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FORTALEZA
2013
BÁRBARA SENA CARVALHO
FORTALEZA
2013
BÁRBARA SENA CARVALHO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Me Herberto Porto (Orientador)
Universidade Federal do Ceará
_________________________________________
Prof. Dr. Andrea Pinheiro (Membro)
Universidade Federal do Ceará
_________________________________________
Prof. Dr. Pedro Rogério (Membro)
Universidade Federal do Ceará
Fortaleza
2013
Às minhas famílias, de sangue, música e coração,
AGRADECIMENTOS
Agradeço infinitamente a Deus por ter colocado na minha vida tantas pessoas a quem
agradecer. Agradeço aos meus pais, Diana e Tarcísio, pelo amor maravilhoso que recebi a
vida inteira. Ao meu irmão, João, por cuidar tão bem de mim, mesmo sendo o caçula. A Vovó
Maria, por seu lindo amor de avó, e ao Vovô Ordônio, de quem sinto muitas saudades.
Agradeço também aos meus professores da UFC e aos meus queridos orientadores, Luciana e
Heriberto, por todo carinho e dedicação. Agradeço as minhas amigas do Fulô de Araçá, sem
as quais essa história não poderia ser escrita. Muito obrigada Marília, Branna, Clarissa, Cris,
por tantos momentos lindos divididos. Em especial agradeço a fulô Lidia pela parceria
incondicional até mesmo na monografia. Às minhas hermanas Débora e Cris por terem
dividido comigo tantos momentos inesquecíveis, bem além dos muros da faculdade. À Tatá,
minha pequena, e força loiras e morena queridas: Cacau, Jessyca, Olguinha, Fê, Yana e
Tamis, que sempre vinham com a palavra certa, na hora certa. Agradeço especialmente ao
Valdo, por tanta paciência, estimulo e carinho. Agradeço, finalmente a todos os músicos que
me ajudaram a construir esse trabalho, em especial aos meus queridos amigos chorões.
Nada me fará sofrer,
pois trago junto ao coração
o bojo do meu violão
cantando
SUMÁRIO
RESUMO
O presente trabalho trás um recorte de uma das muitas paisagens sonoras da sociedade –
fortalezense e brasileira. Aborda-se a mediação do choro na sociedade a partir da nova trama
comunicativa da cultura. O trabalho parte do contexto em que o choro surge – através dos
modos de apropriação de suas matrizes culturais - até as novas formas de sociabilidades entre
os jovens que atuam no contexto social interativo que o choro representa em nossa cultura
global, bem como os novos usos e sentidos construídos através de reconfiguração social.
São muitos os sons que compõem a sinfonia urbana da cidade de Fortaleza. O canto do
pássaro, o vento nas árvores, o latido dos cães, a buzinas dos carros, a sirenes das
ambulâncias, a fala dos transeuntes e a música que vem dos bares ou das casas são alguns
exemplos de fenômenos acústicos que arranjam as múltiplas paisagens sonoras de nossas
vidas cotidianas. As paisagens sonoras, assim como a geografia e a arquitetura, contribuem
para designar as feições de um lugar. Fortaleza é uma cidade composta por uma infinidade
dessas paisagens que, mesmo submersas nos ruídos de uma grande metrópole, nos contam
histórias do cotidiano e nos revelam uma variada gama de estilos de vida. Esse trabalho trata
de um pequeno recorte de uma das muitas paisagens sonoras da sociedade – fortalezense e
brasileira, através da “audição” do choro.
As paisagens sonoras nos falam de uma época e das culturas das pessoas dessa época.
Elas nos contam do dia-a-dia dessas pessoas, podemos descobrir, por exemplo, se os seus
habitantes preservam seus recursos naturais, como eles se locomovem, a maneira como eles se
comunicam, que tipos de música produzem e escutam etc. O conceito de paisagem sonora1
surgiu pouco antes da década de 30, quando o cineasta experimental alemão Walter Ruttman
gravava o filme Week-end – Fim de semana ou escapada de fim de semana. Sem utilizar
imagens, o filme relata, através de seu conjunto sonoro, a transição de um dia de trabalho a
um dia festivo, o domingo livre e a volta à rotina para se começar a semana. Nessa
experiência, veiculada pela Rádio Berlim em 1928, o artista conseguiu relacionar uma prática
cinematográfica com o rádio, inaugurando o que mais tarde o compositor e músico francês
Michael Chión chamou de rodagem sonora, uma inter-relação entre a forma de narrar com
sons do cinema e do rádio. Walter Ruttman conseguiu representar de maneira criativa fatos do
cotidiano, utilizando sons que de alguma maneira representavam aquela situação em sua
cultura. Mesmo uma circunstância tão comum como a narrada na rodagem sonora de
Ruttman, a transição de um dia de trabalho a um dia festivo, é vivida em cada lugar de uma
maneira diferenciada, assim como as músicas e os sons que lhes constituem. Vejamos a seguir
a definição de Shafer (2001, p.366) sobre o conceito de paisagem sonora:
Em busca dos sentidos e sensibilidades que emergem a partir do choro, dividimos esse
trabalho em três momentos: Primeiramente abordamos suas matrizes culturais, refletindo
sobre o contexto histórico em que o choro surge em nossa cultura. Em seguida, discutimos o
papel mediador do choro na sociedade, e concluímos o trabalho tratando da atividade do
choro em Fortaleza, enfocando as novas formas sociabilidade dos jovens fortalezenses através
do choro.
A escolha do choro como objeto de estudo desse trabalho, decorre da noção de que o
objeto da comunicação trata-se sobretudo do que está disponível aos nossos sentidos (VEIGA,
2009, p.39), materializado em objetos e práticas que podemos ver, ouvir, tocar.
1
REZZA, Sol. El mundo es sonoro. Cara y señal. Abril de 2009. disponível em:
http://www.vivalaradio.org/gestion-radios-comunitarias/PDFs/GES_produccion_14paisaje-sonoro.pdf
A comunicação tem uma existência sensível, é do domínio do real, trata-se de um fato
concreto do nosso cotidiano, dotada de uma presença quase exaustiva na sociedade
contemporânea. Ela está ai, nas bancas de revista, na televisão da nossa casa, no rádio dos
carros nos outdoors da cidade, nas campanhas dos candidatos políticos e assim por diante.
Se estendemos mais os exemplos (e também nosso critério de pertinência), vamos incluir
nossas conversas do cotidiano, as trocas simbólicas de toda ordem (da produção dos corpos
às marcas de linguagem) que povoam nossa dia-a-dia. (VEIGA, 2009, p. 39)
Este trabalho tomou como base a metodologia de pesquisa utilizada por Giovanni
Cirino em Narrativas Musicais: performance e experiência na música popular instrumental
brasileira. (2009) de. O livro aborda a música instrumental brasileira, tendo como seu objeto
empírico sua atividade na cidade de São Paulo. Além de pensar a música a partir de sua
perspectiva mediadora, nos empresta o conceito de corda trançada para definir a relação das
matrizes culturais em um gênero específico.
Em busca da mediação da sociedade na obra artística (COHN apud CIRINO, 2009,
232), ou seja, da compreensão do choro agindo como um contexto social interativo, me
dediquei à observação participante de conjuntura do choro em Fortaleza. Procurei conhecer a
programação do choro na cidade. Embora já frequentasse os ambientes de choro, e a cidade
oferecesse uma programação regular em locais habituais, programas diferentes relacionados
ao choro, como shows, oficinas, mostras e festivais, aconteciam regularmente na cidade.
Entrevistei e conversei informalmente com aqueles que vivenciam o choro em seu cotidiano:
instrumentistas, professores de música, estudantes, produtores culturais, e apreciadores,
incluindo chorões de outras regiões do país. Embora a maior parte dessas entrevistas não
conste no trabalho, devido ao recorte que lhe foi dado, essas conversas foram importantes não
na medida em que só me aproximaram do tema, mas também no sentido em que me ajudaram
a visualizar outros modos de interação a partir do choro. Entre os chorões de outros lugares do
país entrevistados (formal e informalmente) estão: Luciana Rabello (RJ), Pedro Amorim (RJ),
Maurício Carrilho (RJ), Reco do Bandolim (DF), Joel Nascimento (RJ). Exceto a entrevista
com Reco do Bandolim, todos os encontros aconteceram na cidade de Fortaleza, em
momentos de passagem dos artistas para realizar shows ou oficinas. A entrevista de Reco foi
feita em agosto de 2012 no clube do Choro de Brasília, do qual Reco é presidente. As
entrevistas com Luciana Rabello e Pedro Amorim, por sua vez, remetem a realização do
documentário Retratos de um som: um olhar sobre o choro em Fortaleza (2011), cujo
argumento e direção são meus. Sem maiores pretensão, o vídeo é o resultado de um curso de
produção de documentário para web com duração de seis meses, oferecido pela Escola de
Áudio Visual da Vila das Artes, equipamento cultural da Prefeitura. Seus principais
propósitos foram: primeiro, servir como um dispositivo para o estudo do choro como um
objeto da comunicação, e depois, contribuir minimamente para a propagação da música.
produzida na cidade. Apesar do vídeo só ter duração de 15 minutos, tempo máximo estipulado
para o projeto, realizamos cerca de cinco horas de gravação, entre músicas e entrevistas que
foram importante, sobretudo, para a definição do recorte desse trabalho.
