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A aposta de Pascal

 12/12/2019    Desidério Murcho

por Desidério Murcho

Tanto crentes como não-crentes consideram por vezes que as tentativas de provar que Deus
existe são descabidas, porque a crença religiosa não é uma questão de provas. Diz-se por vezes
que o amor que a Clara tem pela Joana não é uma questão de provas — apenas a ama, e é tudo.
Do mesmo modo, acreditar que Deus existe estaria também para lá das provas.

O fideísmo é uma família de posições filosóficas que desenvolve esta maneira de ver as coisas.
A ideia é que a crença de que Deus existe não só não se apoia muitas vezes em provas, como
não precisa realmente delas para ser apropriada. Repare-se que a ideia não é apenas que
muitas pessoas acreditam que Deus existe sem provas; isso é talvez verdadeiro, mas
irrelevante, pois muitas pessoas ao longo da história também acreditaram sem provas que
nada havia de errado com a escravatura, que as mulheres não deviam ter direitos iguais e que
amar pessoas do mesmo sexo era uma doença. As pessoas acreditam nas mais estafadas
tolices; a questão é saber se acreditam de maneira apropriada, ou se pelo contrário acreditam
irresponsavelmente. Um dos aspectos do fideísmo é a ideia de que é apropriado, em alguns
casos, acreditar que Deus existe, mesmo sem provas da sua existência. E é aqui que entra a
famosa aposta de Pascal.

Blaise Pascal foi um importante matemático e teólogo católico francês do século XVII; nasceu
em 1623 e morreu em 1662, com apenas 39 anos. No seu tempo, estava em marcha o que ficou
mais tarde conhecido como a revolução científica: um período que se estendeu até finais do
século XIX e no qual ciências como a física, a química e a biologia conheceram
desenvolvimentos ímpares na história da humanidade. Uma das consequências de todo este
desenvolvimento científico foi a descoberta de que várias crenças históricas e científicas
associadas ao teísmo cristão eram pura e simplesmente falsas. Tornou-se difícil continuar a
acreditar no teísmo como Anselmo e Tomás acreditavam. Daí que Pascal afirme o seguinte:

Se há um Deus, ele está infinitamente para lá da nossa compreensão, uma vez que, sendo
indivisível e sem limites, não tem qualquer relação connosco. Somos portanto incapazes
de saber o que ele é e se é. (Pascal, Pensamentos, §418)

Tanto Tomás como Anselmo ficariam perplexos com esta afirmação, sobretudo porque Pascal
era cristão. Até então, era comum os cristãos considerarem que havia provas perfeitamente
boas da existência da sua divindade. A própria Bíblia era encarada como uma fonte fidedigna de
informações históricas que provavam a existência dessa divindade. Porém, à medida que se foi
descobrindo que grande parte da informação supostamente histórica e científica presente na
Bíblia não era verdadeira, e à medida que se foi descobrindo que o Universo não era afinal
como os cristãos pensavam, tornou-se cada vez mais comum encontrar esta posição a que
Pascal dá voz.

Tal como noutras formas de fideísmo, Pascal parte da ideia de que não há provas adequadas de
que Deus existe, nem de que não existe. Deste ponto de vista, há como que um empate das
provas a favor e contra a existência de Deus. Contudo, este ponto de partida é uma
consideração pessoal e subjectiva; não é o resultado de um exame cuidadoso e exaustivo das
provas a favor e contra a existência de Deus. Concluir adequadamente que as provas para um
lado e para o outro se anulam ou equilibram é muito mais difícil do que parece à primeira vista.
Isto porque não basta apresentar algumas provas duvidosas; é preciso ser exaustivo e procurar
as melhores provas a favor da existência de Deus. Depois, é preciso examiná-las para ver se são
todas deficientes. Mas mesmo isto ainda não basta; ainda falta comparar o peso relativo das
dificuldades encontradas nessas provas com a plausibilidade da hipótese da inexistência de
Deus, e das eventuais provas a seu favor. Ver apenas que algumas provas que nos pareciam
definitivas deixam muito a desejar está longe de ser uma boa prova de que não se pode saber
que Deus existe nem que não existe.

Como é evidente, fica-se surpreendido, e com razão, que seja um crente a declarar que afinal
não há provas adequadas da existência de Deus. Nesse caso, por que razão continua ele a
acreditar que Deus existe? Não seria muitíssimo mais razoável suspender a crença e adoptar
uma posição agnóstica?

