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PROJETO: CENTRO DE Instituto de Saúde Coletiva - UFBA

ANÁLISE DE POLÍTICAS DOCUMENTAÇÃO


Análise Política
Rua Basílio da Gama, s/nº
Campus Universitário do Canela
DE SAÚDE NO BRASIL em Saúde Cep: 40.110-040 - Salvador - BA

www.analisepoliticaemsaude.org
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020
Carmen Teixeira
milagrosas”. Escritora e pianista, a entrevistada
comenta ainda a contribuição da arte e da
cultura no enfrentamento do atual panorama
b ra s i l e i ro . Boa leitura!

Observatório de Análise Política em Saúde


( OAPS ) : Trê s m i n i s t ro s d a S a ú d e n o p e r í o d o
de um mês. É expressivo do impacto da crise
política na Saúde durante a pandemia?

C a r m e n Te i xe i r a : S e m d ú v i d a . A t r o c a d e
ministros da Saúde desde que começou
a pandemia de COVID-19 no Brasil é uma
expressão do conflito interno no âmbito do
governo federal, resultante da dificuldade
de manter a coesão entre forças políticas
que têm concepções distintas de como
deve se dar a condução governamental. E,
principalmente, evidencia a tensão entre
P a r a a m é d i c a e s a n i t a r i s t a C a r m e n Te i x e i r a , projetos políticos diferentes com relação
o enfrentamento da pandemia de Covid-19 – à Saúde.
que exige uma ação complexa, multisetorial e
uma eficiente comunicação social – evidencia Embora durante a campanha eleitoral
a “inadequação de uma política de saúde o candidato que ora ocupa o cargo de
privatista e neoliberal à realidade econômica, presidente não tenha apresentado uma
social e sanitária da população brasileira” e proposta clara do que pretendia fazer
escancara os problemas crônicos do SUS. A na área de Saúde, era possível perceber,
entrevistada do mês de maio do Observatório até por suas declarações grosseiras com
d e A n á l i s e P o l í t i c a e m S a ú d e ( OA P S ) , i n t e g r a n t e re l a çã o a o P rog ra m a M a i s M é d i co s q u e , ca s o
d a c o o r d e n a ç ã o d o e i xo d e p e s q u i s a A n á l i s e eleito, a direcionalidade a ser impressa
do Processo da Reforma Sanitária Brasileira à política de saúde daria continuidade ao
do OAPS, fala sobre a gestão da pasta da subfinanciamento e ao desmonte do SUS
Saúde durante a pandemia, as repercussões que já estava em curso, principalmente com
sociais do atual cenário e a possibilidade da a a p r o v a ç ã o d a E C 9 5 n o g o v e r n o Te m e r .
importância recentemente atribuída ao SUS
por amplos setores da população ampliar A indicação de Luís Henrique Mandetta ao
as bases de sustentação do movimento pela cargo d e m i n i s t ro d a S a ú d e s i n a l i z o u a o p çã o
Reforma Sanitária Brasileira. Mestre em pelo projeto privatista, neoliberal, que
S a ú d e Co m u n i t á r i a , d o u to ra e m S a ú d e P ú b l i c a p e l a c o n t e m p l a o fortalecimento do modelo medico-
U n ive r s i d a d e Fe d e ra l d a B a h i a ( U F B A ) e d o ce n te assistencial hospitalocêntrico no âmbito do
n o I n s t i t u to d e H u m a n i d a d e s , A r te s e C i ê n c i a s SUS, sob hegemonia do setor privado, o que
( I H AC ) e n o I n s t i t u to d e S a ú d e Co l e t iva ( I S C ) d a implicou, nessa linha, a mudança da lógica
i n s t i t u i ç ã o , Te i xe i ra a b o rd a t a m b é m o s e fe i to s d a de financiamento da Atenção primária e o
s i t u a ç ã o provocada p e l a p a n d e m i a s o b re a s a ú d e desmonte do Programa Mais Médicos logo no
mental da população: “No campo da saúde mental início do atual governo.
t a m b é m s e reproduz o conflito entre modelos
A condução federal da política de saúde
de atenção d i s t i n t o s , q u e a t e n d e m , c o m o em 2019 acelerou e agravou a crise do
sabemos, a concepções e interesses diferentes sistema, que já vinha se intensificando nos
no que diz respeito ao cuidado em saúde mental. últimos anos, com o subfinanciamento
A emergência da pandemia de COVID-19 também e a privatização “por dentro” do SUS
acentua esse conflito, e traz à tona, por um ( p e l a adoção de alternativas de gestão
lado, a precarização dos serviços que compõem que reproduzem a lógica do setor privado)
a RAPS, e, por outro, o oportunismo de pastores e “por fora” do SUS, pela preservação d o s
evangélicos que tratam de apregoar suas curas privilégios do setor de assistência médica

