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Ética no Serviço Público: Uma Introdução

Working Paper · October 2017

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1 author:

Marcello Beckert Zappellini


Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianopolis
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ÉTICA NO SERVIÇO
PÚBLICO: Uma
introdução

Marcello B. Zappellini

Chapecó, outubro de 2017

1
Apostila preparada para uso dos servidores técnico-administrativos da Udesc – Campus
Chapecó

Autor:
Marcello B. Zappellini é graduado em Administração (Esag/Udesc, 1993) e Ciências
Econômicas (UFSC, 1992). Mestre (UFSC, 1996) e doutor (UFBA, 2012) em Administração.
É professor dos cursos de graduação em Administração Pública e Ciências Econômicas e do
Mestrado Acadêmico em Administração da Esag/Udesc. Diretor Acadêmico e Coordenador
do curso de Administração da Faculdade Energia de Administração e Negócios – Fean. Líder
do grupo de pesquisa Callipolis – Políticas Públicas e Desenvolvimento da Esag/Udesc. Autor
de artigos publicados em revistas acadêmicas brasileiras e anais de eventos nacionais e do
livro Gestão Pública por Resultados na Administração Pública (e-book publicado pela Editora
Imaginar o Brasil em 2015).

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CONTEÚDO

Introdução
Ética e moral
Teorias éticas
Ética e Administração Pública
Considerações finais
Referências

3
Introdução

Atualmente, a ética na Administração Pública é um assunto que surge amiúde nas


discussões, mas ainda se mostra razoavelmente obscuro. Embora a maioria das pessoas tenha
uma definição e possa explicar o que entende por ética, não há
Este trabalho visa oferecer uma breve introdução a respeito dos problemas e desafios
da ética na Administração Pública. Como tal, sua perspectiva é basicamente descritiva,
embora naturalmente não deixe de abordar aspectos normativos referentes à problemática,
tampouco se exima de introduzir juízos de valor em diversos momentos. Considerando-se o
relativismo com que a ética e a moral têm sido tratadas, a simples escolha de autores já
representa uma tomada de posição e impede quaisquer pretensões à neutralidade.
O texto está organizado nas seguintes seções:
1. Conceitos de ética e moral;
2. Teorias éticas: o consequencialismo, a deontologia e a virtude;
3. Desafios e problemas da ética na Administração Pública;
4. Considerações finais: o que se conclui do debate?
As referências bibliográficas não devem ser consideradas como a listagem das obras
citadas neste trabalho, mas como uma listagem de indicações de leituras para aqueles que se
interessarem pelo assunto e desejarem se aprofundar.

4
Seção 1: Ética e moral

No Ocidente, a reflexão filosófica tem sua origem na civilização grega, inicialmente


preocupando-se com o mundo, a natureza e o universo, passando a tratar de problemas
humanos a partir do século V a.C., quando Sócrates se voltou para questões como a virtude, o
viver bem e o saber. Boutroux (2015) demonstra que Sócrates nunca se preocupou com a
física, que condenava como “vã”, “estéril” e “sacrílega”, dedicando-se mais à sofística,
distinguindo (diferentemente dos sofistas) entre os fins (o bem falar, o bem agir, o bem
administrar a casa e a polis) e os meios (o exercício rotineiro daquela ação que se tentava
dominar e se tornar hábil). Sócrates, então, questionava os sofistas, que ensinavam os jovens
atenienses sobre a piedade, a virtude, a justiça e a coragem, mas não sabiam definir essas
palavras sem se contradizerem (BOUTROUX, 2015).
Ao longo dos séculos, essas questões foram se tornando cada vez mais complexas e
mais variadas, embora existe um consenso em torno das respostas sobre o problema. Ainda
assim, é possível afirmar que esses questionamentos são parte da natureza humana, pois suas
respostas definem o que é certo e o que é errado, bem como as formas pelas quais devemos
nos conduzir em relação aos nossos pares (FURROW, 2007): existem diferentes concepções
sobre o que o certo e o errado e quais regras de conduta devemos seguir.
David McNaughton (1988) considera que a experiência dos valores é uma constante
nas nossas vidas, e que todo entendimento de nós mesmos e do mundo (isto é, o entendimento
filosófico) demanda uma consideração dessa experiência. Os valores, afirma o autor, estão
presentes na natureza, na arte, nas nossas vidas e nas de outras pessoas – e justamente neste
caso encontra-se o objeto da ética, quando consideramos uma pessoa como boa ou má, e suas
ações como justas ou injustas, certas ou erradas (McNAUGHTON, 1988). Quanto aos valores
da natureza e da arte, a estética toma conta deles.
É importante destacar um aspecto: a ética diz respeito à conduta do indivíduo dentro
de um ambiente e em relação a outras pessoas. O filósofo britânico Simon Blackburn (2001)
considera que vivemos em um ambiente ético tanto quanto no físico, ambiente este que
envolve respostas a algumas perguntas:
a) O que achamos aceitável e inaceitável?
b) O que consideramos admirável? O que não se pode admirar?

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c) Nas relações com os outros, o que nos é devido, e o que as pessoas podem esperar de
nós?
d) O que significa dizer que as coisas vão bem, e o que é dizer que vão mal?
e) O que nos causa orgulho? O que nos traz vergonha?
f) O que nos causa raiva? O que nos traz gratidão?
g) O que podemos perdoar, e o que é imperdoável?
Assim sendo, nossos padrões de conduta são definidos e compartilhados. Os seres
humanos, ao viverem em uma coletividade, por menor que seja, precisam compartilhar
respostas em comum, precisam viver de acordo com padrões de comportamento e ação
aceitáveis uns aos outros, pois isso é o que lhes traz o bem. Há mais de 2.300 anos atrás,
Aristóteles afirmava: a finalidade de todas as coisas é o bem, e o bem é desejável por si só, é
algo final, nunca um meio para outras coisas, como a riqueza e a honra, é o fim para o qual
todas as coisas tendem (ARISTÓTELES, 2014).
O maior bem que podemos almejar, afirma Aristóteles, é a felicidade. Este é o bem
soberano, pois é desejado por si só, jamais como uma forma para alcançar outros objetivos; a
felicidade é um fim perfeito, pois autossuficiente, e deve ser buscada no seio de uma
comunidade, pois o homem é um animal político e só pode alcançá-la no convívio com outras
pessoas (LABARRÉRE, in CANTO-SPERBER, 2003).
Dito isto, é possível entender a ética como a reflexão sobre a ação empreendida pelo
ser humano na busca do bem, na busca da felicidade; acrescente-se a isso o fato de que a
felicidade demanda outros seres humanos, cujos projetos de vida, ações e interesses devem ser
considerados.
A ética, observam Cortina e Martínez (2005), possui três funções:
a) Em primeiro lugar, ela deve esclarecer o que se entende por moral;
b) Em seguida, ela deve fundamentar racionalmente a moral;
c) Por fim, deve aplicar na vida social os resultados obtidos com o desempenho das duas
funções acima.
A ética possui duas dimensões, uma prática, outra reflexiva. No caso da prática, tem-
se em mente as ações efetivamente desempenhadas pelo ser humano na busca da felicidade e
do bem viver, e no da reflexão, o pensamento rigoroso e sistemático a respeito de como se
pode definir e justificar essas ações; essa reflexão faz parte da Filosofia, é uma de suas
subdivisões, e permite não apenas compreender as ações empreendidas, mas também defendê-
las perante os críticos e os céticos. Assim, os filósofos espanhóis Cortina e Martínez (2005)

