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O Ritual Zen e o Cérebro

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O Ritual no Zen e o Cérebro

Monje Denshō Quintero

Nos centros de meditação quando iniciantes leigos que nunca tiveram contacto com a
prática, recebem a introdução, é frequente que alguns tenham reações de repulsa a
certos detalhes da forma. Não faltam aqueles que chegam fugindo de protocolos
religiosos da tradição da família, e buscam uma prática sem esse tipo de exigência, e se
chocam com a etiqueta na sala de meditação.

Para muitas pessoas, a palavra “ritual” é associada a cerimônias arcaicas, fora do


contexto de uma realidade dominada pela razão. Porém, a ideia de que podemos ter
controle sobre a realidade ou de que podemos compreender tudo de maneira racional é
um erro que, com frequência, leva a desilusão e consequentemente ao sofrimento.
Devido ao caráter impermanente da realidade, a vida é muito mais surpreendente do que
desejamos, e se nos fixarmos a uma única forma de ver, esperaremos que nossas
expectativas se cumpram com fidelidade e perdemos a experiência total da vida. Por
isso se faz necessário realizar certas práticas que possam desbloquear nossa mente da
rigidez de uma experiência filtrada por conceitos.

Se pensarmos quantas atividades de nossa vida são ritualizadas, começaríamos a


enxergar numa perspectiva mais ampla: É uma pessoa que não pode sair de casa pela
manhã sem tomar o café; ou não pode ir ao vaso sanitário sem uma leitura. E isto sem
contar com inúmeros rituais sociais como uma celebração de aniversário ou qualquer
outro tipo de festejo em família. Em nosso cotidiano seguimos parâmetros repetitivos de
conduta com os quais nos familiarizamos e não os percebemos como rituais.

Nos templos Zen, a cada dia, desde o soar do sino do alvorada, todas a atividades estão
delineadas por um processo ritual. Ao escutar o sino, cada monge se senta sobre seu
zabuton, recita a estrofe de levantar-se, guarda seus pertences, veste seu hábito, se dirige
ao banheiro e, seguindo as instruções, lava seus dentes, rosto, pescoço e ouvidos, sem
desperdício de água. Este procedimento não deve durar mais de 15 minutos, que é o
tempo entre levantar-se e iniciar a meditação matutina.
Além do ritual da alvorada, nas regras estão especificadas a maneira de entrar no sodô
(sala de meditação), de caminhar, de inclinar-se, de reverenciar, de subir e descer do
Tan (plataforma de meditação) onde também comem e dormem, uso dos sanitários e
banheiros; rituais da refeição e o deitar-se para dormir, etc. Isto é, todas as atividades de
um monge Zen em treinamento estão perfeitamente descritas e além disso, cada uma é
precedida por uma breve estrofe de oferecimento para o benefício de todos os seres. Em
cada atividade, se dá ênfase a importância de praticar sem buscar proveito pessoal
algum. Com isto, a atividade repetida de maneira exata permite ver o fato de que todos
os seres estão interconectados e somos interdependentes. O ritual, então, ajuda a
despertar para a mesma realidade que Buda despertou.

Outro aspecto importante é a realização de cerimônias: Há uma repulsa generalizada a


esta forma por se desconhecer sua importância no processo de transformação, apesar de
que através da história se há demostrado sua importância na evolução do ser humano,
como é sinalizado em alguns dos trabalhos de Mircea Eliade[1], Joseph Campbell[2] y
Carl G. Jung[3] entre outros. Temos por um lado o desenvolvimento de um espírito
comunitário que se cultiva a medida que se vai repetindo o ritual; O grupo se harmoniza
e unifica seus movimentos; O comportamento ordinário, a forma de estar de pé, de
caminhar ou sentar-se, são transformados em ações de budas. Por outro lado, os cantos
se recitam de maneira específica, facilitando uma respiração mais ampla com a qual se
produz um bem estar, graças a boa oxigenação e a consequente liberação das tensões
psicofísicas.

Individualmente, o ritual permite retornar à experiência de vida como evento


sagrado, conecta com processos míticos enraizados em estruturas neurológicas que
hajam sido reprimidas conscientemente e que são importantes na saúde psicológica e na
evolução do ser humano. Conforme sinalizam D’Aquili e Newberg, o mito reconcilia e
harmoniza os opostos bem-e-mal, vida-e-morte, proporcionando alívio às preocupações
existenciais[4].

Porém, o ritual mais importante e melhor delineado nos templos Zen é o zazen, a prática
da meditação. Todos os dias, no mínimo duas vezes ele é praticado. Existem manuais
que descrevem com exatidão essa prática, desde a forma de sentar-se, respirar e a
atitude mental. Mestre Dōgen, depois de seu regresso da China em 1227, escreveu o
primeiro texto referente, Fukanzazengi: “Recomendações Universais para a Prática de
Zazen”. É um breve manual que explica em detalhe a forma correta. Neste texto Dōgen
disse que zazen: “é a porta da paz e felicidade, a prática-realização de um despertar
perfeito”