A pesquisa também se deu através de folders, matérias de jornal, vídeos na internet e
programas de rádio e, sobretudo, através da minha imersão no cotidiano do choro na cidade,
nesses últimos cinco anos. Essa imersão, inicialmente me pareceu um fator facilitador para a
realização do trabalho, mas meu envolvimento afetivo com o objeto muitas vezes dificultou
uma leitura sobre do problema.
Em relação à bibliografia, tem-se uma literatura razoável relacionada ao choro: livros
tratando de sua história, da influência afro-brasileira em nossa música, e da trajetória da
música popular no Brasil e na América Latina. Também utilizamos obras que relacionavam
música popular à educação, à mídia e ao mercado fonográfico, além de livros técnico-
musicais. Entre as principais obras abordas estão os livros Choro do quintal ao municipal de
Henrique Cazes (2005), História e Música de Marcos Napolitano (2001), Os Sons dos Negros
no Brasil (2008) de José Ramos Tinhorão e A Canção do Tempo (2006), de Jairo Severiano e
Zuza Homem de Mello.
Serviram também de base os estudos sobre cultura e comunicação na América Latina.
Entre os principais, os estudos em recepção de Mario Wilton de Souza e Jesus Martin-
Barbero, organizados por Wilton em O sujeito e o lado oculto do recepto (1997), e as
considerações de Barbero sobre matrizes culturais e recepção, contribuíram para pensar o
choro a partir de sua atuação como um mediador da sociedade, que introduz novos usos do
social e novos usos sociais da mídia.
A cidade do Rio de Janeiro, uma das nossas principais usinas musicais, teve um papel
central na construção e ampliação desta tradição. Cidade de encontros e mediações culturais
altamente complexas, o Rio forjou, ao longo do século XIX e XX, boa parte das nossas
formas musicais urbanas. (NAPOLITANO, id., ibid.)
Com a chegada da família real, em 1808, o país começou a se transformar, mas foi na
cidade carioca, sede da corte portuguesa, que as mudanças mais profundas ocorreram. A
cidade adquiria uma nova feição cultural: passou a receber muitos investimentos em
infraestrutura, foram criados serviços públicos essenciais, como correio e estradas de ferro e,
em poucos anos, se tornou não apenas capital do Brasil, mas também do Reino Unido de
Portugal. Outro fator de grande importância foi a abolição do tráfico de escravos, em 1850,
que além de liberar capital para grandes empreendimentos, inseriu o Brasil no rol das nações
civilizadas (CAZES, 2005, p. 17). Esses avanços levaram ao crescimento da cidade e ao
aparecimento de classes populares e médias urbanas formadas por pequenos comerciantes e
funcionários públicos. Dessas classes, compostas principalmente por afro-brasileiros - mas
também músicos eruditos em busca de uma identidade nacional como Henrique Alves de
Mesquita e Chiquinha Gonzaga -, vão surgir os primeiros músicos de choro, bem como seus
primeiros apreciadores, aos quais Cazes (id., ibid.) se refere como a mão-de-obra e o público
consumidor do choro. Em resumo, a cidade passava por uma profunda reforma urbana e
cultural que lhe forneceu os elementos-chave para o aparecimento dessa música. Segundo
Marcos Napolitano (op. cit.), a urbanização e o surgimento das classes populares e médias
urbanas, na passagem do século XIX para o século XX, se relacionam não somente ao
nascimento do choro, mas ao da música popular brasileira como um todo:
Esta nova estrutura socioeconômica, produto do capitalismo monopolista, fez com que o
interesse por um tipo de música, intimamente ligada à vida cultural e ao lazer urbano,
aumentasse. A música popular se consolidou na forma de uma peça instrumental ou
cantada, disseminada por um suporte escrito-gravado (partitura/fonograma) ou como parte
de espetáculo de apelo popular, como a opereta e o music-hall (e suas variáveis). (id., p. 12)
A estas formas de consumo da música popular, que se firmaram entre 1890 e 1910,
Clarke (1995, apud NAPOLITANO, id., ibid.) destaca a dança como o papel social básico que
a música sempre desempenhou, explicitando a importância das danças de salão trazidas da
Europa:
Segundo Napolitano (id.), o que hoje chamamos de música popular, em seu sentido
mais amplo, e especialmente, o que chamamos de “canção” é um produto do século XX, que,
ao menos em sua forma “fonográfica”, foi adaptada ao mercado urbano, com seu padrão de 32
compassos2. Essa música, de maneira geral, está intensamente ligada à procura de excitação
corporal, no caso da música para dançar, ou ao estímulo emocional, que poderia levar o
ouvinte a chorar de dor ou alegria. (id., ibid.)
Henrique Cazes (op. cit.), também destaca o papel das danças de salão para o
surgimento do choro. Segundo o autor, o processo que levou ao nascimento desse gênero
ocorreu de maneira parecida em diferentes países, onde, a partir dos mesmos elementos -
danças europeias, sobretudo a polca, somadas ao sotaque musical do colonizador e à
influência negra - foram surgindo gêneros que são a base da música popular urbana. Quanto
às influências culturais étnicas no choro, o violonista Maurício Carrilho3 defende, tanto no
2
Na notação musical, os compassos dividem quantitativamente os sons de uma composição em grupos, com base
em pulsos e repousos. Os compassos facilitam a execução musical, pois definem a unidade de tempo, o pulso e o
ritmo de uma composição.
3
Maurício Carrilho participou de importantes grupos da história do choro, como Camerata Carioca e Os
Carioquinhas, ao lado de alguns dos músicos mais influentes do choro contemporâneo. Ele é também um dos
documentário de Brasileirinho Mika Kaurismaki (2005) como em entrevista concedida a mim
em novembro de 2012, que temos três influências principais no choro: a estrutura melódica e
harmônica da dança de salão europeia, a rítmica da música africana e a melancolia no
tratamento de interpretação do índio brasileiro. Na bibliografia consultada, a respeito da
constituição do choro, não tivemos acesso a nenhuma discussão a respeito de contribuições
indígenas diretas para seu surgimento. Por outro lado, os estudos consultados sobre a história
do choro e das músicas e danças que compõem nosso painel nacional sempre destacam as
contribuições europeias e africanas, como podemos ver no discurso do pesquisador Tinhorão:
Toda a história das músicas e danças que compõem o vasto painel de criações
populares, quer na área do campo (onde se desenvolvem as tradições folclóricas),
quer na área na área da cidade (onde as mudanças são mais rápidas, pela
interferência da indústria cultural), só pode ser estudada a partir da realidade dessa
mistura de influências crioulo-africanas e branco-europeias. (2008, p.56)
principais responsáveis pela organização do ensino do choro, sendo um dos principais criadores da Escola
Portátil de Choro do Rio de Janeiro e da Editora Acari, voltada para a produção de álbuns independentes e
materiais musicais didáticos.
qual o autor se refere como MPIB, expõe diferentes formas de articular questões técnicas
provenientes do jazz e de outros gêneros, com os ritmos e melodias brasileiras. O gênero seria
então pensado como uma corda trançada, formada por diversas linhas. Se a MPIB pode ser
considerada um subgênero dentro da MPB (id.), podemos pensar o choro como um subgênero
em relação MPIB.
O pensamento de Cirino sobre a música popular instrumental brasileira discute a
respeito de como os aspectos musicais que caracterizam tais linhas agenciam o “diálogo”
entre sonoridades diferentes. Essa corda traçada a qual o autor se refere, significaria uma
“universalização das linguagens” e uma ruptura com rótulos mercadológicos. Segundo
Piedade (apud CIRINO, id., p. 13), o próprio termo música instrumental, amplamente usado
para designar a MPIB, seria sintomático da atual incerteza que envolve a dimensão de seu
campo musical e suas raízes históricas:
Cabe ressaltar que, embora existam muitos choros com letra, o rótulo choro se refere
fundamentalmente a um tipo de música instrumental. No início do século XX, as primeiras
letras foram colocadas após a composição da música, e em alguns casos contra a vontade ou
sem o conhecimento do autor. Por questões autorais e até mesmo pela qualidade duvidosa de
muitas letras, num período em que ainda havia poucos letristas no país, o choro cantado
representa ainda um assunto polêmico para a comunidade musical. (CAZES, op. cit.)
Além do choro, as danças de salão serviram de base para a criação de grande parte dos
gêneros de música de nossa tradição, como o samba, o maxixe, o xote, dentre outros. A
seguir, trataremos das principais matrizes do choro, resgatando um pouco do contexto
histórico em que vigoraram no Brasil, de sua representatividade para a sociedade da época e
para a constituição do choro.
4
Visão corroborada pelo discurso de muitos instrumentistas, nas entrevistas, conversas e audições musicais
durante a realização da pesquisa.
mestiço, é reconhecido como seu inventor, por haver temperado a moda com um pouco de
lundu negro e suavizado o vocabulário solene da corte com o mestiço da colônia.
(NAPOLITANO, op. cit.)
