Você está na página 1de 21

O bife e a pipoca 45

1
Carta de amigo

Q<- •
o o(x<Xx xll &@fou.
rfYXOJ&cu 'OOL crrvcU X
,53|££Cl6 • t c o m c f CK> ^ ffit l
'Sjryi^e- /ok ? jeM ^rnax*'
fiy x l^ L (Y&m . JaQrn/^aJid Cpíl2. J j a & t o ó
jüia . fa íJ Jfô- rn& v m y s rw c f J à t^ C t.

Í 9 rm utp 'ixU . ^íi^J c|juja* Gastei*^


A l oJl (7x0* j S o P
^ ^ í* - Àrrart\m ct . < Ç n tó V jeo,
^ í . Ihxe. /íc^nrv.
/dU. ^uSíkd cnõ'
i. cHo m *. (Btürrwòtcfp jan** m*#'
'Trw**K. A l fyjúcf. ^suyjfinÀ d, 'jna.
O bife ea pipoca 47

^üiOUL (Wrm. À c u o / v & £


PjSlwc jÍ nrrtfíi/àA-- x£^HM >itnMjr|\ '
mem: jff& & ^P>^eTt6cuçKer ^>£/&wtc*k. ''Rprrvxto-,
UwÍjl A&Zf M^JÚArfjo' •oèfc £ r r itò |jtuu AxJhet jur&t srxBTpA* %n%àêfX CLeújfôa.
tfcL. ^ H É ;rof^ rnÃ' jMtffud* Òo^
(íftnrnÃ*Cft^? &, OgrrJk. J&+ CerJWm <Vtf^
^R B pt^ jebtjsL,, H Qò&rrX. |t^eü cb ^ u í .
£ W è to^yWráV WX' a«f. &t#à ^ /d?V. <77Wyíion. ,U/7nA íY1ô(^Wl: |
E|$P| a ^^tji nW^ptcti*. >4^
AílA*/ftSw/Yvo' >b<*yÍ0.£>j&rtta* &n.
íz^Iiu^
*3
yCt <*¥* 4pr& * 1
ê • ê> -WW >Ctf7riítr^tc ^L s jtym faX/Xs*' cr*tà$: >í>c6&t>^' (^ujyi. sdu^K |
£&. nr&fa <$&. M
%rw&*f Gu&t&^SLJUyJaU. ^
E t y l ^ aa. -i^x jtyriküfi* .%jOjí rgtí
Ô«r>| /71P-77L. ja^COo (lr^rr\õ^KSrn\,.
QuSrrtK, jbeJtft10 MrttáMZf jfajíí fofe
/rvXèr ^ d vcâò xxêt^pxdu tíd%d7
kJ&r <** <**e H*u X sK K Ol&cf Jjff âyJOl&tUiaf sü^AJl 0 /jjj- h0LL
K L ;. y W i juvfijtítagj mícf 4 jAktí cmtài ^ut h M
I, f/M($*$&rwtí *>§. rmM>v&&A <*ntu &
W -c^odu |ot Jlmâoke^ : e^ ^l jk //IA.C%l^ ♦ jeòteffou /flú x.
-^«AXATyL
4^ A/»néJ B
/y^t4.
{/oT t OffArr4& à# 4
O bife e a pipoca 49

Foi só a turma rir que oTuca se encolheu de


2 novo: enterrou o cotovelo na carteira, botou a cara
na mão, grudou o olho no caderno aberto e ficou
Na sala de aula achando que a classe tinha rido era do nome dele.
Quando a aula acabou, todo mundo saiu
O professor dc geografia perguntou: pro recreio, mas oTuca nem se mexeu.
—Como é o seu nome? O Rodrigo foi comprar um sanduíche e voltou
-Turíbio Carlos» pra acabar um trabalho. Nem prestou atenção no
—Como? Tuca; debruçou no caderno e começou a escrever.
—Turíbio Carlos» —Levantou. E levantou O olho do T uca foi indo pro sanduíche.
também um pouco a voz: —Mas lá em casa eles Quando chegou lá, quem diz que ia embora?
me chamam de Tuca. O Rodrigo pegou o sanduíche, deu uma
—Quem sabe aqui na escola você também dentada e aí viu que o olho do T uca tinha
fica sendo Tuca? também mordido o pão.
E o Tuca arriscou: A boca do Rodrigo foi mastigando.
—Eu topo. O olho do Tuca mastigou junto.
O professor dc geografia resolveu: A boca deu outra dentada; o olho mordeu
—Então pronto. —E escreveu na ficha: Tuca. também.
A turma riu: era a primeira vez que eles A boca foi parando de mastigar; o olho
ouviam o Tuca falar, ele não puxava conversa, do T uca foi ver o que que tinha acontecido:
não entrava em grupo nenhum, e na hora do deu de cara com o olho do Rodrigo: se
recreio ficava sempre estudando. assustou: voltou correndo pro caderno.
50 L ygia B oju n ga
O bife e a pipoca 51

