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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 66 - Distribuição gratuita - www.suplementopernambuco.com.

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eLA ESTÁ SÓ
BRINCANDO?
HALLINA BELTRÃO

A polêmica do politicamente correto


invade o terreno da literatura

Entrevista com contardo calligaris • mauro mota • santiago nazarian


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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

GALERIA

BR E NO CES A R
“Como fotógrafo e videoartista, desenvolvo meus trabalhos com imagens em experimentações
plásticas. Estas fotografias fazem parte de uma série de abstrações chamada Pequenos infinitos, na
qual tento materializar minhas divagações imaginativas. Num processo intuitivo e artesanal, vou
construindo esses universos, usando materiais simples, até conseguir dissolver em cores e formas
as representações comuns da realidade.”
www.flickr.com/brenocesar
vimeo.com/brenocesar

C A RTA DO E DI TOR Superintendente de edição


Adriana Dória Matos

Vamos começar pelo fim: a contracapa deste ríssimo Monteiro Lobato. Fellipe colheu opiniões Superintendente de criação
mês presta homenagem ao centenário de nas- contraditórias, como as dos críticos Benjamin Luiz Arrais
cimento de Mauro Mota, um dos sinônimos Moser e Luiz Costa Lima e nos colocou diante Governo do estado EDIÇÃO
para a expressão “literatura pernambucana”. de uma polêmica: o que vale mais a obra de Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
de pernambuco
Relembramos uma crônica do escritor, publi- um autor ou sua postura como indivíduo?. “Ler
Governador Redação
cada no Diario de Pernambuco, no final dos anos Monteiro Lobato como um escritor inocente
Eduardo Campos Mariza Pontes e Marco Polo
1960. Apesar de ser conhecido, sobretudo, por para criancinhas ignora que ele era uma pessoa
sua poesia, Mauro teve uma militância notó- fortemente politizada e os livros dele também”, arte, fotografia E REVISÃO
ria na imprensa, onde se notabilizou por suas polemiza Moser, famoso no Brasil por sua bio- Secretário da Casa Civil Gilson Oliveira, Hallina Beltrão, Karina Freitas,
crônicas repletas de um humor sui generis para grafia de Clarice Lispector. Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Militão Marques e Sebastião Corrêa
olhar da vida recifense. Acompanhando o texto, O repórter Talles Colatino traz um olhar
Produção gráfica
uma espécie de confissão de leitor, feita por bastante pessoal para um dos nomes mais sin- Companhia editora Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto
Raimundo Carrero, que nos explica como é se gulares da literatura brasileira, Santiago Naza- de Pernambuco – CEPE Bandeira e Sóstenes Fernandes
sentir um “personagem de Mauro Mota”. rian, que discorreu com exclusividade para o Presidente
marketing E PUBlicidade
O centenário de Mauro, para além de uma Pernambuco sobre a aceitação do seu trabalho: Leda Alves Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
efeméride, ajudou a consertar uma injustiça: “Na verdade eu faço o que eu gosto, o que eu Diretor de Produção e Edição
o autor estava, há um bom tempo, longe das acredito, o que tenho prazer em escrever. Claro Ricardo Melo Comercial e circulação
livrarias e sem qualquer sinal de retorno. Essa que o feedback ou a falta dele, às vezes causa Gilberto Silva
Diretor Administrativo e Financeiro
injustiça será revertida com a publicação de frustrações, mas também não posso me quei-
Bráulio Meneses
seletas de poesia e crônicas, que a Companhia xar muito; meu trabalho tem seu espaço e seu
Editora de Pernambuco (Cepe) realiza este ano. público. Eu merecia um espaço maior, ser visto
Homenagens apresentadas, seguimos agora com mais seriedade? Talvez. Mas é um preço
CoNSELHO EDITORIAL
para a matéria de capa, que traz uma reportagem que eu pago também por estar escrevendo sobre Everardo Norões (presidente) Pernambuco é uma publicação da
especial de Fellipe Fernandes sobre a polêmica jacarés assassinos”. Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
do politicamente correto que chegou para ficar Lourival Holanda CEP: 50100-140
no terreno literário, atingindo cânones de vida Esperamos que gostem da edição. Boa leitura Nelly Medeiros de Carvalho Contatos com a Redação
conturbada, como o francês Céline e o brasilei- e até o próximo mês. Pedro Américo de Farias 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
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BASTIDORES
HALLINA BELTRÃO

festas. Mas eu sabia o tempo

Um manual de
inteiro não ser Rulfo nem
Salinger, a quem a minha
regra lá em cima não se
aplicasse, talvez.

como encontrar
Estava, contudo, es-
gotado e havia treinado
em mim muita auto-
crítica nesses anos
todos, sem praticar

a sua salvação
benevolências para
comigo mesmo.
Uma autocrítica
aqui e acolá tal-
vez injusta, como

Depois de “afundar” um aquela onde se


afoga um roman-

romance inteiro, autor conta cista da minha


geração, e amigo,

como reencontrou o rumo


Douglas Tabo-
sa (mas no caso
dele o assunto é

criador ao começar a escrita mais sério, por-


que eu publiquei

do seu novo livro de contos, O nesse intervalo os


contos de Matriuska

destino das metáforas


(Iluminuras, 2009),
e Douglas vem pre-
ferindo mais silêncio
ainda). Douglas e sua
Honolulu.
Foi num desses inter-
valos de consciência que a
carne d’O destino das metáforas
virou uma alucinação to-
mando vida aos poucos, num
café em São Paulo. Mas poderia
ter sido no Japão ou no México.
Um fantasma trouxe do roman-
ce seres sem contornos, porque é
dessa fauna, dessa falta de limites,
das linhas pontilhadas que vivem os
fantasmas. Ele deu aos personagens a
ossatura de que precisavam para largarem a
vida vegetativa dos tipos. Além disso, algo era
preciso entender: eu era vítima, ainda, e acho que
serei sempre, da minha tara pela precisão, mas onde
tudo se aproxime mesmo da poesia e da tragédia (por
Sidney Rocha favor, não confundam com violência, e essa tipologia
contemporânea comum na literatice deste tempo. Eu
CARTUNS Entre no Googlemaps. Coloque como ponto de partida me refiro mesmo aos espectros de Aristóteles, Ésquilo,
SIMONE MENDES o Japão e, de chegada, o México. Você verá se formarem Shakespeare, Nietzsche). Talvez tenha sido essa figura
http://simonemendesilustra.blogspot.com/ segmentos de reta azuis, bem comportadas, e assim se de Dionísio e do destino, que deu ao editor Samuel
chega daquele ponto ao outro. Será definitiva a visão Leon o mote para escolher o título do livro.
do oceano a partir da ilha de Honolulu, o sentimento Na própria construção do livro havia um conflito a
superior não do viajante, mas também um pouco o vencer, ele excedia o conflito dos personagens e já era
do náufrago. a invenção em si, ou a máquina da narrativa, como
A sensação ocorre igual quando se escreve. E, aquela do protagonista do conto-título do livro procura.
quando se escrevem contos, mais ainda, mas com o Mas aos contos acrescentei ainda um pouco do dia
zoom mais fechado, muitas vezes mais nitidez, e um a dia. E, depois de escritos, vi a realidade se apropriar
desespero amplificado, como uma queda, sempre. deles e passar a repeti-los em todos os lugares, jornais,
Já com o romance, não. Muito embora o resultado confessionários, na vida de gentes desistindo e insis-
seja sempre o mesmo, a terra devastada, o oceano tindo em viver, sob muitas temperaturas.
devastado, a cara na areia. Mas é diferente. São cerca de sessenta almas viventes em dezessete
Quando escrevi estes contos d’O destino das metáfo- contos. São almas, da culatra à boca do cano, que
ras, sabia disto e compreendia ser um outro, distinto desistiram do meu romance e migraram para O destino
daquele que escrevia, ao mesmo tempo, o romance das metáforas, uma a uma. Assim como Virginia Woolf
Geronimo, no qual trabalhava há três anos. entrou no mar, as pedras nos bolsos, para salvar o
O livro de contos partia do que nunca se esgota marido de si mesma. Virginia com seu bilhete vulgar
em um escritor de verdade: a sua certeza de morrer de suicida e toda uma obra por concluir.
inconcluso. E, para resolver isso o que um escritor faz Talvez você queira ler o livro para descobrir como
sempre mais é não concluir, se eternizar em labirintos. o romancista nada gentil salvou o contista afogado e
No meu caso, o eu-romancista terminou por dizer salvou a si mesmo. E deu a si e ao outro um oceano
com dureza ao contista em mim que largasse ali os particular para vencer. Cada um ao seu modo.
contos. Escrevê-los era fugir mais uma vez do roman- Volte por favor agora para a tela do Googlemaps:
ce, da coragem de enfrentar o mar alto e a tempestade, Japão — México. Avance com o mouse na seta de ro-
ele disse. Não que não hajam também tsunamis nos lagem para baixo, e leia o que diz o passo 40.
contos, narrador é narrador em crawl, costas, peito,
borboleta, e afogamento, este é mais o meu caso. Sidney Rocha é escritor.
Sob a desculpa de escrever, e escrevendo, eu estava
não-escrevendo. Foi um monólogo duro e difícil de
atravessar daquela vez, a minha voz e a cidade. “Você O LIVRO
está afundando, rapaz, afundando”. O destino das metáforas
Acontece que eu já afundava há décadas. Desde Editora Iluminuras
o último romance haviam se passado dez, quinze Páginas 114
anos, e com isso todas as marés e todos os barcos sem Preço Ainda não definido
rota naufragaram aqui em mim. Sem escrever uma
linha, eu estava escrevendo a minha obra; às vezes,
desescrevendo sem sequer haver escrito. Longe das
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PERFIL

Ele bem sabe


valorizar os
leitores lindos
Compreenda o mundo
particular por trás da obra
de Santiago Nazarian
Talles Colatino

Entre paredes ensanguentadas de um prédio aban- brasileiro. Agora já é muito mais comum, já está
donado, povoado apenas por jovens (ou seriam zum- mais assimilado. E nunca me incomodou usar isso,
bis?) que respiram apenas o ar rarefeito da dura tarefa é algo real, faz parte de mim e da minha história e
de existir enquanto adolescentes, o herói, frustrado, se serve para chamar atenção para os meus livros,
está imerso na tentativa de desafiar as necessidades beleza. Sei que grande parte do meu público jovem
da sua condição de líder de si mesmo. Ouve passos ou adolescente veio atraído por isso, pela minha
pesados (de um animal, talvez?) através dos enca- figura, minhas histórias de vida”, avalia o autor.
namentos do esgoto, onde ofega tentando não fazer O projeto literário de Santiago está hoje sozi-
barulho. Tenta sumir, enquanto a solidão e o terror se nho e, de alguma forma, deslocado no cenário da
fundem, tornando pálidos os traços de humanidade produção contemporânea brasileira. O sanguino-
que poderiam existir numa cena como essa. lento universo brutal que criou para tecer o que
É difícil falar sobre o universo literário de San- ele mesmo chama de “existencialismo bizarro”,
tiago Nazarian sem cair na tentação de atravessar construído sobre uma estética alucinada, muito
suas alegorias e personagens – jacarés assassinos, próxima do cinema de terror e do videogame de
adolescentes angustiados, ordinários paranoicos –, ação, representa seu diferencial, mas também a
todos tão simbólicos quanto o seu próprio dono. O limitação do seu crescimento no mercado nacional.
herói da pouco elaborada cena acima não pertence a “Na verdade eu faço o que eu gosto, o que eu
Santiago, mas todo o seu entorno é bastante familiar acredito, o que tenho prazer em escrever. Claro que
à obra do escritor paulista, dono de seis livros pu- o feedback ou a falta dele, às vezes causa frustrações,
blicados e que lida, para o bem e para o mal, com mas também não posso me queixar muito; meu
o fato de ser uma espécie de alegoria de si mesmo. trabalho tem seu espaço e seu público. Eu merecia
A figura jovem, atualmente com 34 anos, e bo- um espaço maior, ser visto com mais seriedade?
nita de Santiago Nazarian carrega consigo histórias Talvez. Mas é um preço que eu pago também por es-
de vida inusitadas, o que leva o escritor a atender tar escrevendo sobre jacarés assassinos”, pondera.
também por títulos como ex-barman de pub punk em “É bom sentir que estou fazendo algo que ninguém
Londres, ex-compositor de jingles, ex-redator de está fazendo. Não quero ser mais um. Não quero
horóscopo e ex-roteirista de conteúdo erótico para nem ser um escritorzão, desses com perfil de Cia
disque-sexo. Logo quando começou a publicar, das Letras, um escritor eficiente, premiado. Se for
no início dos anos 2000, tudo isso convergia para para conquistar alguma coisa, quero que seja do
a existência de um “personagem Santiago Naza- meu jeito. É como a letra de My Way... mas cantada
rian”, um fetiche que se transformou num canal pelo Sid Vicious”.
de atenção a mais para sua literatura. Nesse caminho menos Sinatra e mais Vicious,
“Eu acho que isso era mais no começo mesmo o escritor acabou por se encontrar numa espécie
quando essa ‘nova geração de escritores’ ainda de solidão literária. Depois de um ano recluso em
impressionava. Os jornalistas que me entrevis- Florianópolis, local que define como o seu favo-
tavam eram mais velhos do que eu, essa coisa de rito no mundo, vivendo como um típico garoto
jovem tatuado fugia muito ao perfil de escritor de praia (“Pude viver uma outra vida lá, o que
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HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

