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CARTA DO PADRE BALTASAR B A R R E I R A


AO PADRE JOÃO ALVARES

(1-8-1606)

SUMÁRIO — Observações de ordem geográfica, histórica, etnográfica,


comercial, política e religiosa sobre os povos que habi-
tam a Guiné e a Serra Leoa.

Em huã carta que V. R . me escreueo em Julho de 604


dis, que deseia saber de mi que cousa hé este Cabouerde,
quanto ás Jlhas, e quanto á terra firme, que Reys há nelle,
que poder tem, que gente hé a destas partes, que naturaês tem,
que hé o que produs a terra, e finalmente que hé o que tem
de bem e de mal. Deixey de responder logo a estas perguntas,
porque requerem muyta experiência da terra, e gente que a
pouoa: aiudandome do que tenho uisto, e das informações
d'alguãs pessoas fidedignas, que há muytos annos andam
nestas partes, e sabem o que há nellas.
Começando pois pello Cabouerde, que hé a primeira cousa
que V. R . me pergunta, este nome hé próprio de hum grande
promontório desta Costa e parte de Africa, a que os Portu-
gueses chamaõ Guiné, por rasam do qual as Ilhas que estam
de fronte delle nouenta ou cem legoas ao Sueste, se chamaõ
do Cabouerde. E porque a de Santiago hé cabeça de todas,
e assento da Igreja Catedral deste bispado e dos Gouerna-
dores e da feitoria destas partes, e a ella uem demandar os
nauios dessas partes, e os que saem de Guiné com escrauos
1
e outras mercadorias, o vulgo lhe veo a chamar Cabouerde ( ) .

(1) Não só o vulgo, pois são muito numerosos os próprios


documentos oficiais que, referindo-se à Ilha de Santiago, lhe chamam
a Ilha do Cabo Verde.

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Tem esta Ilha de comprido 18 legoas, e de largo 9. Está
da banda do Norte em 15 grãos. Hé montuosa e chea de
serras escamadas que a fazem parecer seca e estéril uista do
Mar, mas os que entraô nella achaõ o contrario, porque
porque (sic) destas mesmas serras saem tantas ribeiras e fontes
que a fazem mais fresca e. fértil. Há em toda ella, especial-
mente nos vales, grandes palmares de cocos, e tâmaras, muitas
vuas, que se daõ e colhem quasi em todos os tempos do anno,
laranjas, limões e todas as mais frutas de spinho, peras,
maçans, bananas, canafistola, mamões, guayanas, e outros
frutos trasidos de diuersas partes; há grandes algodons, de
que tiram muito proueito, porque os panos que delle tecem
e o mesmo àlgodam hé a principal mercadoria que trasem a
Guiné pera o resgate dos escrauos e mais cousas da terra
firme; há também canaueaes de açúcar, mas o fazelo aonde
naõ há engenhos de agua custa muito trabalho, porque toda
a cana se pisa em pilões. / /
A principal sementeira que fazem hé de milho zaburro,
deste come ordinariamente os crioulos e pretos, fazem muita
cantidade de xarê e cuscus; dasse muito bom trigo se o semeaõ,
mas há poucos que o façaõ, por uir muita farinha de fora,
de que se amassa cada dia todo o pam que comem os Portu-
gueses. Há todo género de gado, de vacum, há lauradores
que tem a mil cabeças e mais, contando somente as reses
marcadas; vai huã vitela hü crusado, e huã vaca dous; as
galinhas, assi caseiras como do mato saõ muitas e taõ baratas
que hé o comer ordinário da gente limpa. / /
A Cidade que tem 500, ou 600 visinhos, está situada a
par do Mar entre montes e rochedos taõ altos que naõ tê
outra vista senaõ a do Mar, pella qual causa e por ficar
encuberta ao Norte, foi sempre muy doentia, ainda que agora,
segundo dizem, tem alguã melhoria. Hé muy ordinário
adoecerem os que uem a ella de outras partes, especialmente
se o tempo hé de agoas, porque entaõ as calmas saõ mayores

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Carta das Regiões do Senegal e da Gâmbia