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compreendem a ética como uma parte da Filosofia que constrói racional e rigorosamente um
saber normativo, ou seja, aquele que orienta as ações humanas por meio de conceitos e
argumentos sobre a dimensão moral da vida – e “moral” é outro conceito que precisa ser
explicitado; mas, antes disso, vejamos algumas considerações do filósofo norte-americano
Robert C. Solomon (1942 – 2007) a respeito da ética.

BOX 1: Definindo a ética


Para Robert Solomon, a ética é a parte da filosofia interessada no viver bem, em ser uma boa pessoa, em
fazer a coisa certa, em conviver com outras pessoas e em desejar as coisas certas na vida. Ela é essencial
para a vida em sociedade, cujas instituições, tradições e práticas devem ser avaliadas eticamente. A ética
possui tanto uma dimensão pessoal quanto uma social, mas, na prática, é muito difícil separá-las, pois os
valores que possuímos são aprendidos e compartilhados com outras pessoas.
Ética se refere tanto a uma disciplina (o estudo dos valores e suas justificativas) quanto ao assunto por ela
estudado (os valores e regras de conduta realmente adotados em nossas vidas).
(SOLOMON, 2006)

Isto posto, é preciso investigar o que se entende por moral. Em primeiro lugar, convém
ter em mente que o termo “ética” deriva do grego ethos, cujo significado é caráter, e “moral”,
do latim mores, que se refere aos costumes, hábitos e ao caráter. Julia Annas (in BECKER;
BECKER, 2001) afirma que os dois termos foram usados de maneira intercambiável, mas
recentemente começaram a ser distinguidos, ao menos no plano teórico, em que a ética é vista
como mais ampla do que a moralidade. O filósofo norte-americano James Rachels (1941 –
2002) considera a filosofia da moral como sendo uma tentativa de entender sistematicamente
a natureza da moralidade e o que ela exige de nós – no entanto, é impossível definir de modo
simples e incontestável o que se entende por moralidade.
Embora seja difícil entender o que seja a moralidade, alguns elementos são comuns, e
o próprio Rachels (2006) apresenta os que considera mais importantes:
a) Julgamentos morais não são simples questões de “gosto” ou “não gosto”, eles se
sustentam em razões válidas. A moralidade envolve consultar a razão, e as coisas
certas a serem feitas envolvem as melhores razões morais;
b) É preciso considerar imparcialmente os interesses de cada indivíduo. Isso quer dizer
que, do ponto de vista moral, os interesses e o bem-estar dos outros envolvidos são tão
importantes quanto o meu próprio.
Com tudo isso em mente, Rachels apresenta um conceito mínimo de moralidade (ver
Box 2).

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BOX 2: Definindo a moralidade:
“Moralidade é, minimamente, o esforço em guiar a conduta do indivíduo por meio da razão – ou seja,
fazer algo para o qual haja as melhores razões para fazê-lo – enquanto ao mesmo tempo se dá um peso
igual aos interesses de cada indivíduo que será afetado pelo que alguém faça.”
(RACHELS, 2006, p. 15)

Rachels (2006) também definiu o agente moral de forma admirável ao afirmar que é
alguém preocupado imparcialmente com os interesses de cada pessoa que seja afetada por
suas ações; que separa os fatos e examina suas implicações; só aceita os princípios de conduta
após rigorosa análise de sua consistência; ouve as razões de outras pessoas mesmo quando
isso implica em revisar convicções básicas; age com base nos resultados de todas essas
deliberações. O pensamento moral dá conta do justo e do injusto, do certo e do errado, do
bom e do mau, e consiste no objeto da ética (McNAUGHTON, 1988).
O tratamento dado acima ao assunto pode induzir uma pessoa a considerar que a moral
diz respeito simplesmente ao indivíduo. No entanto, essa ideia seria incorreta. O intelectual
brasileiro Antonio Paim (1925 - ) trata de dirimir essa questão ao mencionar que a moral pode
ser vista como o conjunto de regras de conduta aceitas em determinadas épocas, embora
possam ser consideradas como universalmente válidas (PAIM, 1992). O autor ainda aponta:
as ações humanas individuais podem ser consideradas racionais ou irracionais, mas no plano
coletivo são irracionais, pois atrapalham-se mutuamente, contradizem-se, seus fins não são
alcançados (PAIM, 1992).
Dessa maneira, a moral e a ética convergem no sentido de que esta representa a
reflexão sobre aquela. O indivíduo age moralmente, reflete eticamente; em ambos os casos,
ele considera os outros, não somente em termos dos seus interesses, mas também do que
fariam. O agente moral sabe que sua opinião pessoal não basta para conferir caráter ético à
sua ação, é preciso considerar as normas que os demais aceitam. E aqui reside uma
divergência: a reflexão ética pode considerar imoral ou amoral determinada conduta que a
prática consagrou em uma comunidade ou aceitar como moral uma prática que um grupo
social condena. Dito de outra maneira, é possível a um filósofo leigo justificar eticamente o
aborto, mesmo sabendo que cristãos o condenam tanto quanto um filósofo cristão poderia
condenar a mesma prática, ainda que esteja dentro do que é legal e aceitável dentro de uma
dada sociedade.
Isso ilustra alguns dos problemas que a ética enfrenta. O fato de ser racional não a
torna obrigatória para todos nem perfeitamente aceitável – apenas justifica as suas

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proposições, nada diz sobre sua verdade. Este pode parecer muito grave, mas existem outros
problemas importantes (ver Box 3).