Perante qualquer crença, seja ela religiosa ou não, há sempre três atitudes. Vejamos no caso da
crença de que Deus existe:

1. Acreditar que Deus existe.


2. Acreditar que Deus não existe.
3. Não acreditar que Deus existe, nem que não existe.

1 é a posição de uma pessoa crente e 2 a de uma ateia. Ambas têm uma crença relativa à
existência de Deus, e ambas contrastam com a posição 3, que é a da pessoa agnóstica. Esta
última nem acredita que Deus existe, nem acredita que não existe; limita-se a suspender a
crença. Isto é algo que fazemos muitas vezes. Por exemplo, é de prever que as pessoas, na sua
maioria, não acreditam que existem extraterrestres inteligentes que pesam duzentos quilos;
mas também não acreditam que não existem. Simplesmente, não têm qualquer crença quanto
a isso.

Este aspecto elementar da lógica da crença não é rejeitado por Pascal; porém, o seu raciocínio
desenvolve-se pressupondo que, na prática, tanto faz acreditar que Deus não existe como não
acreditar que existe, porque em ambos os casos não somos crentes. De modo que Pascal
formula a questão em termos de duas alternativas apenas: acreditar ou não? E a resposta de
Pascal é que é irracional não acreditar em Deus, se pensarmos cuidadosamente nas
alternativas:

Deus existe e acredito; ganho o infinito.


Deus existe e não acredito; perco o infinito.
Deus não existe e acredito; o que perco não é significativo.
Deus não existe e não acredito; o que ganho não é significativo.

Chama-se aposta de Pascal à atitude de apostar na crença porque é a mais vantajosa das


quatro alternativas. É a mais vantajosa porque promete um ganho infinito, nada de substancial
se perdendo caso se perca a aposta. Em contraste, se não acreditarmos, arriscamo-nos a perder
o infinito, e o que se ganha, se Deus realmente não existir, é negligenciável.

A aposta de Pascal compreende-se mais claramente com outro exemplo. Imagine-se que
alguém nos propõe um negócio mafioso que custa apenas dois reais. Se existir vida em Marte,
esses dois reais rendem-nos duzentos milhões de reais. Se não existir vida em Marte, só
perdemos os dois reais. Contudo, se recusarmos delicadamente o negócio, o mafioso puxa da
pistola e diz-nos que, nesse caso, se existir vida em Marte, teremos de pagar duzentos milhões
de reais. Mas se tivermos a sorte de não existir vida em Marte, diz-nos ele com um sorriso
benevolente, guardando a pistola, poupamos os dois reais e nada mais acontece. Eis as
alternativas:

Há vida em Marte e aposto; ganho duzentos milhões de reais.


Há vida em Marte e não aposto; perco duzentos milhões de reais.
Não há vida em Marte e aposto; perco dois reais.
Não há vida em Marte e não aposto; poupo dois reais.

Caso isto nos fosse proposto, o mais vantajoso seria, evidentemente, abrir a carteira e apostar
dois reais na existência de vida em Marte. No máximo, perdemos dois reais — mas talvez
ganhemos duzentos milhões. E se não apostarmos, arriscamo-nos a ter de pagar duzentos
milhões de reais. Claro que neste caso seria irracional não apostar na existência de vida em
Marte.

E é isto que Pascal tinha em mente. Do seu ponto de vista, é irracional não ser crente porque no
máximo perde-se tempo com rituais e tudo isso, mas talvez ganhemos o infinito. Em contraste,
se não formos crentes, o que se ganha é pouco importante, mas arriscamo-nos a perder o
infinito.

Terá Pascal razão?


Pascal pensa que a crença religiosa promete o infinito, e este conceito é fundamental no seu
pensamento. Isto é até um pouco estranho precisamente porque Pascal era matemático e
deveria saber que nada há de especialmente misterioso nos vários infinitos matemáticos. Mas
ele usa este conceito, e não o de vida paradisíaca no além, precisamente porque está a pensar
na sua aposta em termos matemáticos: de um lado, a hipótese de ganhar o infinito, ou de o
perder; e, do outro, a hipótese de ganhar ou perder ninharias que, face ao infinito, são
irrelevantes. A ideia é precisamente que perante a hipótese de um ganho infinito, ou de uma
perda infinita, qualquer outra hipótese fica infinitamente em segundo plano.

Porém, como sabe Pascal que a crença sem provas nos dá a hipótese de ganhar o infinito? Uma
vez que ele começa por admitir que não sabe se Deus existe, nem qual é a sua natureza, isto
significa obviamente que também não sabe se Deus nos recompensa com o infinito quando
acreditamos sem provas. Talvez, ao invés, Deus nos castigue com a danação eterna caso
acreditemos sem provas — talvez porque isso significa que usámos mal as capacidades
racionais dadas por Deus. Ou talvez Deus castigue os interesseiros, que acreditam na ausência
de provas só porque estão a pensar em ganhar o infinito. Como sabe Pascal que as coisas não
são assim, dado que confessa não saber se Deus existe, nem qual é a sua natureza? A perda do
infinito quando se acredita sem provas não é uma alternativa menos plausível que qualquer
outra para quem confessa não saber se Deus existe, nem qual é a sua natureza.
Consequentemente, a aposta de Pascal está longe de parecer promissora. Esta é uma primeira
dificuldade, e é muitíssimo séria.