Ao longo das regências e do II Império, a modinha se enraíza de vez no Brasil,
tornando-se quase obrigatória nos salões da corte. A partir do trabalho das casas de edição
musical, introduzidas por volta dos anos 1830, ela torna-se, ao lado do lundu branqueado, um
dos gêneros de maior aceitação. Popularizada no final do império, a modinha sai dos salões e
torna-se uma das matrizes da seresta brasileira, estando entre os nomes mais famosos dessa
fase Xisto Bahia e Catulo da Paixão Cearense. (id.)
Apesar das restrições feitas a sua poesia, Catulo da Paixão Cearense é considerado o
mais importante letrista brasileiro de sua geração. No início do século XX, quando ainda
predominava a música instrumental e eram poucos os letristas no Brasil, além de alguns
poetas e autores de teatro de revista, Catulo especializou-se em fazer letras para melodias
consagradas de compositores contemporâneos. Apesar ter contribuído para aumentar a
popularidade de algumas músicas, Catulo de certa forma aproveitou-se do sucesso alheio para
aumentar seu prestígio, envolvendo-se ainda em questões polêmicas sobre a autoria de
algumas músicas, nas quais o nome do parceiro não aparecia em gravações e edições da
partitura, como na polca Choro e Poesia, cujo título foi alterado pelo letrista para Ontem ao
luar. Esta música teve a letra posta à revelia do autor Pedro de Alcântara, a quem a autoria só
seria restituída quase setenta anos depois, graças aos esforços de uma neta sua. Apesar de
notabilizar-se como um autor de canções seresteiras, Catulo pôs letras em músicas nos estilos
populares da época, entre os quais valsas, schottisch, tangos e canções. (SEVERIANO,
MELLO, 1997)
No início do século XX, entre 1901 e 1916, a música popular brasileira repetia
basicamente as características do século anterior: os mesmos gêneros, além da predileção da
sociedade por piano e da grande influência musical europeia, principalmente francesa. (id., p.
17) A modinha, por sua vez, surgida em fins do século XVIII, aparece ainda entre os gêneros
mais populares, mas, possivelmente, nenhuma seria tão gravada e cantada como “Casinha
Pequenina”, destaque do ano de 1906, e cuja autoria é desconhecida. Como os mesmos
gêneros musicais continuariam a vigorar na passagem do século (além da modinha, a
cançoneta, o schottisch, a polca), a maior novidade do início do século XX para a música, no
entanto, não aconteceria no âmbito estético, mas sim na área tecnológica com o advento do
disco brasileiro em 1902. (id., ibid.)
2.2.2 O lundu e o tempero musical dos afro-brasileiros
Segundo José Ramos Tinhorão (2008), o lundu teria surgido a partir da matéria-prima
do ritmo e da coreografia crioula dos batuques. Ele é posterior à fofa – dança sensual
semelhante ao lundu – e anterior ao fado – dança que daria origem à canção portuguesa que
herdaria seu nome ao ser transportada do Brasil para Portugal. Como dissemos anteriormente,
o lundu forma com a modinha o par consignador da música popular brasileira, e é a partir dos
dois que vão surgir nossas primeiras cantigas. (NAPOLITANO, 2001)
Desde o século XVI, os batuques constituíam para os escravos africanos, um dos raros
momentos de exercício de seus costumes originais, ricos de expressões de que os
colonizadores jamais poderiam imaginar a extensão. Até o correr do século XVIII, os
portugueses chamavam genericamente de batuques a quaisquer reuniões ruidosas de escravos
e descendentes crioulos. Segundo Tinhorão, essas reuniões não configuravam
necessariamente bailes ou folguedos, mas diversas práticas religiosas, danças rituais e formas
de lazer.
Quando, afinal, pelo correr do século XVIII, as autoridades começaram a distinguir nessas
reuniões à base de danças, cantos e ritmos de percussão o que era culto religioso daquilo
que constituía apenas ritos da vida social ou mera diversão para os escravos, os campos
começaram a ser delimitados. (TINHORÃO, 2008, p. 55)
E foi assim que, com o paralelo crescimento da participação de brancos e mulatos das
camadas baixas das cidades e vilas nesses “batuques de negros”, começaram a surgir
adaptações provocadas pelo casamento da percussão, da coreografia e do canto responsorial
africano-crioulo com estilos de danças, formas melódicas e novo instrumental
(principalmente viola), introduzidos pelos herdeiros nativos da cultura europeia.
(TINHORÃO, id., p. 56)
A dança lundu, ou lundum estava destinada a subir aos palcos do teatro popular dos
entremezes de Portugal em meados de setecentos e a entrar nas salas das famílias brancas
ao despontar o século XIX no Brasil. E não apenas como dança de roda, mas como seus
antigos estribilhos de ritmo, marcado por palmas transformados em canção, quase sempre
entoada ao som da viola. (TINHORÃO, id., p. 53)
De andamento mais rápido que a modinha e uma marca rítmica mais acentuada e
sensual, o lundu se tornou em uma das primeiras formas culturais afro-brasileiras
reconhecidas como tal. Ao lado da modinha, ele influenciou não apenas o nascimento do
choro, mas da música popular brasileira em geral, e servindo de tempero melódico e
harmônico quando a febre das polcas, valsas, schottish e habaneras tomou conta do país, a
partir de 1840. (NAPOLITANO, id., p. 41). Dessa época, Cazes (op. cit., p. 25) destaca o
“Lundu característico”, de 1873. A peça de Antonio Callado, músico considerado um dos
primeiros e mais importantes flautistas da linhagem brasileira de flauta, traz em seis partes um
resumo das tendências da época, já apontando para o abrasileiramento da polca e o
surgimento do maxixe como acento musical.
Além de ser uma corruptela do nome, o xótis nordestino herdou da schottisch o uso de
figuras pontuadas5 na melodia, mas seus andamentos mais ligeiros e sua marcação rítmica, no
entanto, são totalmente diferentes da dança original. (CAZES, 2008, p. 27) Dança europeia de
andamento mais lento que a polca, a schottisch teve como seu principal representante no
Brasil o músico Anacleto de Medeiros. Considerado hoje um dos pilares do choro, Anacleto
compôs muitas schottisches que alcançaram sucesso e lhe tornaram conhecido como
5
Na notação musical, a figura ou nota pode ter seu som prolongado, acrescentando-se um ponto após a nota.
O ponto acrescenta à nota metade do valor que ela já tem.
compositor, e lhe fizeram ser apontado como o introdutor do sotaque brasileiro na schottisch.
Nascido em 13 de julho de 1866, Anacleto era filho de uma escrava liberta com um médico
que cuidava dos pobres da Ilha de Paquetá, onde nasceu. O músico começou a tocar flauta e
flautim em bandas já aos nove anos, tendo como seu primeiro mestre o compositor e regente
Antonio dos Santos Bocot, na Companhia de Menores do Arsenal de Guerra. (id., ibid.) Seu
mestre era autor de polcas conhecidas na época como “os bombeiros do Recife” e “Sofia”,
sendo assim, a iniciação musical de Anacleto foi feita por um chorão.
Formado como professor de clarineta através do Imperial Conservatório de Música,
onde ingressou em 1884, Anacleto dominava todos os instrumentos de sopro, mas tinha
especial predileção pelo sax soprano. Anacleto dedicou sua vida as bandas de música,
destacando-se como regente e organizador da Banda do Corpo de Bombeiros devido à grande
qualidade musical que o conjunto alcançou. Considerado um exímio melodista, excelente
harmonizador, Anacleto sabia orquestrar de forma bastante evoluída para o que o autor chama
de um músico de banda (grifo nosso) da época. (id., p.28)
Cazes defende que para muitos músicos brasileiros, mais do que o prazer da música, as
bandas de música representaram a diferença entre a miséria e a dignidade, pois tocar em uma
banda de música era também uma forma de inserção social. No Brasil o processo de
modernização das bandas de música ocorreu com atraso, mas, de acordo com Oswaldo Passos
Cabral (apud CAZES, id., p. 28), em seu livro intitulado A banda de música como fator
cultural de um povo, em 1870 o país já contava com mais de 3 mil bandas em todo o país e
em todas as pequenas cidades havia pelo menos uma corporação civil e militar. Cazes nos
esclarece a respeito da modernização das bandas de música:
O registro sonoro mecânico acontecia a partir de um cone de metal que tinha em sua
extremidade um diafragma. Este comandava a agulha que cavava os sulcos na cera.
Portanto, era necessário potência sonora para garantir que a gravação do som fosse eficaz.
E já que iria ser uma banda, que fosse a melhor do Rio de Janeiro.
6
Termo italiano que designa um andamento musical animado, mas não tão depressa quanto o alegro.
oposição dos moralistas, e influenciou fortemente o choro, sendo considerada por
pesquisadores como um marco inicial para a história do choro.
Henrique Cazes (op. cit.) afirma que se tivesse que apontar uma data para o início da
história do choro não hesitaria em dar o mês de julho de 1845, quando a polca foi dançada
pela primeira vez no Teatro São Pedro. Segundo Cazes, a chegada dessa dança, vinda da
Europa Central via Paris, foi cercada de grande expectativa, graças ao impacto causado em
Lisboa dez meses antes.