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

supletiva, ou seja, dos p l a n o s d e s a ú d e , (MS) na manutenção da rede de serviços e


q u e f i n a n c i a m a p r e s t a ç ã o de serviços na negociação com empresas industriais
privados a um quarto da população para a aquisição de insumos e equipamentos
brasileira. necessários ao abastecimento e funcionamento
d a s unidades de saúde, como é o caso atual da
N e s s e c o n t e x t o , o b s e r vo u - s e u m a a c e l e r a ç ã o compra de respiradores, te s te s , m á s ca ra s , e tc .
do processo de precarização das relações
de trabalho em saúde, que afeta a grande Desse modo, o enfrentamento da pandemia
maioria dos 3,5 milhões de profissionais e exigia, e exige, o estabelecimento de uma
trabalhadores do setor, o que seguramente c o o r d e n a ç ã o s i s t ê m i c a entre os vários
contribuiu para a enorme insatisfação do níveis de governo, com a pactuação d e
pessoal de saúde com suas condições n o r m a s e d i re t r i z e s a s e re m s e g u i d a s e m
de trabalho e remuneração, o que é um ca d a i n s t â n c i a , a o te m p o e m q u e s e c u m p re
elemento que dificulta muito a adesão e o as atribuições de cada uma, inclusive
compromisso com o SUS. a compra, em escala, de
equipamentos e materiais
Ora, quando a pandemia utilizados nos hospitais,
do COVID-19 se instala no laboratórios, e outras
país e o número de casos e A condução federal da política de unidades de atenção à
de óbitos começa a chamar saúde, que estão sendo
a atenção da mídia, o então saúde em 2019 acelerou e agravou o bj e t o d e d i s p u t a a c i r r a d a
ministro Mandetta e sua a crise do sistema, que já vinha no mercado internacional.
equipe se deram conta, se intensificando nos últimos
tardiamente (na medida anos, com o subfinanciamento e a Penso que foi esse papel
em que não se anteciparam que o MS, sob comando
a uma situação prevista e privatização “por dentro” do SUS do ex-ministro Mandetta,
e s p e r a d a , face à progressão (pela adoção de alternativas de tentou desempenhar,
do vírus em vários países gestão que reproduzem a lógica dando uma “guinada” no
d o m u n d o j á n o i n í c i o d e s te do setor privado) e “por fora” projeto original de sua
ano), da necessidade de gestão, passando, como
construir uma resposta do SUS, pela preservação dos vimos, a usar uma retórica
adequada. E daí passaram privilégios do setor de assistência (e uma atitude simbólica)
a defender a adoção das médica supletiva de defesa do SUS em sua
diretrizes da Organização comunicação diária com
Mundial da Saúde (OMS), a população a t r a v é s d a
i n c l u s i ve o d i s t a n c i a m e n t o mídia. A emergência
social, e a monitorar os dados sanitária, portanto,
e discutir formas de apoio à ação dos estados e evidenciou a inadequação de uma p o l í t i c a d e
m u n i c í p i o s co m re l a ç ã o à ex p a n s ã o d e l e i to s d e saúde privatista e neoliberal à realidade
UTI, compra de respiradores e EPI, testes, etc. econômica, social e sanitária da população
brasileira, escancarando os problemas
Va l e l e m b r a r q u e , p e l a p r ó p r i a c o n f i g u r a ç ã o crônicos do SUS e seus desafios agudos face à
institucional do SUS, cabe aos estados a pandemia de COVID-19.
gestão da rede de atenção de média e alta
complexidade e aos municípios a gestão Ora, essa atitude do ex-ministro, acatando
da atenção básica, o que significa que a e defendendo as diretrizes da OMS,
expansão e adequação da infraestrutura, b u s ca n d o exe rce r o p a p e l d e co n d u çã o d o
bem como a reorganização dos processos de e n f r entamento da crise, evidentemente
trabalho nas unidades é algo que encontra- desagradou a outros setores do governo
se sob responsabilidade direta de estados e e principalmente ao presidente, cujo
municípios. Isso tem levado a um aumento da d i s c u r s o d e “ d e f e s a d a e c o n o m i a ” , c r í tica
proporção dos recursos investidos em saúde a o d i s t a n c i a m e n t o s o c i a l e a t é d e d e f esa
por parte dos estados e municípios, ao tempo d o u s o d e m e d i c a m e n t o s d e e f e i t o a i n da
em que tem diminuído o montante de recursos n ã o c o m p r o v a d o p a r a o tratamento do
financeiros transferidos pela União a estes COV I D - 1 9 t o d o s n ó s a c o m p a n h a m o s durante o
entes, o que se acentuou com o congelamento mês de março.
dos gastos em função da EC 95. Apesar disso,
cerca de 40% do gasto público em saúde O falso dilema “Saúde vs. E c o n o m i a ” n a
provém do nível federal, o q u e d á u m a i d e i a ve rd a d e re co b re a te n s ã o e n t re u m p roj e to
da responsabilidade do Ministério da Saúde
político n e o l i b e r a l , d e r e d u ç ã o do

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

papel do Estado, de c o n t e n ç ã o d o que não questione a d i r e c i o n a l i d a d e d o