BOX 3: Problemas enfrentados pela ética


1) A morte de Deus: uma forma de fundamentar ações éticas é de acordo com os preceitos
revelados por um Deus. Surge, então, uma pergunta: se Deus não existe, o que se pode afirmar
sobre essa ética?
2) Relativismo: algumas comunidades aceitam padrões rejeitados por outras, e o que foi
considerado moral em determinado momento pode ser rejeitado em outro, e vice-versa. Assim,
conclui-se que a moral não pode aspirar a uma verdade absoluta. Entretanto, deve-se ter em
mente que, embora o conteúdo mude, as regras morais permanecem;
3) Egoísmo: mesmo que uma pessoa seja altruísta e procure apenas fazer o bem aos outros, é
possível argumentar que ela o faz porque isso lhe agrada e atende aos seus interesses pessoais;
4) Teoria da evolução: biólogos argumentam que o ser humano age de acordo com
“programações” genéticas, e por isso não possui liberdade de ação (suas ações morais não são
escolhidas, mas determinadas pela evolução biológica);
5) Determinismo e futilidade: a ética se torna um simples exercício de futilidade em um contexto
no qual o comportamento moral é determinado e programado geneticamente. A ética se torna
um exercício intelectual inútil.
(BLACKBURN, 2001)

Diante do que foi exposto até o momento, é possível considerar que a ética seria capaz
de guiar a ação do ser humano em qualquer contexto em que seja aplicada. No entanto, a
realidade não confirma essa proposição. O indivíduo, o agir moralmente, se defronta com
múltiplas complicações, dentre elas, as obrigações morais que assume. Tentando compreender
essas obrigações, estabelece-se, aqui, um modelo em diferentes níveis:
a) O indivíduo é o nível mais básico de análise. Cada pessoa busca sua própria
felicidade, a realização de seus projetos pessoais, a preservação da própria vida, a
satisfação de suas necessidades;
b) O nível familiar abrange as relações e obrigações que estabelecemos com a nossa
família, como a proteção dos filhos, a ajuda a irmãos, primos, tios que atravessem
dificuldades pessoais, etc.;
c) O nível das relações de amizade consiste nas obrigações que assumimos em relação
aos nossos amigos, como ajudá-los em seus projetos, socorrê-los quando atravessam
dificuldades, entre outras;
d) O quarto círculo envolve as obrigações éticas para com a sociedade. Neste caso, as
questões são muito mais complexas e envolvem considerações de justiça, de igualdade
de tratamento, de distribuição de privilégios e vantagens na vida social, na definição e
proteção de padrões de vida, ética e padrões de desempenho profissional, dentre

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outras. É importante observar que, neste nível de análise, a pessoa já não se encontra
mais na esfera de suas relações de intimidade;
e) O nível ambiental se refere a questões que dizem respeito à preservação dos
ecossistemas e dos seres vivos, definição dos direitos de uso de recursos naturais, o
reconhecimento dos direitos dos animais, a preocupação com a manutenção da
qualidade de vida das gerações futuras, etc. Neste nível, a pessoa está se preocupando
não somente com o presente, mas também com o futuro;
f) O nível da história é o mais amplo, e pode transportar a pessoa tanto para o passado
quanto para o futuro. Aqui, as preocupações morais envolvem questões como a
reparação de danos causados pelos nossos ancestrais no passado, a construção de
condições sociais, políticas e econômicas para a vida dos nossos descendentes, entre
outras.
A figura 1 apresenta esquematicamente o modelo:

FIGURA 1: Um modelo de níveis para as obrigações éticas

Nível 6: Relações históricas

Nível 5: Relações com o


ambiente

Nível 4: Relações sociais

Nível 3: Relações de
amizade

Nível 2: Relações
familiares

Nível 1: O
indivíduo

Fonte: Elaboração do autor, 2016.

O modelo proposto se refere à consideração de questões éticas por parte da pessoa, e


deve ser considerado flexível: nada impede que alguém coloque as relações de amizade como
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mais importantes do que as familiares, por exemplo, e também não significa que uma pessoa
vá cumprir suas obrigações para com a sociedade antes de cumprir as familiares. O que o
modelo propõe é uma escala de pensamento para analisar decisões éticas, principiando pelos
efeitos sobre a vida pessoal e chegando a uma escala global.
Independentemente do que se propôs acima, muitas teorias diferentes já foram
propostas para auxiliar a tomar decisões éticas, mas, independentemente delas, há situações
em que as dúvidas sobre como agir são maiores do que imaginamos – e há situações em que,
diante de uma escolha, mais de uma opção se mostra possível. Nesse momento, configura-se
um dilema.
Existem muitas discussões sobre o que é um dilema moral ou ético, Christine Tappolet
(in CANTO-SPERBER, 2003) considera que estamos sempre diante de escolhas morais
difíceis, e no caso da moralidade, diante de situações em que é impossível realizar duas ações
ao mesmo tempo e não temos bases para escolher o que seria nosso dever; isso pode ocorrer
tanto porque não sabemos qual seria nosso dever, quanto porque duas obrigações podem
estar ocorrendo ao mesmo tempo, e não podemos cumprir ambas simultaneamente.
Citando o filósofo britânico Bernard Williams (1929 – 2003), que se dedicou ao assunto, a
autora distingue dois tipos de conflitos morais:
a) Solúveis: são aqueles em que é possível definir qual seria a principal obrigação moral
em jogo, e agir conforme sua primazia. Por exemplo, uma pessoa que se dirige para
um encontro com outra tem a obrigação da pontualidade, mas tem uma obrigação
moral mais forte de auxiliar e socorrer uma vítima de um acidente que ela venha a
encontrar no meio do caminho;
b) Insolúveis: neste caso, não é possível estabelecer a obrigação moral mais importante.
O dilema clássico enunciado por Jean-Paul Sartre (1905 – 80), filósofo existencialista
francês, é um bom exemplo: um estudante francês cujo pai foi morto pelos nazistas
durante a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial não sabe se deve se juntar à
Resistência e, com isso, vingar a morte do pai, ou se permanece em casa e ajuda a mãe
a sobreviver.

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A formulação de Rushworth M. Kidder (1944 – 2012), escritor norte-americano que
fundou em 1990 o Institute for Global Ethics, mostra-se muito interessante. Em linhas gerais,
para Kidder (2006), um dilema ético ocorre quando uma pessoa tem que decidir entre dois
rumos de ação que lhe parecem corretos. Há, para a pessoa envolvida, um conflito entre
valores morais que ela defende.

BOX 4: Um dilema moral


Um professor tem um aluno excelente, que sempre se destaca nas atividades discentes. No entanto, em
uma prova dissertativa, o aluno tem um desempenho muito ruim. Investigando o caso, o professor
descobre que, nas últimas semanas, a mãe do aluno esteve internada em um hospital, e ele a
acompanhou durante o período, o que lhe impediu de estudar. O professor pode ser leniente na
correção da prova, conferindo notas mais altas do que aos colegas com respostas similares – mas isso
seria injusto para com os outros. Por outro lado, ele pode manter a nota – mas se o fizer, o desempenho
do aluno sofrerá e ele perderá uma bolsa que lhe garante os estudos.