é muito importante pra mim, mas era uma vida Parte dos personagens de Santiago é de ado- lá as relações obsessivas, a juventude desencan-
muito solitária, e de vez em quando eu preciso do lescentes que se deparam com o caos que pode tada, os thrillers de terror, a violência sanguinária.
outro...”), Santiago Nazarian retornou a São Paulo, marcar as transformações na passagem para a Entre o tom de fábula, fantástico ou meramente
cidade onde nasceu e onde se concentra a principal vida adulta. O tédio, a melancolia, a apatia pro- visceral, os contos do recente Pornofantasma vie-
efervescência da cena mais recente da literatura vocada por essas mudanças acabam criando uma ram para dar consistência ao universo temático
nacional. A cidade que melhor funciona no pro- realidade caótica, como no caso do seu último já consolidado de Santiago, mas que agora pode
cesso de divulgação e agitação literária, através romance, O prédio, o tédio e o menino cego. “Acho que respirar – e respira muito bem – através da prosa
de grupinhos que se formam por lá, é também a a figura do adolescente vem um pouco por aí, por de fôlego curto. “A busca era fazer um livro de
que ressalta o isolamento, proposital e ocasional, essa formação da masculinidade, a masculinidade histórias que eu pudesse sentar e contar para
de Santiago. ainda indefinida – não é uma figura exatamente você, que fizessem sentido e tivessem graça em
“Minha escolha pela literatura é principalmente real, ou realista – é um conflito interessante. E eu si, mesmo fora do papel”, resume.
por ser uma arte individual, independente. Gosto de pessoalmente tenho um gosto muito particular, Santiago não tem um leitor ideal e ainda se
trabalhar sozinho; então para mim não faz o menor não me atraio pela masculinidade, me fasci- surpreende com a recepção de sua obra. “Meus
sentido querer me encaixar num grupo. Eu acho na muito mais o lado delicado e feminino num leitores são muito variados. Eu tenho sim esse
que muitas dessas panelinhas acontecem natural- homem. Meus personagens ideais são sempre povo jovem, de 20 e poucos anos, que é o povo
mente, pessoas que se conhecem, se gostam, têm andróginos”, analisa. que acaba aparecendo mais para mim, porque
afinidades e se ajudam. Eu não pertenço a esses Por mais (ou menos) que a androginia possa estar me procura na Internet, ou eu encontro na noite.
círculos porque não encontro tantas afinidades relacionada diretamente à homossexualidade, e o Mas, por exemplo, dia desses participei de um
com escritores”, defende. Além do pernambucano fato de ambas surgirem apenas de maneira pontual debate, com a (escritora) Ana Paula Maia, em Belo
Marcelino Freire, Santiago não tem grandes amigos ao longo da sua obra, a figura de Santiago está li- Horizonte, e um senhor de 57 anos se levantou
no meio. “E é um pouco chato deixar de receber gada ao universo gay, como uma espécie de ícone. na plateia, disse que adorava ler e que adorava
convites por isso – eu gostaria de pensar que minha “Talvez se eu ficasse mais restrito a esse seguimento meus livros, era meu leitor. Isso é muito bacana,
produção em si já seria um bom cartão de visita”. isso me incomodasse; do jeito que é, tenho um e o ideal para mim é mesmo ter essa mistura”
Mesmo para além da literatura, Santiago nunca público gay forte, mas não se restringe a isso, sinto destaca, orgulhoso.
foi de muitos amigos. “Na infância eu era muito me- até que meu público feminino é maior. Também “Claro que o grande público ainda não me acei-
droso, tímido, não tinha amigos. Já na adolescência, a homossexualidade nunca é o tema principal da tou, nem vai me aceitar. O grande público não
até 16, 17 anos, eu era muito molecão, treinava minha obra, porque mesmo as relações amorosas aceita literatura em geral, muito menos literatura
caratê fanaticamente, todos meus amigos eram da não são o tema central, eu não trato do amor, então brasileira contemporânea, mas nunca pretendi ser
academia, fazia certo sucesso com as meninas... a homoafetividade não entra aí”. unanimidade”, avisa. Na sua página do Facebook,
Depois dos dezessete que eu mergulhei mais na De fato, não há espaço para amor na obra de porém, Santiago é uma plena unanimidade, re-
vida, caí na coisa gótica, comecei com os piercings, as Santiago. E se existe, ele está transfigurado em fletida nas inúmeras cantadas que recebe através
tatuagens. Descobri a homossexualidade também neurose ou obsessão, elementos que habitam o da rede social. “E quem não gosta de receber can-
por aí, aos dezoito”, lembra. E talvez por essa virada intervalo entre sexo e morte. Estes dois elementos, tadas? Pena que o público leitor em geral não seja
tão drástica, de um sentimento de transformação aliás, dosam as histórias do recente Pornofantasma. lá dos mais atraentes fisicamente... Mas sempre
tão grande entre a infância e a adolescência, essa Trata-se do seu primeiro livro de contos, no qual as tem um ou outro; sei valorizar os leitores lindos”.
última acabou se tornando um tema constante do temáticas trabalhadas nos livros anteriores surgem
seu trabalho. na forma de diferentes exercícios narrativos. Estão Talles Colatino é jornalista.
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entrevista
Contardo Calligaris

Entenda como o
narrador “ajudou” o
ofício do terapeuta
Cosmopolita e estrangeiro, Contardo Calligaris revive o
alterego Carlo Antonini, no thriller A mulher de vermelho
e branco, segundo romance pela Companhia das Letras
Janete Longo/ divulgação

Você já disse que fez um “grande desvio”


para chegar à literatura. Era a sua
primeira vocação?
Não sei se o desvio foi “grande”, mas
certamente foi longo. Escrever e contar
histórias foi minha esperança dos nove aos
20 anos — talvez um pouco além disso. Mas
(desculpe a trivialidade) a vida da gente é
feita de encontros, ocasiões, acidentes e
por aí vai. Começou com o fato de que cedi
à pressão de meus pais para que eu fosse a
uma faculdade; logo, no fim da faculdade,
tive que me perguntar se iria para a carreira
acadêmica ou para a psicanálise e a clínica.
Naquela altura, escrever ficção já não
cabia na alternativa. Mesmo assim, algo do
projeto de escrever histórias permaneceu
vivo em mim; e houve amigos cruciais
que sempre repetiam que eu devia voltar
à ficção (Italo Calvino, por exemplo, e o
próprio Roland Barthes).

Seu trabalho como psicanalista e colunista


é constante, algo que está sempre se
construindo, confundindo-se com sua vida
prática. Já seus romances são pontuais.
Como é que você separa esses trabalhos?
Bom, talvez o narrador ajude o terapeuta;
afinal, uma parte do trabalho psicanalítico
e terapêutico consiste em reconstituir
a história de uma vida, preenchendo
Ambos os livros são protagonizados pelo
Entrevista a Luís Henrique Pellanda psicanalista italiano Carlo Antonini, claro
lacunas, imaginando antecedentes,
supondo o que os outros fizeram e por quê.
alterego de seu criador, a quem Contardo,
Além disso, viver é um trabalho narrativo;
Uma dedicatória de Stendhal encerra A Cartuxa num lance feliz, compara ao protagonista
não paramos de contar nossa história para
de Parma: “To the happy few”. Sim, o romancista da Cartuxa: “Você se lembra de Fabrizio Del
nós mesmos, a cada instante, e uma morte
parecia prever que aquele seria um de seus Dongo, o herói stendhaliano, no meio da tolerável ou mesmo pacífica é aquela que
livros mais esquecidos, e que poucos felizardos batalha de Waterloo, engajado, em tese, do acontece quando a gente viveu uma vida
o leriam, mesmo no futuro. Ou quem sabe a lado de Napoleão, mas sem entender direito que merece ser contada (isso não significa
dedicatória expressasse algum desejo ou medo de que lado da batalha ele está?”. Pois bem: necessariamente ter vivido uma vida
secreto de Stendhal? Nunca saberemos. Seja na entrevista abaixo, Contardo nos conta extravagante, mas ter vivido uma vida
como for, um dos tais leitores sortudos foi que Antonini e, no fundo, todos nós somos suficientemente intensa para que possa,
Contardo Calligaris, italiano radicado no Brasil aquele homem. E também discorre sobre a eventualmente, ser uma boa história).
há 25 anos, escritor, psicanalista e colunista da importância da arte da narrativa em nossa Então, mesmo quando não escrevo, nunca
Folha de S. Paulo, autor de dois romances editados vida real, traça analogias entre as atividades paro de narrar. A coluna semanal foi e
pela Companhia das Letras: O conto do amor, de literária, policial e psicanalítica e avalia as continua sendo, sobretudo, um esforço
2008, e o recente A mulher de vermelho e branco, particularidades que o fato de ser estrangeiro constante para viver com a intensidade
thriller contemporâneo que mistura elementos e cosmopolita conferiu à sua literatura. Sua necessária para que ao menos uma
psicológicos e policialescos. escrita é a obra de um homem em trânsito. experiência, a cada semana, valha a pena
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Muitos de meus A literatura é o


pacientes me primeiro repertório
leem e, às vezes, moderno de
entendem a condutas possíveis.
coluna como se A literatura
fosse destinada substitui qualquer
apenas a eles tratado de ética
ser contada. Também a coluna Sua literatura repercute há a vontade de examinar das condutas possíveis (o que mais me influenciou
me ensinou a  escrever para em seu consultório? ou reexaminar o enigma da segundo é o cinema, em foram as fronteiras.
enriquecer, de certa forma, a Escrevo uma coluna semanal na relação entre os fatos da vida ordem cronológica). Portanto,
experiência dos leitores do jornal Folha de S. Paulo desde 1999. Claro privada e os movimentos da a literatura substitui qualquer Na literatura, o policialesco
(e não para parecer inteligente que muitos de meus pacientes História. Você se lembra de tratado de ética, para nós, sempre dialogou bem
aos olhos de alguns colegas, me leem e, às vezes, comentam Fabrizio Del Dongo, o herói modernos. Fora isso, acho com a psicanálise. Como
que é o drama de toda escrita ou entendem a coluna como se stendhaliano, no meio da que cada um de nós escolhe acontece em seu livro,
acadêmica ou profissional). fosse especialmente destinada batalha de Waterloo, engajado, um estilo narrativo como policiais e psicanalistas
Enfim, concretamente, o a eles. Com os romances pode em tese, do lado de Napoleão, estilo de sua vida. Há pessoas podem ser aliados. Por que
trabalho de reorganizar fios acontecer a mesma coisa. Mas mas sem entender direito que vivem sua vida como esta fórmula funciona?
soltos (sei lá, fragmentos de sempre achei que isso contribui de que lado da batalha ele um policial investigativo, Como diz Jeff, em A mulher
devaneios, experiências que para o trabalho terapêutico está? Somos todos um pouco outras como um monólogo de vermelho e branco, policiais
não vivi — meus materiais mais que outra coisa. assim. No meu primeiro introspectivo, outras como e psicanalistas têm isto em
narrativos básicos) coexiste romance, O conto do amor, uma aventura. E é uma escolha comum: eles não acreditam
muito bem com o trabalho Carlo Antonini é claramente Carlo Antonini, por ter que não é apenas formal: acho em coincidências.
terapêutico ou com a escrita o seu alterego... minha idade, se depara com que sempre tentei viver minha
semanal do colunista. Não é bem assim: prefiro o legado da herança fascista vida como uma aventura. O O que você pretende ao
pensar que eu sou o alterego e antifascista e com o da luta que não significa apenas viver escrever ficção? Seu romance
Enquanto escreve ficção, de Carlo Antonini. Aliás, armada europeia dos anos aventuras mais ou menos mais recente é um thriller, e
você precisa isolar-se de seus uma leitora me escreveu um 70 e 80. No segundo, A mulher extraordinárias, mas também flerta com o entretenimento.
outros compromissos? e-mail dizendo: “Contardo, de vermelho e branco, o mesmo (talvez mais ainda) descobrir Mas você não perde a chance
Claro, quando o plot, uma você é muito parecido com Antonini tenta entender sua a aventura no meu cotidiano. de inserir na trama uma série
espécie de escaleta, está pronto, Carlo”. E recebeu a resposta: própria militância contra de reflexões sobre o mundo
detalhado e no papel, ou seja, “Este é o e-mail de Carlo a guerra do Vietnã nos O fato de ser “estrangeiro” é contemporâneo, como as crises
quando chega a hora de escrever Antonini; quem é Contardo?”. anos 60 e 70 e o terrorismo fundamental em sua literatura. interculturais, o terrorismo
mesmo, aí, sim, tiro férias, depois do 11 de setembro. Na No seu caso, porém, há um internacional e o interesse da
geralmente numa cidade onde Talvez ele seja um dos vivência desses momentos elemento de cosmopolitismo sociedade pelos problemas
me sinto em casa, e só escrevo personagens literários que mais e movimentos históricos, bastante forte. Qual foi o decorrentes da pedofilia. A
(redijo), durante 15 dias ou um se confundem com seu criador. muito frequentemente, o que papel das cidades ou dos literatura tem a função de
mês. Para cada romance, isso Não sei. Esse efeito vale para nos orienta (ou desorienta) países em que você viveu debater a sociedade atual?
aconteceu mais de uma vez, os leitores que me conhecem. são os percalços de nossa na sua formação como Pretendo contar algumas boas
obviamente. Até porque, quase Para um leitor português ou vida privada. Antonini, escritor? Há algum lugar histórias, como as que gosto
sempre, reescrevo várias vezes. alemão, por exemplo, esse fato por exemplo, deve seu que o tenha influenciado de ler. E as que gosto de ler
é irrelevante. Assim como para entendimento da guerra do mais que os outros? são as que me pegam, me
É comum que se pergunte aos o leitor brasileiro médio dos Vietnã a uma história de amor, Você tem razão. Acho que seduzem, me divertem e, ao
escritores se estes pensam nos últimos romances de Philip o entendimento da resistência o que mais me influenciou mesmo tempo, enriquecem
leitores enquanto escrevem. Roth talvez seja irrelevante antifascista à história do pai não foi um país nem uma minha experiência do mundo.
No seu caso, outra pergunta me saber que o autor tem o mesmo dele etc. Precisava de um cidade, foi o fato de estar Ou seja, aquelas que, uma vez
ocorre: enquanto escreve, você câncer que o protagonista. protagonista parecido comigo. sempre em trânsito. Mesmo fechado o livro e esquecida a
pensa em seus pacientes, ou em Enfim, é prático: posso imaginar permanecendo num lugar, história, fazem com que minha
seus colegas psicanalistas? facilmente o que Carlo Antonini Você tem definições quase sempre de mala vida seja mais interessante
Não. Quando escrevo, penso, faria ou diria em tal ou tal outra interessantes sobre a pronta. É uma condição no e mais complexa graças
na verdade, na história que eu circunstância, pois ele é fruto narrativa: “a arte de nos limite entre a sensação do àquilo que li e que esqueci, ou
mesmo gostaria de ler. E, por de uma história muito parecida narrar é nossa arte de viver” desterrado e outra, mais quase. E que, aliás, quem sabe,
sorte, isso parece interessar os com a minha, ou seja, é um ou “nossa capacidade de contemporânea, de que um dia eu leia novamente. 
leitores de minhas colunas, personagem que, de certa viver”. Seus autores favoritos não há como ser desterrado
alguns colegas e, sobretudo, forma, não preciso construir. reforçam essa ideia? num mundo em que Luís Henrique Pellanda é
muitos outros, que não são nem Mas não é só isso: atrás das Em dois sentidos. A literatura é somos todos sem pátria. jornalista e autor do livro
colegas nem leitores da coluna. histórias de Carlo Antonini, o primeiro repertório moderno Então, digamos que o lugar O macaco ornamental.
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projeto editorial

HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Malditos, mas sem perder a ternura


conceitos e a obra. O problema é que o termo acaba malditos em relação a um contexto específico, mas
Diogo Guedes funcionando como uma prisão tautológica, uma de- que conseguem carregar essa fama até os dias atuais.
finição e um limite que o escritor vai passar a carreira Isso parece evidente mesmo nos lançamentos mais
Comparada com o passado, a época atual lida melhor tentando superar. Uns parecem conformados e até recentes, como O invasor e Não há nada lá (2001), de Joca
com o choque e as quebras de convenção. Tanto que satisfeitos com a alcunha, mas, mesmo para esses, Reiners Terron, que deve sair neste último semestre
a ideia de algo maldito, renegado, uma constante na ela normalmente não passa mais do que um recurso do ano. Eles se reportam sempre ao seu momento
história da literatura, hoje parece bem mais rara – preguiçoso para estabelecer a imagem contracultural histórico e à reação da crítica e do público daquele
mesmo as obras que rompem com a moral, com as de sua produção. instante, ao que se convencionava como status quo
convenções estéticas e com os paradigmas do tempo Até agora, o selo da editora paulista possui três títulos literário da época.
atual são facilmente aceitas, concorrem a prêmios dis- lançados, além da confirmação de lançamentos futu- Segundo Joca Reiners, a ideia da coleção da Com-
putadíssimos e recebem críticas elogiosas até mesmo ros. A coleção começou com Tanto faz e Abacaxi, obras panhia das Letras veio de um jantar com o fundador
de acadêmicos respeitados. Apesar disso, a Companhia de Reinaldo Moraes da década de 1980 reunidas em da editora, Luiz Schwarcz, e Marçal Aquino. “Eu vi-
das Letras decidiu agora lançar uma coleção, a Má um único volume, e O invasor, de Marçal Aquino, que nha fazendo a piada de que criaria uma nova editora
Companhia, apenas com livros polêmicos, politica- completou dez anos de sua primeira publicação. Os chamada de Má Companhia das Letras desde uma
mente incorretos e “malditos”. Algo estranho, quando dois livros, como propõe a coleção, saíram em formato conversa que tive com o escritor Paulo Sandrini no
o controverso parece cada vez mais aceito. pocket, com um belo projeto gráfico do Estúdio Retina 78. Encontros de Interrogação, evento no Itaú Cultural
Não que o “maldito” não exista mais. Na verdade, Em julho, mais um título: Sonetos Luxuriosos, de Pietro em 2004”, lembra Joca Reiners. A brincadeira incluía
escolher o que merece o adjetivo parece ser algo como Aretino, com tradução e apresentação do falecido imaginar versões “maléficas” dos elegantes logos da
tachar algum autor de “poeta marginal”. Nos dois poeta José Paulo Paes. A obra, escrita originalmente casa, com aviões explodindo e carros colidindo. “No
casos, é claro que existem traços que levam leitores, no século 19, mostra bem o movimento da coleção de jantar, depois de uns goles, arrisquei contar a piada
crítica ou mercado a fazerem a relação entre os vagos referir-se a livros que se marcam como polêmicos e ao Luiz. Para minha surpresa, ele a levou a sério”.
DIVULGAÇÃO

LANÇAMENTO
Marco Ensaio sobre a literatura transgressora do escritor
Polo argentino Copi é aposta de editora carioca
A Editora Confraria do tem por objetivo principal
Vento acaba de lançar Copi: divulgar o que está sendo
transgressão e escrita transformista, produzido na atualidade. Tendo
da pernambucana Renata como um de seus editores o
Pimentel (foto), sobre o poeta carioca Victor Paes, a
multiartista argentino exilado empresa promove intercâmbio
na França, que se notabilizou com escritores de todo o
pela rebeldia contra os “bons mundo e dá apoio a saraus,

MERCADO costumes”, na vida e nas


artes. A editora surgiu no Rio
festivais e simpósios ligados
à literatura, abrangendo,

EDITORIAL de Janeiro, a partir de um


grupo de escritores, que editou
em suas publicações um
amplo leque de assuntos, da
até 2009 a Revista Confraria, e filosofia à poesia e a prosa.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
Burroughs, Rimbaud, Raymond Roussel, Aleister I Os originais de livros submetidos à Cepe,
Crowley e Torquato Neto são alguns dos interlo-
exceto aqueles que a Diretoria considera
cutores da obra, marcada por uma prosa ousada e
experimental . “O livro trata de preocupações muito projetos da própria Editora, são analisados
em pauta na virada do século, como a do fim do pelo Conselho Editorial, que delibera a partir
mundo, a da extinção do livro etc. Foi escrito sob dos seguintes critérios:
essas condições”, descreve. Segundo ele, a obra
ainda faz a defesa de uma literatura imaginativa, em
1. Contribuição relevante à cultura.
detrimentos dos valores jornalísticos e naturalistas
– para a nova versão, recebeu uma apresentação
bastante elogiosa assinada pelo escritor catalão 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
Enrique Vila-Matas. que privilegia:
Como é de se imaginar, republicar o texto fina-
lizado há dez anos trouxe alguns incômodos. “É
a) A edição de obras inéditas, escritas ou
muito difícil. Sinto grande dificuldade em reler coisas
antigas. É como se ver numa foto na qual você não traduzidas em português, com
se reconhece mais”, revela Joca Reiners. O livro, relevância cultural nos vários campos
segundo ele, traz as marcas de uma época em que do conhecimento, suscetíveis de serem
ele levava sua “tendência à pompa” a sério, o que apreciadas pelo leitor e que preencham
levou ao corte de alguns excessos e à revisão de
os seguintes requisitos: originalidade,
frases, buscando uma maior clareza.
Sobre o selo que ajudou involuntariamente a criar, correção, coerência e criatividade;
o escritor diz não conseguir enxergar o que há de
exatamente em comum entre sua obra e os demais b) A reedição de obras de qualquer gênero
títulos da coleção. Para ele, na verdade, há pouco em da criação artística ou área do
comum em quaisquer dos livros seus. “No Não há nada
conhecimento científico,
lá eu ainda tinha cabelos, e talvez por isso o texto fosse
mais barroco e as ideias mais complicadas. Hoje sou consideradas fundamentais para o
completamente careca e busco ser mais direto”, reflete patrimônio cultural;
bem-humorado.
Incluído no rótulo, Joca Reiners se reporta às 3. O Conselho não acolhe teses ou
origens do adjetivo para aceitar a alcunha. “Exis-
dissertações sem as modificações
te aquela literatura designada ‘maldita’ por Paul
Verlaine, que organizou uma antologia de poetas necessárias à edição e que contemple a
do século 19 com esse título. Na época, esses po- ampliação do universo de leitores, visando a
etas (Rimbaud e Corbiére entre eles) não tinham democratização do conhecimento.
recebido a atenção que mereciam”, conta. “Nos
dias de hoje, creio que quase toda a ficção literária
II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá
é maldita, pois merece pouca atenção do público
leitor, cada vez mais adepto da não-ficção. A única parecer sobre o projeto analisado, que será
MALDIÇÕES LITERÁRIAS maldição a ser evitada é aquela que o escritor cria comunicado ao proponente, cabendo à
Em entrevista ao Pernambuco de fevereiro, Reinaldo para si próprio”. diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.
Moraes comentou parte do processo de releitura e Assim, para ele, além da temática, a restrita pri-
re-edição de suas duas obras. Ambas contam com meira edição de Não há nada lá, com apenas 500 exem-
III Os textos devem ser entregues em quatro
o mesmo personagem, o jornalista Ricardo de Melo, plares, que saiu pela Ciência do Acidente, é o seu
narrando suas vivências com mulheres, porres e esca- próprio atestado de marginalidade e maldição. Já vias, em papel A4, conforme a nova
tologias – como o próprio autor descreve, “um Ulisses Reinaldo Moraes, um dos autores no Brasil que mais ortografia, em fonte Times New Roman,
avacalhado que vive atrás de umas nereidas”. “Só recebe a adjetivação de “maldito”, conta que se vê, tamanho 12, com espaço de uma linha e meia,
dei umas garibadas pontuais no texto, sem mexer por meio de resenhas de jornalistas, acadêmicos e sem rasuras e contendo, quando for o caso,
na estrutura das frases nem nos coloquialismos ‘de blogueiros, “perigosamente próximo ao mainstream
índices e bibliografias apresentados conforme
épóca’. Mexi onde achei legal mexer pro texto fluir literário, não mais estacionado na margem”. Mas se
e ‘dizer’ melhor. Como dizia o Murilo Mendes, outro diz ciente do perigo: “Sei que isso é momentâneo e as normas técnicas em vigor.
grande mexedor de obras relançadas, posso mexer pode mudar a qualquer momento”.
à vontade, pois não sou meu sobrevivente, sou meu Como amigo de André Conti, responsável pelo IV Serão rejeitados originais que atentem contra
contemporâneo”, revelou o escritor na ocasião. selo, Joca Reiners promete, depois de ter um papel a Declaração dos Direitos Humanos e
Já o primeiro lançamento de O invasor, de Marçal importante no surgimento da coleção, continuar
fomentem a violência e as diversas formas de
Aquino, se deu simultaneamente à finalização do participando dela, ao menos como opinante. “Fico
filme do seu parceiro Beto Brant. Com a edição anterior enchendo o saco do André Conti, o editor, com suges- preconceito.
esgotada, o livro volta às prateleiras acompanhado do tões”, confessa. A atitude é completamente compre-
roteiro da película e de fotos da filmagem. A obra é ensível. Afinal, no fundo, os leitores parecem saber V Os originais devem ser encaminhados à
descrita pelo escritor como um “policial puro-sangue”, que a literatura que marca verdadeiramente a vida Presidência da Cepe, para o endereço
tratando, com um ponto de vista pessoal, dos planos pessoal é aquela suja, sem amarras, tanto comprada
indicado a seguir, sob registro de correio ou
de dois engenheiros paulistas para matar seu sócio. como lida de forma escondida e obscura. Talvez só
Não há nada lá, de Joca Reiners, traz em seu pró- através dos malditos é possível ser contaminado pela protocolo, acompanhados de
prio enredo as marcas do adjetivo “maldito”. William maldição da literatura. correspondência do autor, na qual
informará seu currículo resumido e
endereço para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.
VITALIDADE COLEÇÕES

Literatura infantil e A Confraria do Vento adquiriu a Editora Calibán


juvenil ganha destaque e seu catálogo formando com ela uma coleção
Três eventos de grande porte Ao adquirir a Editora Calibán, de Pernambuco, além do já Companhia Editora de Pernambuco
darão visibilidade local à literatura a Confraria do Vento herdou clássico Zé Limeira – O poeta do Presidência (originais para análise)
infantil e juvenil: o I Encontro seu catálogo e com ele criou absurdo, biografia do lendário Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Pernambucano do Livro Infantil e a Coleção Calibán. Entre os cantador escrita pelo paraibano
CEP 50100-140
Juvenil, agora em agosto, durante livros publicados neste selo Orlando Tejo. Outra coleção da
o Festival Literário da Cidade do estão o elogiado romance Deixa editora é a Massapê, na qual Recife - Pernambuco
Recife; a Bienal Internacional do ir meu povo, de Luzilá Gonçalves foi lançado, recentemente, o
Livro, que terá seção dedicada ao Ferreira, a coletânea de crônicas livro Cartas de Paris, anotações
assunto, em setembro; e a Fliporto, publicadas anteriormente na poéticas de viagem da
em novembro, com seus braços internet Blogosfera, de Homero também pernambucana
dedicados ao público infantil e Fonseca e o excelente livro Ina Melo, que já frequentou
juvenil, a Fliporto Criança e a de poemas As filhas de Lilith, de várias antologias, mas estreia
Fliporto Nova Geração. Cida Pedrosa, todos autores sozinha neste volume.
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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