gasto público, de “austeridade p roj e to neoliberal, de “austericídio”,
f i s c a l ” , c o m b i n a d o c o m o q u e l e vo u o a t u a l p r e s i d e n t e a o p o d e r , n a
fortalecimento do m e d i d a e m q u e é s u s te n t a d o
autoritarismo com tintas p e l o e m p re s a r i a d o b ra s i l e i ro
de populismo (alguns q u e s e co n t ra p ô s à s p o l í t i ca s
diriam neofascismo) de re d u çã o da p o b re z a
q u e o g o v e r n o A emergência sanitária evidenciou e d a d e s ig u a l d a d e s o c i a l
Bolsonaro representa, a inadequação de uma política implementadas nos
e a necessidade de governos petistas, em
fortalecer o papel
de saúde privatista e neoliberal
que pese as enormes
do Estado, para o à realidade econômica, social e d i f i c u l d a d e s enfrentadas
enfrentamento da “tríplice sanitária da população brasileira, na gestão da presidente
c r i s e ” – s a n i t á r i a , e co n ô m i ca D i l m a p a ra d a r co n t i n u i d a d e
escancarando os problemas
e p o l í t i ca – q u e a p a n d e m i a a e s s e p roj e to , o q u e
a ce n t u o u . A a p rox i m a çã o d o crônicos do SUS e seus desafios conduziu, inclusive, ao seu
ex - m i n i s t ro M a n d e t t a c o m agudos face à pandemia de impedimento, ao “golpe do
o d i s c u r s o d e defesa COVID-19 c apital” (“A crise mundial
do SUS universal, a de 2008 e o golpe do
ênfase q u e p a s s o u a capital na política de saúde
dar à importância no Brasil, 2018).
d a v i g i l â n c i a
epidemiológica e ao cumprimento das V o l t a n d o e n t ã o a o cerne de sua pergunta,
recomendações da OMS, selou sua a permanecer essa crise política, essa
queda. instabilidade institucional, essa perda
completa da capacidade do MS gerir a crise
A substituição dele pelo oncologista
sanitária, ficamos praticamente a mercê do
N e l s o n Te i c h m e p a r e c e q u e f o i u m a
fo r t a l e c i m e n to d o c a rá te r fe d e ra t ivo d o S U S ,
“solução tampão”, que provavelmente
teve mais a ver com a identificação de do papel a ser desempenhado pelo Conselho
alguém no seio da “elite” da categoria Nacional de Secretários de Saúde (Conass)
médica (cujos representantes no CFM - e pelo Conselho Nacional de Secretarias
Co n s e l h o Fe d e ra l d e M e d i c i n a te m a p o i a d o Municipais de Saúde (Conasms), pelos
o governo Bolsonaro), um “aliado” que governadores e secretários de estados,
n ã o s e oporia ao discurso irresponsável e prefeitos e secretários municipais. O
e genocida do presidente, do que com desafio é imenso, exigindo um esforço de
alguma suposta competência política e coordenação matricial, que está sendo
gerencial para comandar o MS. Não por ensaiada com a criação do Consórcio
acaso este senhor passou 27 dias no Nordeste, assessorado inclusive por um
cargo e não encaminhou nenhuma medida Comitê científico que trata de subsidiar
concreta em termos de planejamento e o processo de tomada de decisões dos
gestão da crise, sendo seu gesto mais governadores da região.
coerente, a meu ver, a escolha por sair
do MS. Apesar dessas iniciativas, de grande
mérito, temo pela ausência de uma liderança
O problema é que com isso perdeu-se um nacional capaz de inspirar confiança nos
tempo precioso, como tem sido a l e r t a d o gestores e na população em geral de que e s t a m o s
por vários ex-ministros d a S a ú d e d o enfrentando corretamente, na medida do
p e r í o d o Lula, Dilma e mesmo do g o v e r n o p o s s í v e l , a p a n d e m i a , e d e q u e p o d e re m o s s a i r
T e m e r , q u e , por experiência própria, fo r t a l e c i d o s d e s s a s i t u a ç ã o . L a m e n t a v e l m e n t e ,
s a b e m o q u a n t o é desafiadora a gestão n ã o v e j o muita p o s s i b i l i d a d e de o MS vir a assumir
d e um sistema do tamanho e da complexidade e s s e p a p e l e n q u a n t o permanecer o atual
do SUS, a i n d a m a i s n o co n tex to d e b l o co n o p o d e r a o n í v e l d o governo federal.
e n f r e n t a m e n t o d a maior crise sanitária que
o Brasil viveu em toda a sua história. OAPS: A pandemia de Covid-19 acontece
e m m e i o a c r i s e s p o l í t i c a e econômica, que têm
N o m o m e n t o e m q u e estamos (16 de maio) pautado d e b a t e s e e s t i m a t i v a s sobre o que
n ã o s e i q u e m s e r á o p r óx i m o m i n i s t ro / a , m a s pode acontecer n o p a í s . E s o b r e a c r i s e s o c i a l ?
u m a co i s a p o d e m o s i m a g i n a r : s e r á a l g u é m Vo c ê p o d e a p o n t a r q u a i s a s d i m e n s õ e s d o s