Os dilemas morais propostos por Kidder (2006) podem ser trabalhados a partir de um
método relativamente simples, que começa com a coleta das informações relevantes para
entender a situação e seu contexto, continua com a busca de alternativas que permitam
contornar o dilema, e chega a uma busca por soluções baseadas em princípios. O autor, então,
propõe alguns princípios aplicáveis:
a) Faça aquilo que for melhor para o maior número de pessoas;
b) Siga os mais elevados juízos ou princípios;
c) Faça o que você quer que façam a você (KIDDER, 2006).
O primeiro princípio conduz a uma ética dos fins, uma ética consequencialista. O
segundo, por sua vez, a uma ética deontológica, porque baseada em princípios gerais que
todos deveriam obedecer. O terceiro, a uma ética do cuidado, voltada para a ideia de que nós,
seres humanos, temos obrigações morais referente ao cuidado com outras pessoas. Esses três
princípios formam a base para algumas das teorias morais mais difundidas atualmente, e
podem ser complementados por um quarto, que diz respeito a agir conforme a razão justa e
esclarecida recomenda – um princípio de ética das virtudes, a mais antiga de todas as teorias
éticas, e uma das mais influentes. A seção 2 vai introduzir às éticas consequencialista,
deontológica e das virtudes; a ética do cuidado, a formulação mais recente de todas, ainda não
se encontra suficientemente desenvolvida.

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Adendo à seção 1

Não sendo possível apresentar, dentro dos limites deste trabalho, uma história da ética
ocidental, e reconhecendo (como faz MacIntyre, 1976) que o entendimento do pensamento
ético não pode ser desassociado da sua história, acreditamos ser interessante listar alguns dos
filósofos mais relevantes para a compreensão da evolução do pensamento moral ao longo da
história da humanidade:

QUADRO 1: Alguns filósofos relevantes para a evolução histórica da ética e da moral


IDADE
IDADE ANTIGA IDADE MÉDIA IDADE MODERNA SÉCULO XX
CONTEMPORÂNEA
G. E. Moore (1873 –
1958)
Nicolau Maquiavel Jean-Paul Sartre
(1469 – 1527) (1905 – 1980)
Sócrates (469 a.C. Thomas Hobbes R. M. Hare (1919 –
– 399 a.C.) (1588 – 1679) Jeremy Bentham 2002)
Platão (427 a. C. – René Descartes (1748 – 1832) G. Elizabeth M.
347 a.C.) (1596 – 1650) Georg W. F. Hegel Anscombe (1919 –
Aristóteles (384 Santo Agostinho Baruch de Spinoza (1770 – 1831) 2001)
a.C. – 322 a.C.) (354 – 430) (1632 – 1677) John Stuart Mill Philippa Foot (1920)
Epicuro (341 a.C. Pedro Abelardo John Locke (1632 – (1806 – 1873) John Rawls (1921 –
– 271 a.C.) (1079 – 1142) 1704) Karl Marx (1818 – 2002)
Zenão de Cítio São Tomás de Francis Hutcheson 1883) Lawrence Kohlberg
(333 a.C. – 263 Aquino (1225 – (1694 – 1746) Herbert Spencer (1927 – 1987)
a.C.) 1274) David Hume (1711 (1820 – 1903) Alasdair MacIntyre
Cícero (106 a.C. – John Duns Scotus – 1776) Henry Sidgwick (1929)
43 a.C.) (1266 – 1308) Jean-Jacques (1838 – 1900) Amartya Sen (1933)
Sêneca (4 a.C. – Rousseau (1712 – Friedrich Nietzsche Carol Gilligan (1936)
65 d.C.) 1778) (1844 – 1900) Michael Slote
Marco Aurélio Adam Smith (1723 (1941)
(121 – 180) – 1790) Peter Singer (1946)
Immanuel Kant Michael Sandel
(1724 – 1804) (1953)
Kwame Anthony
Appiah (1954)

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Seção 2: Teorias éticas

Como o Adendo à seção 1 demonstra, é praticamente impossível resumir todas as


concepções diferentes que, ao longo do tempo, buscavam produzir respostas aos problemas
levantados pela ética. Ainda assim, algumas vertentes importantes podem ser identificadas, e
se materializam em diferentes teorias ao longo do tempo.

2.1) Ética das Virtudes

A filósofa britânica Julia Annas (1946 – ) afirma que a ética das virtudes, cuja
formulação inicial se deve a Aristóteles, foi o principal padrão adotado pelos filósofos morais
até o século XVIII, quando as formulações consequencialista (a partir de Jeremy Bentham) e
deontológica (de Immanuel Kant) se tornam conhecidas (ANNAS, 2006). Ela apresenta uma
bela definição da virtude, afirmando tratar-se de uma disposição para agir de uma
determinada maneira; essa disposição é informada ou guiada pela razão e é construída pelas
escolhas feitas pelo agente. Em outras palavras, a virtude consiste numa disposição de fazer as
coisas certas pela razão certa e da maneira apropriada, tornando-se aquilo que um agente
moral consciente sabe ser o que é certo fazer (ANNAS, 2006).

BOX 5: Virtude é razão e ação


Uma pessoa está passeando na praia e vê uma criança se afogando. Sendo uma boa nadadora, essa
pessoa pula no mar, nada até a criança, acalma-a e consegue trazê-la em segurança para a areia, salvando
sua vida. É possível afirmar que essa pessoa agiu virtuosamente? Sim, a partir do momento que a razão
por trás de sua ação tenha sido o impulso de salvar uma vida. Mas se essa pessoa fosse uma péssima
nadadora, e pusesse em risco sua própria vida, além da criança, ela seria virtuosa? E se essa pessoa fosse
motivada apenas pelo desejo de ser aplaudida pelos outros?

As virtudes, afirma Sousa (2009), definem a vontade do agente e fazem com que ele
atinja o bem; elas são, dessa forma, essenciais para uma vida bem-sucedida, uma vez que
fazem parte do caráter (o qual de acordo com Paviani e Sangalli, 2014, tem como ponto de
partida na sua formação a virtude) e ajudam a pessoa a alcançar a excelência. É preciso ter em
mente que o bem só será alcançado se as ações forem praticadas de acordo com a razão
informada pela virtude em praticar atos baseados na virtude (SOLOMON, 2006): Paviani e
Sangalli (2014) afirmam categoricamente que a pergunta central da ética da virtude é como
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devo agir. A resposta a essa pergunta consiste em agir bem, agir de acordo com uma lei moral
fundamentada em obrigações ou no maior bem possível, tendo sempre em mente que esse
bem é próprio do ser humano (PAVIANI; SANGALLI, 2014). Solomon (2006) defende a
ética das virtudes com base na ideia de que ela não apenas define o que é certo, mas também
o que é bom.

