paixão Cearense, o principal letrista até então. A música foi
considerada “uma obra prima de beleza e simplicidade” pelo maestro Batista Siqueira que a
descreve pela “melodia espontânea e escorreita; harmonização singela com alguns acordes
arpejados, principalmente no tempo fraco dos compassos”. (SEVERIANO, MELLO, 1997, p.
28) Posteriormente essa composição teve seu tema aproveitado por Villa-Lobos em sua obra
“Choros nº 10”. (id., ibid.)

2.2.4. A polca e a mudança de costumes

Em compasso binário, com indicação de andamento allegreto6, melodias saltitantes e


comunicativas, a polca conseguiu em pouco tempo dominar os salões, mesmo enfrentando a

6
Termo italiano que designa um andamento musical animado, mas não tão depressa quanto o alegro.
oposição dos moralistas, e influenciou fortemente o choro, sendo considerada por
pesquisadores como um marco inicial para a história do choro.

Assim, se observarmos o maxixe brasileiro, a beguine da Martinica, o danzón de Santiago


de Cuba e o ragtime norte-americano, vemos que todos são adaptações da polca. A
diferença de resultado se deve ao sotaque inerente à música de cada colonizador (português,
espanhol, francês e inglês) e, em alguns casos, a uma maior influência da música religiosa.

Henrique Cazes (op. cit.) afirma que se tivesse que apontar uma data para o início da
história do choro não hesitaria em dar o mês de julho de 1845, quando a polca foi dançada
pela primeira vez no Teatro São Pedro. Segundo Cazes, a chegada dessa dança, vinda da
Europa Central via Paris, foi cercada de grande expectativa, graças ao impacto causado em
Lisboa dez meses antes.
Na época em que a polca surge no Brasil, as danças de salão passavam por um
processo de mudança de forma coletiva (quadrilha e minueto) para a de par enlaçado. Essa
mudança vinha ao encontro do anseio de uma maior liberalização dos costumes e teve na
polca seu meio de propagação. (id., p. 17) Essa circunstância nos remete ao papel mediador
que a música popular sempre desempenhou em nossa música, sendo ao mesmo tempo um dos
primeiros e mais representativos sinais de transformação de uma sociedade. Se por um lado a
polca representa uma forte mudança de costumes na sociedade brasileira, por outro, o largo
período em que ela esteve em voga nos leva a refletir sobre a longa duração de uma moda
naquele período. (id., p. 18)

2.2.5. O maxixe e o tango brasileiro na trança do choro

De acordo com as obras consultadas, o tango brasileiro e o maxixe seriam, muito


provavelmente, as primeiras músicas do repertório de choro nascidas a partir do trançado de
suas matrizes culturais. Enquanto as outras linhas de choro, como a polca, o lundu são
derivações de danças já existentes, trazidas ao Brasil, o maxixe e o tango brasileiro trazem um
novo balanço a nossa música, justamente através do entrançamento da maior parte das linhas
musicais da época.
O tango brasileiro é, assim como o maxixe, resultado da fusão de melodias de polca com
acompanhamentos de habanera estilizada, via lundu. A valsa, dança ternária oriunda da
Áustria e da Alemanha e que chegou ao Brasil com a corte portuguesa, desenvolveu aqui
características próprias, como andamentos bem lentos para dar vazão a tanto
sentimentalismo e um esquema de modulações similar ao das polcas. Nazaré aprofundou as
possibilidades desses gêneros através de uma obra volumosa e de qualidade homogênea.
(id., pp. 34, 35)

Tudo indica que teria sido Henrique Alves Mesquita - primeiro professor de Antonio
Calado - o introdutor da habanera no Brasil e criador do tango brasileiro (id., p. 22). A
habanera era um ritmo cubano com raízes no norte da África e similar ao tango andaluz que
fazia sucesso em Paris, cidade onde Mesquita viveu por nove anos graças a uma bolsa
mantida pela família real francesa, com quem mantinha uma boa relação. Cinco anos após seu
retorno ao Brasil, em 1871, Mesquita lança Olhos Matadores, música considerada o primeiro
tango brasileiro, gênero que inicialmente descrevia uma adaptação abrasileirada da habanera
cubana, mas passou, posteriormente a servir como rótulo elegante para polcas-lundu e
maxixes. O tango argentino é diferente do brasileiro pois o primeiro mescla a habanera e a
milonga criolla. (id., ibid.)
Ernesto Nazareth, entretanto, foi quem mais se destacou como compositor de tangos
brasileiros, além de ser apontado ao lado de Anacleto de Madeiros e Chiquinha Gonzaga
como um dos compositores mais importantes do período e, todos eles, fundamentais para a
história do choro. Apesar de ser um chorão fundamental para a linguagem do choro, Nazareth
não foi um chorão como outros do seu tempo. Segundo Cazes (id., p. 34), o músico construiu
seu estilo “entre o sofisticado e o espontâneo, entre o balanço rasgado de um maxixe e as sutis
fermatas7 de uma valsa chopiniana”. Iniciado no piano ainda na infância, Nazareth absorveu a
cultura pianística europeia, que seria a base de sua boa técnica. As composições de Nazareth
conseguem reunir ao mesmo tempo, elementos eruditos e populares. Enquanto os chorões
adaptavam partituras de piano aos grupos de choro, Ernesto adaptou a linguagem dos chorões
a expressão do piano. (id. ibid.)
Composta em 1889, é de Chiquinha Gonzaga a música de maior destaque no primeiro
ano do século XX. Ó abre alas, uma marcha-rancho composta para o cordão Rosa de Ouro
esteve entre as principais músicas do carnaval carioca por cerca de dez anos e inaugura um
novo gênero de música no Brasil: a marcha carnavalesca. Segundo Cazes (id.), Chiquinha é
considerada um dos nomes mais expressivos do choro, se não pelo volume de sua obra, por
seu pioneirismo em diferentes âmbitos e sua atuação em defesa da cultura nacional, que

7
A fermata é um sinal de expressão que indica ao intérprete que o som deve ser sustentado mais tempo que o seu
valor original.
segundo o autor beneficiaram a musicalidade do choro em termos de abertura de espaços
considerados até então para a chamada “música culta”. Chiquinha foi a primeira e mais
importante mulher do choro brasileira. Pioneira em diversos aspectos, até mesmo na produção
fonográfica independente, Chiquinha conseguiu na simplicidade de sua obra atender com
música as demandas da sociedade, mexer com seus costumes e sintetizar um período da
música brasileira.

2.2. A definição do gênero

Existem muitas versões para o surgimento da palavra choro. Como não queremos nos
aprofundar nessa questão, apontaremos aqui a de Cazes (id.) por ser a mais utilizada entre os
próprios instrumentistas. Segundo o autor, a definição teria vindo em decorrência da maneira
sentimental com a qual os músicos interpretavam as polcas. É importante destacar que o
termo choro começou a ser gradativamente utilizado para se referir aos grupos de chorões, às
festas onde se tocava choro, como foi dito anteriormente, e acrescentar que foi a partir das
mãos de Pixinguinha, em 1910, que ele passa a significar um gênero definido. Pixinguinha foi
o responsável pela fixação do gênero bem como pela modernização do Choro, formando com
os três compositores anteriores - Chiquinha, Anacleto e Ernesto - os quatro nomes mais
importantes desse período.

3. O choro entre matrizes culturais e mediações comunicativas

3.1. A mediação da tecnologia

A reinserção do estudo da comunicação no campo da cultura – de suas


temporalidades sociais e suas especificidades políticas – implicou uma primeira
desterritorialização conceitual que abriu esse estudo à pluralidade dos atores e à
complexidade de suas dinâmicas. No mesmo impulso que vem desse deslocamento
fez-se crucial nos anos 1990 reterritorializar a comunicação: então como movimento
que atravessa e desloca a cultura. Pois o lugar da cultura na sociedade muda quando
a mediação tecnológica da comunicação deixa de ser meramente instrumental para
se converter em estrutural: a tecnologia remete hoje não à novidade de alguns
aparelhos, mas a novos modos de percepção e de linguagem, a novas escritas, à
mutação cultural que implica a associação do novo modo de produzir com um novo
modo de comunicar que converte o conhecimento em uma força produtiva direta.
(MARTIN-BARBERO, 2004, P. 229)

Tomando o pensamento de Barbero (id.) sobre a nova trama comunicativa da cultura,


a metáfora da “roda de choro em movimento” diz respeito, sobretudo, a concepção da cultura
do choro a partir de suas sociabilidades e dos novos usos e sentidos que essa música vem
assumindo ao longo do tempo. Como falamos anteriormente, o choro nasce da maneira com
que os instrumentistas brasileiros se apropriavam dos estilos musicais que vigoravam na
passagem do século XIX para o século XX. Primeiramente considerado uma forma de
interpretar suas matrizes musicais, como a polca, por exemplo, o choro só passa a ser
reconhecido como um gênero musical a partir de 1910, cerca de quatro décadas após o
período a que se atribui seu surgimento – por volta de 1870. Em nossa cultura global, no
entanto, o choro volta a ser considerado uma linguagem musical aplicável a outros tipos de
música. Essas mudanças de usos e sentidos do choro têm a ver principalmente com o contexto
social interativo que a música representa em nossos dias atuais, como podemos verificar na
passagem abaixo:

Este novo papel da música na cultura global diz respeito ao fato de que
anteriormente a música significava algo externo a si mesma, uma realidade, a
verdade. Em vez disso, a música se tornou um médium que media, como lhe é
próprio, a mediação. Em outras palavras, a música, na cultura global [...] funciona
como um contexto social interativo, um canal para outras formas de interação, outras
formas de apropriação do mundo, socialmente mediadas. (ERLMANN apud
CIRINO, id., p. 232 – tradução do autor)

As mudanças tecnológicas influenciam os novos modos de apropriação do choro,


porque mediam novas maneiras de se correlacionar a partir dessa prática cultural. Quando
pensamos na música, por sua vez, como um contexto social interativo, identificamos o papel
das mediações da tecnologia em novas formas de interação na música, isto é, novas formas de
tocar, compor, de ensinar, aprender etc.
O emprego de máquinas na mediação da comunicação é uma característica básica dos
meios de comunicação de massa e a música se relaciona fortemente com eles na medida em
que os dispositivos mecânicos, elétricos e eletrônicos da comunicação de massa possibilitam
seu registro permanente e a sua multiplicação, através de mensagens impressas, em jornais,
revistas e livros, por exemplo, ou da gravação de seu conteúdo em disco, rádio etc. A
inovação, entretanto, não se dá apenas no dispositivo em si, mas nas mudanças perceptivas da
sociedade a partir desses dispositivos. Segundo Barbeiro (id.), a mediação da tecnologia não
se dá em relação à mudança de seus dispositivos, mas a um novo de produzir, com um novo
comunicar. Quando abandonamos a concepção meramente instrumental da mediação
(BARBERO, id.) tecnológica da comunicação, convertendo-a uma perspectiva estrutural,
percebemos que a tecnologia na cultura global passa a fazer parte da própria música.

3.2. Da difusão à criação e apropriação cultural

Pude perceber durante a pesquisa que há uma ideia disseminada entre os músicos de
choro, e por parte do público, de que o ele não está na mídia. Por um lado essa ideia remete ao
fato de que, na mídia tradicional, os espaços reservados à música instrumental são mínimos,
quando comparados aos que são destinados à música cantada, além de geralmente comporem
apenas a programação de emissoras públicas ou canais fechados de TV. Por outro, faz-se
necessário refletir um pouco a respeito do processo de difusão do choro, em que os veículos
atuam (SOUZA, id), mas considerando a comunicação como um componente de nossa vida
social, que não deve mais ser resumida aos veículos que a compõem. (id.).
Desde seu início, a história do choro se relaciona com a trajetória dos meios de
comunicação de massa no Brasil. Apesar de se consolidar através dos formatos escrito
(partitura) e gravado (fonograma), é principalmente através do rádio que o choro chega ao
grande público. O choro sempre teve seus valores alimentados e redescobertos pelos veículos
de comunicação: passado seu período áureo no rádio brasileiro, o choro toma novo fôlego na
mídia nos anos 70 (op. cit.), mas provavelmente nunca experimentou tantos modos de se
configurar como em nossos dias atuais, em meio à pluralidade de meios de comunicação
social interagindo entre si (SOUZA, id.). Como define Barbero (op. cit., pp.219, 220): “Nessa
perspectiva indústria cultural e comunicações massivas são o nome dos novos processos de
produção e circulação da cultura, que correspondem não só a inovações tecnológicas, mas a
novas formas de sensibilidade.”. E é a partir desses novos processos que o choro tem
circulado no mundo inteiro, não apenas sendo consumido, mas sendo também apropriado por
outras culturas.
Entre as décadas de 20 e 30 as emissoras de rádio do Brasil tocavam principalmente
música erudita. Ao final desse período, já na década de 40, as emissoras mais abastadas fazem
questão de manter orquestras que, além das músicas eruditas, começam a tocar músicas de
cunho popular. (CIRINO, id. pp. 21 e 22) A Rádio Nacional do Rio de Janeiro, por exemplo,
mantinha em sua folha de pagamento centenas de músicos e dezesseis maestros. (CIRINO, id.
pp. 21 e 22) Mais do que uma inovação tecnológica, o rádio leva o choro as massas através de
um novo processo de produção e circulação de cultura.
Cazes (op. cit.) considera que a década de 30 trouxe um salto qualitativo e quantitativo
para a música popular brasileira, na medida em que muitos compositores e cantores tiveram o
rádio como o principal veículo de divulgação. Para uma estação de rádio da época era
indispensável o trabalho conjunto do tipo “regional”, pois, sendo uma formação que não
necessitava de arranjos escritos, tinha a agilidade e o poder de improvisação para tapar
buracos e resolver qualquer parada no que se referisse ao acompanhamento de cantores.
Segundo Cazes, (op. cit., p. 83) “O nome regional se originou de grupos como Turunas
Pernambucanos, Voz do Sertão e mesmo Os Oito Batutas, que na década de 1920 associavam
a instrumentação de violões, cavaquinhos, percussão e algum solista a um caráter de música
instrumental.”.
O processo de desenvolvimento do choro no Nordeste, na primeira metade do século
XX, seguiu um roteiro parecido nas diversas capitais. (CAZES, id. p. 153) Em torno das
principais estações de rádio surgiram conjuntos regionais formados por músicos mais
habilidosos, geralmente vindos do interior. Muitos emigraram de capitais menores para Recife
ou Salvador, atraídos por uma maior oferta de trabalho, enquanto outros tentavam o Rio de
Janeiro ou São Paulo, e com talento e perseverança, acabavam por si tornar nomes nacionais.
(CAZES, op. cit., p. 153)
Para além do movimento de propagação e aproximação do choro com o grande
público, o rádio foi – e ainda é – um lugar estratégico de criação e apropriação cultural não
apenas para o choro, mas para o conteúdo da MPIB de maneira geral.

Na esfera cultural o que aparece explicitamente referido à comunicação continuam a


ser as práticas de difusão: a comunicação como veículo de conteúdos culturais ou
como movimento de propagação e acercamento dos públicos às obras. E, coerente
com essa redução do processo ao veículo, será legitimada também a redução dos
receptores a consumidores e admiradores da atividade desenvolvidas na obra.
Apenas se começa a assumir a comunicação como espaço estratégico de criação e
apropriação cultural, de ativação da competência e da experiência criativa das
pessoas, e reconhecimento das diferenças, ou seja, do que culturalmente são e fazem
os outros, as classes, as outras etnias, os outros países, as outras gerações.
(BARBERO, id., p.227, grifo do autor)
3.3. O programa Brasileirinho

Com o objetivo de observar mediações da tecnologia nas formas de interação dos


chorões, empenhei-me na “escuta” de um dos principais espaços de sociabilidade do contexto
do choro na cidade de Fortaleza. Nos parágrafos que se seguem, descrevo uma audição do
programa Brasileirinho, programa de Rádio de Fortaleza, especialmente dedicado ao choro,
transmitido todos os domingos pela Rádio Universitária e apresentado pelo jornalista Nelson
Augusto. O programa começa às 10h da manhã e vai até o meio-dia. A audição descrita
abaixo foi feita através de um pequeno aparelho de som da marca Britânia, na cozinha da
minha casa. Ao mesmo tempo, eu acompanhava o programa pelo rádio e pelo twitter. Embora
eu pudesse escutar o programa pelo site da Rádio Universitária, o que seria mais prático, já
que usava a internet para conectar-me ao twitter, mas me agrava a ideia de usar as duas mídias
e vivencia a audição do programa através da “pluralidade de mídias agindo entre si”
(BARBERO op. cit.).
Nelson Augusto abre o programa colocando algumas gravações de choro. Entre elas,
uma me chama a atenção. Embora o nome e o autor da música tenham me escapada na hora,
não pude deixar de perceber – e achar engraçado - os sons de animais que apareciam no meio
da música. Logo soube por Nelson que a gravação era do grupo de Fortaleza Cordas que
Falam, e que aqueles ruídos eram feitos com a boca, pelo músico Fernando do Pandeiro.
O apresentador cumprimenta o público e em seguida apresenta Sardinha, que explica
estar afastado do programa a mais de 15 dias por causa das eleições. Sardinha toca aos
domingos no programa, intercalado ao grupo Cordas que Falam.
Percebo que há espectadores no estúdio, pois ao final de cada música escuto aplausos.
Entre uma música e outra, Nelson e os músicos conversam amenidades, riem juntos, e o
jornalista comenta os pedidos dos ouvintes, que se comunicam com o programa por telefone,
ou através das redes sociais (twitter e msn), por onde se comunicam diretamente com Nelson.
O apresentador anuncia a chegada de mais um música ao estúdio: Rômulo Santiago,
trombonista, que logo começa a tocar com o grupo. Os ouvintes continuam pedindo música.
Além dos nomes, alguns dizem a profissão, outros falam onde vivem.
Sardinha oferece a música Vibrações de Jacob do Bandolim para a irmã Cristina e para
o bandolinista Carlinhos Patriolino (seu amigo de infância). Após a execução da música,
Nelson continua a comentar as mensagens dos ouvintes e declara que há uma grande
participação do público pelo Twitter. Por uma das redes sociais, Vanildo, percussionista da
banda Dona Zefinha declara estar escutando o programa e aproveita para divulgar o Festival
de Música Percussiva, mandando um “alô” para seus amigos de Guaramiranga.
O regional conduzido por Sardinha toca muitos choros consagrados, como Vibrações e
Receita de Samba, mas também músicas menos famosas, de compositores como Jonas (do
cavaco) e Luis Gonzaga, que embora seja conhecido como ‘Rei do Baião’, normalmente não é
reconhecido por seus choros.
Se junta ao regional, Maia, clarinetista, que acaba de chegar. O grupo escolhe então
uma música composta especialmente para instrumento: Acariciando de Abel Ferreira.
Enquanto Maia sola a melodia principal, e Rômulo faz o contraponto no trombone. As
músicas parecem ser escolhidas na hora, à medida que outros músicos vão chegando e que os
músicos presentes vão se revezando na roda. Pedro Madeira vai para o cavaco e o
apresentador revela: “Aqui a mudança de músicos é constante!”.
Sardinha toca a música Eu quero é sossego de K-ximbinho ao violão. Ele executa a
música inteira, sozinho, e o regional entra em seguida, fazendo a repetição da música, quando
o músico passa de solista a acompanhante. Os solistas improvisam de maneira sutil, fazendo
variações sobre o tema. Enquanto isso, eu mando uma mensagem por Twitter Nelson.
Uma voz que eu não consegui identificar anuncia: “Olha a hora, Zé Ramundo”. Eram
11h 15m e Nelson anuncia que havia chegado “a hora de contar uma história engraçada”.
Nelson pede para ao compositor Zotabê – que até então não havia sido anunciado no
programa – que conte a história engraçada do dia e aproveite para falar do CD que está
lançando com Sardinha. Jotabê explica que trata-se de um CD intimista, fala rapidamente do
trabalho, mas não consegue contar nenhuma história.
Nelson volta a comentar os recados nas redes sociais. Entre eles, o meu - que havia
mais para testar a agilidade da interação do programa com os ouvintes através da rede social.
Nelson comunica os pedidos dos ouvintes ao regional, mas Sardinha anuncia que o grupo
tentará tocar uma música inédita de Maia do clarinete. Segundo Nelson, Maia é um
“colaborador do programa”. Maia, por sua vez, declara ter feito a música em homenagem ao
programa Brasileirinho. Depois que o regional executa a música – que foi tocada lida, porque
até então era desconhecida por todos - Nelson agradece a homenagem de Maia e anuncia a
próxima música. O apresentador avisa que Emanuel iria solar, e durante a execução da música
ouvimos também a volta do trombone de Rômulo.
O programa segue no mesmo clima descontraído até seu final, ao meio-dia. Entre
músicas, conversas e risos que eu escutava, sentia como se pudesse “ver” o que se passava lá.
Não apenas porque conhecesse a maioria dos personagens – mesmo porque se não os
conhecesse provavelmente os inventaria em minha imaginação – mas principalmente porque,
como foi dito anteriormente, um ambiente acústico nos conta histórias. Através da interação
do rádio com as redes sociais, era possível não apenas acompanha o programa, mas também,
de alguma forma especial, participasse daquele momento de sociabilidade. Abaixo, alguns
mensagens trocadas do twitter de Nelson (que serve como twiter do programa):