CAPA
HALLINA BELTRÃO
11
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

Reacionário,
racista e escritor
Por quais parâmetros Como lidar com um escritor de ideias abjetas, mas cuja dências com o jornalista Paul Bonny vendidas por R$
obra pode ser considerada genial? Essa questão, com 83 mil num leilão que reuniu, entre originais, objetos

um artista deve ter a inclinações paradoxais, parece fustigar as mentes de


leitores e intelectuais ao redor do mundo, provocando
pessoais e ilustrações, 250 peças relacionadas ao ar-
tista. Ainda este ano as livrarias francesas recebem

sua literatura julgada?


discussões profundas sobre a relação entre arte e so- diversos lançamentos bibliográficos. Dentre eles o
ciedade, respeito e expressão. A última polêmica do mais festejado é a biografia Céline, escrita por Henri
dilema “Por que genial se racista? Por que racista se ge- Godard, professor da Sorbonne e especialista na obra
nial?” foi protagonizada pelo francês Louis-Ferdinand de Céline. Em janeiro, quando foi anunciada a decisão
Fellipe Fernandes Céline. Morto em 1º de julho de 1961, o escritor teve o do ministério da cultura francês, o cineasta Jean-Luc
seu cinquentenário de morte excluído das celebrações Godard publicou um artigo no jornal Le Monde afirman-
oficiais da França, por conta de seu apoio ao nazismo. do que “Céline, pela inovação que ele proporcionou à
“Celebrar não é inocente” - foi o slogan de exclusão prosa francesa, pelo seu gênio cômico e pela expressão
da efeméride das entidades judaicas. que ele soube dar às duas guerras mundiais, tinha de
Durante a ocupação nazista na França, Céline deu fato um lugar nessa lista em 2011”. Godard finaliza
suporte à causa alemã, escrevendo inclusive três pan- refletindo sobre os códigos de valores oriundos das
fletos anti-semitas. Ao fim da Segunda Guerra Mun- criações artísticas e a moral, ressaltando que casos
dial, ele foi acusado de traição pelo Estado francês como o de Céline nos obriga a aprofundar nossas
e refugiou-se na Dinamarca, recebendo anistia da reflexões sobre a relação, por vezes contraditória,
justiça francesa em 1951.  Ao tomar conhecimento da entre esses códigos.
lista de celebrações nacionais para o ano de 2011 na
França, o presidente da associação judaica Fils et Filles PALAVRAS TROCADAS
de Deportés Juifs de France (FFDJF), Serge Klarsfeld, A recente querela francesa deixa claro o quanto re-
com apoio de outras entidades judaicas, exigiu que o flexões sobre a relação entre arte e moral são cada
cinquentenário de morte de Céline não fosse celebrado vez mais frequentes no campo literário. A socieda-
pelo Estado. O ministro da cultura, Frédéric Miterrand, de está aprendendo, na prática, a lidar com o fato
acatou o pedido e, como resultado, nenhuma come- de que nem todos os ídolos são heróis e nem tudo
moração oficial celebrou a efeméride em julho passado. na arte propulsiona um desenvolvimento social.
“O anti-semitismo de Céline o descredita tanto Na literatura norte-americana, Mark Twain foi o
como homem quanto como escritor. Nossa exigência centro da berlinda. Seus mais famosos livros, As
me parece natural tendo em vista os escritos anti- aventuras de Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn,
-semitas de Céline. Seu talento não deve nos fazer foram re-editados num único volume com a troca
esquecer o homem que clamava pela morte de ju- da palavra “nigger” (sinônimo pejorativo de negro)
deus durante a Ocupação. Que a república o celebre por “slave” (escravo). O vocábulo, que aparece 219
é indigno” – declarou Klarsfeld à imprensa francesa, vezes em Hucleberry Finn e 4 vezes em Tom Sawyer, foi
questionando a “inocência” da celebração. completamente banido da nova edição lançada pela
A vida de Céline se confunde com sua obra. Seu NewSouth Book, que elimina também a palavra
romance mais consagrado é um exemplo disso: Viagem “injun” (termo pejorativo para índio).
ao fim da noite é carregado de referências autobiográficas O responsável pela revisão, Alan Gribben acre-
sobre a participação do autor na Primeira Guerra Mun- dita que dessa forma o livro poderá ser acolhido por
dial. Lançando mão de uma prosa áspera e virulenta, um número maior de pessoas. Especialista na obra
o francês foi capaz de influenciar diversos escritores de Twain e professor de inglês na Universidade de
em todo o mundo, ultrapassando as fronteiras de sua Auburn, Gribben já vinha fazendo leituras públicas
própria língua. Ao colocar em perspectiva a personali- nas quais efetuava a troca, recebendo com isso uma
dade e a obra de Céline, o pesquisador e crítico literário resposta positiva do público. Uma pesquisa realizada
Luiz Costa Lima acredita que “se fosse para julgá-lo pela Harris Poll, contudo, revela que apenas 13% dos
em termos éticos, o cara mereceria a pena máxima. americanos entrevistados apoiam a alteração do vo-
Mas ser, como era, um notável escritor significa que, cabulário utilizado por Twain.
apesar de sua postura, apresenta um espectro da re- Em meio a toda essa polêmica, uma questão per-
alidade de que, sem sua obra, no máximo apenas manece sem resposta: será que o autor concordaria
desconfiaríamos”. com a troca? Nascido na Flórida em 1835, Twain,
Uma pesquisa informal realizada pelo jornal Le Fígaro pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, foi
revela que 65% dos seus leitores acham que o autor criado dentro do conservadorismo sulista numa
de Morte a crédito deveria ter os cinquenta anos de seu época em que a expressão “nigger” fazia parte do
falecimento celebrado pelo Estado francês. O crítico e vocabulário habitual. Os livros “censurados” to-
autor da biografia de Clarice Lispector, Clarice, o norte- mam como inspiração a própria infância do autor,
-americano Benjamin Moser, alerta, todavia, para o à beira do Mississipi, refletindo modos e costumes
teor político da decisão: “que se trata de uma lista do da época. As aventuras de Huckleberry Finn foi consi-
ministério da Cultura, ou seja, uma lista política, res- derado por Ernest Hemingway como a base da
pondendo à pergunta de quem é que queremos como literatura americana moderna, mas isso não foi
cara do nosso país”. Ele sugere ainda que a exclusão suficientemente relevante para impedir que o livro
do nome de Céline reflete a questão: “Quais valores acabasse pouco a pouco sumindo dos currículos
quer defender o Estado?” escolares por conta do teor ofensivo da palavra
Mas longe da oficialidade estatal, a efeméride não “nigger”. Mesmo a imprensa americana, ao tratar
vai passar em branco. Colocado por muitos críticos ao da polêmica, procura evitar o termo, preferindo
lado de Marcel Proust no Olimpo dos grandes escritores muitas vezes chamá-lo de “the ‘n’ word” (a palavra
franceses do século 20, Céline teve suas correspon- n) devido à agressividade do vocábulo.
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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

capa

“Essas coisas (sexistas, racistas, homofóbicas,


anti-semitas) sempre tinham-se falado nos Estados
Unidos, como no Brasil ou em outro país qualquer.
Mas, de repente, a sociedade mudou e hoje em dia,
nenhum americano andaria falando este tipo de
coisas, mesmo quando as acha. O que é uma enorme
diferença com a geração dos meus pais. E, para mim,
uma mudança positiva”, observa Benjamin Moser.
Gribben conta ainda que, antes da publicação, já
havia sido procurado por diversos professores que
gostariam de tratar desses livros em suas aulas, mas
que sentiam que não podiam, “pois esse tipo de
vocabulário é realmente inaceitável na sala de aula”.
Segundo ele, a nova edição das obras se apresenta
como uma alternativa para os professores que não
trabalhavam a antiga versão, e para os leitores de
um modo geral que viam na palavra “nigger” uma
barreira para compreensão do valor e importância
da obra de Twain. Entretanto, a jornalista, especia-
lista na Semana de 22 e biógrafa de Monteiro Lobato,

HALLINA BELTRÃO
Márcia Camargos, pondera que “se você elimina os
pontos de atrito, higienizando uma obra, ao retirar
dela a palavra ‘preto’ ou ‘nigger’, por exemplo, você
está traindo o autor, desprezando a inteligência e
infantilizando o público leitor. Pior: estará tirando da
literatura o seu status de obra de arte, transformando
literatura em produto de consumo, embalado de
acordo com as mais recentes normas de conduta
ditadas pelo politicamente correto em vigência”.

Emília e o racismo
A adequação de clássicos da literatura às salas de
aula também esteve no foco das discussões recentes
no Brasil. Em outubro do ano passado o Conselho
Nacional de Educação (CNE) publicou no Diário Oficial
da União um parecer sugerindo que o livro Caçadas de
Pedrinho, de Monteiro Lobato, não fosse distribuído
às escolas públicas, ou, se fosse, que uma nota ex-
plicativa sobre o teor racista da obra fosse incluída.
Escrito em 1933, o romance conta uma das aventuras
da turma do Sítio do Picapau Amarelo. No livro, a
negra Tia Nastácia é comparada a uma “macaca de
carvão”. Em outro momento, sob a ameaça de um
ataque das onças pintadas Emília diz: “ uma guerra
das boas. Não vai escapar ninguém – nem Tia Nas-
tácia, que tem carne preta”. Segundo a autora do
romance Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves, “a
compra e distribuição gratuita nas escolas públicas
de ensino fundamental e médio do livro Caçadas de
Pedrinho, de Monteiro Lobato, fere o Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente, o Estatuto da Igualdade Racial
e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. Uma questão parece implícita nessa discussão: o
Para além da questão legislativa, Moser alerta escritor, ou o artista de maneira geral, deve tomar
ainda que “ler Monteiro Lobato como um escri- certas precauções ao expor suas opiniões numa
tor inocente para criancinhas ignora que ele era obra? “Se o autor estiver escrevendo um livro que
uma pessoa fortemente politizada e os livros dele vai – ou tem o potencial para – ser adotado como
também”. A publicação recente de cartas pessoais material paradidático, há que se ter uma série de
deixa evidente o pensamento racista do criador de cuidados, sim. Principalmente se esse livro é para
Emília, que nas correspondências chega a lamentar o público infanto-juvenil, crianças e adolescentes
a ausência de uma versão da Ku Klux Klan no Brasil em processo de formação identitária”, acredita Ana
e faz uma defesa entusiasmada das ideias eugenistas Maria. Para além do livro didático voltado para for-
do racismo científico. mação, entretanto, os cuidados devem ser outros,
Em junho passado, o CNE decidiu rever o seu pois “o autor precisa de toda a liberdade do mundo
parecer inicial atendendo pedido do ministro da para criar personagens, fatos, dilemas, disputas e
Educação, Fernando Haddad, e passou apenas a etc.” pontua Márcia.
recomendar a contextualização dos autores e dos De acordo com o escritor e jornalista Ruy Castro
livros, em particular daqueles que foram escritos o posicionamento ideológico, político e social de
num período em que ainda não se discutia o pre- um artista não deveria condicionar o acesso à sua
conceito racial. O MEC prevê para este semestre a obra de maneira alguma. Autor da biografia O anjo
distribuição de um livro que oriente os professores pornográfico, sobre Nelson Rodrigues, ele lembra
de escolas públicas na adoção dessa abordagem. que “enquanto foi vivo, Nelson foi perseguido pela
Nascido sete anos antes da abolição da escravatura, direita e pela esquerda e, no fim, só pela esquerda.
Lobato reflete valores sociais de mais de um século Mas, depois de sua redescoberta nos anos 1990,
atrás. Para Márcia, co-autora da biografia Monteiro ele ficou tão acima de qualquer posição política
Lobato: furacão na Botocúndia, a utilização do livro em que deixou de ser julgado por isto” – o que nos faz
escolas públicas é uma forma de trazer um tema pensar sobre o papel que as circunstâncias sociais
indigesto para o centro do palco. “Naquela época exercem nessa discussão. Afinal, como coloca Már-
Lobato não poderia colocar a Emília dizendo coisas cia, “a riqueza de qualquer clássico reside também
como ‘Minha companheira afro-descendente’ na sua possibilidade de suscitar o debate a partir de
para Tia Nastácia” – explica Márcia – “na sala de uma determinada realidade retratada pelo autor”.
aula, o professor deve lidar com estas questões e A controvérsia em torno da obra de Lobato ge-
perguntar quantos negros estão estudando hoje no rou uma discussão fervorosa, envolvendo questões
ensino fundamental e nas universidades. Aprovei- como censura e liberdade de expressão. Bacharel em
tar a polêmica suscitada pela obra de Lobato para filosofia e doutorando em letras da PUCRS, onde de-
debater o papel e o lugar do negro na sociedade senvolve uma pesquisa que relaciona engajamento
brasileira hoje, tentando decifrar o que mudou político e literatura, Pedro Mandagará pondera que
de lá para cá”. no caso de Lobato “não houve ‘censura’, mas uma
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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

recomendação de contextualizar a ideologia racista,


o que representa tanta interferência na obra quan-
to as notas de rodapé que explicam quem são os
contemporâneos de Dante queimando no Inferno.
E deve se levar em conta que a discussão é sobre
o uso de verbas milionárias do MEC destinadas à
compra de livros – ou seja, sobre como se deve usar
o dinheiro público”.
Para Ana Maria o que foi visto durante esse de-
bate foi uma polarização de dois grupos sociais: “de
um lado, imensa parcela da sociedade brasileira,
escondida atrás de brados do ‘patrulhamento politi-
camente correto’, brigando pelo direito de continuar
desrespeitando; e de outro, crianças negras em sala
de aula sentindo-se constrangidas e desrespeitadas
através de expressões claramente racistas”.