Na época em que a polca surge no Brasil, as danças de salão passavam por um
processo de mudança de forma coletiva (quadrilha e minueto) para a de par enlaçado. Essa
mudança vinha ao encontro do anseio de uma maior liberalização dos costumes e teve na
polca seu meio de propagação. (id., p. 17) Essa circunstância nos remete ao papel mediador
que a música popular sempre desempenhou em nossa música, sendo ao mesmo tempo um dos
primeiros e mais representativos sinais de transformação de uma sociedade. Se por um lado a
polca representa uma forte mudança de costumes na sociedade brasileira, por outro, o largo
período em que ela esteve em voga nos leva a refletir sobre a longa duração de uma moda
naquele período. (id., p. 18)
Tudo indica que teria sido Henrique Alves Mesquita - primeiro professor de Antonio
Calado - o introdutor da habanera no Brasil e criador do tango brasileiro (id., p. 22). A
habanera era um ritmo cubano com raízes no norte da África e similar ao tango andaluz que
fazia sucesso em Paris, cidade onde Mesquita viveu por nove anos graças a uma bolsa
mantida pela família real francesa, com quem mantinha uma boa relação. Cinco anos após seu
retorno ao Brasil, em 1871, Mesquita lança Olhos Matadores, música considerada o primeiro
tango brasileiro, gênero que inicialmente descrevia uma adaptação abrasileirada da habanera
cubana, mas passou, posteriormente a servir como rótulo elegante para polcas-lundu e
maxixes. O tango argentino é diferente do brasileiro pois o primeiro mescla a habanera e a
milonga criolla. (id., ibid.)
Ernesto Nazareth, entretanto, foi quem mais se destacou como compositor de tangos
brasileiros, além de ser apontado ao lado de Anacleto de Madeiros e Chiquinha Gonzaga
como um dos compositores mais importantes do período e, todos eles, fundamentais para a
história do choro. Apesar de ser um chorão fundamental para a linguagem do choro, Nazareth
não foi um chorão como outros do seu tempo. Segundo Cazes (id., p. 34), o músico construiu
seu estilo “entre o sofisticado e o espontâneo, entre o balanço rasgado de um maxixe e as sutis
fermatas7 de uma valsa chopiniana”. Iniciado no piano ainda na infância, Nazareth absorveu a
cultura pianística europeia, que seria a base de sua boa técnica. As composições de Nazareth
conseguem reunir ao mesmo tempo, elementos eruditos e populares. Enquanto os chorões
adaptavam partituras de piano aos grupos de choro, Ernesto adaptou a linguagem dos chorões
a expressão do piano. (id. ibid.)
Composta em 1889, é de Chiquinha Gonzaga a música de maior destaque no primeiro
ano do século XX. Ó abre alas, uma marcha-rancho composta para o cordão Rosa de Ouro
esteve entre as principais músicas do carnaval carioca por cerca de dez anos e inaugura um
novo gênero de música no Brasil: a marcha carnavalesca. Segundo Cazes (id.), Chiquinha é
considerada um dos nomes mais expressivos do choro, se não pelo volume de sua obra, por
seu pioneirismo em diferentes âmbitos e sua atuação em defesa da cultura nacional, que
7
A fermata é um sinal de expressão que indica ao intérprete que o som deve ser sustentado mais tempo que o seu
valor original.
segundo o autor beneficiaram a musicalidade do choro em termos de abertura de espaços
considerados até então para a chamada “música culta”. Chiquinha foi a primeira e mais
importante mulher do choro brasileira. Pioneira em diversos aspectos, até mesmo na produção
fonográfica independente, Chiquinha conseguiu na simplicidade de sua obra atender com
música as demandas da sociedade, mexer com seus costumes e sintetizar um período da
música brasileira.
Existem muitas versões para o surgimento da palavra choro. Como não queremos nos
aprofundar nessa questão, apontaremos aqui a de Cazes (id.) por ser a mais utilizada entre os
próprios instrumentistas. Segundo o autor, a definição teria vindo em decorrência da maneira
sentimental com a qual os músicos interpretavam as polcas. É importante destacar que o
termo choro começou a ser gradativamente utilizado para se referir aos grupos de chorões, às
festas onde se tocava choro, como foi dito anteriormente, e acrescentar que foi a partir das
mãos de Pixinguinha, em 1910, que ele passa a significar um gênero definido. Pixinguinha foi
o responsável pela fixação do gênero bem como pela modernização do Choro, formando com
os três compositores anteriores - Chiquinha, Anacleto e Ernesto - os quatro nomes mais
importantes desse período.
Este novo papel da música na cultura global diz respeito ao fato de que
anteriormente a música significava algo externo a si mesma, uma realidade, a
verdade. Em vez disso, a música se tornou um médium que media, como lhe é
próprio, a mediação. Em outras palavras, a música, na cultura global [...] funciona
como um contexto social interativo, um canal para outras formas de interação, outras
formas de apropriação do mundo, socialmente mediadas. (ERLMANN apud
CIRINO, id., p. 232 – tradução do autor)
Pude perceber durante a pesquisa que há uma ideia disseminada entre os músicos de
choro, e por parte do público, de que o ele não está na mídia. Por um lado essa ideia remete ao
fato de que, na mídia tradicional, os espaços reservados à música instrumental são mínimos,
quando comparados aos que são destinados à música cantada, além de geralmente comporem
apenas a programação de emissoras públicas ou canais fechados de TV. Por outro, faz-se
necessário refletir um pouco a respeito do processo de difusão do choro, em que os veículos
atuam (SOUZA, id), mas considerando a comunicação como um componente de nossa vida
social, que não deve mais ser resumida aos veículos que a compõem. (id.).
Desde seu início, a história do choro se relaciona com a trajetória dos meios de
comunicação de massa no Brasil. Apesar de se consolidar através dos formatos escrito
(partitura) e gravado (fonograma), é principalmente através do rádio que o choro chega ao
grande público. O choro sempre teve seus valores alimentados e redescobertos pelos veículos
de comunicação: passado seu período áureo no rádio brasileiro, o choro toma novo fôlego na
mídia nos anos 70 (op. cit.), mas provavelmente nunca experimentou tantos modos de se
configurar como em nossos dias atuais, em meio à pluralidade de meios de comunicação
social interagindo entre si (SOUZA, id.). Como define Barbero (op. cit., pp.219, 220): “Nessa
perspectiva indústria cultural e comunicações massivas são o nome dos novos processos de
produção e circulação da cultura, que correspondem não só a inovações tecnológicas, mas a
novas formas de sensibilidade.”. E é a partir desses novos processos que o choro tem
circulado no mundo inteiro, não apenas sendo consumido, mas sendo também apropriado por
outras culturas.
Entre as décadas de 20 e 30 as emissoras de rádio do Brasil tocavam principalmente
música erudita. Ao final desse período, já na década de 40, as emissoras mais abastadas fazem
questão de manter orquestras que, além das músicas eruditas, começam a tocar músicas de
cunho popular. (CIRINO, id. pp. 21 e 22) A Rádio Nacional do Rio de Janeiro, por exemplo,
mantinha em sua folha de pagamento centenas de músicos e dezesseis maestros. (CIRINO, id.
pp. 21 e 22) Mais do que uma inovação tecnológica, o rádio leva o choro as massas através de
um novo processo de produção e circulação de cultura.
Cazes (op. cit.) considera que a década de 30 trouxe um salto qualitativo e quantitativo
para a música popular brasileira, na medida em que muitos compositores e cantores tiveram o
rádio como o principal veículo de divulgação. Para uma estação de rádio da época era
indispensável o trabalho conjunto do tipo “regional”, pois, sendo uma formação que não
necessitava de arranjos escritos, tinha a agilidade e o poder de improvisação para tapar
buracos e resolver qualquer parada no que se referisse ao acompanhamento de cantores.
Segundo Cazes, (op. cit., p. 83) “O nome regional se originou de grupos como Turunas
Pernambucanos, Voz do Sertão e mesmo Os Oito Batutas, que na década de 1920 associavam
a instrumentação de violões, cavaquinhos, percussão e algum solista a um caráter de música
instrumental.”.
O processo de desenvolvimento do choro no Nordeste, na primeira metade do século
XX, seguiu um roteiro parecido nas diversas capitais. (CAZES, id. p. 153) Em torno das
principais estações de rádio surgiram conjuntos regionais formados por músicos mais
habilidosos, geralmente vindos do interior. Muitos emigraram de capitais menores para Recife
ou Salvador, atraídos por uma maior oferta de trabalho, enquanto outros tentavam o Rio de
Janeiro ou São Paulo, e com talento e perseverança, acabavam por si tornar nomes nacionais.
(CAZES, op. cit., p. 153)
Para além do movimento de propagação e aproximação do choro com o grande
público, o rádio foi – e ainda é – um lugar estratégico de criação e apropriação cultural não
apenas para o choro, mas para o conteúdo da MPIB de maneira geral.