Antonio Carlos @antonioptfs


@Nelson_augusto Turma afinada e maravilhadamente bem transmitida pela FM Universitária. Parabéns.
Retwitteado por Nelson Augusto

Nelson Augusto @Nelson_augusto


No Brasileirinho
da http://www.radiouniversitariafm.com.br Sardinha(violão),Pedro(cavaco),Maia(clarinete),Rômulo(trombone)
& Paulinho Pandeiro-EuQueroÉSossego

Nelson Augusto @Nelson_augusto


No programa Brasileirinho na http://www.radiouniversitariafm.com.br/ Sardinha & Convidados tocam
"Caminhando" samba de Nelson Cavaquinho
Figura 1Figura 1Da esquerda para a direita: Fernando do Pandeiro, Tarcísio Sardinha e Lauro Viana, na gravação do
programa brasileirinho. Atrás, ouvintes do programa assistindo sua transmissão no estúdio. Fonte: Elísio Cunha

Figura 2 Sardinha e Lauro Vianna lendo um choro no momento da transmissão do programa. Embora Sardinha não mantenha
um grupo fixo no programa, o regional de Sardinha geralmente é composto por ex-alunos seus. No dia da audição, todos os
músicos presentes eram jovens, da faixa etária de Lauro, e foram seus alunos, exceto Maia do clarinete, que é da sua geração

4. A sociabilidade dos novos chorões de Fortaleza


Enquanto pop, rock, reggae, axé, música eletrônica e outras vertentes sonoras
embalam as festas, os dials radiofônicos e os MP3-players de grande parte do
público jovem, um gênero bem brasileiro vem dando o tom para uma música cujos
grandes nomes remontam a décadas passadas, mas seguem ecoando, seduzindo
plateias, abrindo espaço para outros artistas e dialogando com a atualidade. O
Caderno 3 de hoje apresenta alguns dos novíssimos chorões de Fortaleza e convida a
um encontro com essa música feita de juventude e talento. (texto-legenda da
reportagem Os Novos Chorões de Fortaleza, Diário do Nordeste, em 20, de Julho de
2008)

Em 20 de julho de 2008 o Jornal Diário do Nordeste pública uma edição especial do


Caderno 3 voltada para o choro, intitulada “Os novos chorões de Fortaleza”. Nas páginas
seguintes, reportagens com aqueles que, segundo o veículo, seriam os “novíssimos chorões de
Fortaleza”, além da opinião de estudiosos da música, sobre os novos caminhos que a cultura
do choro8 tomava naquele contexto, no que diz respeito tanto à formação musical quanto a
inserção dos jovens instrumentistas no mercado de trabalho.
Através de fotos individuais dos integrantes – além da foto principal do conjunto – e
de seus depoimentos, as matérias mostravam modos de interpelação e composição de seus
atores e identidades. Considerando a definição de Souza (1995) sobre sociabilidade, transcrita
abaixo, pudemos perceber que o caderno enfocava o contexto do choro na cidade a partir da
sociabilidade de jovens entre 16 e 26 anos. A matéria buscava, sobretudo, suas negociações
cotidianas, ou seja, os fatores que os reuniram para tocar choro, as circunstâncias de formação
dos grupos, suas influências musicais e suas expectativas para o futuro. De acordo com Souza
(id., p. 31), a sociabilidade:

[...] é o nome com que hoje se denomina o que na sociedade excede a ordem da
razão institucional. É a trama que forma os sujeitos e atores para costurar a ordem e
redesenhá-la, mas também suas negociações cotidianas com o poder e as
instituições. Dela emergem os movimentos que deslocam e recompõem o mapa dos
conflitos sociais, dos modos de interpelação e constituição de atores e identidades.

O caderno colocava em foco três grupos de choro recém-formados na cidade:


Murmurando, Vida Boêmia, e Fulô de Araçá. Para cada um desses grupos foi dedicada uma
página do caderno, trazendo fotos e reportagem completa sobre o processo de formação dos
grupos, suas influências musicais e suas expectativas para o futuro. Independente dos
propósitos políticos ou ideológicos do veículo, o interesse de um grande jornal da cidade por

8
Quando nos referimos à cultura do choro, consideramos não apenas a música, mas a todo o contexto social
relacionado à sua prática, seus costumes, o estilo de vida dos músicos, de seu público etc.
aquela circunstância, apontava para uma mudança do lugar da cultura do choro na sociedade,
em um momento em que os processos de globalização econômica e informacional reavivam
questões das identidades culturais - sobretudo as locais, de gênero e as de idade – e
reconfiguram a força, e o sentido dos laços sociais e das possibilidades de convivência no
nacional. (BARBERO, op. cit., p.227)
Os estudos da vida cotidiana estão entre as principais chaves da trama conceitual da
investigação da recepção na América Latina. (id., p. 58) Segundo Barbero (id., p.60), resgatar
o sentido comum é resgatar o viver cotidiano como espaço de produção de conhecimento e
como espaço de produção e de troca de sensibilidade. No presente capítulo, refletimos a
respeito da paisagem do choro na cidade de Fortaleza em nossos dias atuais, a partir do viver
cotidiano de seus novos atores e da dimensão social da construção de suas subjetividades,
menos como um plano de interioridade individualizada e mais como plano de realidade, como
acentua Czamak (apud SOUZA, op. cit., p. 33-34):

Não cabe mais aqui buscar limites nos quais essa construção seja mais individual ou mais
social, porém, à medida que novas formas de subjetivação são descobertas no meio social,
aparece um novo prisma de estudo: como, na prática cotidiana, as pessoas encontram elos
para relacionar-se consigo mesmas; como se veem a si mesmas e como constroem sua
identidade de sujeito.

A partir de suas dinâmicas de formação e atuação, analisamos as circunstâncias de


criação dos grupos – Murmurando, Vida Boêmia, Fulô de Araçá - em busca dos elos comuns,
responsáveis por unir esses músicos através do choro, bem como as especificidades de cada
grupo. No que diz respeito às sociabilidades, buscamos a forma como se conheceram, como
se juntaram, a dinâmica dos encontros musicais etc. Em relação às identidades, consideramos
a visão dos próprios atores e sua atuação no contexto social. Refletimos a respeito da
sociabilidade desses atores, a partir de seus próprios discursos, da concepção dos discursos da
mídia impressa9 e das informações apreendidas através da observação do campo e de
conversas informais com os músicos que fazem parte desse contexto.