De repente o Rodrigo fe z um ar meio que os dois eram da mesma idade. E aí falaram


distraído e estendeu o sanduíche: de estudo.
-Q uer? —Sabe que eu era o 1.° da classe lá na
O Tuca ficou sem saber o que que respondia; minha escola?
acabou fazendo que sim. Pegou o sanduíche com Outra vez o Rodrigo se espantou: naqueles
as duas mãos. Olhou pro pão. Cravou o dente. primeiros dias de aula já tinha dado pra ver
—Pode comer ele todo —o Rodrigo falou. que o Tuca estava sempre por fora.
E foi só acabar de falar que o sanduíche já tinha —Foi por isso que eu ganhei a bolsa de
sumido. estudo priaqui.
O Rodrigo saiu da cla s s e s e m d iz er nada. O Rodrigo só disse: hmm.
Voltou com mais dois sanduíches. Deu um pro O Tuca meio que riu:
Tuca. Se olharam. Comeram quietos. E pela —"Escola de rico" feito a gente diz. —
primeira vez o Tuca falou com um co le g a : Suspirou: o sanduíche tinha acabado. —Mas,
—Nossa! nunca vi tanta m a n teiga e tanto sabe? eu não sei como é que vai ser.
queijo num pão só. —O quê?
Começaram a conversar. Primeiro de idade: —Acho que eu não vou aguentar a barra:
o Rodrigo tinha 11 anos e o Tuca já ia fazer 14! o estudo aqui é mais adiantado, é diferente, sei
O Rodrigo olhou espantado pra ele: lá, eu só sei que não tá dando. E o pior é isso
—E mesmo?! aqui —olhou pro caderno e espichou um queixo
—Não pareço não? desanimado —, a tal da matematica.
—Bom... —e o Rodrigo olhou pro pão. O -V ocê não fez o trabalho que a gente tem
Tuca era tão miúdo que ele até tinha pensado que fazer?
52 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 53

—De que jeito? eu não saco nada disso.


O Rodrigo olhou pro relógio: 3
—Eu tô quase acabando o meu. Quer que
depois eu te dê uma explicação? Carta de amigo
A cara do Tuca ficou tão contente que o
Rodrigo até achou melhor fingir que não tinha
visto: virou pro caderno e começou a escrever.
Naquele dia só deu tempo de dar uma trivLjú
^yjSw
C , id a '
explicação curta pro Tuca. idcr A. OS^rdtsL
Mas no outro dia o Rodrigo usou a hora
do recreio todinha pra explicar tudo melhor. Era /jie&csix.
a primeira vez que ele dava aula pra alguém. E ^Jqksl* ybaJlioL , cr /cyjL .
pelo jeito gostou: nem viu o tempo passando. A , A cf /O^ J f c to. crruufafr.-
campainha tocou e ele até se assustou: / /W ueyutitcr j Zòow&c .
m atí . XssrrJbtA- ? £jul O'U*rveA-
—Já?!
■MlrrXo^ rrw jX * - -OifrdêidiL /dã JSX /nadou.
EoTuca falou:
& d e u y d U - A Ifàm ou ^
—Puxa, cara, saquei tudo que você me /Cârrus&iAoa, Mjl /otn y fí , Q líÁ íé.: zjut-
ensinou; acho que você vai ter que ser professor. x*. /ywfcer v o u . j »ül /naAou d t Xm Ía '
E no dia seguinte lá estava o Rodrigo outra OyOL jlm, f/ufçf m X ct/ y u /Y*' ^ ° fs^ d^ í
vez explicando. , 0 h a 4 Aá&v*' Votei X o fc :
E oTuca se animando: 'Agora, sim, tô J*S/rnosr\& —/xXL /Oy/JL Jtoysrn - M
sacando!”
O feífí é a pipoca 55
54
Lygia Bojunga