Figura 2 Sardinha e Lauro Vianna lendo um choro no momento da transmissão do programa. Embora Sardinha não mantenha
um grupo fixo no programa, o regional de Sardinha geralmente é composto por ex-alunos seus. No dia da audição, todos os
músicos presentes eram jovens, da faixa etária de Lauro, e foram seus alunos, exceto Maia do clarinete, que é da sua geração
[...] é o nome com que hoje se denomina o que na sociedade excede a ordem da
razão institucional. É a trama que forma os sujeitos e atores para costurar a ordem e
redesenhá-la, mas também suas negociações cotidianas com o poder e as
instituições. Dela emergem os movimentos que deslocam e recompõem o mapa dos
conflitos sociais, dos modos de interpelação e constituição de atores e identidades.
8
Quando nos referimos à cultura do choro, consideramos não apenas a música, mas a todo o contexto social
relacionado à sua prática, seus costumes, o estilo de vida dos músicos, de seu público etc.
aquela circunstância, apontava para uma mudança do lugar da cultura do choro na sociedade,
em um momento em que os processos de globalização econômica e informacional reavivam
questões das identidades culturais - sobretudo as locais, de gênero e as de idade – e
reconfiguram a força, e o sentido dos laços sociais e das possibilidades de convivência no
nacional. (BARBERO, op. cit., p.227)
Os estudos da vida cotidiana estão entre as principais chaves da trama conceitual da
investigação da recepção na América Latina. (id., p. 58) Segundo Barbero (id., p.60), resgatar
o sentido comum é resgatar o viver cotidiano como espaço de produção de conhecimento e
como espaço de produção e de troca de sensibilidade. No presente capítulo, refletimos a
respeito da paisagem do choro na cidade de Fortaleza em nossos dias atuais, a partir do viver
cotidiano de seus novos atores e da dimensão social da construção de suas subjetividades,
menos como um plano de interioridade individualizada e mais como plano de realidade, como
acentua Czamak (apud SOUZA, op. cit., p. 33-34):
Não cabe mais aqui buscar limites nos quais essa construção seja mais individual ou mais
social, porém, à medida que novas formas de subjetivação são descobertas no meio social,
aparece um novo prisma de estudo: como, na prática cotidiana, as pessoas encontram elos
para relacionar-se consigo mesmas; como se veem a si mesmas e como constroem sua
identidade de sujeito.
9
As principais referências foram às reportagens Chorando em alto e bom som, Boemia Renovada e O chorinho
delas do Jornal Diário do Nordeste, de 20 de julho de 2008, publicadas na edição do Caderno 3 intitulada Os
novos chorões de Fortaleza, a matéria Grupos escolhidos para competição e o livreto da programação do II
Chorinho no Centro – Um “Chorinho” para Ademilde, realizado pelo Centro Cultural do Banco de Nordeste, de
13 a 28 de junho de 2012.
4.1 O grupo Murmurando
Dos novos grupos de choro abordados pelo Caderno 3, o Murmurando foi o primeiro a
se formar. Segundo seus integrantes, a ideia do grupo surgiu no Festival Música na Ibiapaba
2006 - do qual alguns músicos do conjunto participaram - mas sua formação10 havia se
completado a partir de uma oficina de choro promovida pela FUNCET11. Samuel Rocha,
violonista de sete cordas, ressalta a importância da oficina e do papel desempenhado por
Sardinha12 – professor da oficina – para sua imersão no universo do choro: “A gente já tocava,
mas não tinha a manha do choro em si. Todo mundo já era músico, mas não necessariamente
de choro. Quando tivemos aula com o Sardinha, nessa oficina, abriu a nossa mente pro choro
de vez.”13.
Naquele período (2008), o grupo tinha em sua formação Giltácio Santos (clarinete),
Lauro Viana (cavaco), Cleilton Gomes (flauta), George ´Chorão´ Anderson (violão de sete),
Samuel Rocha (violão de sete) e Ígor Ribeiro (pandeiro e bateria). Uma particularidade do
sexteto era possuir dois violões de sete cordas14 em sua formação. Em depoimento informal,
Sardinha contou-me que, durante a oficina, era sugerido aos alunos mais avançados no violão
que passassem a atuar nos violões de sete cordas, para equilibrar o naipe de instrumentos do
10
A formação do Murmurando naquele período ainda incluía George Anderson que, posteriormente (2010),
desmembrou-se do grupo, formando o Esquina Brasil, com Pedro Alcântara (bandolim), Jamerson Farias
(cavaco), Iann Caliope (flauta transversa) e Igor Ribeiro (pandeiro), sendo este último ainda integrante do
Murmurando.
11
Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, de onde se originou a Secretaria de Cultura de Fortaleza.
12
Multinstrumentista, compositor, arranjador e virtuoso do violão, Sardinha tem larga experiência na execução e
harmonização de diversos estilos musicais. Profissionalizou-se aos 15 anos, tocando na noite, em rodas de
chorinho e de samba, grupos de baile. Desde os anos 80 tem acompanhado grandes nomes da música local e
nacional, tais como Altamiro Carrilho, Sílvio Caldas, Clementina de Jesus, Fagner, Belchior, Ednardo,
Amelinha, Sebastião Tapajós, Maurício Tapajós, Falcão, Yamandu Costa, Zé Renato, Paulo Moura, Zé da Velha,
Silvério Pontes, Laércio de Freitas entre outros. A sua estratégia didático-pedagógica, que privilegia inicialmente
a prática, para depois introduzir a teoria musical, contribuiu para a criação de inúmeros grupos de choro em
Fortaleza e diversas cidades do interior do estado.
13
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som, do jornal Diário do Nordeste, de 20
de julho de 2008.
14
Desde que o instrumento foi incorporado por Tute no regional de choro (CAZES, op. cit.), os grupos de choro
normalmente só apresentam um violão de sete cordas. Quando existem mais violões no grupo, eles são em geral
de seis cordas.
conjunto da oficina. Samuel e George passaram a desempenhar essa função nas práticas de
conjunto da Funcet e também no grupo Murmurando. Podemos perceber, ainda, a partir dos
discursos apresentados na entrevista, que os integrantes do Murmurando, embora tivessem se
reunido no choro, vinham das mais diferentes trajetórias musicais. Como podemos ver nos
relatos a seguir:
Eu tocava nas missas, dia de domingo. Eu fazia parte daqueles grupinhos de crianças
[...] Quando eu entrei no CEFET17, em 2004, eu conheci o Carlinhos Crisóstomo,
que é um violonista daqui da cidade, e ele é um chorão. A história dele, o choro faz
parte da história musical dele. Ele era um professor que não ensinava só a teoria
como a gente vê em todo canto, ele passava muito essa vivência que ele tinha da
música pra gente.
Na entrevista para o jornal, concedida dois anos antes daquela concedida a mim
(2008), George Anderson também ressaltou sua atuação em grupos musicais de igreja e a
importância de Crisóstomo para a sua formação, como podemos ver na passagem a seguir:
Sempre ouvia muito Villa-Lobos [...] Só que aquilo pra mim era muito distante.
Ouvia os violões e achava que nunca ia conseguir fazer aquilo. Até que fui estudar
no CEFET, com o Carlinhos Crisóstomo, e fui aperreando a galera pra me arranjar
os choros18.
Samuel conta que George “sempre pedia choro” e por esse motivo ganhou o apelido
de Chorão, e também fala da entrada de Giltácio para o grupo: “Aí descobrimos que tinha um
clarinetista fera no CEFET, toca Um a zero19 [...]. Ele fez prova pra entrar no grupo”.
Conhecido no meio musical como Gil, o clarinestista, egresso de bandas de música do CEFET
e do Piamarta, fala no depoimento abaixo de sua atuação musical naquele momento que,
segundo ele, se voltava especialmente à regência e à educação musical:
15
Depoimento do flautista Cleilson Gomes, contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
16
Esta entrevista foi publicada no documentário Retratos de um som: um olhar sobre o choro em Fortaleza, de
2011, lançado pela Escola de Audiovisual da Vila das Artes (Fortaleza-CE), com direção e argumento meus.
17
O músico se refere ao curso de música do CEFET-CE, Centro Federal de Educação Tecnológica, cujo nome
atual (2013) é Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)
18
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
19
Choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda, considerado de difícil execução.
Toco clarinete também, até porque é preciso tocar pra poder arrumar trabalho, mas
não me acho principalmente um instrumentista [...] Trabalho agora com o maestro
Gladson Carvalho, na Filarmônica do Ceará. O choro, eu passei a estudar mais desde
que vi uma apresentação do Paulo Moura na TV20.
Igor Ribeiro, pandeirista e baterista, conta que tocava bateria desde os 11 anos,
influenciado pelo som dos Paralamas do Sucesso. O músico estudou na Escola de Música
Luís Assunção, no Centro de Fortaleza, e foi levado para o choro por Samuel, tendo estudado
com músicos como Fernando do Pandeiro, Paulinho do Pandeiro e Pantico Rocha.
Completando a formação, Lauro César, cavaquinhista do grupo, também fala um pouco da
sua trajetória antes de chegar ao choro:
Pedi um cavaquinho ao meu pai e comecei a estudar, mas a galera encaminhou mais
pro lado do samba. Depois toquei no CD instrumental do Adelson 21, no Forró da
Roça22, até vir pro choro23.