9
As principais referências foram às reportagens Chorando em alto e bom som, Boemia Renovada e O chorinho
delas do Jornal Diário do Nordeste, de 20 de julho de 2008, publicadas na edição do Caderno 3 intitulada Os
novos chorões de Fortaleza, a matéria Grupos escolhidos para competição e o livreto da programação do II
Chorinho no Centro – Um “Chorinho” para Ademilde, realizado pelo Centro Cultural do Banco de Nordeste, de
13 a 28 de junho de 2012.
4.1 O grupo Murmurando

Dos novos grupos de choro abordados pelo Caderno 3, o Murmurando foi o primeiro a
se formar. Segundo seus integrantes, a ideia do grupo surgiu no Festival Música na Ibiapaba
2006 - do qual alguns músicos do conjunto participaram - mas sua formação10 havia se
completado a partir de uma oficina de choro promovida pela FUNCET11. Samuel Rocha,
violonista de sete cordas, ressalta a importância da oficina e do papel desempenhado por
Sardinha12 – professor da oficina – para sua imersão no universo do choro: “A gente já tocava,
mas não tinha a manha do choro em si. Todo mundo já era músico, mas não necessariamente
de choro. Quando tivemos aula com o Sardinha, nessa oficina, abriu a nossa mente pro choro
de vez.”13.

4.1.1 A formação do Murmurando

Naquele período (2008), o grupo tinha em sua formação Giltácio Santos (clarinete),
Lauro Viana (cavaco), Cleilton Gomes (flauta), George ´Chorão´ Anderson (violão de sete),
Samuel Rocha (violão de sete) e Ígor Ribeiro (pandeiro e bateria). Uma particularidade do
sexteto era possuir dois violões de sete cordas14 em sua formação. Em depoimento informal,
Sardinha contou-me que, durante a oficina, era sugerido aos alunos mais avançados no violão
que passassem a atuar nos violões de sete cordas, para equilibrar o naipe de instrumentos do

10
A formação do Murmurando naquele período ainda incluía George Anderson que, posteriormente (2010),
desmembrou-se do grupo, formando o Esquina Brasil, com Pedro Alcântara (bandolim), Jamerson Farias
(cavaco), Iann Caliope (flauta transversa) e Igor Ribeiro (pandeiro), sendo este último ainda integrante do
Murmurando.
11
Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, de onde se originou a Secretaria de Cultura de Fortaleza.
12
Multinstrumentista, compositor, arranjador e virtuoso do violão, Sardinha tem larga experiência na execução e
harmonização de diversos estilos musicais. Profissionalizou-se aos 15 anos, tocando na noite, em rodas de
chorinho e de samba, grupos de baile. Desde os anos 80 tem acompanhado grandes nomes da música local e
nacional, tais como Altamiro Carrilho, Sílvio Caldas, Clementina de Jesus, Fagner, Belchior, Ednardo,
Amelinha, Sebastião Tapajós, Maurício Tapajós, Falcão, Yamandu Costa, Zé Renato, Paulo Moura, Zé da Velha,
Silvério Pontes, Laércio de Freitas entre outros. A sua estratégia didático-pedagógica, que privilegia inicialmente
a prática, para depois introduzir a teoria musical, contribuiu para a criação de inúmeros grupos de choro em
Fortaleza e diversas cidades do interior do estado.
13
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som, do jornal Diário do Nordeste, de 20
de julho de 2008.
14
Desde que o instrumento foi incorporado por Tute no regional de choro (CAZES, op. cit.), os grupos de choro
normalmente só apresentam um violão de sete cordas. Quando existem mais violões no grupo, eles são em geral
de seis cordas.
conjunto da oficina. Samuel e George passaram a desempenhar essa função nas práticas de
conjunto da Funcet e também no grupo Murmurando. Podemos perceber, ainda, a partir dos
discursos apresentados na entrevista, que os integrantes do Murmurando, embora tivessem se
reunido no choro, vinham das mais diferentes trajetórias musicais. Como podemos ver nos
relatos a seguir:

Toco desde os 13 anos. Comecei no Piamarta, com o maestro Costa Holanda, e


passei seis anos na banda de lá, fazendo duas viagens à Itália e estudando sempre
horas e horas por dia [...] Depois, no teste pra faculdade, tinha que tocar um choro
do Pixinguinha, pra poder entrar. Aí arranjei um livro e comecei a estudar as
músicas dele15.

Em entrevista concedida a mim em 05 de novembro de 2010 16, George Anderson


conta que o choro foi também a primeira música que experimentou fora da sua realidade:

Eu tocava nas missas, dia de domingo. Eu fazia parte daqueles grupinhos de crianças
[...] Quando eu entrei no CEFET17, em 2004, eu conheci o Carlinhos Crisóstomo,
que é um violonista daqui da cidade, e ele é um chorão. A história dele, o choro faz
parte da história musical dele. Ele era um professor que não ensinava só a teoria
como a gente vê em todo canto, ele passava muito essa vivência que ele tinha da
música pra gente.

Na entrevista para o jornal, concedida dois anos antes daquela concedida a mim
(2008), George Anderson também ressaltou sua atuação em grupos musicais de igreja e a
importância de Crisóstomo para a sua formação, como podemos ver na passagem a seguir:

Sempre ouvia muito Villa-Lobos [...] Só que aquilo pra mim era muito distante.
Ouvia os violões e achava que nunca ia conseguir fazer aquilo. Até que fui estudar
no CEFET, com o Carlinhos Crisóstomo, e fui aperreando a galera pra me arranjar
os choros18.

Samuel conta que George “sempre pedia choro” e por esse motivo ganhou o apelido
de Chorão, e também fala da entrada de Giltácio para o grupo: “Aí descobrimos que tinha um
clarinetista fera no CEFET, toca Um a zero19 [...]. Ele fez prova pra entrar no grupo”.
Conhecido no meio musical como Gil, o clarinestista, egresso de bandas de música do CEFET
e do Piamarta, fala no depoimento abaixo de sua atuação musical naquele momento que,
segundo ele, se voltava especialmente à regência e à educação musical:

15
Depoimento do flautista Cleilson Gomes, contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
16
Esta entrevista foi publicada no documentário Retratos de um som: um olhar sobre o choro em Fortaleza, de
2011, lançado pela Escola de Audiovisual da Vila das Artes (Fortaleza-CE), com direção e argumento meus.
17
O músico se refere ao curso de música do CEFET-CE, Centro Federal de Educação Tecnológica, cujo nome
atual (2013) é Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)
18
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
19
Choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda, considerado de difícil execução.
Toco clarinete também, até porque é preciso tocar pra poder arrumar trabalho, mas
não me acho principalmente um instrumentista [...] Trabalho agora com o maestro
Gladson Carvalho, na Filarmônica do Ceará. O choro, eu passei a estudar mais desde
que vi uma apresentação do Paulo Moura na TV20.

Igor Ribeiro, pandeirista e baterista, conta que tocava bateria desde os 11 anos,
influenciado pelo som dos Paralamas do Sucesso. O músico estudou na Escola de Música
Luís Assunção, no Centro de Fortaleza, e foi levado para o choro por Samuel, tendo estudado
com músicos como Fernando do Pandeiro, Paulinho do Pandeiro e Pantico Rocha.
Completando a formação, Lauro César, cavaquinhista do grupo, também fala um pouco da
sua trajetória antes de chegar ao choro:

Pedi um cavaquinho ao meu pai e comecei a estudar, mas a galera encaminhou mais
pro lado do samba. Depois toquei no CD instrumental do Adelson 21, no Forró da
Roça22, até vir pro choro23.

Sobre a atuação do grupo, até aquele período, alguns momentos marcantes são
ressaltados na reportagem. Entre eles, a viagem do grupo ao Rio de Janeiro no início daquele
ano (2008), quando acompanharam a Comédia Cearense, para a temporada da peça ´O
Casamento da Peraldiana´, de Carlos Câmara. Os instrumentistas contam que durante a
viagem se viram muitas vezes diante da interrogação: ´Vocês são do Ceará? E lá tem choro?´.
O Jornalista Dawlton Moura destaca ainda a participação do Murmurando no festival Mel
Chorinho e Cachaça de 2007 como um momento de consolidação “[...] no ano passado o
grupo já se consolidara a ponto de ser chamado a tocar no I Festival Mel, Chorinho e
Cachaça, em Viçosa do Ceará.”.
Samuel Rocha define que “desde o começo, a proposta era choro de jovens para
jovens”. A ideia do grupo de difundir o choro entre os jovens de Fortaleza foi transformada
em projeto e o grupo comtemplado por um dos editais da Funcet. Em contrapartida aos R$ 15
mil recebidos como apoio do Poder Público municipal, os integrantes do Murmurando
realizaram aulas-show em diversos bairros da cidade. A reportagem foi publicada poucos dias
após o show que encerrava o projeto. Abaixo, o relato do jornalista Dalwton Moura, nos
apresenta um resumo do momento:

Na última terça-feira, o Theatro José de Alencar recebeu um bom público para


aplaudir seis jovens músicos que, no palco principal, encerravam uma série de oito

20
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
21
Referindo-se ao tio Adelson Viana, renomado músico brasileiro. Natural de Fortaleza, Viana atua como
acordeonista, tecladista, compositor, arranjador e produtor musical.
22
Grupo de “forró pé de Serra” de Adelson Viana.
23
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
apresentações. Eram os integrantes do grupo Murmurando, que entre clássicos do
choro, com um passeio especial por gemas do repertório de Jacob do Bandolim,
foram acolhidos no mais nobre espaço cultural da cidade. Uma noite memorável
para um grupo formado há cerca de dois anos, por músicos entre 19 e 22 anos.