BOX 6: Características da ética da virtude


1) Uma ação é correta se está de acordo com o que o agente virtuoso faria naquelas circunstâncias;
2) A ideia de bondade necessariamente precede a de correção moral, pois a bondade do caráter é o
elemento mais importante;
3) As virtudes são bens intrínsecos, isto é, são boas em si mesmas. Elas não são mero instrumento
para alcançar o bem, elas são o bem;
4) Tudo o que é bom em si é bom para o agente que pratica a ação;
5) A ação correta não necessariamente pressupõe a maximização do bem, como uma ética
consequencialista defende.
(HOBUSS, 2011)

A virtude integra e harmoniza diferentes aspectos da vida humana; possuí-la, afirma


Dent (in CANTO-SPERBER, 2003), significa reconhecer razoavelmente a importância de um
bem que possa ser alcançado ou preservado pela ação humana e dar a esse bem um lugar
condizente com ele nos nossos pensamentos, atividades, desejos, sentimentos e ambições – ou
seja, conferimos algum tipo de importância a esse bem.
Essas visões modernas da virtude possuem fundamento em Aristóteles. Para Simon
Blackburn (2001), na visão de Aristóteles o telos ou finalidade da vida humana é o bem, que o
filósofo grego afirmava ser viver de acordo com a razão e praticar a virtude. Isso leva o ser
humano à felicidade (eudaimonia), que é algo bom em si mesmo, não bom para alguma coisa;
é uma finalidade suprema do ser humano, e podemos alcançá-la por meio de ações excelentes
e virtuosas. Assim, a noção aristotélica de virtude, conforme Sangalli e Stefani (2012), é a de
uma disposição humana em realizar coisas boas, atualizada pela prática constante e capaz de
formar o caráter e controlar as paixões humanas.
No entanto, a prática da virtude não é exatamente simples: ela se equilibra entre dois
tipos de vícios, um deles causado pelo excesso e outro pela falta, e, embora Aristóteles use a
expressão justo meio para designar essa posição de equilíbrio, ela não é equidistante do
excesso e da escassez; assim, o homem virtuoso precisa da razão, pois precisa calcular o que é
a virtude em cada situação, e a razão é auxiliada pelo hábito (é preciso praticar a virtude para
solucionar os problemas de como agir, bem como desenvolver a capacidade de ação)m

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fazendo com que uma ação virtuosa em determinado contexto não o seja em outro – mas o
homem virtuoso sabe como agir (SANGALLI; STEFANI, 2012).
Solomon (2006) apresenta, então, a lista de virtudes que um ser humano deve possuir:
a coragem, a temperança, a liberalidade, a magnificência, o orgulho, o bom temperamento, a
amizade, o amor à verdade, a sabedoria, a vergonha e a justiça. Essa lista, de acordo com
Solomon (2006), é muito calcada no modelo do bom cidadão ateniense contemporâneo de
Aristóteles, e precisa de atualização. Além disso, ela desconsidera as virtudes cardeais cristãs,
como a fé, a esperança e a caridade (SOLOMON, 2006).
Não sendo possível, aqui, resumir as tentativas de modernizar a lista de Aristóteles,
cabe-nos apenas mencionar uma formulação muito interessante, feita pelo filósofo francês
André Comte-Sponville (1952 – ). Ele considera as virtudes como forças ou disposições para
agir, que, em seu uso moral, conduzem o ser humano à excelência, e afirma que, embora seja
necessária a reflexão para o verdadeiro uso da virtude, o aspecto fundamental reside na
prática: para aprender o que é a virtude, é preciso materializá-la em atos (COMTE-
SPONVILLE, 2001).

QUADRO 2: As virtudes, de acordo com Comte-Sponville


VIRTUDES

Polidez Prudência Tolerância

Fidelidade Compaixão Pureza

Temperança Misericórdia Doçura

Coragem Gratidão Boa fé

Justiça Humildade Humor

Generosidade Simplicidade Amor

Fonte: elaboração do autor, a partir de Comte-Sponville (2001).

2.2) Ética consequencialista

E se as ações fossem moralmente julgadas pelos resultados que alcançam? O problema


central seria qual critério seria necessário para esses resultados; como Aristóteles ensinou, o
que cada pessoa busca em sua vida é a felicidade, e essa felicidade, embora varie de pessoa
16
para pessoa, é efetivamente o objetivo que buscamos. Um indivíduo isolado poderia
perfeitamente buscar sua felicidade sem se importar com os outros, mas somos seres sociais;
surge, então, a pergunta: é possível justificar que uma pessoa seja feliz às custas da dor e do
desespero dos outros?
Nahra (2014) considera que o consequencialismo se distingue pelo fato de que as
propriedades normativas de uma ação dependem de suas consequências. O valor moral da
ação é extrínseco, pois os seus resultados a tornam boas ou más (NAHRA, 2014). Brink
(2006) acrescenta que, no consequencialismo, as ações são julgadas moralmente em termos de
promoção do bem; o dever é julgado por meio de práticas de ações que promovam o bem, e a
virtude, por meio da disposição de agir de modo a provocar boas consequências.
O exemplo mais conhecido de ética consequencialista é dado pela filosofia utilitarista.
Esta começou a se desenvolver no final do século XVIII a partir do pensamento do filósofo
britânico Jeremy Bentham (1748 – 1832), ganhando corpo no século XIX a partir das
formulações de John Stuart Mill (1806 – 1873) e Henry Sidgwick (1838 – 1900). Portanto, há
diferentes espécies de utilitarismo, com uma preocupação comum: trata-se da doutrina moral
que determina que a correção de uma ação moral é dada pela bondade de suas consequências
(SMART, 1972), ou que confere às consequências da ação o papel mais importante na
reflexão moral (CARVALHO, 2007a); da mesma maneira, um ato incorreto produz o mal.
Bentham afirmou que o ser humano se sujeita ao governo de dois princípios, o prazer e
a dor; assim, considerando que as pessoas desejam o prazer e evitam a dor, é possível
formular um princípio da utilidade, que aprova ou desaprova a ação com a tendência que ela
parece ter de aumentar ou diminuir a felicidade da parte envolvida, sendo a utilidade, por sua
vez, devinida como a propriedade de um objeto de produzir vantagens, benefícios, prazer,
bem, felicidade, ou de evitar que ocorram danos, o mal, a dor ou a infelicidade para a parte
envolvida (BENTHAM, in BONJOUR; BAKER, 2010).
Para Bentham, a parte pode ser tanto o indivíduo quanto a comunidade, pois o
interesse de uma comunidade é definido simplesmente pela soma dos interesses dos
indivíduos que a formam; o interesse, por sua vez, é o aumento da soma total dos prazeres, ou
a redução da soma total de dores (BENTHAM, in BONJOUR;BAKER, 2010). Uma ação é
moralmente boa quando está adequada ao princípio da utilidade. Bentham afirmava que é
possível medir os prazeres, pois eles são qualitativamente iguais (embora se sujeitem a
diferentes critérios, como se vê no box a seguir), e que as pessoas são capazes de comparar os
diferentes prazeres entre si para que possam conseguir o máximo possível (CORTINA;

17
MARTÍNEZ, 2005). Dito de maneira bem simples, a filosofia utilitarista transforma o
problema moral em um cálculo simples: uma ação capaz de trazer o dobro de prazer que outra
é moralmente preferível; da mesma maneira, uma ação que evite a dor é preferível
moralmente a outra que porventura venha a aumentá-la. Da mesma maneira, uma ação que
pudesse simultaneamente aumentar o prazer e reduzir a dor seria a melhor em termos morais.