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

efeitos sociais de todo esse cenário? física e de pessoal, com concentração de


serviços em determinadas regiões, estados
C a r m e n Te i xe i r a : A n t e s d a p a n d e m i a , e municípios; e nestes, no centro, em
já enfrentávamos essas múltiplas crises, contraste com a periferia, o q u e c o n d i c i o n a o
s e n d o s u a f a c e m a i s v i s í ve l a c r i s e e c o n ô m i c a acesso da população aos serviços de saúde
– o desemprego, a “ u b e r i z a ç ã o ” , a e co l o ca m i l h õ e s de brasileiros em uma
d e te r i o ra ç ã o d a s c o n d i ç õ e s d e v i d a d e g r a n d e situação de grande desamparo no que se refere
parte da p o p u l a ç ã o co m o re to r n o d a p o b re z a à possibilidade de cuidar de sua saúde e da
extrema; uma crise política – marcada saúde dos seus familiares.
p e l a “ p o l a r i z a ç ã o ” da sociedade
i n c i t a d a pela direita populista; e uma Com isso, temos no Brasil uma situação
crise social e sanitária – peculiar que nos fragiliza
expressa na deterioração bastante no combate
progressiva dos indicadores à pandemia porquanto
de morbimortalidade, a
Temo que na ausência ou s e , d o p o n t o de vista
exemplo d a mortalidade epidemiológico, todos
infantil e da violência, limitações na adoção das medidas nós somos suscetíveis
problemas que afetam de distanciamento social, por à contrair o vírus (na
sobretudo os grupos mais enquanto a estratégia mais m edida em que trata-
vulneráveis da população: se de uma doença nova,
eficaz para “achatar” a curva de para a qual ninguém t e m
pobres, negros, m u l h e r e s ,
i n d í g e n a s , L G B T + , transmissão e espalhamento do i munidade), do ponto
p o p u l a ç ã o em situação de vírus, a tragédia brasileira venha d e v i s t a s o c i a l s omos
e x t r e m a m e n t e d e s i g uais,
rua, população privada de a ser inimaginável, não só pela somos desigualmente
liberdade, e outros. quantidade de mortes evitáveis, vulneráveis ao vírus,
A pandemia se insere nesse
mas também pelas consequências s e n d o q u e o s g rupos
sociais mais vulneráveis
contexto como u m ve to r q u e que não se pode medir, como o s ã o a q u e l e s q u e
reorganiza e intensifica mal-estar, o sofrimento e o pesar condensam determinações
o co nj u n to co m p l exo d e que advirá do luto coletivo de classe, gênero e raça, ou
d e t e r m i n a ç õ e s q u e co n fo r m a seja, são os trabalhadores
a c r i s e b ra s i l e i ra a t u a l . To r n a - (empregados ou não),
s e a fa ce m a i s v i s íve l , d a d o m u l h e r e s , p r e t o s e p a rdos
a o e s p a l h a m e n to d o v í r u s e e indígenas. A imensa maioria
s e u s e f e i t o s e m t e r m o s d e a u m e n t o a ce l e ra d o da população brasileira encontra-se n e s s a s i t u a ç ã o
d o n ú m e ro d e c a s o s e d e ó b i to s , d e s v e l a n d o , e , portanto, te m o q u e n a a u s ê n c i a o u l i m i t a çõ e s
dramaticamente, nossas mazelas, o n a adoção das medidas de distanciamento
ra c i s m o e s t r u t u ra l , a v i o l ê n c i a de gênero s o cial, por enquanto a estratégia mais eficaz
e a precariedade das condições de moradia e p a ra “achatar” a curva de transmissão e
espalhamento do vírus, a tragédia brasileira
saneamento da imensa parcela da p o p u l a ç ã o
venha a ser inimaginável, não só pela quantidade
que vive nas periferias das grandes cidades.
de mortes evitáveis, mas também pelas
Soma-se a isso o enorme fosso educacional
consequências que não se pode medir, como o
que favorece a disseminação de informações
mal-estar, o sofrimento e o pesar que advirá do
falsas sobre vários temas, inclusive sobre luto coletivo.
as formas de se enfrentar a pandemia,
facilitando até a aplicação de “golpes” OAPS: A Fundação Oswaldo Cruz
contra a população ingênua, como a venda de (Fiocruz) publicou um documento
remédios “milagrosos”, “máscaras ungidas” com orientações gerais sobre saúde
e outras coisas absurdas. mental e saúde psicossocial na pandemia
de Covid-19, q u e e v i d e n c i a a
No caso específico do sistema de saúde, p r e o c u p a ç ã o , e s t r e s s e , s e n s a ç ã o d e
f a l t a d e c o n t r o l e e c o n t í n u o estado
a segmentação entre público (SUS) e
de alerta que esse c e n á r i o p r o v o c a . Vo c ê
privado (SAMS), reproduz iniquidades, na t e m r e f l e t i d o s o b r e e s s a q u e s t ã o ? Co m o
medida em que os 45 milhões de brasileiros p e rce b e a s re p e rc u s s õ e s sobre a saúde m e n t a l ,
que pagam plano podem usufruir dos a i n d a m a i o r e s entre os mais vulneráveis?
serviços de ambos os sistemas, enquanto
a grande maioria da população depende C a r m e n Te i x e i r a : S i m , como insinuei na
exclusivamente do SUS. Este apresenta, resposta à questão anterior, essa tem sido uma
como sabemos, uma enorme desigualdade d a s m i n h a s m a i o re s p re o c u p a çõ e s n o s ú l t i m o s
territorial em termos de infraestrutura a n o s , e s e a ce n t u o u n o s ú l t i m o s m e s e s p o r