Sobre a atuação do grupo, até aquele período, alguns momentos marcantes são
ressaltados na reportagem. Entre eles, a viagem do grupo ao Rio de Janeiro no início daquele
ano (2008), quando acompanharam a Comédia Cearense, para a temporada da peça ´O
Casamento da Peraldiana´, de Carlos Câmara. Os instrumentistas contam que durante a
viagem se viram muitas vezes diante da interrogação: ´Vocês são do Ceará? E lá tem choro?´.
O Jornalista Dawlton Moura destaca ainda a participação do Murmurando no festival Mel
Chorinho e Cachaça de 2007 como um momento de consolidação “[...] no ano passado o
grupo já se consolidara a ponto de ser chamado a tocar no I Festival Mel, Chorinho e
Cachaça, em Viçosa do Ceará.”.
Samuel Rocha define que “desde o começo, a proposta era choro de jovens para
jovens”. A ideia do grupo de difundir o choro entre os jovens de Fortaleza foi transformada
em projeto e o grupo comtemplado por um dos editais da Funcet. Em contrapartida aos R$ 15
mil recebidos como apoio do Poder Público municipal, os integrantes do Murmurando
realizaram aulas-show em diversos bairros da cidade. A reportagem foi publicada poucos dias
após o show que encerrava o projeto. Abaixo, o relato do jornalista Dalwton Moura, nos
apresenta um resumo do momento:
20
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
21
Referindo-se ao tio Adelson Viana, renomado músico brasileiro. Natural de Fortaleza, Viana atua como
acordeonista, tecladista, compositor, arranjador e produtor musical.
22
Grupo de “forró pé de Serra” de Adelson Viana.
23
Depoimento do músico contido na matéria Chorando em alto e bom som (op. cit.)
apresentações. Eram os integrantes do grupo Murmurando, que entre clássicos do
choro, com um passeio especial por gemas do repertório de Jacob do Bandolim,
foram acolhidos no mais nobre espaço cultural da cidade. Uma noite memorável
para um grupo formado há cerca de dois anos, por músicos entre 19 e 22 anos.
24
O grupo de música instrumental, formado a partir de rodas informais de improvisação na noite carioca, tem
como uma de suas principais características tocar choro de uma maneira nada convencional, combinando
elementos do jazz, samba, flamenco, clássico, blues, reagge e rock etc. O primeiro álbum do grupo, Tira Poeira,
foi lançado em 2003, quando foram descobertos por Maria Bethânia e convidados a gravar em seu álbum
Brasileirinho.
25
Irmão de Dino Sete Cordas, Jorginho desenvolveu um estilo marcante que influenciou toda uma geração de
pandeiristas, incluindo os que acima foram citados. Cazes (op. cit.) define seu estilo como exuberante, com
muito aproveitamento das possibilidades sonoras do couro do pandeiro e uso do polegar de forma bastante
movimentada. Esse estilo seria um desenvolvimento do estilo de João da Baiana, primeiro pandeirista a se
destacar na história da nossa música. (CAZES, op. cit.) Suzano, Krakowiski e Ribeiro, no entanto, apesar de
terem sido influenciados pelo estilo de Jorginho, invertem o tempo forte da batida e fazem sua marcação,
principalmente, com o dedo médio, em vez do polegar.
Nosso som hoje em dia, desde que começou, a gente vem absorvendo as influencias
e tenta não ser tão tradicional, não tão “cadenciado”, mas também não viajar tanto,
não fazer um negócio tão doido. Tentar mesclar, mostrar a música e depois
improviso. [...] Não é um negócio estereotipado. Nem tão tradicional, nem tão
contemporâneo.
Figura 3 Formação do Murmurando no período da reportagem. Da esquerda para a direita: Samuel Rocha, George ‘Chorão’
Anderson, Igor Ribeiro, Lauro César, Giltácio Santos e Cleilson Gome. Fonte: Diário do Nordeste / Foto: Thiago Gaspar
Nesse sentido, o repertório, no que diz respeito ao seu lado mais “tradicional”, como
se refere Igor Ribeiro, privilegia obras de clarinetistas como Abel Ferreira e K-ximbinho,
além das composições mais famosas, de nomes como Jacob do Bandolim e Pixinguinha.
Ribeiro defende, entretanto, que apesar da influência dos clarinetistas citados acima, na
formatação do repertório do grupo, a técnica de Giltácio se aproxima mais da técnica de
clarinetistas contemporâneos, como Paulo Sergio Santos, Alexandre Ribeiro e Gabrielle
Mirabassi. Ainda em relação ao repertório, o grupo tem se preocupado, de seu início aos dias
atuais (2013), em apresentar ao público músicas de autores contemporâneos, como Zé Paulo
Becker (RJ) Tarcísio Sardinha (CE) e Adelson Viana (CE), e se dedicado a compor e
interpretar músicas próprias.
Em depoimentos informais, Samuel Rocha e Igor Ribeiro, falaram-me a respeito do
primeiro disco da carreira do grupo, que está sendo gravado desde o início de 2013, com a
ajuda de Adelson Viana, em seu estúdio Villa. Segundo os instrumentistas, serão dez faixas
gravas, dentre as quais, cinco de autoria dos integrantes Giltácio dos Santos e Samuel Rocha,
sendo uma música de Rocha uma parceria com Pedro Madeira e Tarcísio Sardinha. Também
serão gravadas composições inéditas de seus contemporâneos Adelson Vianna, Gilson
Penazeta e Zé Paulo Becker, além de dois choros do repertório tradicional de choro,
considerados de domínio público.
Violão de sete cordas, bandolim, pandeiro e... acordeom e trombone. Essa é a receita
do Vida Boêmia, grupo formado há cerca de um ano, por jovens instrumentistas,
para se dedicar ao chorinho. Tarefa facilitada pela experiência já acumulada pelos
garotos, entre períodos como autodidatas e a busca de um aprendizado formal -
quatro dos cinco integrantes cursam a graduação em Música na Universidade
Estadual do Ceará, sem falar na passagem por outras oportunidades de educação
musical, como o curso técnico do Centro Federal de Educação Tecnológica - Cefet
Ceará.
O trecho acima faz parte da reportagem Renovada boemia (op. cit.) dedicada ao grupo
Vida Boêmia. A curta trajetória desse grupo, que acabou se dissolvendo pouco tempo depois
da reportagem, nos leva não apenas a refletir sobre os aspectos que contribuíram para o
surgimento dos novos grupos de choro naquele período, mas também sobre as dificuldades de
se manter um grupo de música instrumental. O Vida Boêmia era formado por Glauber Sousa
(23 anos, acordeonista), Rafael Vieira, conhecido no meio musical por Makito (21, bandolim),
Igor Caracas (21, pandeiro), Pedro de Alcântara, hoje mais conhecido por Pedro Madeira (19,
violão de sete cordas) e Rômulo Santiago (22, trombone). Para que se possa saber a faixa
etária dos músicos naquele contexto abordado pelo Caderno 3, as idades indicadas acima,
correspondem ao período de 2008, quando foi realizada a reportagem com o grupo.
Figura 4Da esquerda para a direita: Rafael 'Makito', Pedro Madeira, Igor Caracas, Glauber Souza e Rômulo Santiago. Fonte:
Diário do Nordeste
O Vida Boêmia foi se formando a partir de um trio de estudo de choro criado por
Pedro Madeira e Rafael Makito, que na época contava também com o músico Carlos Hardy.
Lembro-me de tê-los cedido o quintal da residência da minha família para alguns ensaios, que
ocorriam normalmente no apartamento de Makito. Assim como o Murmurando, os músicos
do Vida boêmia vinham das mais diversas trajetórias musicais. Makito, por exemplo, passou
por violão, guitarra, trombone, até chegar ao bandolim, instrumento com o qual atuava no
grupo:
Pedro Madeira, por sua vez, iniciou seus estudos musicais aos 15 anos, no teclado, por
influência do irmão, passou para o violão e foi apresentado por Sardinha ao violão sete cordas
e ao bandolim – instrumento que ganhou de Sardinha em seu aniversário de 18 anos.
Depois comecei a estudar mais, conheci o (violonista e professor Tarcísio) Sardinha,
que me chamou pra uma oficina de choro, lá na Funcet. Dali a gente começou essa
história, no começo do ano, eu e o Makito. Depois vieram o Glauber, o Caracas e o
Rômulo, e eu passei pro sete cordas.
Glauber Souza, que trocou Guaramiranga por Fortaleza com o objetivo de estudar
música, confirma na entrevista que a experimentação funcionou bem. O músico fala ainda de
sua trajetória musical e conta ter conhecido o choro nas festas no sítio da família, com a mãe e
o tio sanfoneiro:
Com 13 anos, ganhei um pandeiro. Mais ou menos em 2005, passei pra percussão,
depois que meu pai começou a me levar pras rodas de samba. Aprendi muito com o
Paulinho do Pandeiro, que passava muitos bizus. Também estudo bateria e quero
entrar no Conservatório [...] Mas o choro vem desde pequeno, em casa, pelo meu pai
ouvir. Acabava me bandeando pra música brasileira, levando as influências de
samba pras bandas de pop-rock26.