jy>cp /g /Cer mnfi. / d á- yUnrrvx-


tYuu ^ 'cp4-tíU*
a/WJU^ Tn- yo isL ... s* ex } JÂ&&'jim . m if f'
. ^O' CJ-U4 -*■y&*3<r^.
/ÀiL yC üS^fi^ jXVUL Jkúfi& . &rífccL/cf Jt&*voÃ4ji_ <^uj>,. ju^~
xjhxjl. y&vt. ja K M í^ erL .
\jCKJL, c^Tvtvrvcuu rrT\AX<boirn>cl<ifio.
ii& cr (T n íV v^ • /jaXO^tAbCuCf /<í- .fedí?»— ^Ld*C*3C ?
/oCuoúi&r^cta' T 'lílcr spn+n*ApA0' xniuf Co*t/y. ?
jIu, ‘r ffrrn Jh rn . /duxricO u- • OSftA£ãcf cL&
UuoLo' /CcPTuÊpLL 'iacn. yCOM/uK /Cle^ rJúecu^
ao^jj&SL &c&id/Lr c u h - v à á y o * jalc &k.-L
^H r
%u±/Jníí, rrtí (mMnrrv*' Jíuux>c •&&£.
^ntoüíu . foc /CCnr^eíL dôrnptcr'
/U bUL ÍM • ffliH GLô^lfl- JMs
/ítóíAo olaW tf' cjjjL ^ xM 1bjÀ*f . *5tCK*4£vtA*~'
A /ftícanrv^ /ÍL^UTCntA. . J$ã ji
A sk&cdiltl X^jtK. JíotbcL'.
Oí. /)U4^U jM u^ 'k*n$Aclci'
4 A ,^ s tü t ^
T *^ t í -*0-</^ £ ^
56 I^ifgia /Bojunga
O bife e a pipoca 57

4 fim quando d e acabou de pensar no assunto: —


Q uer ir com er pip oca lá em casa no sábado?
Você g o s ta O R o drigo fez que sim .
N aqu ele d ia, quando os dois se
despediram , o T uca resolveu o seguinte:
c/epipoca? —N o sábado, eu venho te encontrar aqui
em baixo: você n ão vai sab er sub ir o m orro
—O quê? sozinho. É qu e eu m o ro lá n o alto , sabe.
O Tuca cochichou m ais a lto : — E n tão você se en co n tra co m igo n a m inha
—V b ci gosta d e pipoca? — (E stavam n o casa: a g e n te a lm o ç a e d e p o is vai.
m eio da aula de português.) O T u ca n ão resp on d eu lo g o . F icou
O Rodrigo fez que sim. olh an d o p ro tê n is. D e p o is p erg u n to u devagar.
— Todo sábado a m inha irm ã faz pipoca... — A lm o ç a r n a sua casa?
O Rodrigo fez cara de quem d iz oh é? -É .
E depois de um tem po o Tuca acabou a frase: Se olharam .
— ...mas pipoca só é bom na h o ra . — Então tá .
—O quê? E fo i assim . N o sábado ao meio-dia o
—Pipoca só é bom na h o ra qu e fa z ... T uca estava chegan do na casa do Rodrigo.
— Ah L Ele n u n ca tin h a p isad o num edifício daqueles:
O Tuca ficou quieto. M as depois continuou: p o rteiro , ta p e te , esp elh o por todo lado,
— não fosse, eu trazia a p ip o c a p ra gente elevado r s u b in d o m acio , em pregada abrindo a
comer aqui na escola. —E a au la já e s ta v a no porta p r a ele e n tra r.
O bife e a pipoca 59
58 Lygia Bojunga

Ele entrou.
E quando viu o tamanho da sala; e 5
quando entrou no quarto que o Rodrigo
tinha (só pra ele?!) com T V , aparelho de O bife-lá-da-esquina
som, armário em toda a parede (uma porta
estava aberta, nossa! quanta roupa lá dentro); Quando o Tuca saía da escola, ele ia direto
e quando o Rodrigo perguntou: —tá com ajudar um amigo a lavar carro.
sede? —tô —e foram na geladeira (que é isso! Quer dizer, não era bem um amigo, era
que cozinha tão grande! que cozinheira de mais um patrão.
uniforme! que monte de comida lá dentro da Ou melhor, não era bem um patrão, era
geladeira!) e quando o Rodrigo encheu um mais um sócio.
copo de suco de laranja: —toma —o olho do Quer dizer, não era bem um sócio... Um
Tuca ficou feito hipnotizado pelo lá-dentro momentinho: vamos começar outra vez: quando
da geladeira. o Tuca saía da escola, ele ia direto ajudar
Quando a porta da geladeira se fechou, um cara a lavar carro. O cara era faxineiro de
o Tuca achou que o Rodrigo não ia achar um edifício la na Rua São Clemente. Ganhava
uma idéia assim tão formidável subir uma favela salario mínimo. Então, pro dinheiro não ficar
todinha pra ir comer pipoca lá em cima. Foi assim tão mínimo, ele lavava os carros dos
nessa hora que o rabo do olho viu os bifes que a moradores do edifício e ganhava em dobro.
cozinheira estava temperando. Era impressão? ou Um dia o Tuca passou por ali procurando
era bife-feito-o-bife-lá-da-esquina? O olho todo um biscate, já que emprego ele não encontrava
virou pio bife e oTuca foi se esquecendo da vida. mesmo. Conversa vai, conversa vem, o faxineiro
60 O bife e a pipoca 61
Lygia Bojunga