BOX 7: Critérios para medição da utilidade


Para saber quais ações são moralmente preferíveis, alguns critérios ajudam o agente a decidir:
a) Intensidade;
b) Duração;
c) Certeza da ocorrência do prazer ou da dor;
d) Proximidade (distância no tempo);
e) Fecundidade (capacidade de a ação gerar mais prazer ou dor posteriormente);
f) Pureza (possibilidade de uma ação que gera prazer não trazer uma dor posterior, e vice-versa);
g) No caso de a parte envolvida ser a comunidade, agrega-se um critério adicional, a extensão, que
se refere ao número de pessoas afetadas pelo prazer ou pela dor produzidos pela ação.
(CORTINA; MARTÍNEZ, 2005)

O utilitarismo é uma filosofia moral fácil de compreender, intuitivamente simples, mas


cheia de críticas. Stuart Mill, pensador britânico que se destacou não somente no campo da
moral, mas também nos da Lógica, da Política e da Economia, tomou para si a função de
reabilitar o utilitarismo, refutando as críticas feitas. Ele definiu o Princípio da Máxima
Felicidade como o critério para a ação moral: uma ação é correta quando promove a
felicidade, esta simplesmente definida como a ausência da dor (STUART MILL, in
MARCONDES, 2007). Stuart Mill considerava que as ações são morais quando promovem o
prazer e diminuem a dor, e afirmou que essa proposição se aplica não apenas aos seres
humanos, mas a qualquer criatura sensível; além disso, ele estabeleceu que a pessoa deve ser
imparcial, e só pode fazer aos outros o que gostaria que fizessem a ele (STUART MILL, in
MARCONDES, 2007).
Diferentemente de Bentham, que só admitia diferenças quantitativas, Stuart Mill
considerava que os prazeres podem ser diferenciados qualitativamente; existem prazeres
superiores, que são mais desejáveis e valiosos que os demais, tidos como inferiores, e
qualquer pessoa que os experimente é capaz de distingui-los e estabelecer suas preferências
(CORTINA; MARTÍNEZ, 2005). Stuart Mill afirmava que preferia ser um Sócrates
insatisfeito a um porco satisfeito, pois um ser humano pode ser capaz de experimentar os
prazeres de uma conversação, das artes, da amizade, da música e das descobertas, e
considerava que qualquer pessoa racional iria preferi-los (BLACKBURN, 2011). Sandel

18
(2011) discorda da ordenação de prazeres feita por Stuart Mill: para justificar prazeres
qualitativamente superiores, este teria que recorrer a ideais de dignidade humana que nada
têm a ver com o utilitarismo em si.
Além desses aspectos, Stuart Mill pretende que o utilitarismo também tenha um
componente indireto: segundo Carvalho (2007b), ele reconhece que se deve dedicar atenção
aos resultados de longo prazo das ações, não somente às consequências imediatas. Em síntese,
para Borges, Dall’Agnol e Dutra (2002), Stuart Mill foi responsável por algumas mudanças
importantes no utilitarismo: procurou demonstrar a importância do caráter e da virtude para a
felicidade, introduziu a distinção qualitativa dos prazeres e demonstrou que a justiça e os
direitos humanos seriam compatíveis com a utilidade. Neste caso específico, Stuart Mill
procurou provar que alguns direitos humanos são inalienáveis – e mesmo que maior felicidade
pudesse ser produzida a partir da violação desses direitos de alguns, não se poderia fazê-lo e
justificá-lo utilitariamente (BORGES; DALL’AGNOL; DUTRA, 2002).
A simplicidade do utilitarismo depõe contra sua aplicabilidade. Ao exigir que as
pessoas sejam capazes de reconhecer e diferenciar o prazer que podem obter com suas ações,
o utilitarismo leva as pessoas a se transformar em máquinas de calcular; basta um pequeno
erro e as decisões morais perdem fundamento. Além disso, boas consequências podem derivar
de ações inadequadas de um ponto de vista moral.

2.3) Ética Deontológica

As éticas deontológicas são normativas, pois definem o que é bom em si e o que é


moralmente certo fazer em todas as circunstâncias; deontologia é o termo grego que designa
como o estudo dos deveres morais, termo cunhado por Bentham e hoje bastante associado aos
deveres profissionais (SIROUX, in CANTO-SPERBER, 2003). No entanto, embora tenha
cunhado o termo, Bentham não é um autor associado à deontologia; o filósofo alemão
Immanuel Kant (1724 – 1804) é considerado o primeiro autor a ter defendido uma ética
deontológica ao afirmar que um ato é moralmente bom se é executado pelo dever ou pelo
respeito à lei (BERTEN, in CANTO-SPERBER, 2003).

19
BOX 8: O que é a deontologia?
“[...] Ao refletirmos sobre o que devemos fazer, entram em linha de conta considerações distintas sobre
características ou qualidades da ação em si mesma, independentemente do que se possa esperar dela. E
uma ação pode ser correta e boa em si mesma, por exemplo, por ser o cumprimento de uma promessa
feita, por ser justa, por ser exigida por Deus (para alguém religioso) etc., independentemente das suas
consequências.”
(ESTEVES, 2014, p. 249, grifos do autor)

Conforme J. B. Schneewind (2009), a ética kantiana é basicamente a obediência a


normas universais; a principal preocupação de Kant seria definir a norma que orientaria
qualquer ação humana na direção da moral e da ética. Para o filósofo alemão, a moral é
autônoma, independe da vontade, e o homem é verdadeiramente livre quando obedece às suas
normas (SCHNEEWIND, 2009).
A proposição acima soa paradoxal: a liberdade é, então, a obediência à moral? Kant
soluciona esse aparente paradoxo afirmando que as pessoas normais são autônomas (portanto,
livres) quando são capazes de se autogovernar em assuntos morais, ou seja, são capazes de
seguir sua própria razão, que lhes dita o que é certo fazer, sem seguirem os ditames externos
de alguma autoridade que definiria, fora deles, o que é moral. Ademais, a autonomia permite
ao ser humano controlar a si mesmo (SCHNEEWIND, 2009).
Assim, Kant buscou, em sua principal obra sobre a filosofia moral, a “Crítica da Razão
Prática” (1788), definir a forma pela qual os preceitos morais devem ser elaborados; para ele,
os preceitos morais não podem ter nenhum conteúdo específico e devem ser universalizáveis,
ou seja, devem ter aplicação a todas as situações que envolvem um ser humano dotado de
razão (MARQUES, 2000). O ideal moral kantiano pode ser descrito como uma forma de
pensamento totalmente isolada de seu contexto, em que as circunstâncias específicas são
desconsideradas (MARQUES, 2000) – ou seja, as ações humanas são morais se elas seguem
uma regra universal, fazendo com que a coisa certa a fazer seja a mesma independentemente
dos seus resultados e independentemente da situação em que esteja ocorrendo: basta que
sigam a regra moral correta.
O problema moral de “o que fazer” se torna, então, “qual regra seguir”. Kant afirmou
que a vontade governada pela razão é o elemento mais importante da moral; essa vontade é a
priori, porque independe de experiências, e boa em si mesma (SCHNEEWIND, 2009). A
vontade racional é governada por regras obrigatórias, fazendo com que ela escolha somente o
que a razão reconhece como bom; Kant (in MARCONDES, 2000) chama de imperativo a