Politicamente falando
Politicamente correto é a expressão que paira sobre
todas essas polêmicas literárias. A origem do termo
remonta aos Estados Unidos no final da década
de 1980: “Era um xingamento lançado pela parte
mais republicana, reacionária e racista da nossa
sociedade, que em curto tempo convenceu mui-
ta gente de que a nação estava caindo nas mãos
de uma turma estalinista que não queria deixar
ninguém a liberdade de falar”, afirma Benjamin
Moser. O escritor explica que a utilização do termo
começou como uma reação a uma transformação
que teve início nas universidades na década de
1960 – quando o movimento dos direitos civis dos
negros e o feminismo começaram a questionar a
pequena quantidade de obras representativas das
minorias nos currículos escolares e universitários.
“Às vezes havia certo exagero nisso, mas a
ideia foi a de fazer, com a literatura e com a edu-
cação nacional, uma sociedade mais abrangente,
que levasse em conta as diferentes experiências
de que foram feitas a nossa nação. E havia uma
reação intensa de oposição”, conta Benjamin.
“Hoje em dia, é muito normal incluir vozes de
diferentes grupos e de diferentes países. O fato
de eu poder publicar nos Estados Unidos uma
biografia de uma mulher judia de Pernambuco
é em grande parte graças a este movimento de
inclusão”, completa o autor referindo-se à es-
critora Clarice Lispector.
Nas últimas décadas a discussão sobre o po-
liticamente correto ganhou força também no
Brasil e provocou reações extremas. A própria
elaboração desta reportagem sofreu o descon-
forto da utilização da expressão – que, refutada
por alguns e demonizada por outros, mexe em
feridas ainda sensíveis. Costa Lima acredita que
“o politicamente correto é a maneira mais atual
da velha hipocrisia humana”. O crítico defende
que a questão se manifesta na linguagem usual,
haja vista a cartilha de termos politicamente
corretos lançada durante o governo Lula, pela
falta de desenvolvimento de um senso crítico
pelas coletividades. “Em vez de desenvolverem-
-se políticas anti-racistas ou contra a homosse-
xualidade, coíbe a linguagem e, então, parece
que se crê que falar em ‘afro-americano’ ou
em ‘repúdio à homofobia’ é suficiente para que
se aceite a diferença de cor ou de preferência
sexual”, argumenta Costa Lima.
Claro que a discussão do politicamente cor-
reto ultrapassa o campo literário. Segundo Pedro
Mandagará o que podemos observar é a existên-
cia de “um movimento crescente de defesa do
suposto direito de pessoas externarem opiniões
preconceituosas e homofóbicas, em nome de um
conceito equivocado de liberdade de expressão”.
O pesquisador refere-se, principalmente, a casos
que envolvem o “humor politicamente incorreto”
e reações públicas de repúdio a conquistas das
minorias, como a legalização da união homo-
afetiva. “Não acho que exista um cerceamento
politicamente correto, e que o que há é bem o
contrário: o ressurgimento de forças conservadoras
(Reinaldo Azevedo, Ali Kamel), alinhadas a um
certo niilismo de apartamento do humor das velhas
classes médias (CQC)”, completa o pesquisador.

Fellipe Fernandes é jornalista.


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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

ESPECIAL

O desejo sob “Por toda parte, vê-se uma profusão de combina-


ção de cores que choca Lúcio, mas ele descobre que
é preciso a cor intensa para não desaparecer na luz
No livro, emerge
uma cidade e sua
o sol que nos
tropical. A policromia é uma defesa contra o sol que
devora o branco dos climas quentes”.
A flâneurie exige uma predisposição à melanco-
lia. Como deixar-se envolver pela multidão sem ser
confrontado com os sentimentos desconhecidos que marginália social
(des)protege
nos protegem de nós mesmos? Também requer uma
curiosidade laboriosa que, fronteiriça, limita-se entre
o entregar-se ao coletivo, descortinando-o quase e sexual, seus
mulatos e mestiços
antropologicamente, e o criar uma espécie de panop-
ticom privado, no qual as imagens e as ideias do outro
Entenda como o Recife se sejam observadas não como moral, mas como arte.

que oferecem o
A princípio, o desafio do flâneur não era científico,

tornou a “Nação da Carne” mas estético: o alumbramento diante da cidade e a


desconstrução do mito da metrópole em nome da ex-

para o escritor Túlio Carella


periência individual (e da assinatura do artista, claro).
Quando chegou ao Recife, em 1960, para ministrar
uma disciplina no recém-formado curso de Artes
corpo como troféu
Dramáticas, da Universidade do Recife (hoje UFPE), o da figura do senhor de engenho, que seduz e estupra
Carolina Leão argentino Túlio Carella encontrou condições especiais, as negras escravas, não por sê-las de raça inferior
sociais e individuais para criar sua janela e obser- ou malemolência provocante.
vatório pessoal. Na Argentina, já era um intelectual Aqui, a questão é o poder que permite e banaliza a
de representação significativa, tendo vivenciado o imposição do homem branco sob os demais. No entanto,
modernismo portenho e crescido numa cidade cuja o discurso é de que a malemolência e sensualidade aca-
modernização chegara com estrutura econômica, bariam por incitar o faro sexual dos dominadores. Quem
ainda no final do século 19. Embora reconhecido, Túlio discute as presas fáceis? Eram fáceis? Se “desfrutáveis”,
parecia um outsider. No Recife, o sonho de ser anônimo deixaram-se seduzir por livre arbítrio, fizeram apenas
e, enfim, vaticinar seu deslocamento íntimo, realiza-se por uma questão atávica ou foi a entrega uma forma de
durante os dois anos em que as ruas predominadas pelo “negociar” a própria liberdade e ascendência social?
cheiro dos manguezais viram seu percurso cotidiano, Outra digressão: Bahktin, em Cultura Popular na Idade
registrado analiticamente em forma de um diário Média, investiga a relação entre cultura e civilização,
estetizado pela melancolia e sensualidade de Carella. mostrando como determinadas manifestações popu-
O Recife emerge de sua narrativa confessional sur- lares são encaradas como primitivas e deveriam ser
preendente, junto com seus personagens; seu ethos; evitadas pela incipiente burguesia se esta quisesse se
sua aura católica e o provincianismo burguês; sua mostrar como polida e cortês. As danças sensuais e a
movimentação e conservadorismo. Aspectos culturais gula, movimentos do baixo ventre, eram alguns dos
relevantes para o entendimento do ser e pertencer à indicadores de atos primitivos, relacionados à volúpia,
capital pernambucana revelam-se nas páginas de ao descontrole dos instintos naturais que acabaram
Orgia, diário traduzido por Hermilo Borba Filho, que sendo normatizados no processo civilizador (a partir
depois de décadas esgotado tem relançamento pela do século 16). A obra de Carella percorre exatamente
editora Operaprima. Em cinco décadas, Orgia ganhou essas questões. Nela, temos o argentino civilizado e
status de cult por sua narrativa homoerótica dispor encantado com a oferta fálica pelas ruas do Recife. A
de elementos caros ao tema, como a guetificação da oferta de negros. Enquanto a moral branca, vestia-se
atividade sexual e a marginalização do afeto. É fácil de forma minuciosa e trancafiava seu corpo e seu de-
analisar Orgia por essa perspectiva. A começar pelo sejo. Cabia à burguesia acompanhá-la pelos sobrados,
título e a descrição da contracapa: “quem sabe por pelos casarios ou pelo indiscreto estreitamento das
que escrevo este diário? Por amor ao pecado, talvez, casas conjugadas que revelam muito mais do que se
para quem lê-lo?,ou tento justificar-me a mim mesmo poderia saber sobre a alteridade do senhor, seu vizi-
com uma exagerada grandeza no erótico? Que procuro? nho. Cabia à experiência popular vivenciar o inferno
Que persigo”, diz. típico da cidade: a sobrevivência. Desse modo, não nos
A narrativa explora detalhadamente a arte da se- distanciamos muito do início da nossa colonização e
dução, da entrega e do desejo homossexual. O que da dialética da nossa modernidade.
faltou, no entanto, nessa análise tão ligada ao afeto Vejamos alguns trechos comentados de Orgia.
homossexual, foi a percepção de que Orgia fala tam- “E começo a andar para apreender os aspectos da
bém do Recife. Dos seus guetos, da sua marginália. Da cidade. Na fila que esperava o ônibus havia muitos
homossexualidade compulsória dos morenos, mulatos morenos, limpos e comunicativos. Vê-se outros
e mestiços que circulavam pela cidade oferecendo o mais nas ruas e todos têm um aspecto alegre, sereno
falo como sedução, troféu e moeda de troca. Ao nos pacífico. Há uma predominância de jovens, quase
propiciar essa passagem pela intimidade pessoal do não se veem velhos. Os canais lodosos, amarelados
escritor, Orgia incomoda, desconcerta e seduz, con- recordam-lhe as águas do Rio de la Plata. O centro
traditoriamente, das formas mais diversas. Compar- da cidade não é muito grande. E formado por duas
tilhamos a angústia do autor, em seu deslocamento. ruas paralelas e muitas transversais”, transcreve
Mas em tempos do politicamente correto a ferro e fogo Carella, através do personagem Lúcio. O ato de se
nos incomodamos com sua sinceridade. Uma delas é a deixar movimentar pelo ritmo da cidade pontua a
sua capciosa e retórica pergunta feita regularmente nas flâneurie de Carella, que tece comentários sobre o pro-
300 páginas do livro: “o que é um negro?”, pergunta vincianismo do Recife em meio à sua modernização:
o personagem Lúcio, durante os idílios sexuais com “Não é difícil compreender a geografia do Recife. Há
os mulatos encontrados nas zonas de prostituição da uma ilha e dali partem as ruas, que se abrem como
cidade ou quando se vê diante de um belo exemplar um leque. O rio Capibaribe ondula sinuosamente
do gênero. Malandros, mendigos, amantes. Negros. em curvas pronunciadas. As pontes são simétricas,
O que é um negro? mas diferentes. Um ar calmo, provinciano, parece
Não podemos deixar de voltar à Casa Grande & envolver tudo. O que mais lhe chama a atenção é o
Senzala, de Gilberto Freyre, obra que tentou des- duplo aspecto da cidade. Até aqui chegou o horrí-
vendar psicossocialmente as etnias formadoras vel progresso, com seus arranha-céus de cimento,
da identidade brasileira e cuja atenção recorreu metal e vidro. A avenida Guararapes é um exemplo
às raças africanas impostas à economia açuca- de modernismo decepcionante”.
reira. Em sua obra monumental, Freyre fetichiza Túlio chegou ao Recife após o boom desenvolvi-
os primeiros contatos dos colonizadores com os mentista da era Juscelino, que foi seguida por recessão,
povos primitivos. Diz que os galegos aportaram inflação e pobreza, principalmente na região nordes-
no Brasil praticamente pisando em índias nuas, tina. Embora a situação econômica não fosse uma
voluptuosas que, segundo o intelectual, despertou das melhores, a cidade já contava com uma reflexão
nos portugueses o arquétipo da moura encantada urbanística modernizante desde os anos 1920. Em
de suas lendas tradicionais. Os últimos capítulos certo trecho, um moreno lhe chama para a Praia do
de Casa Grande & Senzala avaliam a participação e Pina, que diz ser ideal para a entrega amorosa. Já Boa
influência da cultura negra no sistema patriarcal e Viagem seria indiscreta: alterna edifícios modernos
mostram o confronto entre o mundo civilizado e o com verdadeiras cabanas. Vazios imensos intercalados
primitivo – e o processo sádico que surge a partir de arranha-céus e casas miseráveis.
15
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