Como foi dito anteriormente o Vida Boêmia nasce de um grupo de estudo, formado
inicialmente por Pedro Madeira e Rafael Vieira (Makito). Em depoimento informal, Makito
falou-me a respeito da entrada dos outros músicos no conjunto. Resumindo a história, Makito
declara: “Conhecia os meninos da rua, e chamei”. Perguntado sobre o significado da
expressão “rua27”, Makito detalha: “Tocava com o Rômulo das bandas de música e conhecia o
Glauber da faculdade (do curso de música da UECE) e dos Festivais de música [...]”.
A expressão “rua” foi utilizada por Makito para se referir genericamente aos diferentes
espaços onde ocorrem as sociabilidades dos músicos de choro. Além dos festivais, da
universidade e das bandas de música, podemos identificar ainda as oficinas, e até mesmo as
residências dos músicos, como importantes espaços de sociabilidade para a nova cultura do
choro na cidade. A partir desses espaços, ocorrem novas maneiras de produção e de troca de
conhecimentos e sensibilidades.
Embora o grupo não tenha tido continuidade, seus integrantes continuam voltados a
música, dedicando-se a diferentes atividades musicais. Em depoimento informal, (2013)
Pedro Madeira e Rafael Makito falaram-me a respeito da experiência adquirida através do
grupo Vida Boêmia. Pedro Madeira - que hoje divide seus estudos especialmente entre
bandolim e ao saxofone, instrumento com o qual se prepara para ingressar na banda do
exército - acredita, que, embora o grupo não tenha continuado, o projeto foi importante
26
Depoimento do músico contido na matéria Boemia Renovada (op. cit.)
27
A expressão também aparece em seu depoimento ao Caderno 3 (op. cit.), transcrito acima, quando o músico
fala sobre o aprendizado do violão.
principalmente pelos conhecimentos adquiridos em relação ao choro e a prática de conjunto.
Rafael Makito - que atualmente dirige o disco da cantora Lorena Nunes – apontou a
montagem de repertório e a criação de arranjos como aprendizados importantes adquiridos
com o grupo, e ressalta ainda que os maiores legados da experiência em conjunto são a
convivência com a “galera” e o fortalecimento das amizades. Sobre a importância do choro
para a sua formação musical, Makito conclui: “É mais no sotaque, se você tocar o jazz é outro
tipo de sotaque. É como ir no Ceará e aprender a falar ´cearês´ [..] sotaques diferentes geram
novas palavras novos caminhos.”.
Cadeiras no quintal ao fim da tarde, para uma roda de choro exclusivamente feminina. O
canto dos pássaros se alterna às frases do bandolim e da flauta, acompanhadas por violões,
cavaco, pandeiro. No local se respira música, o que se percebe desde as letras de canções
reproduzidas nos muros, até a vizinhança do Parque Araxá, acostumada com o movimento
na casa de um dos mais conceituados músicos cearenses: o multiinstrumentista Tarcísio
Sardinha - a propósito, chorão de primeira linha e, com suas aulas, um dos responsáveis
pela disseminação do gênero para as novas gerações28.
O trecho acima descreve uma tarde de ensaio do Fulô de Araçá em sua fase inicial. No
momento daquela reportagem (2008), o grupo estava com poucos meses de ensaio e acabava
de se tornar um sexteto, formado por jovens instrumentistas entre 16 e 26 anos. Faziam parte
do conjunto Brenna Freire (cavaco), Clarissa Brasil (pandeiro), Crisyani Soares, conhecida no
meio musical por Cris (violão de seis cordas), Lidia Maria (bandolim), Marília Magalhães
(flauta) e a autora desta pesquisa, que naquele período atuava no outro violão de seis cordas.
O nome do grupo vem de um choro-canção homônimo de Dominguinhos e Guadalupe
e foi escolhido pouco antes de sua primeira apresentação, em abril de 2008. A ideia de formar
um conjunto feminino para tocar choro havia surgido, entretanto, no ano anterior (2007), no
Festival Mel Chorinho e Cachaça. Indignada ao constatar a completa ausência de mulheres
no palco do festival, foi a flautista Marília Magalhães quem começou a idealizar o projeto,
como podemos observar em seu depoimento a seguir:
28
Trecho da reportagem O chorinho delas, publicada no Diário do Nordeste, em 20 de julho de 2008.
Fui pro festival do chorinho no ano passado, e achei as apresentações incríveis. Mas fiquei
indignada com o fato de não ter nenhuma mulher no palco, em nenhum dos shows. Ali eu
disse: ´Ano que vem eu volto aqui, com um grupo de choro só de mulheres29.
29
Depoimento da flautista contido na matéria O chorinho delas do Diário do Nordeste, publicada em 20 de julho
de 2008.
30
Em contrapartida ao curso oferecido pela prefeitura, os alunos faziam apresentações eventos da prefeitura, em
espaços como no Mercado dos Pinhões e o Largo do Mincharia.
31
Compramos o pandeiro de Clarissa com o dinheiro arrecadado em um bingo de produtos da Natura e alguns
CDs de artistas cearenses. O bingo foi realizado no quintal da minha casa, pois aos finais de semana meus pais
abriam como bar e recebia um bom público. Arrecadamos cerca de trezentos reais e compramos com esse
presença de Brenna, que também havia feito parte da oficina, mas à incompatibilidade de
horários atrasou sua entrada no grupo, que só ocorreria pouco antes da reportagem realizada
pelo Diário do Nordeste.
As integrantes do grupo Fulô de Araçá, assim como os músicos dos outros grupos
abordados pela reportagem, também traziam bagagens musicais diversas. Curiosamente,
apenas Brenna, a mais nova do grupo, com 16 anos na época, era a única que já tinha
experiência no choro, como podemos ver em seu depoimento: “Por ter começado já tocando
choro, não acho que seja tão difícil. É mias complexo, mas quando você começa é natural.32”.
Clarissa anteriormente tocava bateria em bandas de rock, Cris e Marília vinham do
curso de música UECE, Lidia cursava Ciências Sociais na UFC, mas já havia estudado
guitarra no conservatório e eu, apesar ser filha de um chorão me sentia, até então, mais
influenciada por batidas e acordes dissonantes da bossa nova.
Embora tivéssemos experiência em outros instrumentos e diferentes universos
musicais, nosso objetivo principal, naquela primeira fase do grupo, era encarar a
complexidade do choro. “O que me atrai no choro é a riqueza, o desafio. É o erudito do
popular, com músicas belíssimas!”, declara Marília, que havia tocando violino na infância e
há três anos se dedicava ao estudo da flauta transversal, com o auxílio do professor Heriberto
Porto.
Embora nos propuséssemos a tocar música popular instrumental brasileira, como
define Marília: “[...] tem samba também, bossa... A gente quer tocar fundamentalmente choro,
mas sem restringir”, o que realmente nos preocupava naquele momento era compreender o
universo do choro, entender sua linguagem, como explica Cris abaixo:
Pra mim, é outra linha de pensamento. Quando você toca bossa, é mais harmônico.
Tocando chorinho, tem as baixarias, melodias, que contrapõem. É outra maneira de tocar
[...] O tempo das baixarias (frases com as notas graves, nos baixos) tem que ser muito bem
trabalhado33.
dinheiro um pandeiro de Aloísio Silva, renomado chorão e até então o único luthier de pandeiros da cidade.
Depois do falecimento de Aloísio, o percussionista Rossano Cavalcante comprou sua oficina e tem dado
continuidade a fabricação dos pandeiros de couro.
32
Depoimento da musicista contido na matéria O Chorinho delas (op. cit.)
33
Depoimento da musicista contotido na matéria O Chorinho delas (id.)
durante os ensaios, o trabalho do grupo não se restringia ao momento do encontro. Em casa,
individualmente, nós pesquisamos o repertório de choro, selecionávamos algumas músicas
para montar nosso repertório - que normalmente eram baixadas da internet - depois
procurávamos as partituras dessas músicas na internet ou em livros especializados. Em geral
trabalhávamos três músicas por ensaio, que eram antes estudadas em casa, com o auxílio de
partituras e gravações.
Uma das maiores dificuldades durante nossos ensaios era união dos dois violões.
Sardinha orientava que cada um dos violões do grupo fosse tocado de uma forma diferente,
que se combinassem entre si. Nossa ideia inicial era que Crisyani, que estudava música no
CEFET e na UECE, passasse para o violão de sete cordas, pois era mais avançada em teoria e
poderia utilizar esses conhecimentos para se adaptar ao novo instrumento. Entretanto, no
decorrer dos ensaios fui assumindo a região mais grave do violão, enquanto Cris se
preocupava em explorar os acordas na região mais aguda – para que nossas levadas no
instrumento não se embatessem. Por esse motivo e por ter um instrumento em casa, fui aos
poucos experimentando o violão de sete cordas no ensaio, até que passei a usá-lo em nossos
shows. Segundo Luis Otávio Braga (2004), a “invenção” do sete cordas na música popular
brasileira decorreu da necessidade virtuosística e inventiva do violonista popular do choro. O
trecho abaixo pertence ao método teórico e prático de Braga (id.), Violão de Sete Cordas,
onde o violonista-autor demonstra a importância e os novos usos do violão de sete cordas na
música popular brasileira:
O violão de sete cordas é uma “invenção” dos violonistas feitos na vida artística sob a tutela
da música popular de Choro e do samba tradicional – que, espertamente, ao ter seu
reconhecimento na vida cultural da nação, se fez no mundo musical também sob a guarda
do acompanhamento do bom e velho regional, a orquestra típica do Brasil. [...] Necessário é
esclarecer que o violão de sete cordas não se apresenta como uma simples tomada eventual
da tradição, fato menor, corriqueiro em tantas ondas de revivals que se banalizam alhures.