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

c o n t a d o s estudos que venho tentando fazer condições precárias de vida não conseguem um
sobre as “patologias do social”, termo usado por acesso regular a serviços de suporte social e
Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian psicológico, quer fornecidos pelo Estado quer
Dunker no livro que eles organizaram e publicaram a t r a vé s d e r e d e s s o c i a i s e / o u o r g a n i z a ç õ e s n ã o
em 2018 (“Patologias do social: arqueologias do gove r n a m e n t a i s , que também têm enfrentado
sofrimento psíquico”), trazendo o que chamam restrições d e f i n a n c i a m e n t o n o s ú l t i m o s a n o s .
de “arqueologia do sofrimento psíquico”.
G o s t a r i a d e d e s t a c a r , inclusive, que
Na verdade, esse tema já me ocupava o impacto da pandemia sobre a saúde mental,
antes, a partir das leituras dos livros de além de ser maior em grupos vulneráveis
Joel Birman (“Mal-estar na atualidade”, socialmente, atinge
2 0 0 1 ) e Z yg m u n t B a u m a n
fortemente as pessoas
(“O mal-estar da pós-
modernidade”, 1998) que com histórico prévio
tratam do “mal-estar” de doença mental, que
presente no cotidiano da No campo da saúde mental precisam ser atendidas
vida na contemporaneidade. também se reproduz o conflito nos serviços públicos,
A motivação inicial nasceu na Rede de Atenção
com os debates em sala entre modelos de atenção Psicossocial constituída
de aula com meus alunos
de graduação, onde
distintos, que atendem, como p e l o s C A P S [ C entros de
apareciam os problemas sabemos, a concepções e Atenção Psicossocial] e
relacionados com a interesses diferentes no que diz residências terapêuticas,
ansiedade, distúrbios e também os profissionais
de sono, transtornos respeito ao cuidado em saúde
e trabalhadores de saúde
alimentares, uso de mental. Assim, a emergência que estão atuando na
drogas lícitas e ilícitas,
depressão e mesmo da pandemia de COVID-19 chamada “linha de frente”
tentativas de suicídio, também acentua esse conflito, do combate à pandemia.
que acomete jovens
universitários e que
e traz à tona, por um lado, a
É bom lembrar que a
tem levado muitos à precarização dos serviços que RAPS [Rede de Atenção
automedicação e aos compõem a RAPS, e, por outro,
serviços d e p s i c o l o g i a e Psicossocial] tem sido
psiquiatria. o oportunismo de pastores duramente atingida
evangélicos que tratam de pelas medidas de
Mais recentemente, c o n t i n g e n c i a m e n t o
estudando a crise
apregoar suas curas milagrosas
de recursos no SUS,
econômica internacional e com grande prejuízo na
a crise política brasileira, manutenção do modelo de
me deparei com um
atenção à saúde m e n t a l q u e
autor, Mounk (“O povo conta a democracia:
p r i v i l e g i a a d e s o s p i t a l i z a ç ã o , o atendimento
p o r q u e nossa liberdade corre perigo e como
ambulatorial e a ressocialização d o s e n f e r m o s ,
salvá-la”, 2 0 1 9 ) q u e c h a m a a a t e n ç ã o p a r a
“a perda das ilusões”, ou seja, a crescente mas, paralelamente, tem aumentado o
consciência, principalmente nos mais jovens, financiamento às chamadas “comunidades
da impossibilidade de alcançarem, no futuro, terapêuticas”, vinculadas a igrejas
uma condição de vida igual ou superior a evangélicas, que reproduzem um modelo
de seus pais, coisa que no Brasil me parece asilar, de tratamento “moral”, principalmente
particularmente verdadeiro, em função das no que diz respeito a usuários de drogas. Ou
múltiplas crises que estamos vivenciando. seja, no campo da saúde mental também se
reproduz o conflito entre modelos de atenção
A pandemia de COVID-19 é u m p r o c e s s o q u e distintos, que atendem, como sabemos, a
i n te n s i f i c a e s t a s c r i s e s e está contribuindo concepções e interesses diferentes no que diz
p a ra a u m e n t a r a s e n s a ç ã o d e i nsegurança respeito ao cuidado em saúde mental. Assim,
no presente e d e i n ce r te z a co m re l a çã o a o a e m e r gê n c i a d a p a n d e m i a d e COVID-19
futuro, o que é um fato desencadeante também acentua esse conflito, e traz à tona,
d e s o f r i m e n t o p s í q u i c o e de problemas
por um lado, a precarização dos serviços
de saúde mental, especialmente em grupos
que compõem a RAPS, e, por outro, o
vulneráveis – que j á s o f re m co t i d i a n a m e n te
oportunismo de pastores evangélicos que
d i s c r i m i n a ç ã o , preconceito, violência doméstica
tratam de apregoar suas curas milagrosas.
–, c o m o i d o s o s , p e s s o a s c o m d e f i c i ê n c i a ,
p e s s o a s e m s i t u a ç ã o d e r u a o u privação de
O outro grupo fortemente afetado pela
liberdade, enfim, grupos sociais que além de

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

pandemia, com repercussões sérias em processos de trabalho em nossos serviços


sua saúde mental, é o de profissionais públicos e mesmo nos serviços
e t ra b a l h a d o re s d e s a ú d e , e s p e c i a l m e n te p r i v a d o s . Te m o s i n f o r m a l m e n t e t i d o
os que e s t ã o l i d a n d o d i a r i a m e n te co m acesso a relatos terríveis feitos por
pacientes su s p e i to s o u profissionais de saúde
doentes de COVID-19, que atuam em serviços
não só nos hospitais, mas hospitalares em nossa
também nas unidades de cidade [Salvador/Ba]
atenção primária, nas Diante da maior e também acessamos
UPAS [Unidades de disponibilidade de leitos de notícias e documentos
Pronto Atendimento] emitidos por associações
e nos serviços de UTI pelos hospitais privados é profissionais, como o
u r g ê n c i a / emergência, perfeitamente justo que o SUS Conselho Federal de
como o SAMU. Estou
participando de um grupo trate de regular o acesso a toda Enfermagem, que dá
conta do número enorme
de trabalho da Rede a rede, e não apenas aos leitos de profissionais e
Covida, envolvido na
produção de síntese de das unidades hospitalares t r a b a l h a d o r e s a f a s t a d o s
d o t r a b a l h o p o r
evidências científicas na da rede pública, como vem problemas relacionados
literatura internacional
s o b re a p a n d e m i a ,
acontecendo ao enfrentamento da
pandemia, inclusive
especificamente com
problemas de saúde
o tema “A saúde dos
mental. Consideramos
trabalhadores de saúde”.
necessário e urgente
Esse grupo envolve vários
que se façam estudos empíricos sobre
d o ce n te s d o I S C q u e te m rev i s a d o ce n te n a s d e
esta problemática no Brasil, o que tem
t ra b a l h o s p u b l i c a d o s n o s ú l t i m o s t rê s m e s e s
m o t i va d o nosso grupo, inclusive, a pensar
sobre o COVI D , d e s t a ca n d o a q u e l e s q u e t r a t a m
na elaboração de projetos específicos,
dos problemas d e s a ú d e e n f r e n t a d o s
q u e s u c e d a m a s r e v i s õ e s
pelos profissionais e trabalhadores do setor.
bibliográficas que temos conduzido.