(Prévost — Histoire Générale des Voyages, III)


e as frutas de toda [a] sorte en grande abundância. E porque
neste tempo nem os moradores se dam por seguros na Cidade,
a mayor parte delles a desemparaõ e uaõ passar a quintas
que tem pella Ilha e sitios mais sadios e muy amenos. / /
Tratouse muytas uezes de mudar esta Cidade para outro
sitio, em que está a Villa da Praya, que dista delia duas legoas,
por ser muy eminente e bem arejada, e ter outras muytas
comodidades que j á escreui, mas nuca acabarão de pôr isto
em effeito. / /
O porto da Cidade hé muy estreito e por causa de hü
ar[r]ecife que tem en si correm muyto risco os nauios que uem
a elle; em menos de hü anno depois de nossa chegada, se
perderão nelle seis e outros estiueraõ muy perto de fazer o
mesmo. / /
Hé o Mar desta Ilhas muy infestado de cossarios e saõ
muytos os nauios que tomaõ, huns que uem dessas partes de
Europa, e outros que uaõ deste Guiné carregados de escrauos
e outras mercadorias; o que muyto lhes facilita estes roubos,
e os cometimentos que fasem a esta Ilha e os mais, que para
passar ás Jndias, Brasil, Santome e outras partes, ordinaria-
mente se uem aiuntar na Jlha do Mayo, que está muy perto,
por ter bom porto.
A segunda Ilha depois desta de Santiago, que está á vista
delia, hé a de Sam Felipe, e por outro nome a do Fogo,
chamada assi por hü pico muy alto que tem, o qual nos tempos
passados lançaua de si ordinariamente fogo, e auerá obra de
cinco annos que o lançou muytos dias con taõ grandes sinzeiros
e terremotos, que todos os moradores da Ilha padeceram
muyto e se deraõ por acabados. Esta Ilha ainda que tem
ensi esta fornalha, que podemos chamar do inferno, porque
muitas uezes nestes incêndios se ouuê falar nelle os demónios,
e sam delles auexadas alguas pessoas, no mais léua uentagem
ás outras, porque nella se colhe mais algodam, e tem vinhas
de que se faz muyto e bom vinho, e dá todas as frutas que

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ll
há nas outras mais perfeitas e em mais cantidade. A abundân-
cia faz que aja alli homês muy ricos e de muytos escrauos,
con que lauraõ e cultivaõ a terra, mas hé muy ordinário auer
entre elles discórdias e uiuerem em perpétuos ódios, pella
e
qual causa há ido lá o P . Manoel de Barros, que espero
escreuerá o que Deus tem obrado por elle.
Ao Nordeste da Ilha de Santiago cousa de tres legoas,
está outra Ilha que chamaõ do Mayo; nesta naõ há mais que
gado de vacas e cabras, de que fazem chacinas e couros para
2
uender dez ou doze ( ) pessoas que alli uiuem, e há nella
huã marinha natural donde se carregaõ muytas naos de
estrangeiros de sal.
Ao Nordeste estam as Ilhas de Santo Antaõ, de S. Nicolau,
e a de Boauista, nas quais naõ há mais que gado, e alguas
ueses, na Ilha de Santiago como nas mais, se acha cantidade
de âmbar que o Mar lança nas prayas.
A gente destas Ilhas pella mayor parte hé branda de
condição e fácil para se lhe imprimir o bem, principalmente
se tem quem lho ensine, naõ somente com a palaura, mas
também com o exemplo. Isto quanto ás Ilhas.
Da terra firme que lhe responde auia muyto que diser,
e se cá ouuera pessoas que tiueraõ menos ocupações que eu
e mais coriosidade, poderão fazer hü tratado grande e aprasiuel
dos Reynos, Nações, Costumes, Animais, Prantas e mais cousas
deste Guiné.
Esta parte de Africa que os Portugueses propriamente
chamaõ Guiné começa no Rio Cenagá e corre pella costa té
o Cabo Ledo ou Serra Lyoa, obra de 180 legoas de Norte
a Sul; hé taõ caudaloso este Rio Cenagá que sobem por elle
òs nauios 150 legoas, e saindo de madre obra de 60, rega
aquelia terra de maneira que fas o que o Nilo en Egipto,

2
( ) No original: des ou dose.