Para ver uma segunda dificuldade, imagine-se que, de algum modo, Pascal consegue mostrar
que Deus concede a graça do infinito a quem acredita sem provas. Mesmo assim, ele teria ainda
de explicar o que há assim de tão desejável no infinito.

Pascal usa o termo «infinito», e limita-se a pressupor que isso é desejável. Porém, está longe de
ser óbvio que o seja. Na Antiguidade grega, por exemplo, o filósofo Epicuro respondia às
inquietações que os seus contemporâneos sentiam com a morte explicando-lhes que a morte
era o fim de tudo, e que por isso nada havia a recear. Isto porque na mitologia grega se
explicava a morte da seguinte maneira: quando uma pessoa morre, perde a vida, mas continua
a existir infinitamente, como uma sombra, no mundo dos mortos. Esta existência é terrível
porque os mortos não têm vida, e não podem pôr fim a essa terrível condição. Eis um infinito
nada desejável.

É evidente que Pascal imagina que o infinito é a vida eterna no paraíso que faz parte da crença
especificamente cristã. Porém, se Deus «está infinitamente para lá da nossa compreensão», nas
palavras do próprio Pascal, como sabe ele que o infinito não é o que se imaginava na mitologia
grega? Nesse caso, o melhor a fazer não é ser crente, mas antes descrente, pois só isso nos
libertará do pesadelo de existir para todo o sempre como uma sombra sem vida no mundo dos
mortos.

Há muitas versões de fideísmo, mas a de Pascal continua a ser uma das mais fascinantes.
Infelizmente, enfrenta dificuldades de monta. É extraordinariamente difícil, ou impossível,
concluir apropriadamente que é preferível ser crente sem estabelecer primeiro que Deus existe,
e sem saber qual é a sua natureza.
Além disso, os seres humanos não mandam irrestritamente nas suas próprias crenças: quando
uma pessoa está a ver nevoeiro, dificilmente consegue convencer-se que está a ver um dia de
Sol radioso. Só com extremo autoengano conseguimos obrigar-nos a acreditar no que não
temos provas, e não é de prever que isso nos deixe num estado psicologicamente saudável.

Não se deve confundir a crença de que Deus existe com a esperança de que exista. As
condições em que é razoável acreditar que existe uma divindade são diferentes das condições
em que é razoável ter a esperança de que exista. Porém, mesmo no caso da esperança, é
muitíssimo difícil defender adequadamente que não é preciso ter boas provas. A esperança sem
provas é, em alguns casos, um obstáculo a uma vida humana bem vivida, porque priva a pessoa
de procurar a vida melhor que conseguiria ter, enquanto espera pela vida imaginária que nunca
terá.

Uma maneira de reformular a aposta de Pascal para resolver as dificuldades anteriores é a


seguinte: elimine-se a ideia de infinito e ponha-se em seu lugar a ideia de uma vida humana
bem-sucedida, como crente religioso. A ideia então é que é preferível ser crente do que não o
ser, mas não devido à promessa do infinito; é preferível sê-lo simplesmente porque teremos
uma vida melhor.

É muitíssimo duvidoso que Pascal aceitasse esta reformulação, mas tem certamente a
vantagem de resolver as dificuldades anteriores. Contudo, enfrenta uma dificuldade diferente: é
que são precisas provas para sustentar a ideia de que uma vida de crente é realmente melhor
do que a de uma pessoa que não é crente. Muitas pessoas crentes tiveram vidas maravilhosas e
inspiradoras, com actos de grande altruísmo, criando valor e beleza; mas muitas outras têm
vidas mesquinhas e desinteressantes, ou até positivamente repugnantes. E o mesmo acontece
com a vida de muitos descrentes: alguns são escritores e músicos maravilhosos, generosos e
altruístas, dando importantes contribuições para um mundo melhor, e outros têm vidas
mesquinhas e desinteressantes.

Sem provas adequadas, não se sabe se uma vida de crente é realmente melhor do que a de
uma pessoa que não é crente, desde que tudo o resto seja igual. E, por isso, a aposta
reformulada de Pascal não oferece uma maneira de escolher apropriadamente ser crente na
ausência de provas. É verdade que não precisamos de provas de que Deus existe; mas
precisamos de provas de que a nossa vida será melhor se formos crentes do que se não o
formos.
Desidério Murcho
Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade
Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar
da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede.

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