RICARDO MOURA

Por onde anda, Carella se depara com mendigos, Mostram-no com orgulho pueril e conservador. Para turam à maresia e ao odor de urina das calçadas.
pedintes. Sente-se deprimido e vai à Igreja comungar. uma cidade de província é um luxo. O Santa Isabel Ainda hoje, os mesmos locais funcionam como
A oferta de igrejas não se compara a dos mulatos, mas tem uma falsa atmosfera senhorial, uma imitação de gueto. Com a pressa do dia, é difícil olhar para os
é opulenta. Para Carella, as ruas com casas e sobra- luxo. Somente o edifício é equilibrado, com o pórtico lados e observar o cortejo sensual que se segue en-
dos coloniais de cores amarela, celeste e rósea são a neoclássico, o saguão lajeado de branco e preto, e a quanto a cidade vive seu cotidiano. Talvez os anos
verdadeira fisionomia da cidade. “A calma dominical altura elegante”. 1960 foram o marco inicial da derrocada da cidade
envolve este lugar da esfera terrestre que nem sempre Aqui não era reconhecido como autoridade. Podia como experiência sensorial estética, dentro dos
aparece no mapa. As mulheres e os homens vestem-se se misturar à experiência social. Perder-se na cidade. parâmetros modernos de apreensão e percepção
com esmero minucioso. Vão à missa. Há ruas asfaltadas Perder-se não somente na experiência coletiva, em das trocas urbanas permitidas pela flâneurie. Talvez
e ruas de paralelepípedos onde permanecem os trilhos meio à multidão subnutrida. Mas perder-se também os que estejam inseridos no gueto percebam que
dos desaparecidos bondes. O tempo os irá desgastan- no próprio meio intelectual. um olhar a mais numa ponte, às 17h da tarde, é um
do. Lúcio confessa mentalmente sua ignorância da Não demorou, porém, para perceber que os olhares código de liberação e permissão.
cidade, da sua história, sua gente, seus costumes”, constantes lançados a ele nas pontes do Recife tinham Por outro lado, as intervenções conceituais do
revela. Em outra parte: “O Recife, como certas ci- a ver com o modo particular de se vestir. Era um es- autor sobre a cidade nos revelam algo incomodo.
dades, não se entrega à primeira vista. Seu encanto trangeiro. E como um explorador medieval repleto de “Cidade pequena, inferno grande. Pois bem: este é
está oculto e talvez por isto se torne mais penetrante espelhos e colares, foi conveniente aos negros, mulatos inferno, onde todos se veem a cada instante, conhe-
quando encontrado”, conceitua, compactuando da e mestiços, que negociaram seu membro enrijecido cem-se a fundo e não podem libertar-se”, escreveu
tese freyriana de que o Recife é uma cidade para ser por uma camisa nova, um maço de cigarro ou alguns Carella, sobre o ato do mexerico. Inevitável na cidade,
descoberta, redescoberta em seus mistérios, em suas trocados para comprar uma bebida. Negros, mulatos a fofoca, ou, para falarmos sociologicamente, o ato
ruas obscuras, em seu ethos conservador. e mestiços que, embora sejam ressaltados por suas de vigiar e punir, lhe incomoda. Frustra-se com a
características biológicas positivas, eram pobres, mi- possibilidade de passar incólume à nova cidade. De
O RITMO DA CIDADE seráveis ou apenas alpinistas sociais por uma questão um canto ou de outro, ecoam-se os sacarmos, as
Os anos 1960 no Recife foram marcados pela força dos de sobrevivência. ironias e os desafetos.
movimentos católicos, políticos e artísticos. O próprio Naturalmente, não podemos reduzir a sedução Outro dado interessante. A elite intelectual e artís-
campo no qual Carella vai se disseminar mostra a homerótica relatada no livro apenas à dialética social tica sempre se valeu de diários e correspondências de
construção de sua autonomia e autoridade. O teatro, de dominantes e dominados. Obviamente, há o prazer. suas impressões europeias, que contribuíram para a
nessa década, atinge sua maturidade como instituição E como todo assunto ligado ao prazer, é um tabu. O própria identidade da cidade a partir do contato com
artística, o que é comprovado pela própria criação de prazer dos mulatos em Orgia é, porém, sempre reti- a experiência moderna por excelência. Nesse caso,
um curso universitário voltado ao seu ensinamento. cente. Na maioria das vezes, demonstram-se receosos, temos a inversão. O Recife e sua intelectualidade
Sobre a década de 1960, falamos demasiado das revo- dizem que aquela foi a primeira penetração de suas são analisados através de um relato descritivo que
luções ideológicas. Mas esquecemos as tecnológicas. vidas. Preferem ser visto como dominantes. A questão desloca o protagonista recorrente em tais gêneros
O fato é que nessa época também estamos no fim dos masters and servants é substituída por dominantes (os narrativos. Ao vivenciar o Recife, e sua marginali-
bondes elétricos, que começaram a ser substituídos civilizados, polidos, que encaminham a sedução) e dade, Carella nos coloca diante de anônimos. Mas,
pelos pesados trolebus. Apenas 60 frotas percorriam dominados (os que se subjugam a ela). não se iluda, estes anônimos, mulatos, pedintes ou
os trechos mais movimentados da cidade, o que lhe Nesse sentido, a localização de Túlio no Recife fofoqueiros, personagens secundários da cidade,
garantia, ainda, a possibilidade da movimentação é estratégica. Morando numa pensão da Sete de também são idealizados.
e do ato da flâneurie. Túlio circulou pela cidade em Setembro, fazia trajetos específicos que, coin- Orgia é um relato minucioso do homoerotismo,
transformação, em seu anonimato arbitrário. cidentemente ou não, levaram-no aos becos, às mas é também a descrição da vivência citadina, com
Anonimato e condição estrangeira lhe permitiam vielas e aos guetos, onde até hoje o ato de se exibir seus sinais, com seus indícios, com sua regionalida-
críticas pontuais à modernidade local. Ao ser apresen- homoeroticamente é tradição. Conde da Boa Vista, de. Sedutor, mas melancólico, e por vezes sufocante
tado ao Teatro de Santa Isabel, não contém o comen- Cinema São Luiz, Duque de Caxias, Cais de Santa como a cidade do Recife. Ontem e hoje.
tário que, para o recifense, deve soar como ofensa. “O Rita. A cidade é comércio até às 18h. Convive-se
automóvel para diante de um teatro: é o Santa Isabel. com a gritaria e o azudeme das frutas que se mis- Carolina Leão é doutora em Sociologia.
16
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

ESPECIAL

Memórias de Orgia, do escritor argentino Túlio Carella, que teve


sua primeira edição, no Brasil, em 1968, em tradu-
ção de Hermilo Borba Filho, fala de um personagem

ruas asfaltadas
— Lúcio Ginarte, poeta e dramaturgo —, residente na
então mais importante cidade da América Latina —
Buenos Aires —, que recebe, em 1960, um convite
da Universidade Federal de Pernambuco para ser
professor de um recém-fundado curso de teatro. Na

pelo “prazer”
passagem entre uma cidade e outra, o personagem
conhece uma nova paisagem econômica, social
e cultural. Não só: ele descobre prazeres afetivo-
-sexuais distintos da sua orientação sexual. Entre
o deslocamento geo-sócio-cultural e a descoberta
Apesar da polêmica, Orgia da nova orientação sexual, subsiste a memória.
Memória da Buenos Aires que ficou para trás (suas

merece ser lido também ruas, seus monumentos, os amigos, os familia-


res e a vida cultural), memória do que vai sendo

pelos seus trunfos literários


vivido no presente. É na confecção de um diário
que ele guarda os feitos e os fatos dessa memória
recente, do presente que vai se plasmando ante os
seus sentidos. Como diz o narrador do romance,
Anco Márcio Tenório Vieira “Lúcio Ginarte despeja em seus cadernos parte de
suas experiências. São tão abundantes que não é
possível anotar todas. Receia que a seleção não
corresponda ao melhor, mas acha que seja a mais
próxima dele. Sem perceber suprime os escrúpulos
morais para obter a felicidade”. Finda a experiência
de professor e o seu retorno para Buenos Aires,
resta o diário — matéria-prima para a confecção
de um futuro romance. A capital da Argentina já
não é a mesma que ele deixara. Não porque esta
sofrera alguma brusca transformação, mas porque
o protagonista da história já não é o mesmo. Uma
cidade se inventa pelo olhar de quem a observa, e
o seu olhar sobre a natureza humana fora alargado:
seja culturalmente, seja afetivo-sexualmente. A
cidade que deixara para trás também já não é a
cidade que vivera e que inventara a partir do que
vira, ouvira, tocara e fora tocado, mas a cidade
registrada nos diários. Entre duas realidades eterni-
zadas — Buenos Aires e Recife —, restou o recurso da
imaginação: o construir e o reconstruir dos espaços
sócio-culturais, o construir e o reconstruir da sua
afetividade sexual.
Toda narrativa é uma tentativa de presentificar
os fatos retidos pela memória, uma tentativa de dar
sentido ao que vimos e guardamos na memória.
Não se narra o instante presente, narra-se o que já
aconteceu. O instante presente é passível apenas
de descrição — aquilo a que se refere —, não de
narração — quando nos referimos a um fato e, ao
mesmo tempo, o interpretamos. Esta observação
faz-se necessária porque Orgia é um romance que se
estrutura entre dois tipos de registros: o da memória
e o do diário. A primeira narrativa — a da memória
— tem o foco narrativo na terceira pessoa; a segunda
narrativa — a do diário — se dá na primeira pessoa, citadas por Hermilo Borba Filho em seu romance
e acolhe o que Lúcio Ginarte reteve ou considera Deus no pasto (1972). Elas mudam completamente
relevante de ser registrado dos fatos do dia. de sentido, já que o texto que as precede e o que as
É pelo modo narrativo na terceira pessoa que se sucede redimensionam as informações contidas no
inicia o romance de Túlio Carella. Por meio deste diário. O diário em Orgia torna-se uma espécie de
narrador conhecemos as dúvidas de Lúcio Ginarte memória da memória. Memória primeira quando
em aceitar o convite para lecionar no Recife (recor- do registro de Lúcio Ginarte; memória segunda ao
rendo, inclusive, a uma vidente), os seus primeiros ser inserida em uma narrativa secundária. Dessa
contatos com a cidade (as pessoas, o clima, seus forma, o diário alarga o próprio olhar do narrador
odores, seus olhares) e a sua vida intelectual. O onisciente. É como se o diário de Ginarte encer-
foco narrativo muda quando o narrador inscreve rasse um mundo ou um olhar sobre o mundo que
passagens do diário de Lúcio Ginarte. Assim, o o próprio narrador, apesar da sua onisciência, não
romance se constrói interpolando dois olhares: o pudesse penetrar em sua plenitude.
do narrador, que tenta ver os fatos com olhar dis- Assim, é por meio da interpolação narrativa,
tanciado e crítico, e o do personagem, que registra pela tentativa de presentificar fatos que são agora
suas impressões da cidade. A narrativa na terceira apenas matéria da memória, que Orgia se organiza
pessoa é toda em itálico, reforçando a ideia de formalmente. Sabemos que o autor dessa obra
distanciamento (afinal, o aspear e o itálico em um era de fato argentino, dramaturgo, poeta e crítico
texto denotam a referência a um enunciado profe- literário; sabemos que ele viera ao Recife para
rido por outrem, que podemos ou não aceitar); a do ensinar no seu curso de teatro e que nesta cidade
diário, em letra corrente. Assinale-se, porém, que viveu uma experiência densa e única; assim como
ao inserir passagens do diário do protagonista em sabemos que ele foi confundido pela polícia com
sua narrativa, o narrador redimensiona o sentido um agente cubano e, depois de preso, espancado e
que o autor do diário quis dar a sua narrativa, já que destituído da Universidade, expulso do Brasil. Orgia
essas passagens estão enfeixadas pelo seu texto. As- poderia ser apenas o registro desses eventos. Ou
sim, se toda narrativa refere e interpreta ao mesmo melhor, poderia ser apenas a publicação dos diários
tempo, o narrador de Orgia tanto se refere ao diário, que ele — Túlio Carella — escrevera durante a sua
citando-o, quanto o interpreta: seja ao escolher os estada no Recife, entre os anos de 1960 e 1962. No
trechos que devem ilustrar a sua narrativa, seja ao entanto, ele precisava entender melhor o que de
inserir esses excertos nas passagens que ele consi- fato acontecera consigo. De volta a Buenos Aires,
dera adequadas. É sempre interessante comparar distanciado do seu objeto, ele constrói um narrador
as passagens do diário de Lúcio Ginarte que estão na terceira pessoa que é o psicanalista. Mais do
em Orgia e que, posteriormente, foram também que um narrador que se refere ao passado, é um
17
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

RICARDO MOURA

DIVULGAÇÃO
narrador que tenta dar sentido ao que ele vivera.
Ele deixa de ser Túlio Carella para ser Lúcio Ginarte;
atribui os diários que escrevera a este persona-
gem de papel, e constrói um narrador que narra e
interpreta a sua própria experiência. Afinal, tudo
agora era apenas memória: tanto a cidade quanto
os diários que registraram o seu tempo no Recife.
Ao transformar as suas memórias em matéria de
um romance, Túlio Carella pode alargar o mundo
que viu e viveu em terras distantes, safar-se do
julgamento dicotômico entre verdade/mentira,
e mostrar que tanto a memória quanto a arte são
realidades etéreas.
Por fim, faz-se necessário observar que é nesse
jogo de interpolação entre narrativas na primeira
e na terceira pessoa que podemos observar as
transformações que o personagem Lúcio Ginarte
irá passar durante a sua estada no Recife. Cada
vez mais, ao longo do romance, o narrador na
terceira pessoa vai cedendo espaço ao narrador
do diário. Ao ver que o seu personagem, pouco a
pouco, suprime “os escrúpulos morais para obter
a felicidade”, o narrador cede a palavra ao pró-
prio Lúcio Ginarte; seus comentários vão ficando
dispensáveis. Não há mais necessidade que ele,
o narrador na primeira pessoa, psicanálise o seu
personagem. Este, agora, a partir das narrativas
fixadas no diário, refere e interpreta a si mesmo.
Dessa forma, Orgia pode ser classificado como um
romance de formação.