perguntou se o Tuca não queria fazer sociedade Não precisa ficar toda a vida me agradecendo. —
naquele negócio de lavar carro. Fechou a cara. —Mas também
—Sociedade como? não quero reclamação. Não tá contente, pode
-Você pega aí um ou outro carro pra lavar dar o fora. E já. Tá?
e eu te dou 10% de tudo que eu ganho. Os trocados que o T uca recebia lá na
O Tuca achou ótimo. E naquele dia mesmo garagem bem que ajudavam pra ir levando
começou a trabalhar. comida pra casa. Então, o que que era melhor,
Mas aí foi acontecendo o seguinte: mal o quer dizer, pior: continuar de matemática
Tuca chegava, o faxineiro ia pro botequim da esquisita ou perder o biscate?
esquina tomar umas e outras; quando voltava, se E o Tuca continuou lavando carro.
ajeitava num escurinho da garagem; logo depois As vezes o porteiro do edifício chamava o
estava roncando. faxineiro. O Tuca respondia do jeito que tinha
E o Tuca ficava lavando sozinho tudo que sido ensinado:
é carro que tinha pra lavar. - T á lavando um carro lá fora: vou chamar.
Um dia o Tuca achou que estava —E dava uma corrida até o botequim pra avisar.
trabalhando sozinho demais e que então a tal O faxineiro virava a cachaça num gole e
matemática dos 10% não estava bem certa: reclamou. saía correndo. O T uca vinha atrás. Mas sem
O faxineiro não gostou: pressa nenhuma. Só pra poder passar bem
—Escuta aqui, meu irmão, tem pelo menos devagar pelo restaurante lá da esquina. Que
100 moleques que passam todo dia aí na rua beleza! se chamava “O Paraíso dos Bifes”. Da
querendo pegar esse emprego que eu te dei. Então calçada a gente via tudo lá dentro pela parede
voce ja viu: to te fazendo um bruto dum favor. de vidro. M as não se ouvia nada, de tão b e m -
62 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 63

fechado que era, de tão ar-condicionado por impressionado, que um dia ele foi chegando
dentro. E gente comendo, e garçom pra cá n mais pra perto, mais pra perto, acabou
e pra lá, e tão gostoso de olhar: assim: feito achatando o nariz no vidro. Um garçom foi lá
quando a gente olha pra um aquário. Quem fora pra dizer que o freguês estava perdendo o
diz que o Tuca resistia? parava, e toca a olhar. apetite de tanto que o T uca olhava pro bife.
Tinha mesa junto do vidro. E sempre, Então, daí pra frente, o Tuca passava
sempre! os fregueses estavam comendo bife. devagar e olhava disfarçado. E só depois de
A companhia do bife mudava muito: passar muitas vezes é que ele prestou atenção
com arroz na placa pequena que tinha do lado da porta:
com salada era a lista dos bifes da casa: nome, companhia
com aspargos e preço de cada bife. O Tuca era mesmo fraco
com ovo em cima.*. em matemática: então ele acabou ficando ali um
A cor do bife mudava um pouco: tempão querendo calcular quantos carros ele ia
ao ponto ter que lavar pra um dia comer um bife daqueles.
malpassado
bem passado. Lá na cozinha do Rodrigo o Tuca tinha se
Mas o que nunca mudava era o jeito esquecido da vida. Só fazia era olhar pros bifes
fundo que o garfo e a faca entravam no que a cozinheira temperava (o dedo dela
bife. Quanto mais o Tuca olhava, mais também se enterrava na carne de um jeito tão
impressionado ele ficava com aquele jeito fácil, tão fundo!).
fundo do talher ir se enterrando; que —T á dormindo em pé, cara? —E o Rodrigo
carne tão macia era aquela, meu deus? Tão puxou o Tuca. Foram pra sala.
_______ ___________________J B
64 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 65