Tendo-se modernizado – termo detestável pelo que pode contar de arrogância e presunção –
no sentido de que as novas gerações se preocupam em não só tocar o repertório “clássico”
no qual ele se impõe nobremente como a contrapartida ordenadora do solista principal, mas
também arrematar novas maneiras de se introjetar no conjunto típico e em outras formações
não exatamente chorísticas.
4.3.3. Os caminhos através do feminino
Mal tínhamos um repertório de meia hora ensaiado, quando nos convidaram para fazer
a nossa primeira apresentação pública: a abertura do show das Chicas em uma nova edição do
projeto Seis e Meia, no dia 7 abril de 2008. Aceitamos o desafio e apresentação foi um
sucesso, nos rendendo, no mesmo dia, um convite para tocar em Guaramiranga. O público e,
sobretudo, a mídia, mostrava-se bastante curioso em relação ao nosso grupo. Embora essa
curiosidade inicial às vezes viesse acompanhada de certos preconceitos – relacionados
principalmente a idade e gênero – a resposta das pessoas em relação ao grupo era na maior
parte das vezes bastante positiva.
Figura 5 Formação do Fulô de Araçá no período da reportagem. Da esquerda para a direita: Clarissa Brasil, Crisyani Soares,
eu, Marília Magalhães, Lidia Maria e Brenna Freire. Fonte: Diário do Nordeste
Figura 6 Integrantes do grupo Fulô de Araçá com o grupo feminino de choro As Choronas (SP). No Festival Mel Chorinho e
Cachaça de 2008. Marília realizava seu sonho de voltar ao festival com um grupo feminino, embora não fizesse parte da
programação do Festival, que naquele contava com mulheres no palco e nas rodas informais.Fonte: Arquivo Pessoal
Figura 7 Fulô de Araçá em na abertura do show do Renato Teixeira, no projeto MPB Petrobrás, em 2009. Fonte: Arquivo
Pessoal
Por vários motivos, o Fulô de Araçá manteve-se inativo por cerca de um ano - de
2010 a 2011. Acredito que o principal fator da desarticulação do grupo tenha sido nossa
mudança de foco, naquele momento, em que a maior parte do grupo se dedicava a realização
de outros projetos: Lidia estava se formando, eu me preparava para fazer um intercâmbio
acadêmico e a flautista, Marília Magalhães já havia se mudado para São Paulo. Quando
retornei do intercâmbio, Cris, Lidia e eu retomamos o grupo.
Atualmente o Fulô de Araçá atua como um trio, geralmente acompanhado de um
percussionista. Se por um lado a dinâmica do grupo é totalmente diferente, e não temos mais
condições de realizar encontros com a mesma frequência da fase inicial do grupo, por outro
lado começamos a explorar outras potencialidades e sensibilidades. Atualmente todas
compõem e atuam em diferentes instrumentos no show, que também tem se aberto,
gradativamente a músicas cantadas.
Figura 8 Formação atual do Fulô de Araçá. Da esquerda para a direita: Crisyani, Lidia e eu. Fonte: arquivo pessoal
Figura 9 Roda de choro após bate-bapo com o grupo Choro das Três, no Festival Mel Chorinho e Cachaça (2009).
Fonte: arquivo pessoal
Como pudemos ver no capítulo anterior, músicos mais experientes, como Carlinhos
Crisóstomo, Tarcísio Sardinha e Heriberto Porto tem tido um papel importante no sentido de
facilitar a aproximação dos mais jovens com o choro, facilitando suas sociabilidades nesse
contexto.
Além disso, espaços como os festivais de música, as mostras, as oficinas e as bandas
de música, que nos remetem ao início do choro, têm sido fundamentais no sentido de juntar
esses jovens e servirem como espaço de troca de experiências musicais e produção de
conhecimento. Os festivais, em especial, têm sido espaços importantes para as mais diversas
formas de diálogo entre músicos chorões de todo o país.
Figura 10 As rodas de choro faziam parte da programação do Festival Mel Chorinho e Cachaça de 2008. Da esquerda para a
direita: Makito (do grupo Vida Boêmia, Henry Lentino (do grupo Tira Poeira), Igor Ribeiro (do grupo murmurando) e Rafael
Ferrari. Fonte: arquivo pessoal
Pelo que pude apurar durante a pesquisa, após o surgimento dos grupos Vida Boêmia,
Murmurando, Fulô de Araçá, abordados em 2008 pelo Caderno 3, vários outros grupos
formados inteiramente por jovens foram surgindo, como podemos ver a seguir:
.
A partir desse trabalho, comecei a compreender o choro não apenas como um gênero
musical, mas, principalmente, como um lugar de encontros musicais. Percebi que pensar o
choro em nossa cultura global vai bem além de defini-lo como “tradicional” ou
“contemporâneo”, “autêntico” ou “deturpado”. Estudar o choro, sob o olhar da Comunicação
Social, me fez buscar sua mediação na sociedade, as suas sociabilidades, e escutar - além das
melodias e baixarias de suas músicas - os sons que fazem os chorões quando se junto.
Certo dia, perguntaram-me se eu me considerava uma chorona. Sinceramente, não
soube o que responder na hora. Eu toco choro? Sim, toco alguns choros. Mas quantos choros
um músico precisa saber tocar para ser considerado um chorão? Geralmente o termo “chorão”
é utilizado para músicos especialistas em choro. Esse não é o meu caso. Apesar de ter um
grupo de choro há mais de quatro anos, considero-me uma iniciante no que diz respeito ao
domínio da linguagem musical do choro. Refletindo mais um pouco sobre o assunto, comecei
a pensar que um “chorão” é um individuo atuando em uma realidade, em um contexto social
especifico que é o choro. Esse ator desempenha um papel dentro dessa realidade, mas ele não
atua sozinho, ele necessita da sociabilidade.
Considerando o ‘chorão’ como o individuo que atua na construção da realidade do
choro, hoje eu me considero mais chorona do que nunca, embora tenha tocado pouquíssimo
ultimamente. Sou chorona por diversos motivos: porque gosto de choro, porque me criei
ouvindo choro e, principalmente, porque muitos dos meus laços sociais foram construídos a
partir do choro. Hoje acredito que alguém para ser considerado um chorão nem precisa tocar
choro, mas sim atuar de alguma forma em seu movimento, seja escutando, divulgando,
produzindo.
Chegando no final desse trabalho, tive acesso, através da Lu Resende, a um livro
chamado Os sorrisos do Choro: uma jornada musical através de caminhos cruzados. A
autora desse livro, Julie Koidin (2011) é uma flautista americana, de Chicago, que se
apaixonou do choro através de um disco de Pixinguinha e resolvendo embarcar em uma
aventura que nenhum pesquisador Brasileiro fez até agora: viajar pelo Brasil entrevistando
seus músicos de choro e elaborar um livro a partir da transcrição dessas entrevistas. Após o
prefácio e a introdução onde Koidin explica “como o choro a encontrou”, o livro é
inteiramente formado pelas entrevistas que realizou em seis cidades do Brasil. As cidades
foram: Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza, Natal, Recife e São Paulo. Em Fortaleza, Koidin
entrevistou os músicos: Alísio Silva, e seu filho Anderson, Macaúba do Bandolim, Márcio
Resende, Tarcísio Sardinha e Zivaldo Maia. Este livro foi publicado pela editora Global
Choro Music, cujas publicações são distribuídas no mundo todo.
Para além da emoção inicial – ao imaginar a história do meu pai e de nossos amigos
lida por vários chorões do mundo - a chegada desse livro foi muito importante para que eu
chegasse as seguintes conclusões: O choro, em nossa cultura global, representa muito mais
que uma música “tipicamente brasileira” como defendem alguns, e vai bem além dos rótulos
que lhe caibam. Seja ele tocado como uma polca “a moda antiga”, ou enrolado na complexa
trança do que se comercializa no exterior sob o rótulo de Brazilian Jazz, o choro hoje é bem
mais do que um gênero de música brasileira, ele é como uma roda gigante que sempre se
“reinventa” por estar em constante movimento. É um contexto social interativo, onde se
encontram chorões de todos os tempos, de todos os lugares do mundo.
BENNETT, Roy. Elementos Básicos da Música. Trad. Maria Teresa de Resende
Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. 3ª edição. São Paulo: Editora 34,
2005.
SOUZA, Mauro Wilton de: Recepção e comunicação: a busca do sujeito. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
DINIZ, André. Almanaque do Choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler,
onde curtir. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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