Anco Marcio Tenório Vieira é professor do Departa-


mento de Letras da UFPE. Carella vivenciou o submundo do Recife do começo dos anos 1960
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um Recife que não chegou a conhecer, espaço sociocultural, enfatizando os presidente da província de Pernambuco,
como a época dos bondes e trilhos, ou personagens que participaram dessa que participou de episódios relevantes
cujas referências de arquitetura e lugares conquista, pessoas pobres e criminosos do Império, defendendo a liberdade de
que conheceu na adolescência, já recrutados pela Coroa portuguesa para imprensa, os direitos dos cidadãos e o
se perderam. combater os indígenas que habitavam combate ao tráfico negreiro.
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Apresenta um resumo da vida e obra A arquiteta Aline de Figueirôa Silva Poeta apaixonado pela poesia, humilde,
de escritores fundamentais na formação detalha o surgimento do paisagismo no raro e especial, Geraldino Brasil
da memória cultural de Pernambuco, Brasil , a partir de Burle Marx, e aborda faleceu em 1996, deixando uma vasta
dos mais conhecidos, como Frei Caneca, os jardins recifenses do ponto de vista produção inédita. Nesta obra, a Cepe
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19
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

HALLINA BELTRÃO
INÉDITOS Micheliny Verunschk

Positivo. Negativo.
Três e trinta da manhã. O sono, um sonho se configura de outra forma. Deito cedo, sinto teja sangue. Meus pés doem um pouco ao
distante. Meu corpo estendido no sofá e Jeanne sono. A noite parece perfeita. Às três e trinta, contato do chão da cozinha, mas logo se
Moreau falando sobre a maldição da beleza um pouco mais, um pouco menos, tudo se acostumam. O piso parece um tabuleiro
absoluta. Em frente à porta do quarto perce- quebra, um copo partido entre os dedos. de xadrez. Meus pés, dois peões. Abro a
bo a gata branca. Ela me olha. Tem a cabeça Jeanne Moreau retorna e é uma velha de porta do banheiro, entro e a gata se enrosca
pequena e olhos muito grandes, que parecem suéter vermelho e colar de pérolas a falar sobre nas minhas pernas. Fecho a porta e sento
tristes na composição geral do conjunto. Talvez a maldição da beleza absoluta. As atrizes da na privada. Dez minutos de afago e meu
seus olhos sejam do tamanho normal e o fato Nouvelle Vague não envelhecem e essa senhora de coração dividido como um bife de fígado.
de a cabeça ser pequena é que dá a impressão ar requintado certamente não é Jeanne Moreau. Cansei de Jeanne Moreau. Poderia agora
de que eles são maiores e melancólicos. No Acreditar nisso é uma verdade estabelecida dançar um pouco, ou ler e-mails, ou pintar o
banheiro dos fundos, outra gata, a preta, mia. para mim essa noite. As atrizes da Nouvelle Vague apartamento inteiro. Poderia chorar e, quem
Está presa. Vai passar alguns dias aqui e não se existem apenas em preto e branco, como as sabe, dormir soluçando. A gata esfrega seu
deu bem com a gata branca. Um amigo viajou e duas gatas, a que me espiona, a que me de- queixo contra o meu. Poderia fazer uma ca-
pediu que a abrigasse por um tempo. Tem água, nuncia. A TV, novamente sem sinal. Quantos minhada e aproveitar para recomeçar a fumar.
comida, uma almofada e uma caixa de areia nomes estapafúrdios de homens posso enu- Ou bater uma punheta pensando nas atrizes da
no cubículo. Mas creio que não está confortável merar de A a Z? Nouvelle Vague. Ou nos atores. Poderia escrever
pois, sempre que lembro dela, penso no gato Em noites como essa perco totalmente a fé uma obra-prima, ou ler uma das tantas que
emparedado de Poe e quase chego a escutar em mim, na capacidade de ser algo ou alguém não li, mas só consigo pensar na metragem
o pequeno coração retumbando pelas paredes para além da insônia. Se esvaem todas as von- do celeiro onde eu empilharia os 400 corpos
do apartamento. A gata branca continua a me tades. De ser um grande jornalista, amante, do sono que não vem. A TV não sai do ar há
olhar e Jeanne Moreau some no chuvisco azu- cineasta, escritor. As palavras com as quais quinze minutos. Acho que agora segura. Mas
lado do aparelho de TV que perdeu o contato lido nas noites de insônia são, sem sombra de os créditos brancos sobre fundo negro levam
com um satélite muito longe daqui. dúvida, patéticas. Elas giram como móbiles e Jeanne Moreau de mim. Zapeio. Uma luta. Um
Conto de 1 a 120 e de 120 a 1, vezes repetidas. me encantam por horas, mas se esgota aí toda programa de culinária. Um seriado policial.
Costumo fazer contagens, listas, jogos mentais a capacidade que possam ter de beleza. Claro, Um culto evangélico. Leilão de gado. Uma
e um variado repertório de brinquedos inte- algumas delas cantam e pedem um conto ou luta. Um programa de culinária. Um seriado
lectuais que inventei ao longo dos anos para um poema, mas a letargia e estupidez que de policial. Um culto evangélico. Leilão de gado.
noites como esta. Teriam a função hipotética mim se apoderam não me movem ou como- A gata branca se encostou numa almofada.
de restaurar o sono perdido, mas sempre me vem. Em noites de insônia, vivo em estado de Vai dormir. A gata preta silenciou. Deve estar
despertam mais. Minha cabeça costuma ser vírgulas ininterruptas. Vírgulas negras sobre dormindo também. Três canais em manu-
uma boa companhia para as noites de insô- papel branco, não mais. tenção. Muitos desenhos animados. O noti-
SOBRE A AUTORA nia. Solidária, ela parece não desligar nunca. Jeanne Moreau volta mais uma vez, mas ciário 24 horas avisa que o dia parcialmente
No entanto, não consigo escrever. Há alguns me desprendi dela. Ao menos momenta- nublado promete pancadas de chuva. Oito
Micheliny Verunschk
anos era diferente. A insônia não era um ba- neamente. Preciso ver se a gata preta está horas manhã. Vou deitar e só ai percebo que
é autora de Geografia
que às três e trinta da madrugada. Era uma bem. Não acho os meus chinelos e sei que meu olho esquerdo não enxerga nada. Visão
íntima do deserto e
continuidade. Acordava às seis e ia dormir às quando passar da sala à cozinha, o chão parcialmente nublada. Desabo e sei que so-
Cartografia da noite
duas, três, por vezes quatro da manhã. Assim, estará gelado. Deveria procurar os chinelos nharei com pequenos monstros incendiários
era fácil ser produtivo. Era fácil escrever um antes e evitar o desconforto. Mas o coração e com Jeanne Moreau pelas próximas duas
livro, trezentas vidas. Porém, hoje a insônia da gata preta me chama. Ele bate alto, go- horas. Não mais que isso.
20
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

INÉDITOS Marcos Visnadi

Flan
náufrago Materno O efeito da maternidade seria esse: dedicar-se sem
Aniversário da mãe. O menino fuça o armário sentido. Eu vou te dar cama e
e vai fazer um flan de caixinha com comida, eu vou te dar meu colo e calor. O bicho
calda imita ameixas. Come o flan pedaço no rastejava manco dolorido acertado a pau as
meio da colher banhada em calda, um ancas quebradas e a criança abraçava-o com os
naufrágio. A mãe é diabética, o menino suja a olhos, sorria prevendo a bondade e se dizia:
louça, não lava, mas é um amor que está ali meu bem meu bem. Mas agora lhe vêm as imagens
derretido no açúcar caçoa do medo da morte / num dia que amanhece: foi sua própria fúria,
e ela come. O planeta é que anda a dar voltas convertida em mãos, a acertar os quadris do gato
em torno do Sol como se nada fosse doce a com um cabo de vassoura.
gente toma garapa imaginando a Via Láctea O bicho mia fraco, esganiçado. À criança vem-lhe
expandida além dela o espaço infinito de de chorar. Eu não quero nunca mais
silêncio eterno talvez vikings astrais cometas sentir vergonha. Olha para os lados, o matagal
macios de brigadeiro tudo o que é possível, até avança semisseco na lonjura, aqui só tem eu
um flan de aniversário. Que as nossas cáries e essa metade de gato. E o cabo de vassoura sujo de
tenham a ver com a cultura caneeira sangue ali mais adiante. Desculpa,
implantada pelos portugueses e os desculpa! O olhar do gato não toca em nada, nem
trabalhadores rurais em mim. A criança larga-se aos soluços
SOBRE O AUTOR
de hoje remontem a cinco séculos de trabalho diante do gato que agora só geme baixinho, para si.
Marcos Visnadi é escravo é coisa que implica na doçura, e de Perder um filho vai contra a ordem
escritor e esses são modo algum podemos isentar as corporações natural das coisas. Ela começa a puxar seus
trechos do seu primeiro alimentícias do efeito que gradativamente cabelos e esmurrar-se no rosto,
livro, Atlas, que deve ser essas delícias simuladas terão sobre o nosso grita de tristeza.
publicado este ano prazo. / O menino leu a receita no verso da Se não voltar pra casa esta noite estará deitada ao
caixa piscando a cada palavra. Ali dentro, em relento, fingindo desconsolo, dormindo
forma de futuro, estava um mistério. na dor de perder o filho que não teve.
21
PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

HALLINA BELTRÃO

(e agora mais uma sobre a infância) “Lembro”. da barba futura, detidos com mais
* A máquina ligada tolhe os cabelos e no couro da atenção na pele fina dos lábios entreabertos, agora
O avô levava o menino para cortar cabelo na cabeça uma sensação de unhas um dedo na gengiva, agora o rosto livre
associação dos aposentados e por isso finas e rudes fazendo carícia, todas juntas na de contato e o homem agachado à sua frente pra
não poderia ser domingo, já que no domingo se mesma direção. “É, seu avô trazia você aqui brincar: “Vamos fazer a barba?”.
descansa. Mas o dia estava sim com uma no colo. Mas agora já não dá mais pra te carregar O menino sorri.
moleza missal, de quando se sai do culto próximo no colo, hein”. Dentro do copo, o pincel A espuma se espalha na pele sem pelos; cuidadosa,
ao meio-dia e se passou três horas soca uma espuma cada vez mais branca que vai se a lâmina lava do rosto o limite branco.
acumulado em gentes a dizer de Deus, as juntas do avolumando e se avoluma até “Pronto!”, diz o velho, de voz cheia, as mãos
corpo carecem de almoço e as pessoas transbordar. “Agora você é quase homem feito, só apoiadas nos ombros do menino com
se abraçam, até domingo que vem. falta ter barba na cara!”. A espuma os polegares a afagarem-lhe os lóbulos das orelhas.
“Pode rapar tudo, fazer corte militar. Assim gelada na nuca arrepia. O menino, que se segurava “Pronto!”, como quem fez o almoço e
dura mais.” pra não rir de nervoso, agora desata uma lavou a louça. “Ficou bom?”.
Precisava pôr duas almofadas e um toco na cadeira gargalhada miúda, em sussurro. O menino assente com a cabeça.
para que o menino ficasse a uma “Faz cosquinha, faz?” E logo as mãos se tornam aranhas de novo,
altura razoável, de olhos quietos e medrosos, “Faz...” arrancando risos da criança, mordem-lhe
assistindo à decisão que os adultos tomavam E os dedos do homem como aranhas escalam as o pescoço, descem pelos sovacos até as ancas, o
sobre sua cabeça. O avô se vira para ele e diz “Eu ancas do menino chegam aos menino se contorce na cadeira e as aranhas
preciso ir no centro da cidade comprar sovacos mordem o pescoço o menino se lhe agarram uma de cada lado por dentro do
remédio. Você me espera aqui” e depois ao contorcendo na cadeira de tanta cosquinha “para! elástico uma levanta-o pelo pipi e a outra se
barbeiro “Não vou demorar, Valter. Você cuida para! para!” e ri pulmões afora, sem lugar para esconde num lugar que ele nunca havia tocado,
dele?” e o Valter responde: “Pode deixar, João” e o vaidade. O velho se recompõe, divertido a como um macaquinho ele se agarra no
avô se foi. respirar de boca aberta, e o menino sorrindo olha braço grosso do barbeiro, para não cair, e depois
Esse Valter era um homem gordo e sorridente e pra ele pelo espelho, sem cumplicidade. A ganha um chiclete.
velho. “Nossa, como você tá lâmina, por fim, arranca a espuma do pescocinho. Agora o menino volta para a luz dominical.
grande” ele diz ao menino, “eu conheço você “É, você tem muito cabelo, só falta ter barba na Pelas mãos do avô, ele percorre o corredor escuro
desde que você era desse tamanhico” e cara”. E, como a descobrir um e úmido da associação de aposentados, passa por
contrapõe as palmas das mãos, deixando entre segredo, ele se dirige aos olhinhos limpos do salas em que velhos jogam damas e, quando chega
elas um vazio. “Seu avô sempre te trouxe espelho – “Será que não tem?”. O menino à calçada, a claridade é tão forte que ele precisa
aqui, você lembra?”. fecha os olhos para se esconder. Da visão dos fechar os olhos bem fechados. E ainda assim, no
O menino, que ainda não sabe o tamanho que tem, dedos grossos do homem varrendo-lhe o esconderijo vermelho das pálpebras,
fica confuso e tenta agradar: rosto em carícia, de uma orelha à outra o caminho persistem estrelas escuras.
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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

resenhas
KARINA FREITAS

O “buraco de Talvez uma coisa não tenha


a ver com a outra, mas
achei honesto começar
quem também entende
a fotografia para além
da técnica, acaba de ser
qualquer fotografia encerra
dentro de si um sem-
número de narrativas ­- tal
fechada. Ou estamos num
intervalo instrumental,
antes da volta do samba

Alice” que são


com a seguinte confissão: lançado Por trás daquela e qual um texto literário, cantado.” Talvez a
não sei fotografar, nem foto, em que autores em que uma narrativa descrição de Nestrovski
tenho o mínimo grau de problematizam ideias e seria capaz de abrigar esteja bem longe daquilo

todas as fotos
intimidade com a câmera, histórias a partir de suas “todas as narrativas que Verger, de fato, “viu”
mas um dos meus livros fotografias favoritas. Com do mundo”, como já ao flagrar esse grupo
favoritos é Sobre a fotografia, organização de Lilia Moritz sonhou Roland Barthes. de carnavalescos. Mas
de Susan Sontag. Para além Schwarcz e de Thyago Talvez o texto que tanto faz. De Verdades,
Coletânea com contos e ensaios de qualquer reminiscência
sobre técnica, a crítica
Nogueira, traz textos de
nomes como Humberto
melhor represente a
ideia que Por trás daquela
com maiúsculas, nunca
foram feitas as fotos (tal
discute as narrativas e fantasias norte-americana nos Werneck, Pedro Vasquez, foto defende é o ensaio e qual Susan já havia
ensina a ver, ou melhor “a Moacyr Scliar e Nina do crítico e escritor nos ensinado) ou as
que encerram as fotografias ver através” - e cada um Horta. Todos reunidos Arthur Nestrovski melhores narrativas.
de vocês que escolha o na tarefa de responder para uma imagem de
Schneider Carpeggiani que implica esse “através”. a uma só pergunta: PierreVerger. Nestrovski
“Fotografar é se apropriar quantas histórias parte da sua perplexidade
da coisa fotografada”, guarda uma imagem? diante de uma cena do
diz uma das frases mais O ponto de partida dos Carnaval baiano dos
famosas do ensaio. O organizadores lembra anos 1943 e discute um
simples ato de olhar a razão do meu afeto tema - aparentemente
também é se apropriar de por Sobre a fotografia: “A - tão distante quanto
um objeto. Quem observa, fotografia é como o buraco Barack Obama.
lança um comentário. ou o espelho de Alice: a O texto começa com
A crítica trata a porta de um mundo de aquele exercício tão
fotografia como uma um mundo de maravilhas comum, que é o de
espécie de fantasma, a um só tempo estranhas imaginar uma narrativa,
um espectro que e familiares, visíveis e alguma ação, onde
potencializaria todos imprevisíveis. Quando “só” se avista imagem:
os nossos medos e erguida entre os dedos, “a moça, tão linda, de ENSAIOS
desejos ­ “Toda fotografia pode dar a impressão vestido branco e turbante,
é um memento mori. Uma de ser apenas uma fatia um colar também branco Por trás daquela foto
chance de participar congelada da realidade”. no pescoço, olhando pra Autora - Vários autores
da mortalidade de Apesar da irregularidade frente com um sorriso que Editora - Companhia das Letras
alguém”, atesta Susan, dos textos, a coletânea ainda não abriu. Todos, Preço - R$ 39
outra vez certeira. Para é uma boa prova de que na verdade, estão de boca Páginas - 184
DIVULGAÇÃO