6 A mãe do R odrigo viu que o olho do Tuca


não largava a m ão dela: quis se livrar: perguntou:
—Você também é que nem o Rodrigo? filho
O almoço único?
O T u ca acordou:
—Hmm?
F oi só o T u c a se n ta r p ra alm o ç a r que o
—Você também é filho único?
olho não teve m ais so sseg o : p ra cá, p ra lá,
—Não: eu tenho dez irmãos.
pra cá, pra lá, q u eren d o v er d isfa rç a d o o garfo
A mãe do Rodrigo se engasgou pequeno:
que o pai do R o d rig o p eg av a, o je ito q u e o
—Dez?!
R odrigo dava no g u a rd a n a p o , o q u e q u e a mãe
do R odrigo fazia com o p r a tin h o do la d o , e O T u ca fez que sim, hmm!! que coisa mais
gostosa era aquela da tigela.
mais as duas facas, e m a is os três g a rfo s, e mais
a colher, e nossa! que m o n te d e c o isa em cim a —E o seu pai? o que que ele faz?
daquela mesa, e o olho p ra cá, p ra lá , p ra cá, O T u ca sentiu a testa suando. Em vez de
pra lá, na aflição de copiar. responder, esvaziou a tigelinha.
A em pregada serviu u m a tig e lin h a p ra A empregada levou as tigelas e trouxe o resto
cada um. O T uca viu todo m u n d o co m eçan d o a da comida. Botou tudo na frente da mãe do Rodrigo.
comer. Será que o almoço era a q u ilo e pro n to ? A mãe do Rodrigo ia servindo e a empregada
O lhou de rabo de olho p ra m ãe d o R o d r ig o . ia distribuindo os pratos.
Ela estava botando um tiq u in h o d e m a n te ig a O T u ca ficou olhando pro enorme bife
no pão. O Tuca foi ficando h ip n o tiz a d o outra que tin h a chegado na frente dele. Enxugou
vez: a mão dela tinha um anel em c a d a d ed o . a testa com a mão. Enxugou a mão no
66 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 67

guardanapo. M eio que tom ou fô leg o . Pegou —É m elhor, sim . —A em pregada saiu
o garfo e espetou no b ife, ah, que coisa m ais correndo. - E vê se dá p ra fazer o u tro bife pro
linda: tanta fo rça pra quê?! o g arfo tin h a se menino!
enterrado m acio que só vendo, e o T uca, —N ão precisa não: p o r favor! —o T uca pediu.
entusiasm ado, pegou a faca p ra c o rta r o —M e dá aqui o seu p ra to . — A m ãe do
bife do mesmo je ito que o irm ão m ais velho R odrigo estendeu a m ão.
(carpinteiro) pegava o serro te p ra c o rtar O T uca ficou olh an d o o u tra vez pros anéis; a
madeira. A tacou! O b ife não aguentou: fome tinha sum ido; e tin h a aparecido um a vontade
escorregou pra fo ra do p rato, d eslizou pela danada de fazer que nem a fom e e sum ir também.
toalha levando de com panhia um o vo frito , O pai do R o d rig o reso lveu puxar conversa:
duas rodelas de beterraba e um m on te de —O R o d n g o con to u que você ganhou
grãos de arroz. F oi tu d o se e state la r no uma bolsa do g overn o. — O T uca fez que sim.
tapete. Que era bege bem clarin h o . —V o c ê teve sorte, rapaz, aquela escola
—A í! - o Tuca gemeu. E m ais que custa um a n ota firm e. — O T uca fez que sim.
depressa levantou pra catar o alm oço d o chão. — C om o b olsista, você não tem que pagar
—Deixa! —A mãe do R odrigo m andou. E nada, tem ? — O T uca fez que não.
tocou o stnínho. —E liv ro , caderno, tod o o m aterial escolar
A empregada veio; prim eiro disse xi! eles tam bém dão? — O T uca fez que sim.
depois perguntou: _ T u d o?! — O T uca fez que sim.
—Não é melhor botar um pouco de talco — M as que sorte!! V o cê está acompanhando
aqui no tapete pra chupar a gordura? bem o ensino lá? — O Tuca fez que não
68 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 69

A empregada voltou com uma lata de E quando a empregada virou a lata, a tampa
talco e uma escova; despejou talco no tapete; a de furinho caiu e o talco todo se despencou no
sala ficou perfumada. chão (saiu até nuvem de talco voando pela sala).
—Boto mais? —Xi! —O Rodrigo levantou.
A mãe do Rodrigo levantou: —Depressa, depressa! vai buscar o aspirador
—Será que é preciso? —Examinou o —a mãe do Rodrigo mandou.
tapete. —Passa a escova aqui pra ver se não A empregada saiu correndo. O pai do
Rodrigo se abaixou:
ficou nenhuma manchmha.
A empregada passou. —Escova aqui, ó, ó. —E deu a escova pra mãe.
O Rodrigo apontou com o pé:
—Ainda tem mancha, sim senhora. Posso
—Aqui é que tem um monte, ó.
botar mais?
—Ah, coitado do meu tapete! é talco
—Mas dizem que tapete não gosta de
demais: ele vai ficar manchado, aposto.
talco demais. —Virou pro pai do Rodrigo: —O
A empregada voltou correndo com o
que que você acha, meu bem? aspirador. Ligou.
—O quê? —Passa aqui!
—Bota ou não bota mais talco? —Aqui, ó!
O pai do Rodrigo levantou pra examinar —Não: primeiro aqui!
o tapete. O Tuca e a mesa de almoço se olharam feito
—Olha, aqui saiu tudo —a empregada se despedindo; o guardanapo enxugou um suor
ralou. E escovou mais um pouco. que pingava da testa; a cadeira foi pra trás pra
—Pode botar mais um bocado aqui —o deixar o Tuca levantar. E, de pé, olho no tapete,
pai do Rodrigo mandou. o Tuca ficou vendo o aspirador funcionar.
70 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 71