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e a faz muy fértil, sem o qual naõ se poderá abitar, por ser
de si seca e falta das chuuas do ceo.
Este Rio da banda do Norte, começando da costa, hé
pouoado dos Fulos, gente polida e guerreira, que segue a ceita
de Mafoma, a qual se lhe pegou de poucos annos a esta parte,
do trato e comercio que com elles tem os Mouros de Berbéria,
sogeitos ao Xarife, trasendolhe caualos e leuando outras mer-
cadorias; os homês usaõ de toucas na cabeça e de meas botas
nos pees, com esporas cosidas e pegadas nellas, porque nuca
saem de casa nem andaõ, nê negoceaõ senaõ a caualo. E o
mesmo vsaõ as molheres, o qual (com outras cousas que
adiante direi) me referio hü Português fidedigno, como teste-
3
munha de vista ( ) , porque esteue na corte do Graõ Fulo
13 meses; a causa porque naõ andaõ a pee entendese que hé
por ser a terra areenta e tam quente que lhes queima os pees.
Hé taõ grande o cuidado que os Fulos tem de seus caualos,
que todos, té o mesmo Rey, os uisitam cada dia e para curar
delles aplicaõ a cada caualo hü escrauo, que naõ tem outro
oficio. / /
Quando o Graõ Fulo está no campo, que hé a mayor
parte do anno, tem continuamente diante de sua tenda cem
caualos muy escolhidos, os quais estaõ sempre selados e apare-
lhados para subir nelles, para o qual os costumaõ a se naõ
deitar. Alem destes caualos, e outros que tem nas estrebarias,
cada dia lhe trasem outros muytos, que lhe mandaõ os Reis
e Senhores seus tributários, e lhe uem das terras en que elle
os manda criar, destes escolhe os que mais lhe contentaõ,
e outros dá e manda a diuersas pessoas.

(3) Pode tratar-se de Bartolomeu André, Sebastião Fernandes


Cação e, possivelmente, de André Álvares de Almada, se tivermos em
consideração as informações do Padre Barreira e as que são dadas no
Tratado Breve, publicado em Monumenta, II série, vol. III.

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Vsaõ os Fulos de comutação em lugar de dinheiro, ainda
que tem muyto ouro, e o que mais corre entre elles hé de
vacas, por terê muyta cantidade delias e serem todos criadores
deste e de todo o outro gado, de maneira que chegando hü
nauio carregado de mercadorias todos lhas compraõ com vacas
e daõ ao mercador escrito para algíi laurador da cantidade
que lhe hade dar, com obrigação de as ter em seu poder té
lhe serem pedidas. Com estas vacas resgata depois o mercador
ouro, caualos, escrauos e outras mercadorias, e passa escritos
para o laurador em cuio poder estaõ.
Nenhuã sorte de vinho bebem os Fulos nem comem carne
de porco nê de animal que elles naõ degolem por sua maõ;
tem certas ceremonias e assi ainda que saõ dados a caçar naõ
aproueitaõ a carne dos elefantes, porcos monteses e outros
animais que mataõ. Por esta causa se achaõ pellos matos
muytos dentes de marfim que a gente pobre uai buscar para
uender aos Franceses e Olandeses que alli uaõ; naõ comem
peixe por se presare muyto da limpeza, e a rezam que daõ
hé que naõ haõ de comer cousa que depois de comida naõ
possaõ pôr as maõs nos vestidos.
Depois dos Fulos se segue os Jalofos; estes começaõ no
Rio Cenagá da banda do Sul e correm ao longo da costa té
os Berbecins, e pello certaõ té os Reynos de Balã e de Broçalo.
Desta naçam há muytos Reis que soyam reconhecer por cabeça
e seu Emperador ao Graõ Jalofo e lhe pagauaõ páreas; mas
por traição de hü seu Capitão foi esta Monarchia de algüs
annos a esta parte em deminuiçaõ; segue todos a ceita de
Mafoma. Saõ os Reynos desta naçaõ mais conhecidos os de
Calor, e Gambia, e ao Rey chamaõ de Calor; tem muyta
gente de caualo e pelejaõ com adagas e meas lanças.
Da ponta do Cabouerde a tres legoas, caminhando ao
Sueste, está huã enceada a modo de baya e na boca delia
há hüa Jsleta que faz hü bom porto e se chama a Ilha de
Beseguiche, á qual uem cadanno muytas naos de França,