4.1.2 Das influências a concepção musical

O grupo continua apostando no público jovem e essa proposta se reflete também na


concepção musical de seu trabalho. Em depoimento informal, Igor Ribeiro falou-me a
respeito das referências musicais do grupo, e como elas veem influenciando a sonoridade do
Murmurando de seu início aos dias atuais (2013). Ribeiro alega: “a gente teve a fase que
começou a viajar nos arranjos do Tira Poeira24”. Segundo o músico, os arranjos do grupo
carioca influenciaram bastante a concepção musical do Murmurando em sua fase inicial,
tendo sido ele especialmente inspirado pela técnica de Sérgio Krakowski, pandeirista do
grupo:

Um negócio que eu acho bem característico em mim é levar as levadas de bateria


para o bandeiro [...] Eu comecei a estudar essas coisas por causa do Krakowski e
comecei acompanhar com o pandeiro umas músicas nada a ver, uns rock, uns funk
[...] Além do choro comecei a acompanhar outros ritmos com o pandeiro.

Influenciado também por pandeiristas como Marcos Suzano, Paulinho do Pandeiro


(CE), Jorginho do Pandeiro25 (RJ), Ribeiro acredita que vive junto ao grupo uma fase
musicalmente mais madura, e define: “nosso som é choro meio tradicional meio
contemporâneo”. O músico diz ter aprendido com a experiência, dentro e fora do grupo, a
buscar equilíbrio na experimentação e no improviso, para que possa mostrar virtuose sem
descaracterizar o repertório: “você vai ter sua hora [...] com o tempo vai se ligando mais das
coisas, respeitando mais as músicas”, define Ribeiro, acrescentendo:

24
O grupo de música instrumental, formado a partir de rodas informais de improvisação na noite carioca, tem
como uma de suas principais características tocar choro de uma maneira nada convencional, combinando
elementos do jazz, samba, flamenco, clássico, blues, reagge e rock etc. O primeiro álbum do grupo, Tira Poeira,
foi lançado em 2003, quando foram descobertos por Maria Bethânia e convidados a gravar em seu álbum
Brasileirinho.
25
Irmão de Dino Sete Cordas, Jorginho desenvolveu um estilo marcante que influenciou toda uma geração de
pandeiristas, incluindo os que acima foram citados. Cazes (op. cit.) define seu estilo como exuberante, com
muito aproveitamento das possibilidades sonoras do couro do pandeiro e uso do polegar de forma bastante
movimentada. Esse estilo seria um desenvolvimento do estilo de João da Baiana, primeiro pandeirista a se
destacar na história da nossa música. (CAZES, op. cit.) Suzano, Krakowiski e Ribeiro, no entanto, apesar de
terem sido influenciados pelo estilo de Jorginho, invertem o tempo forte da batida e fazem sua marcação,
principalmente, com o dedo médio, em vez do polegar.
Nosso som hoje em dia, desde que começou, a gente vem absorvendo as influencias
e tenta não ser tão tradicional, não tão “cadenciado”, mas também não viajar tanto,
não fazer um negócio tão doido. Tentar mesclar, mostrar a música e depois
improviso. [...] Não é um negócio estereotipado. Nem tão tradicional, nem tão
contemporâneo.

Nesse sentido, uma particularidade do Murmurando, em relação aos demais conjuntos


abordados nesse trabalho, tem a ver com a presença de um clarinetista no conjunto, que abre o
repertório para músicas compostas especialmente para clarinete. Em geral, o repertório de um
grupo de choro é bastante influenciado pelos instrumentos solistas que compõem o conjunto.
Isso acontece porque uma música composta em um determinado instrumento, às vezes
resultará de difícil execução para outro, ou necessitará de adaptações para que possa ser
tocada. Por esse motivo, e também para explorar ao máximo os recursos de seus respectivos
instrumentos, os músicos solistas de choro tendem a especializar-se na obra de compositores
que tocavam seus mesmos instrumentos. Os solistas de cavaquinho, por exemplo, em geral se
empenham em estudar a obra de Waldir Azevedo ou Jonas Pereira, músicos que se dedicaram
a compor por meio do cavaco.

Figura 3 Formação do Murmurando no período da reportagem. Da esquerda para a direita: Samuel Rocha, George ‘Chorão’
Anderson, Igor Ribeiro, Lauro César, Giltácio Santos e Cleilson Gome. Fonte: Diário do Nordeste / Foto: Thiago Gaspar

Nesse sentido, o repertório, no que diz respeito ao seu lado mais “tradicional”, como
se refere Igor Ribeiro, privilegia obras de clarinetistas como Abel Ferreira e K-ximbinho,
além das composições mais famosas, de nomes como Jacob do Bandolim e Pixinguinha.
Ribeiro defende, entretanto, que apesar da influência dos clarinetistas citados acima, na
formatação do repertório do grupo, a técnica de Giltácio se aproxima mais da técnica de
clarinetistas contemporâneos, como Paulo Sergio Santos, Alexandre Ribeiro e Gabrielle
Mirabassi. Ainda em relação ao repertório, o grupo tem se preocupado, de seu início aos dias
atuais (2013), em apresentar ao público músicas de autores contemporâneos, como Zé Paulo
Becker (RJ) Tarcísio Sardinha (CE) e Adelson Viana (CE), e se dedicado a compor e
interpretar músicas próprias.
Em depoimentos informais, Samuel Rocha e Igor Ribeiro, falaram-me a respeito do
primeiro disco da carreira do grupo, que está sendo gravado desde o início de 2013, com a
ajuda de Adelson Viana, em seu estúdio Villa. Segundo os instrumentistas, serão dez faixas
gravas, dentre as quais, cinco de autoria dos integrantes Giltácio dos Santos e Samuel Rocha,
sendo uma música de Rocha uma parceria com Pedro Madeira e Tarcísio Sardinha. Também
serão gravadas composições inéditas de seus contemporâneos Adelson Vianna, Gilson
Penazeta e Zé Paulo Becker, além de dois choros do repertório tradicional de choro,
considerados de domínio público.

4.2 O Vida Boêmia

Violão de sete cordas, bandolim, pandeiro e... acordeom e trombone. Essa é a receita
do Vida Boêmia, grupo formado há cerca de um ano, por jovens instrumentistas,
para se dedicar ao chorinho. Tarefa facilitada pela experiência já acumulada pelos
garotos, entre períodos como autodidatas e a busca de um aprendizado formal -
quatro dos cinco integrantes cursam a graduação em Música na Universidade
Estadual do Ceará, sem falar na passagem por outras oportunidades de educação
musical, como o curso técnico do Centro Federal de Educação Tecnológica - Cefet
Ceará.

O trecho acima faz parte da reportagem Renovada boemia (op. cit.) dedicada ao grupo
Vida Boêmia. A curta trajetória desse grupo, que acabou se dissolvendo pouco tempo depois
da reportagem, nos leva não apenas a refletir sobre os aspectos que contribuíram para o
surgimento dos novos grupos de choro naquele período, mas também sobre as dificuldades de
se manter um grupo de música instrumental. O Vida Boêmia era formado por Glauber Sousa
(23 anos, acordeonista), Rafael Vieira, conhecido no meio musical por Makito (21, bandolim),
Igor Caracas (21, pandeiro), Pedro de Alcântara, hoje mais conhecido por Pedro Madeira (19,
violão de sete cordas) e Rômulo Santiago (22, trombone). Para que se possa saber a faixa
etária dos músicos naquele contexto abordado pelo Caderno 3, as idades indicadas acima,
correspondem ao período de 2008, quando foi realizada a reportagem com o grupo.

Figura 4Da esquerda para a direita: Rafael 'Makito', Pedro Madeira, Igor Caracas, Glauber Souza e Rômulo Santiago. Fonte:
Diário do Nordeste

4.2.1 A formação do Vida Boêmia

O Vida Boêmia foi se formando a partir de um trio de estudo de choro criado por
Pedro Madeira e Rafael Makito, que na época contava também com o músico Carlos Hardy.
Lembro-me de tê-los cedido o quintal da residência da minha família para alguns ensaios, que
ocorriam normalmente no apartamento de Makito. Assim como o Murmurando, os músicos
do Vida boêmia vinham das mais diversas trajetórias musicais. Makito, por exemplo, passou
por violão, guitarra, trombone, até chegar ao bandolim, instrumento com o qual atuava no
grupo:

Comecei por causa do Pedro. A gente estudava no 7 de Setembro, e ele me


apresentou o bandolim: ´Rapaz, esse bicho é legalzim...´. Mas na música eu comecei
mesmo na rua, tocando no violão dos outros. Depois ganhei instrumento e fui
estudar guitarra com o Mimi Rocha. E trombone no CEFET.

Pedro Madeira, por sua vez, iniciou seus estudos musicais aos 15 anos, no teclado, por
influência do irmão, passou para o violão e foi apresentado por Sardinha ao violão sete cordas
e ao bandolim – instrumento que ganhou de Sardinha em seu aniversário de 18 anos.
Depois comecei a estudar mais, conheci o (violonista e professor Tarcísio) Sardinha,
que me chamou pra uma oficina de choro, lá na Funcet. Dali a gente começou essa
história, no começo do ano, eu e o Makito. Depois vieram o Glauber, o Caracas e o
Rômulo, e eu passei pro sete cordas.