1 E atrás dos dois lá ia o Rodrigo,


querendo assobiar pra disfarçar. Querendo
A pipoca mas não podendo: já estava botando a alma
pela boca de tanto subir.
Quantas vezes, com a luz de tudo que é
Assim que eles saíram do edifício, o Tuca barraco se espalhando pelo morro, o Rodrigo
foi logo dizendo: tinha escutado dizer: que bonito que é favela
- É melhor a gente ficar aqui por baixo: tá de noite! as luzes parecem estrelas.
muito calor pra subir o morro. E o Rodrigo ia olhando cada barraco, cada
Mas o Rodrigo não topou: criança, cada bicho, vira-lata, porco, rato,
-Você não disse que tem uma porção olhando tudo que passava: bonito? estrela? cadê?!
de irmãos? Então? vai ser legal conhecer eles Não era à toa que quando caía chuva forte
todos. Vem! sempre falavam de barraco desabando no morro,
Falaram pouco até chegar no morro. e o Rodrigo parava no caminho pra ficar vendo
O caminho que subia era estreito. O como é que alguém podia morar num troço tão
Tuca foi na frente. Quase correndo. Feito parecendo que ia despencar se a gente desse um
querendo escapar da discussão que crescia lá soprão.
dentro dele: um Tuca dizendo que amigo- Será que criança nenhuma tinha sapato?
que-é-amigo não tá ligando se a gente mora E aquele cheiro de lata de lixo? não ia
aqui ou lá; o outro Tuca não acreditando passar não?
e cada vez mais arrependido da ideia de ir E toca a querer assobiar pra disfarçar o susto
comer pipoca. de ver tanta gente assim vivendo tão feito
Lygta Bcjunga O bife e a pipoca 73

Quando chegaram no alto, o R odrigo estava tudo o tam anho era m enor que a cozinha da
sem fôlego. O Tuca parou: casa dele; e eram onze irm ãos m orando ali! e
—Eu m oro aqui. —Entrou. mais a mãe?!
Só os irm ãos pequenos estavam em casa. Um a vez o T uca tinha contado pro Rodrigo
Q uatro. O T uca fo i apresentando cada um. “O meu pai era marinheiro. Só aparecia em casa
O s grandes ainda estavam "lá em baixo se de vez em quando. U m dia ele não apareceu mais.”
virando"; e a irm ã m ais velha tinha saído. “Ele m orreu?”
—M as, e a pipoca? —o T uca quis logo saber "Ninguém sabe.”
—, ela esqueceu que ia fazer pipoca pra gente? "E a tua mãe?”
— N ão —um irm ão explicou —, ela já fez. “Ela m ora lá com a gente. M as quem faz de
Mas ficou com medo da gente com er tudo mãe lá em casa é a minha irm ã m ais velha.”
antes de você chegar e então guardou ali. — "Por quê?”
Espichou o queixo pra uma p o rta que "È que a minha mãe... é doente.”
estava fechada, fez cara de sabido e piscou “O que que ela tem?”
o olho: —A chave tá na vizinha— “Tem lá umas coisas. M as a minha irmã é
Enquanto o garoto falava, o R od rig o ia a pessoa mais legal que eu já vi até hoje: aguenta
olhando pro barraco: dois côm odos qualquer barra.”
pequenos, um puxado lá fo ra p ro fogão e pro O T uca virou pro Rodrigo:
tanque, e a tal porta fechada que o garoto —T á vendo que vista legal a gente tem aqui
tinha m ostrado e que devia ser um o u tro de cima?
quarto; ou quem sabe o banheiro? Ju n tan d o —Legal mesmo.
74 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 75