Nosso relatório, publicado recentemente Enquanto isso, cabe destacar o esforço


como Boletim nº 5 da Rede Covida, que vem sendo feito por grupos de
aponta como principais problemas a profissionais da área “psi” em oferecer
contaminação pelo vírus, que causa, on line assistência à saúde mental
inclusive, afastamento dos trabalhadores tanto à população em geral, especialmente
afetados e consequente sobrecarga de os que apresentem sintomas de ansiedade
trabalho para os demais, bem como o e depressão por conta do confinamento
intenso sofrimento psíquico por conta domiciliar, quanto a profissionais e
do medo da contaminação pessoal trabalhadores de saúde que tenham
e da angústia associada à falta de necessidade de um suporte emocional
equipamentos de proteção individual, para dar conta do estresse decorrente
falta de respiradores, condições de do trabalho nas condições difíceis a que
trabalho e jornadas exaustivas, etc. estão submetidos.
Nesse relatório elencamos um conjunto
de recomendações elaboradas por OAPS: A ameaça à saúde decorrente da
organizações internacionais e comitês pandemia tem provocado debates sobre a
de especialistas, inclusive revisamos o participação do setor privado, em especial
material da Fiocruz, com a intenção de quanto à oferta de leitos. Como você
avalia essa discussão, considerando que
subsidiar os gestores das instituições
a disputa entre os projetos d o M ov i m e n to
e serviços de saúde a adotarem medidas
da Reforma Sanitária Brasileira e o
de proteção à saúde física e mental dos
liberal, ao qual se vincula o setor privado
trabalhadores. na saúde, é questão fundamental no
processo de construção do SUS e na luta
Sabemos, entretanto, o quanto isso tem pelo direito à saúde?
sido difícil na realidade brasileira, em
função dos problemas de infraestrutura, Ca r m e n Te i xe i ra : Me alinho co m p l e t a m e n te
financiamento, gestão e organização dos

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

à posição adotada por vários marca as relações entre deputados e


expoentes do movimento sanitário, suas bases eleitorais. Esse é um
que defendem a necessidade da tema bem analisado no livro da
c h a m a d a “ f i l a ú n i c a ” para acesso Lilia Moritz Schwarcz,
de pacientes com COVID-19 “Sobre o autoritarismo
aos leitos de UTI, através brasileiro” (2019), que
da inclusão dos leitos sugiro aos usuários do
d o s h o s p i t a i s p r i va d o s n o site do OAPS, pelo que
processo de regulação da O e n f re n t a m e n t o da nos ajuda a entender
assistência hospitalar pelo pandemia exige uma ação um pouco mais da forma
SUS. E s s e p r o c e d i m e n t o de se fazer política no
tem respaldo jurídico na complexa, multisetorial, que
Brasil de ontem e de
legislação ordinária do deveria envolver de forma hoje.
SUS, que prevê, conforme
artigo 196 da Constituição
coordenada o conjunto das
OAPS: Como você, que
Fe d e ra l ( CF ) , q u e a s a çõ e s políticas públicas, ao tempo tem dedicado a vida
de saúde são de “relevância em que demanda uma eficiente profissional à construção
pública”, cabendo ao poder
público dispor sobre sua
comunicação social para do SUS, entende a
defesa d e s s e s i s t e m a ,
regulamentação, sendo mobilizar e comprometer a a t u a l m e n t e , p o r
que no art. 199 aparece população no esforço coletivo do p e r s o n a l i d a d e s e s e g m e n to s
claramente a menção ao
caráter complementar controle da pandemia t ã o d ive r s o s d a s o c i e d a d e
b r a s i l e i r a ? Vo c ê a c h a q u e
das instituições privadas, tais manifestações podem
tendo preferência, na ampliar as bases sociais
contratação de serviços e políticas da Reforma
ou na celebração Sanitária Brasileira (RSB)
d e convênios com o SUS, as e n t i d a d e s e d o S U S o u a p e n a s expressam certa
f i l a n t r ó p i c a s e as sem fins lucrativos. comoção diante da pandemia?