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Jnglaterra e Fraudes, e leuaõ dalli 40V [40000] couros e
500 quintais de marfim, e algü ouro e âmbar, e nesta Jlha
armaõ seus nauios, para os quais trasê a madeira necessária
e depois uaõ a resgatar pella costa até á Mina, Angola e Brasil.
E desta Ilha ao Sueste cousa de quatro legoas, há" hü
porto que se chama Recife, do qual con suas lanchas uaõ pella
costa abaxo até os portos de Dali, Candimam, Porto Nouo e
Joala, e todos saõ delRey Jalofo, que segue a ley de Mafoma,
cuia gente vsa de caualos, e vestidos de panos de algodam
branco e negro, e hé muy belicosa.
Seguese o Porto Dali, no qual há huã aldeã de cem Por-
tugueses que segue a ley de Moisés, e EIRey os defende de
quê os quer impidir. Este porto hé o mais importante para
os resgates dos Estrangeiros.
Partindo do Porto Dali, ao Sueste está o Porto de Joala,
que tem Rey próprio e se chama Berbeci. E tem caualos, e
vestidos de algodam; hé a gente mais aprasiuel. E neste porto
há Portugueses com casas que resgataõ. Estes negros segue
a Mafoma.
Com estes Jalofos confinaõ os Berbecins, da qual naçaõ
hé o Reyno de Ale, que corre ao longo da costa obra de
40 legoas e se acaba no Rio Berbecim, donde tomaõ o nome,
e também o hé o de Broçalo, muyto mayor que o de Ale;
começaõ no mesmo Rio Berbecim da banda do Sul e termi-
naõse no Rio Gambia, que dista 20 legoas do Porto de Joala
e hé nauegauel de nauios de 80 té 90 teneladas, 130 legoas rio
ar[r]iba, ao longo do qual corre obra de 40 legoas, e hé
pouoado naõ somente de Berbecins mas também de Jalofos
e Mandingas; e aqui auia grande resgate de marfim e negros
e oje tudo leuaõ os inimigos estrangeiros.
Desta naçaõ de Mandingas, que confinaõ com os Berbe-
cins, há muytos Reynos; tem todos a mesma lingoa, ley e
custumes, mas hé gente que uiue de enganos. Estendemse per
huã parte e outra do Rio Gambia mais de 200 legoas, da banda

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do Norte e da banda do Sul pello sertão. Singe este Rio muytas
outras nações. Há entre os Mandingas, Farins, titolo de grande
dignidade, aos quais os Reis pagaõ páreas. Segue a ceita de
Mafoma como os mais que atras ficaõ, e tem misquitas e
escolas de leer e escreuer, e muytos casizes, que leuaõ esta
peste a outros Reinos da banda do Sul, enganando a gente
com nominas que fazem de metal e de coiro, muyto bem
lauradas, en que mete escritos cheos de mentiras, afirmando
4
que tendo consigo estas nominas nê na guerra nê na paz ( )
auerá cousa que lhes faça mal. / /
Tem estes casizes quasi en todos os Reinos huã ou mais
aldeãs apartadas, en que uiuê com muytos priuilegios, que
os Portugueses naõ tê. Saõ muy acatados de todos e consul-
4
tados nas cousas da guerra e da paz ( ) , tratam em escrauos
que uendem aos Mouros de Berbéria e aos Portugueses destas
partes; e com este titolo entraõ aonde querê, e sameaõ suas
falsidades; e posto que as outras naçoês que estaõ para o Sul
as naõ segue en tudo, hé todauia grande impedimento o que
lhes ensinaõ para receber nossa Santa Fee. Nesta naçaõ
5
parece que se acaba a policia ( ) humana, porque as que se
seguem, ou a naõ tem, ou hé taõ pouca que quasi se naõ
enxerga nelles. Na criação de gados, agricultura, abundância
de mantimentos, e nas mais cousas pertencentes á uida
humana, há pouca diferença entre hüs e outros, e assi naõ será
necssario relatar as cousas que se daõ em cada Reino.
Na boca deste Rio Gambia, que abitaõ estes Mandingas,
está elRey de Labará, á parte do Norte, o qual pode pôr no
Mar 200 embarcações daquelas partes.
Depois dos Mandingas se segue os Arriatas, e Falupos,
que pouoaõ a costa que jas entre a ponta Austral, ou cabo do

4
( ) No original: pas.
5
( ) Civilidade, urbanidade.