20
regra de razão que se aplica obrigatoriamente à vontade, regra que assume a forma de um
“deve ser” e expressa a relação entre a vontade de uma pessoa qualquer e o que a humanidade
como um todo quer. Essa regra de razão é o imperativo categórico, que representa uma ação
objetivamente necessária por si mesmo e sem relação com outras finalidades: expressa uma
ação boa em si, que deve ser necessariamente realizada por um ser racional (SCHNEEWIND,
2009). Isso faz com que a lei moral não possua um conteúdo específico: ela é a conformidade
a si mesma, é a máxima universal que leva a pessoa a agir de acordo com sua vontade
racional, e essa ação é a mesma em qualquer circunstância (SCHNEEWIND, 2009).
Sandel (2011) apresenta uma série de proposições importantes para a compreensão da
ética kantiana. Em primeiro lugar, ele afirma que todos os seres humanos, por serem
racionais, são merecedores de dignidade e respeito; isso se torna o fundamento da moral, pois
ela não deve ser pensada como o aumento da felicidade ou a busca por outras finalidades
quaisquer, e sim como o respeito às pessoas como fins em si mesmas. Além disso, o fato de
termos essa característica torna a ética kantiana uma base para os direitos humanos universais.
Por fim, minha autonomia é dada por uma lei que imponho a mim mesmo, e a minha
liberdade se materializa em escolher o fim supremo em si mesmo.
Kant (in BONJOUR; BAKER, 2010) elaborou três proposições básicas para a
moralidade:
I. Para ter valor moral, uma ação deve ser praticada a partir do dever;
II. O valor moral não é dado pelo fim a que se destina a ação, e sim pelo imperativo que a
determina;
III. O dever se define como a necessidade de uma ação por respeito à lei.
Assim, uma ação moralmente boa não apenas se ajusta à lei moral, ela é praticada em
prol da lei moral (KANT, apud SANDEL, 2011). Essa lei moral é expressada pelo imperativo
categórico. Mas qual seria o imperativo? Kant forneceu diferentes formulações:
a) Age somente de acordo com aquela máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne uma lei universal;
b) Age como se por meio de tuas máximas fosses sempre um legislador no reino
universal de fins;
c) Age como se a máxima da tua ação devesse se tornar a lei universal da natureza
mediante tua vontade;
d) Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua própria pessoa, quanto na
pessoa de outro, sempre como um fim, nunca como um meio;

21
e) Age de tal modo que a tua vontade possa considerar-se a si mesma como constituindo
a lei universal por meio de sua máxima.
Kant preocupava-se com o caráter universal de suas máximas morais. Ao fornecer
uma regra de razão para a ação humana, ele pensava ter criado uma moral universal e
independente de contextos e circunstâncias particulares, uma fórmula que encerraria de vez
com o debate sobre como as pessoas deveriam agir se desejasse ser morais. Além disso,
porque racional, o imperativo categórico se torna independente de qualquer legislador, divino
ou terrestre, de religiões ou ordenamentos jurídicos. O grande problema reside no fato de que
a norma de ação, para ser universal, não pode ter conteúdo particular – e isso significa que o
agente moral poderia dificuldade de compreendê-la em situações específicas.

22
Seção 3: Ética e Administração Pública

A primeira constatação a ser feita nesta seção é bastante simples: os problemas éticos
envolvidos na Administração Pública são bastante amplos e variados, e demandam diferentes
abordagens para que se possa pelo menos discutir uma solução; não basta trabalhá-los sob um
ponto de vista meramente instrumental, como os códigos de ética dos servidores públicos,
nem tampouco axiológico, como o princípio da moralidade administrativa: é preciso
transformá-los em reflexão e ação, em ponto de partida e linha de chegada das atividades do
administrador público.
Terry L. Cooper, em ensaio sobre a história da ética na Administração como campo de
estudo publicado em livro editado por ele próprio (1994), afirma que o livro publicado em
1936, “The Frontiers of Public Administration” (editado por John M. Gaus, Leonard D. White
e Marshall Dimock), apresenta questionamentos a respeito da responsabilidade e
discricionariedade do administrador público, bem como questiona a eficiência como o valor
central na Administração Pública. Posteriormente, afirma Cooper (1994), Tugwell publicou
artigo na Public Administration Review em que defendia que o “interesse geral” seja o valor
central para uma organização pública e, em 1952, os primeiros dois livros sobre a ética na
Administração Pública são lançados nos EUA. O campo se expandiu significativamente ao
longo dos anos, abrangendo questões referentes à cidadania e democracia, às virtudes e
responsabilidades, o contexto legal e as tradições constitucionais, as possibilidades de uma
educação ética, teorias filosóficas, entre outras.
Dito isto, é preciso ter em mente que a relação entre a Administração Pública e a ética
envolve um questionamento do que efetivamente aquela é, bem como sobre o que tem a
oferecer na sociedade. Jiménez Serrano (2010) observa que a Administração se identifica com
a execução de atividades não em benefício próprio, mas de outras pessoas, com a realização
de atividades que atinjam atividades descritas como o atingimento de objetivos concretos em
termos de resultados material ou espiritualmente para os cidadãos, as pessoas jurídicas e a
sociedade. O servidor público recebe um encargo público: ele deve cumprir os preceitos do
Direito e da moral administrativa para bem servir a comunidade, entendendo-se este bem
como:
a) Identificar o que é conveniente para todos;
b) Usar adequadamente recursos;