Dōgen continua: “Zazen é a manifestação da realidade última. As armadilhas das redes


do intelecto não podem atrapalhar”. Conforme diz Paula Arai em seu ensaio sobre os
rituais das monjas SotoZen[5], “A mente racional pode entender a inter-dependência,
porém só este conhecimento é insuficiente para produzir a sensação…. a compreensão
intelectual tem demonstrado ser impotente para prover mudança emocional”, Este é o
motivo pelo qual, mesmo que creiamos ter compreendido, nosso comportamento não se
transforma. Apesar de estarmos conscientes, de que se mudamos nossa resposta
impulsiva como ciúme ou ira, poderíamos levar uma vida mais harmônica, não é nada
fácil mudar tal resposta. Para que se possa dar uma verdadeira mudança é necessário
atravessar processos físicos nos quais passemos primeiro por uma experiência e em
seguida a compreensão seja obtida como pensamento racional ao invés do contrário.
Por este motivo, nos processos de transformação profunda o importante é a repetição.
Por meio dela podemos transformar aquilo que é endossado pela repetição inconsciente.
A diferença é que nos processos rituais, o indivíduo se submete ao consciente liberando-
se da necessidade compulsiva de recompensa. Com base em estudos realizados em
praticantes de meditação ou de oração profunda, a neurologia tem demonstrado que
quando um indivíduo repete uma atividade de forma contínua, o sistema-límbico(uma
de suas funções principais é integrar o meio interno com o externo antes de realizar uma
conduta) se sobrecarrega e usa mecanismos de outras estruturas cerebrais para funcionar
adequadamente.

Os doutores Newberg y D’Aquili explicam que: “Quando o sistema nervoso simpático,


encarregado de preparar o indivíduo para uma ação, recebe demasiada informação, o
incremento desta excessiva atividade neural no cérebro põe em alerta o hipocampo,
que é responsável por manter o sentido de equilíbrio no cérebro. Para manter o
equilíbrio, esta parte do cérebro atua regulando o fluxo de informação entre várias
regiões do cérebro. Esta regulação modera o nível de atividade neural, e mantem o
cérebro num estado de equilíbrio relativo. Por exemplo, quando o hipocampo sente que
a atividade no cérebro alcança níveis excessivamente altos(como no caso da
repetição), exerce um efeito inibidor do fluxo neural, de fato, freia a atividade cerebral
até que se estabilize. Como resultado, certas estruturas cerebrais são privadas do
abastecimento normal de informação sensorial para realizar seu trabalho
adequadamente. Quando o fluxo é interrompido, volta a trabalhar com a pouca
informação que esteja disponível.”[6]

A área de orientação associativa está encarregada das funções espaciais, da


diferenciação do indivíduo como elemento separado do entorno. Isto permite gerenciar
o espaço, deslocar-se, alcançar objetos, etc., e esta informação está mudando
permanentemente à medida que  se vai recebendo mais informação sensorial da
mudança do entorno. Por este motivo, não reagir aos estímulos sensoriais durante a
meditação é tão importante. Conforme Dr. James Austin[7], nos processos de meditação
profunda, os circuitos frontais e temporais e outras estruturas do sistema límbico, que
marcam o tempo linear, bloqueiam a auto-consciência.

Quando estas zonas do cérebro são silenciadas o indivíduo passa da noção de separação
e existência espaço-temporal para uma consciência de inter-conectividade com o todo.
Esta é uma das causas principais pelas quais no Zen toda atividade deve ser ausente de
espírito de proveito pessoal. Enquanto sigamos buscando benefício próprio durante a
meditação, continuaremos separando-nos do entorno, pois não permitimos que nossa
zona de orientação  associativa se desconecte já que seguimos mandando informação,
ao sistema límbico, de que estamos realizando um processo de aprendizagem e este
envia a informação ao neo-cortex (a capa mais externa do cérebro) para racionalizar a
experiência e  em seguida armazena-la na memória.

Com base no estudo neuro-fisiológico sobre a meditação, podemos compreender melhor


as palavras de Mestre Dōgen quando diz que a prática e o despertar não são separados.
Não se trata de alguém praticando zazen mas sim que o zazen, buda, todas as
existências e praticantes são a manifestação presente, que torna reais: a consciência
universal, a rede de Brahma, o Sunyata, a Mente Buda, o Universo, ou qualquer nome,
que através da história, tenha sido dado a Realidade Única isenta das armadilhas dos
preconceitos do racional.
O mais importante, na perspectiva da prática conforme Chi-fo (citado por Red Pine em
seus comentários sobre o Sutra do Diamante): “Nas ações cotidianas  como vestir,
comer, lavar-se e sentar-se, Buda nunca deixava de manifestar a maravilhosa ação da
mente verdadeira e neste exemplo estava contida a essência da perfeita-
sabedoria(prajna).[8]”   Ao atuar como budas em cada ação cotidiana, somos buda.

[1] Eliade, Mircea. Nacimiento y Renacimiento, El significado de la iniciación en la


cultura humana. Editorial Kairos. Barcelona, 2001. Trad. Miguel Portillo Díez

[2] Campbell, Joseph. El Héroe de la mil Caras. Fondo de Cultura Económica. México,


1992

[3] Jung, C.G. “Arquetipos e Inconsciente Colectivo”. Ed. Paidós, SAICF; Ed. Paidós


Ibérica, S.A. Barcelona. 1991

[4] Newberg, Andrew MD Eugene D’aquili MD, PH.D. Why God Won’t Go Away.
Brain Science & the Biology of belief. Ballantine Books. New York, 2001. p. 62

[5] Arai, Paula K.R. Women and Dōgen: Rituals Actualizing Empowerment and


healing. Zen Ritual, Studies of Zen Buddhist theory in practice. Edited by Steven Heine
and Dale S. Wright. Oxford University Press. New York, 2008.

[6] Newberg & D’Aquili. Op. Cit. P.87

[7] Austin, James H., MD. Zen and the Brain, toward an understanding of meditation
and consciousness. The MIT Press. Cambvridge, 1998. P. 566

[8] The Diamond Sutra. Text and Commentaries By Red Pine. Counterpoint.


Berkeley2001.

https://zendobrasil.com/2019/12/30/o-ritual-zen-e-o-cerebro/

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