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Rio Gambia, chamado Cabo de Santa Maria e o Rio de Sam
Domingos, que será de 30 legoas.
Do Cabo de Santa Maria, que está tres legoas do porto
do Rio Gambia, até o Cabo Roxo, ao Sul, há 18 legoas e
entre estes dous cabos naõ há resgates, por serem gente bar-
bara. Deste Cabo Roxo ao Nordeste se entra no Rio de Sam
Domingos, do qual se dirá abaxo em seu lugar.
Segue se depois destes os Jabundos e Banhus, as quais
nações pouoaõ as ribeiras do Rio de Casamansa, que sae ao
Mar obra de huã legoa antes do Cabo Roxo. Os Jabundos da
banda do Norte, e os Banhus da banda do Sul e ambos ficaõ
nas costas dos Ar[r]iatas e Falupos pella banda do sertão.
Os Casungas, que hé outra naçaõ, estaõ mais metidos no
sertão, começaõ nos confins dos Jabundos e Banhus, e chegaõ
aos Mandingas, que pella terra dentro cinge todas estas nações.
Saõ sogeitos ao Rey da Casamansa, o qual ainda que hé muy
poderoso e senhor de muitas terras, dá a obediência a hü
farim seu visinho, este a outro mais apartado, e assi se uaõ
reconhecendo hüs a outros té chegar a Mandimansa, Empe-
rador de todo este Guiné, obedecido de todos os Reis delle,
e taõ reuerenciado que nuca o ouuê nomear que naõ des-
cubraõ a cabeça. Está taõ longe que os nossos Portugueses
e quasi todas estas nações só o conhecem pello nome, e pello
que ouuè a algus negros que chegaõ aonde está.
Os Buramos, que por outro nome se chamaõ Papeis,
confinaõ com os Falupos e correm do Rio de S. Domingos,
aonde está Cacheo, pouoaçam de Portugueses a principal
destas partes, cuia entrada hé mui perigosa por ter mutyos
baxos, e nella se perdem muytos nauios quando entraõ neste
porto. Este Rio de Sam Domingos sae ao Mar abaxo do Cabo
Roxo 18 legoas e hé pouoado dos desta naçaõ de huã e outra
parte, e se estende até os Reinos de Tines ( ? ) , Cacheo, Cãboy,
Ilhetas, Bussis, Bissau, Cayo e Baoula, e tem os portos de
Bugêdo, Bichãgor e Farim, aonde se trasem muytos manti-

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mentos para os nauios que uem ali carregar para Jndias; hé o
porto de Cacheo o mais importante destes e por naõ ter forta-
leza naõ hé a pouoaçaõ mayor, e sem ella se perderá todo
aquelle trato. E na gente que uiue por este Rio a r [ r ] i b a se
pode fazer grande conuersaõ.
Ao Sul destes Papeis ficaõ as Ilhas dos Bijagós, das quais
2
as pouoadas hé que. tem. Reis, sam doze ( ) , e sinco as despo-
uoadas. Estes negros destruem muytos Reinos destas partes
por armas e enganos e fereza, e impedem o trato de Cacheo
em grande parte e a pouoaçaõ, por medo que todos tem delles.
Por entre estas Ilhas dos Bijagós e as Ilhas dos Papeis,
sae o Rio Grande ao Leuante; este Rio pouoaõ os Balantas,
os quais atrauessaõ hü braço deste Rio que uem da terra dos
Mandingas e passa pellas de Goula, que hé Reino de persi;
hé gente barbara e naõ; se fiaõ delles os Portugueses, nem tem
trato com elles. Saõ grandes criadores de vacas e naõ tem Rey.
Segue se depois dos Balantas os Biafares, que os cercaõ
da parte do Leuante e se estendem aos Reinos de Goula, Ante,
Guinala, Biguba, Bissau, Bisegue, Baoula, Curubale e
Buleima; o Rey de Bissau agasalha aos Portugueses, e alli
tem casas e grande resgate. E en todos estes reinos que estaõ
Rio a r [ r ] i b a há grandes resgates e o principal hé o da cola,
fruta como castanhas, e hé o principal dinheiro, por que se
uende muyto e tem estes muita amisade com os Portugueses
e trato e pedem ser christaõs.
Na ponta Austral do Rio Grande começaõ os Nalus e
correm ao longo da costa té os Bagas, e pella mesma costa
chegaõ ao Cabo de Verga. Nestes Nalus está o Rio de Nuno,.
30 legoas ao Sueste do Rio Grande; hé a gente muy fera
e os Portugueses naõ tê com elles trato.
Na boca do Rio Nuno ao Sueste está o Cabo de Verga,
donde os Portugueses chamaõ Serra Lyoa; de huã a outra
parte há 36 legoas e nas 18 há sinco Rios que entram pouco
pella terra dentro.