A formação com sanfona e trombone é apontada pelo grupo como um diferencial: O


Dominguinhos toca choro, os regionais de antigamente tinham sanfona [...] E o trombone vem
das influências dos metais, das bandas de música, do Silvério e Zé da Velha... [...], explica
Makito, que apesar de haver atuado como bandolinista no grupo, já havia estudado trombone,
como dissemos acima, e vem se dedicando desde 2011 ao acordeom.

Glauber Souza, que trocou Guaramiranga por Fortaleza com o objetivo de estudar
música, confirma na entrevista que a experimentação funcionou bem. O músico fala ainda de
sua trajetória musical e conta ter conhecido o choro nas festas no sítio da família, com a mãe e
o tio sanfoneiro:

Eu tocava jazz, samba, o que botassem, [...] Toquei no Tambores de Guaramiranga,


participei de CDs, toquei com o Manassés. Depois vim estudar no Cefet e na UECE,
e hoje sou professor de acordeom, na escola Viva Música Viva.

Outro músico do grupo vindo do interior do Estado, Rômulo começou a tocar


trombone em 2004, ano em que se mudou de Russas para Fortaleza. Os caminhos do músico
na capital passaram pela licenciatura em Música na UECE, onde se formou recentemente, e a
Banda do Colégio Piamarta. No trecho a seguir, o músico fala um pouco de seu percurso ao
choro:

Comecei no bombardino, em banda de música do Interior, desde pequeno gostava de


acompanhar as bandas nos festejos da Igreja. Em Russa, conheci o choro através de
um senhor, Messias Honorato da Silva, que tocava banjo, e eu acompanhava. Até
fiquei com o banjo dele, depois que ele faleceu.

No pandeiro, Igor Caracas completava o quinteto. Na época o músico se dividia entre


a atividade musical e o curso de Publicidade e Propaganda da Unversidade Federal do Ceará.
Na reportagem, Igor confessa o temor de sua mãe de que ele chegasse o curso pela música. O
percussionista começou a tocar violão aos 11 anos, durante oito anos dedicou-se ao
contrabaixo - inclusive tocando em bandas de rock e de pagode – atuou em outros grupos da
cidade como o Breculê, e recentemente deixou não só o curso de Publicidade, mas também a
cidade, para dedicar-se ao estudo acadêmico da música em São Paulo. Abaixo, o depoimento
de Igor ao Caderno 3, sobre algumas de suas influências:

Com 13 anos, ganhei um pandeiro. Mais ou menos em 2005, passei pra percussão,
depois que meu pai começou a me levar pras rodas de samba. Aprendi muito com o
Paulinho do Pandeiro, que passava muitos bizus. Também estudo bateria e quero
entrar no Conservatório [...] Mas o choro vem desde pequeno, em casa, pelo meu pai
ouvir. Acabava me bandeando pra música brasileira, levando as influências de
samba pras bandas de pop-rock26.

4.2.2 Da prática de conjunto aos novos caminhos

Como foi dito anteriormente o Vida Boêmia nasce de um grupo de estudo, formado
inicialmente por Pedro Madeira e Rafael Vieira (Makito). Em depoimento informal, Makito
falou-me a respeito da entrada dos outros músicos no conjunto. Resumindo a história, Makito
declara: “Conhecia os meninos da rua, e chamei”. Perguntado sobre o significado da
expressão “rua27”, Makito detalha: “Tocava com o Rômulo das bandas de música e conhecia o
Glauber da faculdade (do curso de música da UECE) e dos Festivais de música [...]”.

A expressão “rua” foi utilizada por Makito para se referir genericamente aos diferentes
espaços onde ocorrem as sociabilidades dos músicos de choro. Além dos festivais, da
universidade e das bandas de música, podemos identificar ainda as oficinas, e até mesmo as
residências dos músicos, como importantes espaços de sociabilidade para a nova cultura do
choro na cidade. A partir desses espaços, ocorrem novas maneiras de produção e de troca de
conhecimentos e sensibilidades.

Embora o grupo não tenha tido continuidade, seus integrantes continuam voltados a
música, dedicando-se a diferentes atividades musicais. Em depoimento informal, (2013)
Pedro Madeira e Rafael Makito falaram-me a respeito da experiência adquirida através do
grupo Vida Boêmia. Pedro Madeira - que hoje divide seus estudos especialmente entre
bandolim e ao saxofone, instrumento com o qual se prepara para ingressar na banda do
exército - acredita, que, embora o grupo não tenha continuado, o projeto foi importante

26
Depoimento do músico contido na matéria Boemia Renovada (op. cit.)
27
A expressão também aparece em seu depoimento ao Caderno 3 (op. cit.), transcrito acima, quando o músico
fala sobre o aprendizado do violão.
principalmente pelos conhecimentos adquiridos em relação ao choro e a prática de conjunto.
Rafael Makito - que atualmente dirige o disco da cantora Lorena Nunes – apontou a
montagem de repertório e a criação de arranjos como aprendizados importantes adquiridos
com o grupo, e ressalta ainda que os maiores legados da experiência em conjunto são a
convivência com a “galera” e o fortalecimento das amizades. Sobre a importância do choro
para a sua formação musical, Makito conclui: “É mais no sotaque, se você tocar o jazz é outro
tipo de sotaque. É como ir no Ceará e aprender a falar ´cearês´ [..] sotaques diferentes geram
novas palavras novos caminhos.”.

4.3 O grupo Fulô de Araçá

Cadeiras no quintal ao fim da tarde, para uma roda de choro exclusivamente feminina. O
canto dos pássaros se alterna às frases do bandolim e da flauta, acompanhadas por violões,
cavaco, pandeiro. No local se respira música, o que se percebe desde as letras de canções
reproduzidas nos muros, até a vizinhança do Parque Araxá, acostumada com o movimento
na casa de um dos mais conceituados músicos cearenses: o multiinstrumentista Tarcísio
Sardinha - a propósito, chorão de primeira linha e, com suas aulas, um dos responsáveis
pela disseminação do gênero para as novas gerações28.

O trecho acima descreve uma tarde de ensaio do Fulô de Araçá em sua fase inicial. No
momento daquela reportagem (2008), o grupo estava com poucos meses de ensaio e acabava
de se tornar um sexteto, formado por jovens instrumentistas entre 16 e 26 anos. Faziam parte
do conjunto Brenna Freire (cavaco), Clarissa Brasil (pandeiro), Crisyani Soares, conhecida no
meio musical por Cris (violão de seis cordas), Lidia Maria (bandolim), Marília Magalhães
(flauta) e a autora desta pesquisa, que naquele período atuava no outro violão de seis cordas.
O nome do grupo vem de um choro-canção homônimo de Dominguinhos e Guadalupe
e foi escolhido pouco antes de sua primeira apresentação, em abril de 2008. A ideia de formar
um conjunto feminino para tocar choro havia surgido, entretanto, no ano anterior (2007), no
Festival Mel Chorinho e Cachaça. Indignada ao constatar a completa ausência de mulheres
no palco do festival, foi a flautista Marília Magalhães quem começou a idealizar o projeto,
como podemos observar em seu depoimento a seguir:

28
Trecho da reportagem O chorinho delas, publicada no Diário do Nordeste, em 20 de julho de 2008.
Fui pro festival do chorinho no ano passado, e achei as apresentações incríveis. Mas fiquei
indignada com o fato de não ter nenhuma mulher no palco, em nenhum dos shows. Ali eu
disse: ´Ano que vem eu volto aqui, com um grupo de choro só de mulheres29.

4.3.1 A formação do Fulô de Araçá

A ideia da flautista começou a se consolidar após a oficina de choro mencionada


anteriormente, da qual alguns integrantes do Murmurando e do Vida Boêmia também fizeram
parte. Nessa oficina, a flautista Marilia Magalhães encontrou outras musicistas que também se
incomodavam com a ausência feminina no meio instrumental, e que buscavam algo
desafiador que as estimulasse como instrumentistas. Foi através de Marília que eu e Clarissa,
as únicas do grupo que não frequentaram a oficina, fomos convidadas a participar do projeto.
No dia primeiro de julho de 2007, ocorreu a última apresentação dos alunos da
oficina30 no Largo do Mincharia. Foi também nessa data que conheci Marília e fui convidada
a fazer parte de seu plano: montar um grupo de música instrumental inteiramente feminino.
Na ocasião, Sardinha havia marcado o último ensaio da oficina em nosso quintal. Apesar de
anteceder a última apresentação do projeto, Sardinha ofereceu uma feijoada aos alunos e o
ensaio transcorreu em clima de informalidade e descontração. Mesmo não fazendo parte da
oficina, entrei no espírito da confraternização e acabei tocando algumas bossas – pois não
sabia tocar nenhum choro – na roda de músicos que se armou em nosso quintal. Foi depois de
tocar Wave com Marília que fui convidada por esta a integrar seu grupo. Aceitei o convite na
hora, mas havia um problema: Marília já havia convidado outras duas musicistas da oficina
para tocar violão no grupo. A solução encontrada, para que não houvesse três violões no
conjunto, foi a seguinte: Lidia, que também tocava guitarra além de violão, aprenderia a tocar
Bandolim e teríamos mais uma solista no grupo.
Lidia aceitou o desafio e com alguns meses de prática de bandolim se juntou a aos
ensaios que já transcorriam no quintal da minha residência. Pouco depois, Marília trouxe
Clarissa, que passou da bateria para o pandeiro31. Desde o início esperávamos no grupo a