— N e sse c a n to é q u e eu estu d o . T e m que Era um quarto com um a cam a, um


ser de n o ite , p o rq u e q u a n d o eu saio d a esco la arm ário velho de p o rta escancarada e uns
eu vou la v a r c arro . E ta m b é m de n o ite tá todo colchões no chão.
m u n d o d o rm in d o , é m a is q u ie to . T inha um a m ulher jogada num colchão.
-É . T inha um a panela virada no chão.
—Só que de n o ite eu tô cansado. E tam bém T inha pipoca espalhada em tudo.
não é bom ficar de lu z acesa: g asta eletricidade. A criançada logo invadiu o quarto e
E ntão eu deixo p ra e stu d ar n o recreio. começou a catar pipoca no chão.
-É . N inguém ligou pra m ulher querendo se
O s d o is ficaram q u ieto s. levantar do colchão.
A crian çad a p eq u en a o lh an d o . O Rodrigo estava de olho arregalado.
L á p e las ta n ta s o T u c a q u is a c a b a r com a O T u c a o lhou p ra ele. O lhou pra
d iscussão qu e c o n tin u a v a d e n tro d e le : m ulher. O lho u pras pipocas sumindo.
- V a m ’e m b o ra, R o d r ig o . V o c ê a g o ra —Pronto —ele resolveu —, você não vai
já sabe o n d e eu m o ro e se q u is e r a p a r e c e r comer pipoca do chão, vai? Então não tem mais
a casa é sua. nada pra gente fazer aqui. - Empurrou o
—M as, e a pipoca? —o R o d rig o p ergu nto u. R odrigo pra fora do barraco. —Agora você já
N ão precisou mais nada: a crian çada desatou a sabe o cam inho. Desce por lá. —Apontou.
falar na pipoca, a querer a pipoca, a p e d ir a pipoca. O Rodrigo estava atarantado:
—L á onde?
U m a barulhada! O T uca ficou o lhan do p ro chão.
-V e m !! eu te mostro. - E desceu correndo .
De repente saiu correndo. Pegou a chave n a casa
na frente. N um instantinho chegou na c
da vizinha. Abriu a porta que estava tran cad a.
O bife e a pipoca 77
6 Lygia Bojurtga

que ele tinha mostrado. Respirou fundo. Lembrou mãe já tá tão b êb ad a qu e fa z q u a lq u e r b esteira
do perfume do talco. Olhou pio lado: estava um pra co n tin u ar b eben d o m a is. — C o m eço u a
lameiro medonho naquele pedaço do morro: sacudir o R o d rig o . — V o c ê o lh o u bem p ra
tinha chovido forte na véspera e uma mistura de cara dela, o lhou? p en a q u e e la n ão tava
água e de lixo tinha empoçado ali. chorando e g rita n d o p ra você ver. E la chora e
O Rodrigo chegou de língua de fora: grita (fe ito n eném co m fo m e ) p ed in d o
o Tuca tinha descido tão depressa que m ais cachaça p o r favor.
parecia um cabrito. —M e so lta, T u c a !
—Pô, cara! —ele reclamou —, assim não dá. —S o lto ! so lto , sim . M a s an tes você vai ficar
Você quase me mata nessa des... igual a m im . - E b o to u to d a a fo rça que tinha
Mas o T uca já tinha virado pra ele de cara pra d errub ar o R o d rig o no lam eiro .
feia e já estava gritando: O R o d rig o d eu p ra trás.
—Não precisa me dizer! eu sei muito bem O T u c a n ão larg o u ; puxou ele de volta.
que não dá. Como é que vai dar pra gente ser O R o d rig o o u tra vez conseguiu dar pra trás.
amigo com você cheirando a talco... M a s o T u c a fo i p uxando ele de novo. E
—Eu?! quando sen tiu os pés se encharcando se atirou
—...e eu aqui nesse lixo todo. N ão precisa no lam eiro levan d o o R o d rigo junto. Aí, largou.
me dizer, tá bem? eu sei, EU SEI que não dá. O R o d rig o levantou num pulo. Não
Voei é que ainda não sabe de tudo. Q uer p recisava ta n ta pressa: ele já estava imundo,
saber mais, quer? quer? - Pegou o R o d rigo p ingand o lix o .
pela camisa. —Quando a minha irm ã tran ca a O T u c a levantou devagar. E, de cabeça baixa,
minha mãe daquele jeito é porque a m inha fo i subindo o m orro de volta pra casa.
S p * P j
a■ ^Bn r 2Eg ^S-TyTTTpr
^ T oJ [ á*' ^
/ " w »ji^ ç ^ 4 » ^ -mt
•* ™ T •~“^ ^ - b ? t « r - <3
« v w r x? TtaoovwB/ 3
> y*A "\Lury
■xcojf^~u?cry(i n r ç d v y y '*%?*£> ^OYYrfUju
'■vutJrf -TT TfA> p ] ^ V -twA ^
^ Bp' ’*rf r ^ r ? • ^ n “'
r ^ °r * ^7! 4^z &
^ s z. s S m IWk ^
^nJ?UJL> y f y 7*0^ w b - ‘
h h h