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Os que uiuem nestas 18 legoas se chamaõ Bagas, e sam
gentios domésticos e com elles resgataõ os Portugueses escrauos,
ouro e marfim; e no fim deste Rio Nuno está hü porto a.que
uaõ cadanno sinco nauios a carregar de huã erua aue serue
para tintas e uai muyto dinheiro, por serem as melhores que
se gastaõ em Guiné; e tem mais os Bagas outro Rio que
chamaõ Faruma, em que há resgate.
6
Fronteiro das Ilhas dos Jdolos ( ) na terra firme, entraõ
os Rios donde se tras a cola. Estes Rios saõ os de Pogomo,
o de Calanchacafu, a Barra Seca, o de Casses, en que uiuem
os Caius, que correm depois dos Bagas pella costa e sertaõ
té o dito Rio dos Casses, e o de Mitombo. E este uai acostado
á Serra Lyoa. E a estes Rios uem nauios de Cacheo e de
Digola a carregar de cola, que leuaõ a Cacheo, Digola e
Gambia, dos quais trasem roupas a estes Reinos e portos.
Por cima dos Nalus e Bagas jasem os Sonhos e os Cocolins;
dos Sonhos hé cabeça o Rey de Bená, ao qual ainda que obe-
decem e pagaõ páreas sete Reis, elle reconhece por superior
ao Rey de Concho, que está mais metido no sertaõ, e deste
Reino sae todo o ouro que corre por estas partes.
No cabo das ditas 18 legoas estam as Ilhas dos ídolos,
pouoadas dos Sapés,' que hé a derradeira naçaõ deste Guiné,
a qual foi conquistada no anno de 1550 pellos Tembas ou
Manes; começaõ nos Caius, e correm ao longo da costa té a
parte Austral da Serra Lyoa; os Reinos que senhoreaõ estes
Manes saõ os da Serra Lyoa, cuios moradores se chamaõ
Coyas, e correm pella parte Austral do Rio Tagarim té os

(6) «Este nome lhe foi posto porque os Negros desta terra,
quando ah vão fazer sua sementeira de arroz, levam seus ídolos em
que adoram [chinas], e porque ah foram achados muitos deles quando
se esta terra descobriu, se pôs este nome de ilhas dos Ídolos». —
Duarte Pacheco Pereira, em Esmeraldo de Situ Orbis, liv. I, cap. 32.
Cfr. Monumenta, II série, I, p. 650.