CRÍTICA
Mariza Um debate sobre crítica de cinema marca a
Pontes nova temporada do Projeto Laboratório
O Projeto Laboratório (foto), sessão reuniu cerca de 100
talk-show sobre crítica que pessoas no Teatro Hermilo
agitou o cenário literário do e resultou num programa
Recife, no ano passado, volta na TV Pernambuco; por
cheio de novidades: a nova fim, o projeto registra um
temporada, a partir de agosto, avanço na inclusão: todas
amplia a discussão para outras as reuniões vão contar com
linguagens, começando com um tradutor de Libras, a

NOTAS crítica de cinema; vai ser


lançada a Revista Laboratório,
Linguagem Brasileira de
Sinais, para que as pessoas

DE RODAPÉ reunindo a crítica produzida


nos seis meses da temporada
portadoras de deficiência
auditiva também possam
anterior, quando cada acompanhar os debates.
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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

divulgação DIVULGAÇÃO

prateleira
A TEATRALIDADE DO HUMANO
A obra analisa a capacidade humana de
teatralizar, reinventar e representar múltiplos
papéis, em vários campos de atuação. Reúne
50 textos de José Celso Martinez Correia,
Denise Stoklos, Augusto Boal, Antônio
Abujamra, João Falcão e outros criadores
teatrais, relacionando o papel do teatro e das
artes com a imagem a partir do século 20 e
fornecendo um rico panorama da formação
do povo brasileiro, com base nos espetáculos
encenados nos centros urbanos. O registro foi
pensado a partir do ciclo
A Teatralidade do Humano,
realizado durante 2006
e 2007 em São Paulo.

Autora: Ana Lúcia Pardo


(organizadora)
Editora: Edições Sesc-SP
Páginas: 481
Preço: R$ 90

ALERTA DE TEMPESTADE

Novo senhor do mistério O Roberto Bolaño inicial Com ilustrações do brasileiro Renato Alarcão, o
livro é o nono e penúltimo da coleção americana
The 39 clues, lançada para concorrer com o
Para cada livro, pertencem”. O romance Há um bom tempo que os pecados típicos de fenômeno Harry Potter. Traduzida para 25 idiomas,
Alberto Mussa nos leva ao Rio de boatos dão conta que a quem ainda não está a coleção já tem filmagens previstas e uma
“escolhe” um novo Janeiro, na “infância Companhia das Letras seguro de si e/ou do continuação da saga da família Cahill, cuja história
universo, uma outra da República”, quando estaria para lançar o seu possível universo se desenrola por vários países, desde quando a
linguagem. É como se, um membro do alto polêmico La literatura nazi de obsessões. Ainda matriarca, antes de morrer, lança um desafio aos
a cada lançamento, escalão do governo é em América. Escrito num assim, é curioso ver herdeiros: receber uma fantástica herança ou
estivéssemos diante encontrado morto na estilo enciclopédico, Bolaño prestando uma participar de um jogo que os
de um escritor cama de um prostíbulo o livro traz o chileno explícita homenagem a levará ao maior tesouro do
completamente novo. de luxo. Uma obra perfilando os expoentes uma das suas maiores mundo. A cada livro, novas
A “instabilidade” é seu de tirar o fôlego e de de um gênero literário influências, o norte- pistas são encontradas e
estilo. No romance O comprovar, de vez, o fantasioso – autores americano Edgar Allan segredos são desvendados.
senhor do lado esquerdo, talento narrativo de que, supostamente, Poe, o pai do romance
transforma-se num Mussa. (SC) teriam alguma ligação policial. (SC) Autora: Linda Sue Parker
autor noir e defende com Hitler. Seu tom Editora: Ática
uma espécie de politicamente incorreto, Páginas: 202
tese: a de que não ao lado do humor Preço: R$ 33,90
é a geografia, não é peculiar de Roberto
arquitetura, não são os Bolaño, não fazem desse O REI DO MUNDO
heróis nem as batalhas, livro uma obra das mais Mais do que uma biografia, ao mostrar a vida de
muito menos a crônica palatáveis, porém é um Cassius Clay/Muhammad Ali, a obra de Remnick,
de costumes ou as título indispensável para lançada em edição de bolso, captura o espírito
imagens criadas pela quem deseja conhecer predominante na sociedade americana da época,
fantasia dos poetas - “O a fundo o pensamento cuja mentalidade se transformava a partir da
que define uma cidade iconoclasta do autor. ascensão política dos negros, de conflitos morais
é a história dos seus Infelizmente, ainda vai e do fortalecimento de organizações ligadas ao
crimes”, aponta. Ele demorar para os leitores Islã e a Máfia. Definindo-se como “um novo
não se refere, é claro, brasileiros conhecerem tipo de negro”, Ali ajudou a mudar a política
a crimes vulgares. La literatura nazi. A Cia. racial, a cultura popular
“Falo dos crimes ROMANCE das Letras, após o ROMANCE e a noção americana de
fundadores, dos crimes irregular O terceiro Reich, heroísmo, recusando-se a se
necessários; e que O senhor do lado esquerdo vem agora com Monsieur Monsieur Pain enquadrar em estereótipos.
seriam inconcebíveis, Autor - Alberto Mussa Pain, estreia do escritor Autor - Roberto Bolaño
que nunca poderiam Editora - Record no romance numa obra Editora - Companhia das Letras
ter existido a não Preço - R$ 25 fraca, de linguagem Preço - R$34 Autor: David Remnick
ser na cidade a que Páginas -288 enrolada e com todos Páginas - 140 Editora: Companhia das Letras
Páginas: 400
Preço: R$ 29,50

SOBRE A TRADUÇÃO
O autor aborda o desafio presente no trabalho da
tradução, mostrando a estreita articulação entre
EXERCÍCIOS LITERATURA NO SESC LIVROCLIP traduzir e interpretar. Para Ricoeur, o tradutor deve
analisar a diversidade das línguas, a possibilidade
Debate com convidados que Concurso nacional premia Site de livros está na lista do diálogo intercultural, os recursos poéticos,
inspiram admiração contos e romances inéditos dos que educam e divertem a formação e a potencialidade da língua, para
descobrir os recursos inexplorados na apresentação
Inspirados no livro Exercícios de Além de promover o I Encontro Com base na pesquisa Kids Expert, do pensamento. Além de um trabalho intelectual
Admiração, do filósofo romeno Cultural de Produtores de encomendada pelo Cartoon teórico/prático, a tradução inclui uma questão ética,
Cioran (1911-1995), que desenvolvia Literatura, para discutir “A Network, que apontou que dos segundo ele: promover o
perfis de escritores e pensadores produção de eventos literários e a 7 aos 18 anos gasta-se de 30 encontro entre leitor e autor
que admirava, Pedro Américo de estruturação de políticas públicas min. a 4 horas/dia conectados sem trair suas características,
Farias e Wilton de Souza promovem para literatura”, o Sesc-PE lançou na internet, cinco educadoras acolhendo a diversidade
debates com convidados, na Poty o Prêmio Sesc de Literatura no brasileiras avaliaram uma lista e a pesquisa da língua.
Livraria, Rua do Riachuelo, às 19h. Recife. Promovido pelo Depto. de 44 sites educativos, que
Já foram sabatinados a professora Nacional da entidade, o objetivo ampliam o universo cultural.
Renata Pimentel e os poetas é premiar contos e romances Um dos recomendados para Autor: Paul Ricoeur
Everardo Norões e Marco Polo. A inéditos, de autores brasileiros ou adolescentes é o www.livroclip. Editora: Ufmg
próxima é a historiadora Kalina estrangeiros residentes no Brasil. com.br, que disponibiliza uma Páginas: 71
Vanderley, no dia 24. As inscrições vão até o dia 31. ótima biblioteca digital. Preço: R$ 24
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PERNAMBUCO, AGOSTO 2011

CRÔNICA
Mauro Mota
hallina beltrão

O “2 por 1”
Falam-me numa botica do Recife que estaria
O “criador” da Torre
vendendo o pó que, segundo o rótulo, bota as pessoas da vida provinciana e dos
Raimundo Carrero
em comunicação com os espíritos superiores. subúrbios recifenses, mas
Ninguém se espante, ninguém suponha que isso com um vigor que nada
represente decadência comercial. Pelo contrário: representa o Ainda adolescente de calça tem de regionalista. Foi
aperfeiçoamento. O da fraude, hoje em dia, procedimento de curta, e saindo do internato justamente esse aspecto da
rotina, que alcança gêneros alimentícios, vestuário, medicamentos, do Colégio Salesiano, sua poesia que me marcou
muito do que precisamos para viver e até para morrer. conheci a poesia de Mauro profundamente, junto com o
Um jornal do Rio noticiou fato curioso na seção policial: Mota, na biblioteca do meu trabalho literário de Manuel
o pacto de morte entre um jovem casal. O rapaz escreveu irmão Geraldo, no bairro Bandeira. Muitas vezes
a carta. A moça também assinou. Depois entraram num da Torre, onde fui morar. surpreendi-me na biblioteca
bar e derramaram formicida no copo de cerveja. Mas não Havia ali pelo menos do meu irmão tentando
espicharam as canelas românticas. O veneno era falsificado. dois livros do poeta: Os imitá-los. Apesar do Mauro
Ainda ontem, no meu bairro, houve a trapaça do sujeito epitáfios e Canto ao meio. Uma poeta ser o mais persistente
anunciando “capão gordo”, rua a fora. A cozinheira examinou o novidade para mim pelo em nossa lembrança, desde
bicho. Como quase todos me enchiam os garajaus, não passava despojamento da linguagem a juventude ele dedicou-
de um galo senil, de crista e esporões aparados à gilete. e pelas temáticas. Assustado se ao jornalismo. No Diario
A população que se previna contra os vendedores de pechinchas. e divertido, lia-os quase de Pernambuco, assinou
Dizem-se embarcadiços, em trânsito, falam enrolado e andam sempre no fim de tarde, uma coluna analisando
pelas portas oferecendo tecidos e perfumes estrangeiros, a preços deitado na rede da varanda, os movimentos cultural e
de 1920. Chantagistas dessa espécie conhecemos logo. Podemos naquele bucólico bairro da social recifense. Mauro não
dar-lhes o fora e ameaçá-los de cadeia. E com os outros, o que Torre, cenário de Mauro era um autor abertamente
podemos fazer? Cair em suas arapucas como dóceis passarinhos. Mota. Era ainda um Recife político, mas seu olhar e
A polícia age, o Departamento de Saúde Pública também, suburbano da década de seu humor sobre a cidade
mas os falsificadores têm mil artimanhas. Querem lucro sessenta. Havia brisas da podiam abrir portas para
fácil e imediato. Para conseguir, não vacilam em praticar as tarde tangidas pelos cabelos inúmeras interpretações.
mais incríveis proezas. No Recife ainda, já foi descoberta a soltos, rápidos cabelos Nesse espaço, aproveitava
maroteira da manteiga misturada com vaselina e lubrificantes esvoaçantes pelo céu azul. até para conversar com
de automóvel. E a dos pacotes de café onde entravam milho, Foi porém com as Elegias os leitores. Essa faceta é
pó de serra e sangue de boi. Isso, o que foi descoberto que Mauro Mota marcou, recuperada agora, com uma
oficialmente. E o que não foi? E o que não será nunca? definitivamente, a sua voz crônica de setembro de 1968.
na literatura brasileira. Em tempo: sempre que
SOBRE O AUTOR Elegias continua imbatível leio Mauro Mota sinto-me
Quais as doze mais belas palavras da língua portuguesa? ainda hoje, embora alguns de novo atravessando a
Mauro Mota tem Resposta de Teresa Rezende Braga, dona de casa: criança, críticos tenham cometido Rua Real da Torre, entre
algumas das suas crônicas amor, saudade, ternura, paz, infinito, eternidade, equívocos de registrar os casarões do século 19.
reunidas em Lua branca lágrimas, madrugada, esperança, mãe, amizade. apenas o regionalismo da Só agora percebo: fui um
e outras luas, que a Cepe De Iracema Campina Rodrigues, datilógrafa: obra. Não se pode negar que personagem de Mauro
lança em novembro José, nascer, amor, saudade, paz, viver, amizade, ele registrou alguns instantes Mota, sem me dar conta.
ternura, carinho, Lisboa, madrugada.

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