29
Depoimento da flautista contido na matéria O chorinho delas do Diário do Nordeste, publicada em 20 de julho
de 2008.
30
Em contrapartida ao curso oferecido pela prefeitura, os alunos faziam apresentações eventos da prefeitura, em
espaços como no Mercado dos Pinhões e o Largo do Mincharia.
31
Compramos o pandeiro de Clarissa com o dinheiro arrecadado em um bingo de produtos da Natura e alguns
CDs de artistas cearenses. O bingo foi realizado no quintal da minha casa, pois aos finais de semana meus pais
abriam como bar e recebia um bom público. Arrecadamos cerca de trezentos reais e compramos com esse
presença de Brenna, que também havia feito parte da oficina, mas à incompatibilidade de
horários atrasou sua entrada no grupo, que só ocorreria pouco antes da reportagem realizada
pelo Diário do Nordeste.
As integrantes do grupo Fulô de Araçá, assim como os músicos dos outros grupos
abordados pela reportagem, também traziam bagagens musicais diversas. Curiosamente,
apenas Brenna, a mais nova do grupo, com 16 anos na época, era a única que já tinha
experiência no choro, como podemos ver em seu depoimento: “Por ter começado já tocando
choro, não acho que seja tão difícil. É mias complexo, mas quando você começa é natural.32”.
Clarissa anteriormente tocava bateria em bandas de rock, Cris e Marília vinham do
curso de música UECE, Lidia cursava Ciências Sociais na UFC, mas já havia estudado
guitarra no conservatório e eu, apesar ser filha de um chorão me sentia, até então, mais
influenciada por batidas e acordes dissonantes da bossa nova.
Embora tivéssemos experiência em outros instrumentos e diferentes universos
musicais, nosso objetivo principal, naquela primeira fase do grupo, era encarar a
complexidade do choro. “O que me atrai no choro é a riqueza, o desafio. É o erudito do
popular, com músicas belíssimas!”, declara Marília, que havia tocando violino na infância e
há três anos se dedicava ao estudo da flauta transversal, com o auxílio do professor Heriberto
Porto.
Embora nos propuséssemos a tocar música popular instrumental brasileira, como
define Marília: “[...] tem samba também, bossa... A gente quer tocar fundamentalmente choro,
mas sem restringir”, o que realmente nos preocupava naquele momento era compreender o
universo do choro, entender sua linguagem, como explica Cris abaixo:

Pra mim, é outra linha de pensamento. Quando você toca bossa, é mais harmônico.
Tocando chorinho, tem as baixarias, melodias, que contrapõem. É outra maneira de tocar
[...] O tempo das baixarias (frases com as notas graves, nos baixos) tem que ser muito bem
trabalhado33.

Por termos pouquíssima vivência tocando choro – na realidade eu e Clarissa não


havíamos tido nenhuma até então – naquela fase inicial, nossos ensaios às vezes pareciam
uma oficina. Como os encontros ocorriam no quintal da minha casa residência, geralmente
recebíamos o auxílio de Sardinha para executar as músicas do repertório, utilizando a linha de
pensamento do choro, resumida anteriormente por Cris. Apesar da mediação de Sardinha

dinheiro um pandeiro de Aloísio Silva, renomado chorão e até então o único luthier de pandeiros da cidade.
Depois do falecimento de Aloísio, o percussionista Rossano Cavalcante comprou sua oficina e tem dado
continuidade a fabricação dos pandeiros de couro.
32
Depoimento da musicista contido na matéria O Chorinho delas (op. cit.)
33
Depoimento da musicista contotido na matéria O Chorinho delas (id.)
durante os ensaios, o trabalho do grupo não se restringia ao momento do encontro. Em casa,
individualmente, nós pesquisamos o repertório de choro, selecionávamos algumas músicas
para montar nosso repertório - que normalmente eram baixadas da internet - depois
procurávamos as partituras dessas músicas na internet ou em livros especializados. Em geral
trabalhávamos três músicas por ensaio, que eram antes estudadas em casa, com o auxílio de
partituras e gravações.
Uma das maiores dificuldades durante nossos ensaios era união dos dois violões.
Sardinha orientava que cada um dos violões do grupo fosse tocado de uma forma diferente,
que se combinassem entre si. Nossa ideia inicial era que Crisyani, que estudava música no
CEFET e na UECE, passasse para o violão de sete cordas, pois era mais avançada em teoria e
poderia utilizar esses conhecimentos para se adaptar ao novo instrumento. Entretanto, no
decorrer dos ensaios fui assumindo a região mais grave do violão, enquanto Cris se
preocupava em explorar os acordas na região mais aguda – para que nossas levadas no
instrumento não se embatessem. Por esse motivo e por ter um instrumento em casa, fui aos
poucos experimentando o violão de sete cordas no ensaio, até que passei a usá-lo em nossos
shows. Segundo Luis Otávio Braga (2004), a “invenção” do sete cordas na música popular
brasileira decorreu da necessidade virtuosística e inventiva do violonista popular do choro. O
trecho abaixo pertence ao método teórico e prático de Braga (id.), Violão de Sete Cordas,
onde o violonista-autor demonstra a importância e os novos usos do violão de sete cordas na
música popular brasileira:

O violão de sete cordas é uma “invenção” dos violonistas feitos na vida artística sob a tutela
da música popular de Choro e do samba tradicional – que, espertamente, ao ter seu
reconhecimento na vida cultural da nação, se fez no mundo musical também sob a guarda
do acompanhamento do bom e velho regional, a orquestra típica do Brasil. [...] Necessário é
esclarecer que o violão de sete cordas não se apresenta como uma simples tomada eventual
da tradição, fato menor, corriqueiro em tantas ondas de revivals que se banalizam alhures.
Tendo-se modernizado – termo detestável pelo que pode contar de arrogância e presunção –
no sentido de que as novas gerações se preocupam em não só tocar o repertório “clássico”
no qual ele se impõe nobremente como a contrapartida ordenadora do solista principal, mas
também arrematar novas maneiras de se introjetar no conjunto típico e em outras formações
não exatamente chorísticas.
4.3.3. Os caminhos através do feminino

Mal tínhamos um repertório de meia hora ensaiado, quando nos convidaram para fazer
a nossa primeira apresentação pública: a abertura do show das Chicas em uma nova edição do
projeto Seis e Meia, no dia 7 abril de 2008. Aceitamos o desafio e apresentação foi um
sucesso, nos rendendo, no mesmo dia, um convite para tocar em Guaramiranga. O público e,
sobretudo, a mídia, mostrava-se bastante curioso em relação ao nosso grupo. Embora essa
curiosidade inicial às vezes viesse acompanhada de certos preconceitos – relacionados
principalmente a idade e gênero – a resposta das pessoas em relação ao grupo era na maior
parte das vezes bastante positiva.

Figura 5 Formação do Fulô de Araçá no período da reportagem. Da esquerda para a direita: Clarissa Brasil, Crisyani Soares,
eu, Marília Magalhães, Lidia Maria e Brenna Freire. Fonte: Diário do Nordeste

Em menos de dois anos o Fulô de Araçá já havia se apresentado em muitos palcos da


cidade e começava a viajar para o interior do Estado, tendo realizado ainda uma viagem a
Souza (PB), durante um circuito cultural realizando pelo Banco do Nordeste na região do
Cariri. Entre os momentos mais marcantes para o grupo, a abertura do show do cantor e
compositor Zé Renato, no Anfiteatro no Centro Cultural Dragão do Mar, dentro de um projeto
patrocinado pela Petrobrás, e a participação na I Mostra Competitiva de Choro do Ceará, que
fez parte da programação do II Festival Mel, Chorinho e Cachaça, ambas ocorridas em 2009.
O convite para abrir o show de um grande nome da música brasileira representava o
amadurecimento do grupo, que completava um ano de existência. A participação na Mostra,
por sua vez, foi marcante principalmente no que diz respeito à sociabilidade com outros
chorões do Ceará e de todo o Brasil.

Figura 6 Integrantes do grupo Fulô de Araçá com o grupo feminino de choro As Choronas (SP). No Festival Mel Chorinho e
Cachaça de 2008. Marília realizava seu sonho de voltar ao festival com um grupo feminino, embora não fizesse parte da
programação do Festival, que naquele contava com mulheres no palco e nas rodas informais.Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 7 Fulô de Araçá em na abertura do show do Renato Teixeira, no projeto MPB Petrobrás, em 2009. Fonte: Arquivo
Pessoal
Por vários motivos, o Fulô de Araçá manteve-se inativo por cerca de um ano - de
2010 a 2011. Acredito que o principal fator da desarticulação do grupo tenha sido nossa
mudança de foco, naquele momento, em que a maior parte do grupo se dedicava a realização
de outros projetos: Lidia estava se formando, eu me preparava para fazer um intercâmbio
acadêmico e a flautista, Marília Magalhães já havia se mudado para São Paulo. Quando
retornei do intercâmbio, Cris, Lidia e eu retomamos o grupo.
Atualmente o Fulô de Araçá atua como um trio, geralmente acompanhado de um
percussionista. Se por um lado a dinâmica do grupo é totalmente diferente, e não temos mais
condições de realizar encontros com a mesma frequência da fase inicial do grupo, por outro
lado começamos a explorar outras potencialidades e sensibilidades. Atualmente todas
compõem e atuam em diferentes instrumentos no show, que também tem se aberto,
gradativamente a músicas cantadas.