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Logos, ou Temenes, cujo Rey se chama Farma; e da parte
Septentrional do mesmo Rio, começando da ponta de Tagarim,
que fas rosto á Serra Lyoa, pouoaõ os Boloês, cuio Rey se
chama Fatema; e ao longo destes corre pella banda do Rio
o quarto Reino, que hé quasi todo de Jlhas, cujo Rey se
chama Tora. O Reino dos Logos entra pello sertaõ mais de
cem legoas, em que há alguns Reis que obedecem a Farma.
O dos Boloês se estende também ao longo da costa para [a]
banda do Norte, pellos Reynos de Bura, Pogomo e Jlhas dos.
Jdolos; o da Serra Lyoa, alem da Serra que hé grande e muy
fértil de tudo, e capas de engenhos de açúcar e pao, e outras
cousas, como no Brasil, e se estende ao longo da costa para
a banda do Sul té o Reyno de Bagrabomba, aonde começa
a Costa de Malagueta.
Hé a terra deste Guiné geralmente falando, de bons ares
e pella mayor parte sadia, mas nenhuã tanto como esta da
Serra Lyoa, em que há todo o anno huã como primauera.
Cacheo, aonde moraõ os Portugueses principais destas partes,
pello grosso trato que alli tem, hé doentio por ser a terra
apaulada, e a pouoaçaõ cercada de agoa para sua defensa,,
e por naõ ter fortaleza naõ hé taõ abitada como fora se a
tiuera.
Hé ao longo desta costa retalhada de muytos Rios e
esteiros que entraõ muytas legoas pella terra dentro, e assi
mais se comonicaõ hüs Reinos a outros por agoa, que por
terra, quasi toda hé chea de grandes aruoredos, que a fasem
muy fresca. Nos matos há lyoês, onças, lobos, elefantes,
búfalos, porcos monteses, gatos de algalia, corças, veados sem
cornos, cabras monteses, bugios, daris, que saõ os animais
semelhantetes ao homem que cuido há no mundo, e outros
muytos animais que naõ saõ conhecidos nessas partes. / /
Há também muytas madeiras, assi para fazer quantos
nauios quiserê, como para outras obras primas. Nestas entraõ
alguãs de tinta, a principal se chama camo, que hé como o

IJO
pao do Brasil. Há muytas frutas, assi de aruores de espinho
como de outras, canafistola, tamarindos, inhames do mato,
malagueta de diuersas sortes e certa casta de pimenta. Há en
toda a terra e nos Rios muyta uariedade de aues, águias reais,
açores, guinchos, papagayos, rolas, garças, patos, ades, peli-
canos, que chamaõ assi mas naõ saõ, cegonhas e outras naõ
conhecidas.
Hé a gente muyto dada [á] agricultura, em que as
molheres tem a mayor parte; colhe muyto milho de diuersas
castas, arros, gergelim, e outros mantimentos; há grandes pal-
mares de que fazem azeite e tiraõ muyto vinho. Há muyto
algodão de que fazem panos, hüs comüs e outros finos, os
quais tingem com huã erua de que se faz huã tinta como anil;
há muytas canas de açúcar que prantaõ para comer, e aparelho
para se fazerê grandes canaueais e engenhos de açúcar. Há
grande cantidade de marfim, cera e coirama, especialmente
naquella parte que chamaõ a Costa.
Há muyto ouro, com que os negros compraõ as cousas
que os Portugueses lhe uendem, mas sem comparação hé mais
o que uendem aos Franceses, Jngreses e Olandeses, e o que
entesouraõ para se enterrar [em] com elle, especialmente os
Reis e Senhores; há minas de diuersos metais, especialmente
de ferro, e o que se tira nos Sousos hé melhor que o dessas
partes.
Há todo género de gado, vacas, porcos, cabras, car-
neiros sem Iam; há no Mar e nos Rios muyto peixe, cocodri-
lhos (sic), caualos marinhos, baozes, que saõ os que no Brasil
chamaõ peixeboy, e outro melhor que este chamado coura,
cuias escamas saõ quasi tamanhas como a palma da maõ e
da cor da prata por fora. Há muytos mariscos e muy grande
cantidade de ostras comüs, e outras em que se achaõ pérolas
grandes; fazem em alguãs partes muyto sal com artificio de
fogo, e hé a melhor mercadoria destas partes.