Diante da maior disponibilidade de leitos de Entendo que diante da situação


UTI pelos hospitais privados é perfeitamente p r o v o c a d a pela pandemia, em que se
justo que o SUS trate de regular o acesso misturam o relativo desconhecimento sobre
a toda a rede, e não apenas aos leitos das o vírus e sobre a f i s i o p a t o l o g i a d a s
unidades hospitalares da rede pública, como doenças que ele provoca, ao tempo em que
vem acontecendo. Como você assinala em não se dispõe de vacina n e m d e t ra t a m e n to
sua pergunta, essa é uma questão sensível e f i c a z ; e d o m a l - estar decorrente da adoção
exatamente por conta da disputa entre o
de medidas de isolamento social, que, mesmo
p roj e to p r iva t i s t a e o p roj e to d a Re fo r m a
necessárias, geram novos problemas (desde
Sanitária Brasileira, disputa que começou há
a perda de emprego, redução da renda,
mais de 40 anos, ainda na década de 70 do
violência doméstica, sofrimento psíquico,
século passado, quando surgiu o movimento
e tantos outros “efeitos adversos”), as
sanitário e se colocou no debate político da
saúde a proposta de criação do SUS. p e s s o a s s e vo l te m p a ra o q u e a p a re ce n o
h o r i z o n te co m o u m a s o l u ç ã o , o u p e l o m e n o s u m a
Vá r i o s e s t u d o s s o b r e o t o r t u o s o p r o c e s s o aj u d a d i a n te d a e n o r m i d a d e d o p r o b l e m a q u e
de construção do SUS ao longo das últimas estamos vivenciando.
décadas apontam que até o texto dos
artigos da CF que eu citei resultaram de Podemos perceber que o enfrentamento
uma negociação que se fez, na época da da pandemia exige uma ação complexa,
A s s e m b l e i a Nacional Constituinte, com multisetorial, que deveria envolver de
os deputados do “centrão” – que como forma coordenada o conjunto das políticas
hoje, atuavam como representantes da públicas, ao tempo em que demanda
política do “toma lá dá cá”. É uma herança uma eficiente comunicação social para
do patrimonialismo e do mandonismo que mobilizar e comprometer a população no
caracterizam, historicamente, o sistema esforço coletivo do controle da pandemia.
político brasileiro, especialmente Isso tem acontecido em alguns países,
a administração pública em setores mas não se pode fazer comparações c o m
propícios à reprodução do clientelismo que r e a l i d a d e s e c o n o m i c a m e n t e ,

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

p o l i t i c a m e n t e e culturalmente pensadores e pesquisadores honestos,


m u i t o diversas do Brasil. e a e n x u r ra d a d e fa ke n ews q u e
c ontamina a mente das pessoas, assim
O fato é que – na ausência de uma como o vírus tem contaminado o corpo.
liderança (individual
ou coletiva) que Até que ponto esta
apresente uma “ c o m o ç ã o ” , p a r a u s ar o
“ i m age m - o bj e t ivo ” d e u m
O rigor da a n á l i s e termo que você sugeriu,
política em saúde, inspirada na pode se transformar
f u t u ro m e l h o r ; n a a u s ê n c i a
em um apoio político
de uma ação coordenada, “análise concreta de situações efetivo q u e a m p l i e a s
articulada, multisetorial concretas”, exige o pessimismo bases de sustentação
para enfrentamento da da razão. E esta me diz que o do movimento pela
pandemia no presente; Reforma Sanitária
e diante da consciência
capitalismo é metamorfo, que já Brasileira? Não tenho
do risco a que todos está se reinventando no contexto como responder essa
estamos expostos e, da pandemia, que os impulsos pergunta. O momento
principalmente, da generosos e solidários da nossa é de “incerteza dura”,
consciência de que, uma como diria Carlos Matus,
vez doentes graves,
p o p u l a ç ã o a s s u s t a d a e a imprevisibilidade
podemos morrer por não podem ser efêmeros ... e nos ronda. Precisamos
ter acesso aos serviços a “nova normalidade” pós- a c o m p a n h a r o
de alta complexidade “ m o v i m e n t o d o s b a r c o s ” ,
pandemia pode ser o cenário p a r a s a b e r a o n d e a
necessários para garantir
nossa sobrevivência,
da reificação de preconceitos conjuntura nos levará.
particularmente hospitais antigos, de práticas autoritárias,
e UTIs – o imaginário das de formas novas de exclusão Claro que do ponto
pessoas passa a perceber d e vista dos meus desejos
social e aspirações, gostaria
o fortalecimento do SUS
como uma necessidade q u e o movimento pela
inadiável. Inclusive, porque R S B se ampliasse,
o desemprego, a perda incorporando novos
salarial da “classe média” e o desamparo s u j e i t o s , p o r t a d o r e s d e i d e i a s d e futuro,
a que está historicamente submetida a j o v e n s r e p r e s e n t a n t e s d a s lutas
p o p u l a ç ã o “ S U S d e p e n d e n t e ” to r n a o a ce s s o d a s p e r i f e r i a s d a s n o s s a s c i d ades
a o S U S a ú n i c a o p ç ã o p a ra a i m e n s a m a i o r i a d a enlutadas, mulheres e m p o d e r a d a s
população brasileira. q u e resistem ao machismo e à violência,
grupos e m l u t a p e l o re co n h e c i m e n to d e
Encontro nisso a base da repentina suas identidades polimorfas... lgbti+ e
importância que o SUS parece adquirir em sujeitos políticos emergentes que não se
amplos setores da população, gerando um enquadram em nenhuma sigla, em nenhum
reconhecimento que, de certo modo, foi “ismo”.
e s t i m u l a d o p e l o ex - m i n i s t ro M a n d e t t a q u a n d o
de sua gestão à frente do MS, bem como M a s , n ã o p o s s o co n f u n d i r m e u s d e s ej o s co m
p e l o e s fo rço d e u m co nj u n to h e te rogê n e o d e a realidade. O rigor da análise política em
governadores e prefeitos que tem investido saúde, inspirada na “análise concreta de
na mudança da percepção da população com situações concretas”, exige o pessimismo
re l a ç ã o a o s i s te m a p ú b l i co . Va l e re s s a l t a r o da razão. E esta me diz que o capitalismo
papel da grande mídia, que tem dado espaço a é metamorfo, que já está se reinventando
ex-ministros, epidemiologistas, sanitaristas no contexto da pandemia, que os impulsos
generosos e solidários da nossa população
e infectologistas que, em uníssono, apontam,
assustada podem ser efêmeros... e a “nova
de uma forma ou de outra, a importância de
normalidade” pós-pandemia pode ser o
se investir em ciência e tecnologia na área
cenário da reificação de preconceitos
de saúde, na expansão e melhoria da rede
antigos, de práticas autoritárias, de formas
de serviços, na contratação e qualificação
n ova s d e e xc l u s ã o s o c i a l . O xa l á e s t ej a e r r a d a !
dos profissionais. E também não devemos
e s q u e ce r o p a p e l d a s re d e s s o c i a i s , d a m í d i a
OA P S : S a b e m o s q u e v o c ê , a l é m d e p r o f e s s o r a ,
alternativa, espaço onde se reproduz o
é escritora, toca piano, entende de música
debate entre aqueles que tentam divulgar
c l á s s i ca e a p re c i a a s a r te s d e u m a fo r m a ge ra l .
notícias confiáveis, realizar entrevistas com