Figura 8 Formação atual do Fulô de Araçá. Da esquerda para a direita: Crisyani, Lidia e eu. Fonte: arquivo pessoal

4.4 O movimento dos novos chorões

Fortaleza é uma cidade de grandes chorões: Macaúba, Carlinhos Patriolino, Adelson


Viana, Pedro Ventura, Tarcísio Sardinha e Jorge Cardoso são apenas alguns exemplos. Esses
músicos, em sua maioria, começaram a tocar choro na juventude, alguns até mesmo na
infância, como é o caso de Patriolino, que começou a tocar aos oito anos de idade e de
Sardinha, aos dez. Entretanto, mesmo esses instrumentistas que começaram a tocar choro
muito cedo apontam para um aumento do interesse dos jovens da cidade pelo choro. O que é
narrado como um fator novo, pelos veteranos, do choro de Fortaleza, é a organização de
grupos voltados ao choro e formados inteiramente por jovens. Segundo Sardinha, na época em
que começou a tocar os mais novos se iniciavam nas rodas de choro tocando normalmente
com pessoas mais velhas e não havia grupos formados inteiramente por jovens.

Figura 9 Roda de choro após bate-bapo com o grupo Choro das Três, no Festival Mel Chorinho e Cachaça (2009).
Fonte: arquivo pessoal

Como pudemos ver no capítulo anterior, músicos mais experientes, como Carlinhos
Crisóstomo, Tarcísio Sardinha e Heriberto Porto tem tido um papel importante no sentido de
facilitar a aproximação dos mais jovens com o choro, facilitando suas sociabilidades nesse
contexto.
Além disso, espaços como os festivais de música, as mostras, as oficinas e as bandas
de música, que nos remetem ao início do choro, têm sido fundamentais no sentido de juntar
esses jovens e servirem como espaço de troca de experiências musicais e produção de
conhecimento. Os festivais, em especial, têm sido espaços importantes para as mais diversas
formas de diálogo entre músicos chorões de todo o país.
Figura 10 As rodas de choro faziam parte da programação do Festival Mel Chorinho e Cachaça de 2008. Da esquerda para a
direita: Makito (do grupo Vida Boêmia, Henry Lentino (do grupo Tira Poeira), Igor Ribeiro (do grupo murmurando) e Rafael
Ferrari. Fonte: arquivo pessoal

Pelo que pude apurar durante a pesquisa, após o surgimento dos grupos Vida Boêmia,
Murmurando, Fulô de Araçá, abordados em 2008 pelo Caderno 3, vários outros grupos
formados inteiramente por jovens foram surgindo, como podemos ver a seguir:

A organização do 3º Festival Mel, Chorinho e Cachaça divulga os grupos


selecionados da 1ª Mostra Competitiva de Choro do Ceará, e que vão compor a
programação do evento que acontece em Viçosa do Ceará, de 18 a 20 de abril. A
mostra recebeu inscrições de grupos de todo o Estado e selecionou os participantes
por meio da audição de uma curadoria, avaliando interpretação instrumental e
análise de material dos músicos. No total, inscreveram-se 12 grupos de choro, sendo
a maioria de Fortaleza. Os seis grupos que irão compor a programação do festival
são Guarani Choramingando (Campo Sales), Mistura de Cordas, Fulô de Araçá,
Chega Chora, Cara de Choro e Choro da Aldeia, de Fortaleza. Uma das surpresas
dos organizadores é que a maioria dos inscritos são jovens músicos com idade entre
13 e 21 anos. Além dos selecionados, um grupo representante de Viçosa do Ceará
também estará fazendo uma apresentação durante o festival. [...] A mostra é uma
competição entre os novos talentos da música instrumental no Ceará, baseada no
chorinho e suas representações, com a oferta de programação pedagógica (cursos,
oficinas, intercâmbios e palestras) e uma intensa programação artística que
beneficiará os grupos musicais da região serrana e outras regiões do Ceará.
Figura 11 Apresentação da oficina de prática de conjunto de choro, ministrada por Tarcísio Sardinha, no Festival de Música
da Ibiapaba de 2008 Fonte: arquivo pessoal
Figura 12 Cartaz contendo a programação do mostra II Chorinho no Centro - Um "Chorinho" para Ademilde (2012)
5. Considerações finais

.
A partir desse trabalho, comecei a compreender o choro não apenas como um gênero
musical, mas, principalmente, como um lugar de encontros musicais. Percebi que pensar o
choro em nossa cultura global vai bem além de defini-lo como “tradicional” ou
“contemporâneo”, “autêntico” ou “deturpado”. Estudar o choro, sob o olhar da Comunicação
Social, me fez buscar sua mediação na sociedade, as suas sociabilidades, e escutar - além das
melodias e baixarias de suas músicas - os sons que fazem os chorões quando se junto.
Certo dia, perguntaram-me se eu me considerava uma chorona. Sinceramente, não
soube o que responder na hora. Eu toco choro? Sim, toco alguns choros. Mas quantos choros
um músico precisa saber tocar para ser considerado um chorão? Geralmente o termo “chorão”
é utilizado para músicos especialistas em choro. Esse não é o meu caso. Apesar de ter um
grupo de choro há mais de quatro anos, considero-me uma iniciante no que diz respeito ao
domínio da linguagem musical do choro. Refletindo mais um pouco sobre o assunto, comecei
a pensar que um “chorão” é um individuo atuando em uma realidade, em um contexto social
especifico que é o choro. Esse ator desempenha um papel dentro dessa realidade, mas ele não
atua sozinho, ele necessita da sociabilidade.
Considerando o ‘chorão’ como o individuo que atua na construção da realidade do
choro, hoje eu me considero mais chorona do que nunca, embora tenha tocado pouquíssimo
ultimamente. Sou chorona por diversos motivos: porque gosto de choro, porque me criei
ouvindo choro e, principalmente, porque muitos dos meus laços sociais foram construídos a
partir do choro. Hoje acredito que alguém para ser considerado um chorão nem precisa tocar
choro, mas sim atuar de alguma forma em seu movimento, seja escutando, divulgando,
produzindo.
Chegando no final desse trabalho, tive acesso, através da Lu Resende, a um livro
chamado Os sorrisos do Choro: uma jornada musical através de caminhos cruzados. A
autora desse livro, Julie Koidin (2011) é uma flautista americana, de Chicago, que se
apaixonou do choro através de um disco de Pixinguinha e resolvendo embarcar em uma
aventura que nenhum pesquisador Brasileiro fez até agora: viajar pelo Brasil entrevistando
seus músicos de choro e elaborar um livro a partir da transcrição dessas entrevistas. Após o
prefácio e a introdução onde Koidin explica “como o choro a encontrou”, o livro é
inteiramente formado pelas entrevistas que realizou em seis cidades do Brasil. As cidades
foram: Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza, Natal, Recife e São Paulo. Em Fortaleza, Koidin
entrevistou os músicos: Alísio Silva, e seu filho Anderson, Macaúba do Bandolim, Márcio
Resende, Tarcísio Sardinha e Zivaldo Maia. Este livro foi publicado pela editora Global
Choro Music, cujas publicações são distribuídas no mundo todo.
Para além da emoção inicial – ao imaginar a história do meu pai e de nossos amigos
lida por vários chorões do mundo - a chegada desse livro foi muito importante para que eu
chegasse as seguintes conclusões: O choro, em nossa cultura global, representa muito mais
que uma música “tipicamente brasileira” como defendem alguns, e vai bem além dos rótulos
que lhe caibam. Seja ele tocado como uma polca “a moda antiga”, ou enrolado na complexa
trança do que se comercializa no exterior sob o rótulo de Brazilian Jazz, o choro hoje é bem
mais do que um gênero de música brasileira, ele é como uma roda gigante que sempre se
“reinventa” por estar em constante movimento. É um contexto social interativo, onde se
encontram chorões de todos os tempos, de todos os lugares do mundo.
BENNETT, Roy. Elementos Básicos da Música. Trad. Maria Teresa de Resende
Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. 3ª edição. São Paulo: Editora 34,
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MARTIN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo: travessias latino-americanas da


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recepção em comunicação social. São Paulo: Brasiliense, 1995.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo – 85 anos de


músicas brasileiras. Vol 1. São Paulo: Editora 34, 1978.

SOUZA, Mauro Wilton de: Recepção e comunicação: a busca do sujeito. São Paulo:
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KOINDIN, Julie. Os Sorrisos do Choro: uma jornada musical através de caminhos


cruzados. São Paulo: Globo Choro Music, 2011.

DINIZ, André. Almanaque do Choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler,
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BRAGA, Luis Otávio. O Violão de 7 Cordas – teoria e prática. 2ª Edição. Rio de


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NAPOLITANO, Marcos. História de Música – História cultural da música popular. 3ª


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PINTO, Alexandre Gonçalves. O Choro. Edição fac-similar 1936. Rio de Janeiro:


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Disponível em: http://www.vivalaradio.org/gestion-radios-
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Acesso em: em: 20 de out. 2012

DOCUMENTÁRIOS

BRASILEIRINHO. Mika Karismaki, 2005. 90 min. Editions Montparnasse

RETRATOS DE UM SOM: Um olhar sobre o choro em Fortalza. Bárbara Sena,


2011. 15 min. Vila das Artes

IMPRESSOS

II CHORINHO NO CENTRO – Um “Chorinho” para Ademilde. Programa do


Centro Cultural Banco do Nordeste. De 13 a 28, Junho/2012

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