- e íV "
^ r ~ 7a^ , oSlUffl dp
8
81
Lygia Bojunga O bife c a pipoca

£> oJ. SzSL XXCoJ^wU. 2 P(kÍ>JÔ ^ 0»- 9


m vúA rrumrw- . ^Stxx- y^íK puimce^
jíu lú y u ic rrux. -W © t. (9 cara, m c desculpa!
KEL /^yut. \ j tyocí ^ rrryjí,
JlrníjvriÀ&C r
;tiL m jm l m A\à & .
A/>b<f ^ w iL - ,£u-
fo i sem querer
^iTlaó W - -^itõtc
Aci^t>C- ^rt&Tn, 'L w é v tf ú eo rrJ b ift..
Na segunda-feira o Tuca não apareceu na escola.
N a terça tam bém não.
\jAÁZrr)C44~ : -LrOU. rm x u n d ^ L /o^ . N a quarta ele entrou n a classe de olho
(UxXXfr' /}Ah/vrr<~ (T rT £ & m d . procurando o olho do R o d rigo .
M as o olho do R o d rigo se escondeu.
Então na qu in ta o T u c a achou m elhor
fingir que não tin h a visto o R o drigo na classe.
E na sexta o R o d rigo resolveu que se o
T uca não via ele, por que que ele ia ver o Tuca?
Passou o sábado.
Passou o dom ingo.
N a segunda-feira o T uca resolveu que ia
falar com o R o d rigo de qualquer maneira. Ele
tinha que explicar que não sabia por que que
tinha empurrado o Rodrigo no lameiro.
82 Lygia Bojunga O bife e a pipoca 83

No recreio, o Tuca foi chegando pra perto se explicado pensado e agora ficava assim sem
do Rodrigo e quando já ia falando com ele o dizer nada?
Rodrigo deu as costas. O Tuca ficou cismado: O Rodrigo se abaixou: fingiu que estava
tinha sido de propósito? Tinha ou não tinha? amarrando o sapato.
Acabou achando que tinha. E voltou quieto Quando no fim a fala destrancou, o Tuca
pra classe. Mas na terça-feira ele achou, que. perguntou:
besteira! é claro que não foi de propósito; então —Você acha que vai chover?
ele ia falar com o Rodrigo de qualquer jeito. O Rodrigo olhou pra janela. Fez cara
Ficou esperando a campainha tocar. de que não sabia. E ficou amarrando o outro
Esperou tão forte que chegou a suar. E sapato.
quando a campainha tocou ele levantou num
O Tuca meio que suspirou:
pulo de susto. Justo quando o Rodrigo ia
—Você sabe pescar?
passando. Deram o maior esbarrão.
O Rodrigo levantou:
- 0 cara, me desculpa! foi sem querer.
—Bom, às vezes eu ia lá no Arpoador
O Rodrigo achou que o Tuca estava se
pescar com um amigo meu, o Guilherme. -
desculpando pelo banho de lama. Ficou
pensando o que que ia dizer (quem sabe ele Encolheu o ombro. - Mas ele mudou pro Rio
dizia pro Tuca que não tinha entendido nada Grande do Sul...
daquela história?). Acabou falando: O Tuca ficou quieto.
—Esquece. Depois de um tempo o Rodrigo acabou
O Tuca estava de fala trancada; foi confessando:
ficando chateado: tantas vezes ele tinha —Eu nunca peguei peixe nenhum.
O bife e a pipoca
84 Lygia Bojunga

—Ah, não?
—Não.
10
Aí o Tuca contou:
—Eu aprendí a pescar com um cara lá do
Bilhete e PS
morro que saca muito de peixe.
- A h , é?
de amigo
—Ele foi pescador, sabe. Mas agora ele
já tá velho. A gente é um bocado amigo.
—Hmm.
—Esse negócio de pescaria tem uma
porção de macetes.
O Rodrigo não disse nada. Então o
Tuca falou:
—Você querendo, eu te ensino.
—Bom...
Já * rm íL -
—Será que no sábado vai chover?
J tr W L r rw n A cf KMYTL J f o ê b C Í / ok
O Rodrigo olhou pra janela. Fez cara de
/ cU . J p t A f a S u * ' , - i /d O L ifrití ÁA JtffrrU vn i
que não sabia. O Tuca arriscou:
X o o yòáSLrtx A ti 0 ^ > U tã )V .
—Se não chover, a gente podia combinar d b jjjo ^ cd J& m . d lu u r * '.
de ir pescar.
—E... podia.

Você também pode gostar