77/
A disposiçam para se fazer fruto nesta gentilidade em hüs
hé grande, e noutros naõ; daquelles que já receberão a ceita
de Mafoma naõ parece que há que tratar, os outros que
somente a cheirarão e ainda tem j dolos que adoraõ, pode auer
mais esperança, e já hum Rey destes me deu pai aura que se
7
faria christaõ e escreueo sobre isso a Sua Magestade ( ), mas
os que estaõ mais dispostos para receber a nossa Santa Fee,
sam estes Reinos da Serra Lyoa e outros visinhos a elles,
por naõ terem noticia de Mafoma e de sua Ley, e por terem
bons naturais, e lhe parecerem bem as cousas de nossa Santa
Fee, mas taõbem tem muytas dificuldades, huã das quais hé
a das molheres, que cuido hé a mayor, porque assi se seruem
delias para suas sementeiras e mais ministérios, como se foraõ
suas escrauas, e quanto cada hü é mayor Senhor, tanto se
presa de ter mais; e assi há Reis que tem passante de mil;
outra hé serem muy dados á jdolatria, e naõ auer casa, nê
caminho, nê lugar em que naõ tenhaõ muytas chinas, que saõ
os seus j dolos, nos quais assim crêem e cõfiaõ como se tiuessê
na maõ o que lhe pedem; outra hé estar a terra diuidida em
muytos Reynos, e serem os vassalos sogeitos a seus Senhores
que nenhü se atreuerá a receber nossa Santa Fee sem seu
consentimento; outra hé que de quatro partes do anno huã
só estaõ nas aldeãs, e as tres gastaõ em cortar o mato das
terras em que haõ de samear aquelle anno, porque sempre
o cortaõ de nouo, e em as samear, mondar, e colher os man-
timentos, para o que fazem lá choupanas, en que passaõ este
tempo, deixando vasias as casas que tem nas aldeãs, as quais
ordinariamente fazem cadanno de nouo depois que acabaõ de
recolher o arros e mais mantimentos. / /
Outra hé que se naõ se alimpar esta Costa dos muytos
cossarios que andaõ nella, naõ poderão facilmente os Portu-

7
( ) Referência a D . Filipe e à carta de 25-2-1606 escrita a el-Rei.

172
gueses destas partes ser premidos das cousas destes Reinos,
nem tirar proueito destas terras, que hé o que os tras a ellas,
porque ordinariamente, ou tarde ou cedo lhe uem a cair nas
maõs e aos mesmos portos lhe uem a tomar os nauios. Outra
dificuldade, que como todos os Reis deste Guiné reconhecem
(como já disse) por superiores hüs a outros, té chegar á
suprema cabeça, e estes Manes reconhece os da mesma naçaõ
que se uaõ seguindo, té o Rey que os mandou descubrir e
conquistar Reinos nouos, tem lhe tanta obediência, que com
grande dificuldade receberão Ley noua sem seu consentimento.
E assi depois que a este Reino da Serra Lyoa uieraõ negros
de Bagrabomba com hü filho daquelle Rey, o qual hé mais
propinquo superior deste, que já hé christaõ, mandados para
chorar a morte de seu pai, parece que senti nelle alguã frieza
nas cousas de Deos, o qual me faz cuidar que poruentura lhe
estranharão fazerse christaõ sem o consultar com elle.
Naõ obstante tudo isto, sou de parecer que importa leuar
por diante esta obra, ainda que uá devagar, porque sem
duuida com o fauor diuino, se a Companhia perseuerar nella,
se uenceraõ todas estas dificuldades, e se assentarão nestes
Reinos as cousas de nossa Santa Fee, de maneira que delles
se estenda a outros muytos, com grade gloria de Deos, para
o qual ajudará muyto fazerse fortaleza nesta Serra Lyoa, com
potencia que defenda os que se conuerterem á nossa Santa
Fee, e resista a quê os ofender. / /
Deste porto de S. Miguel na Serra Lyoa, primeiro de
Agosto 606.
De V. R. seruo em Christo / /

Balthasar Barreira

A R H M — Papeies de Jesuítas, m s . 185, doc. 13. — A T T —


Cartório dos Jesuítas, m a ç o 68, doc. 119. Publica-se a primeira fonte
c o m p l e t a d a pela segunda n o c o m e ç o e fim d o d o c u m e n t o .

173
N O T A — O t e x t o não é autógrafo do P a d r e B a l t a s a r Barreira.
O t e x t o do A T T identifica o d o c u m e n t o por estas p a l a v r a s : R e s p o s t a
a h u ã carta que o P . J o a õ Aluares A s s i s t e n t e da Prouincia de P o r t u -
gal e m R o m a escreueo a o P . B a l t h a z a r Barreira aos 24 de J u l h o de
1604, e m que lhe p r e g u n t a alguãs cousas d e Guiné.

174-

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