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

Qual a sua opinião quanto às possibilidades de a em termos de identidade nacional, o ser


a r t e e a c u l t u r a aj u d a r e m à s p e s s o a s a e n f r e n t a r brasileiro, o “padrão que une” apesar
esses tempos inusitados? E como a arte pode das diferenças, das desigualdades e
contribuir para a análise e a ação p o l í t i c a n o das iniquidades que a sociedade e o
Brasil em defesa da democracia e na busca sistema econômico e político brasileiro
de uma reconstrução da sociedade numa reproduzem cotidianamente.
p e r s p e c t i v a c i v i l i z a t ó r i a , t a l c o m o n o p r oj e t o
da RSB? Na arte, no canto do povo, na literatura
de cordel nas feiras de Caruaru, no samba
Interessante você me fazer essa dos morros cariocas, nos bailes funk
pergunta. Há anos tenho me convencido das periferias, nos cantos rituais dos
de que a apreciação da arte é a única índios pataxós e cariris, encontramos
maneira que temos de nos reconciliar um pedacinho dessa alma brasileira, que
com o que há de mais humano em cada flutua ao vento das caravelas que aqui
um de nós. Diante de tanta barbárie, de chegaram trazendo o fado português e
tantas guerras absurdas, do sofrimento vibra nas asas deltas que mergulham na
de milhões de refugiados, dos efeitos da baía de Guanabara aos domingos. Ressoa
crise ambiental sobre a vida em nosso nos cantos ancestrais dos terreiros de
planeta, nossa “casa comum”, diante do candomblé da minha amada Salvador,
cenário que se descortina cada dia aos embalando os sonhos do povo de santo
meus olhos, quando atravesso a cidade que acolhe generosamente gente de
em direção ao trabalho e olho as casas todas as raças, de todos os credos, de
penduradas nas encostas desse “mar de todos os cantos. E anuncia, na teimosia
morros” que é Salvador... meu coração dos meninos e meninas que se globalizam
se aperta, respiro fundo e me convoco a acessando o mundo através dos celulares,
seguir trabalhando, tentando contribuir, que esse país tem um lugar, que é seu, que
de alguma maneira, da forma que aprendi é nosso, e vai sobreviver e, quem sabe,
ao longo dos anos, convivendo com tanta um dia cumpra o sonho que sonhamos
gente que me inspira nesses quarenta acordados.
anos em que trabalho no campo da
Saúde Coletiva. E nesses momentos me
acompanha uma “trilha sonora”, feita de
trechos de canções, versos de poemas,
frases musicais dos meus autores
preferidos.

E sei assim, de um secreto saber, que o


poeta tem razão quando diz que “tudo
vale a pena quando a alma não é pequena”
e eu tenho que passar “além da dor” e
pensar que, apesar de tudo, quando olho
muito tempo para o abismo, o abismo olha
para mim. E quem sabe tem uma resposta,
ou uma pergunta que me leva a continuar
pensando, e poetando.

A partir dessa minha experiência singular


posso tentar responder à sua pergunta
acerca da possibilidade de a “arte
contribuir para a análise e ação política
no Brasil em defesa da democracia e na
busca de uma reconstrução da sociedade
em uma perspectiva civilizatória”. Sua
pergunta traz embutida a resposta e
aponta um dos caminhos possíveis para
a reconstrução da nossa sociabilidade. A
arte brasileira, especialmente a música
popular, sempre expressou de diversos
modos o que de mais autêntico construímos

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ENTREVISTA DO MÊS
ENTREVISTA DO MÊS: MAIO/2020

Confira outras entrevistas do OAPS:

Ricardo Teixeira Ronaldo Almeida

Luiz Eduardo Soares Virgínia Fontes

Jarbas Barbosa Mário Scheffer

Cecília Minayo Pedro Delgado

Lia Giraldo Eduardo Fagnani

Eleonor Conill Rogério Queiroz

Expediente

Coordenador Geral : Isabela Cardoso Pinto Equipe CDV: Isabela Ramos Porto | Maria Creuza Silva |
Thadeu Borges Souza Santos
Coordenação Executiva OAPS: Yara Oyram Ramos Lima
Comunicação: Inês Costal | Patrícia Conceição
Coordenação Executiva CDV: Carmen Fontes Teixeira
Tecnologia da Informação: Diego Corrêa | Gilson
Equipe OAPS: Jairnilson Silva Paim e Maria Rabelo | Juliana Argolo | Sérgio Santana
Guadalupe Medina

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