23
c) Promover desenvolvimento cultural e econômico na busca de fins superiores aos
interesses individuais (JIMÉNEZ SERRANO, 2010).
Um cargo público, conforme o filósofo e cientista político norte-americano Michael
Walzer (1935 – ), é essencial para a construção de uma sociedade justa e plural; um cargo, na
definição desse autor, é um posto no qual a sociedade demonstra interesse; originalmente
reservado às classes mais elevadas, à elite da sociedade, o cargo hoje está aberto a pessoas
qualificadas para tanto, que devem ser escolhidas conforme normas e regulamentos
defendidos pela sociedade (WALZER, 2007). Além disso, o cargo público se exerce no
interesse do usuário dos serviços públicos. Esse interesse, para Walzer (2007), diz respeito a
cada um dos clientes, pacientes, consumidores de bens e serviços, que dependam de alguma
forma da competência dos detentores dos cargos. Percebe-se, na argumentação do autor, um
viés que pode conduzir claramente ao consequencialismo: o bom exercício do cargo público
pode ser descrito como a maximização dos interesses da população a quem o servidor presta
suas atividades.
O utilitarismo, em especial, tem sido identificado como uma importante vertente de
discussão da ética na Administração Pública. Mulgan (2012) considera que um código moral
é central para uma boa sociedade, e defende que ele apresente regras direcionadas à
maximização do bem-estar das pessoas. Goodin (1997) é um defensor da aplicação do
utilitarismo no julgamento da ação pública, pois esta, mesmo que tenha sido empreendida por
cidadãos particulares, tem um impacto significativo sobre o bem-estar de outras pessoas. Este
autor defende que critérios como o bem-estar e a satisfação de preferências sejam usados no
lugar do da felicidade para analisar as consequências das ações públicas, e observa que muitas
situações desta ação são comuns e padronizadas, fazendo com que os critérios de satisfação
do maior número de pessoas possam se perfilar ao lado dos mandamentos deontológicos.
Neste sentido, pode-se adotar a perspectiva de um utilitarismo de regras: a melhor ação é
aquela que segue uma regra que maximize o bem para o maior número de pessoas
(SOLOMON, 2006).
Mesmo que se respeite a posição de Walzer, deve-se ter em mente que o exercício dos
cargos públicos enseja questionamentos sobre o que o seu ocupante pode ou não fazer, e não
somente com os resultados da ação; muitas vezes, a resposta a esses questionamentos passa
pela criação e disseminação de códigos de ética baseado em valores mais amplos. Plant (in
COOPER, 1994) afirma que um código pode significar um conjunto de normas legais; um
conjunto de regras que, embora não sejam leis, podem ser consideradas moralmente

24
obrigatórias; um sistema de símbolos para documentação escrita. Um código de ética para a
Administração Pública passa por todos os significados, pois abrangem uma declaração de
ideais, padrões de ação consoantes ao ideal, mecanismos para forçar o seu cumprimento, e sua
retórica simboliza a adesão a padrões e questões de interesse público, identidade profissional
e de conduta (PLANT, in COOPER, 1994).
A preocupação com os códigos de ética parece indicar um direcionamento
deontológico. Chandler (in COOPER, 1994) afirma que os códigos prescrevem direitos
profissionais para um administrador público cujo mundo se constrói sobre princípios,
preceitos e regulamentos que não são automaticamente cumpridos; daí a importância de
materializá-los em um código que permita a análise das situações específicas com base em
princípios. Outro argumento em favor dessa posição é dado por Chandler, ao observar que o
relativismo moral dificulta a formação de um senso moral comum e da capacidade de
discernir entre o certo e o errado (in COOPER, 1994).
Dois estudiosos norte-americanos da Administração Pública, Robert K. e Janet V.
Denhardt (2006) afirmam que todas as organizações são permeadas por questões éticas,
fazendo com que as ações das pessoas que nelas trabalham tenham implicações valorativas.
Ademais, no que tange especificamente à Administração Pública, a ação é a dimensão mais
relevante para a ética, e uma ação ética, muitas vezes, impõe ter que escolher entre valores
distintos que muitas vezes conflitam entre si, de modo a fundamentá-la (DENHARDT;
DENHARDT, 2006).

BOX 9: Como deliberar eticamente


1) Antes de tudo o mais, esclareça os fatos;
2) Em seguida, procure princípios éticos básicos que possam ser devidamente aceitos pelos
indivíduos e possam justificar a ação;
3) Por fim, analise os argumentos apresentados em defesa dos diferentes pontos de vista.
(DENHARDT; DENHARDT, 2006; grifos meus)

Sabe-se das dificuldades inerentes aos processos decisórios; quando a ética entra em
questão, é fundamental determinar o que pode afetar e modificar o comportamento do
administrador público. Wittmer (in COOPER, 1994) recorda que esse administrador não
apenas se responsabiliza por tomar decisões individuais, mas também por construir um
ambiente e um conjunto de políticas que promovam essa tomada de decisão ética, o que
demanda não apenas conhecimentos descritivos sobre o que é feito, mas também normativos
sobre o que se deve fazer.
25
Uma deliberação ética é dificultada pela existência de diferentes conjuntos de
variáveis que influenciam a conduta do administrador. Jiménez Serrano (2010) distinguem
entre variáveis internas e externas (Figura 3):

Figura 3: Variáveis que afetam a conduta ética


INTERNAS EXTERNAS
Cultura
Autoestima
Costumes
Autocontrole
Normas morais e jurídicas históricas e em vigor
Desenvolvimento dos valores na pessoa
Códigos de ética profissional
Fonte: Elaboração do autor, com base em Jiménez Serrano (2010).

Tudo isso envolve uma discussão do que é justo ou injusto fazer, de acordo com
Jiménez Serrano (2010). Esse autor propõe que se considere uma série de elementos: a
situação (deve ser corretamente definida – como propuseram Denhardt e Denhardt, supra); os
fins (devem ser honestos); os meios (devem ser razoáveis). Para Jiménez Serrano (2010), se
não se pode apresentar respostas positivas às perguntas sobre esses elementos, não se
consegue justificar para a sociedade a existência de um bem.
Percebe-se, tanto na questão da deliberação ética de Denhardt e Denhardt quanto na
das variáveis e dos elementos de Jiménez Serrano a preocupação em fazer com que as ações
derivem de uma reflexão prévia sobre a ética. Essa reflexão nos remete aos princípios
aristotélicos da virtude, pois a pessoa virtuosa não é simplesmente uma seguidora de regras de
ação previamente definidas que conduzam ao melhor resultado; ainda que se admita que o
serviço público esteja fortemente normatizado por regras de conduta, há espaço para deliberar
e decidir o que é a melhor coisa a ser feita.
Organizações públicas poderão favorecer a ética se forem gerenciadas com
preocupações éticas. Patrus-Pena e Castro (2010) consideram fundamental que empresas (e,
por extensão, podemos incluir as organizações públicas) devem criar espaços de discussão e
diálogo sobre questões éticas, bem como articular um código de ética que se relacione com a
missão organizacional; para que isso funcione, os autores consideram fundamental o
envolvimento da alta direção da organização, que deve mostrar comprometimento com essas
práticas. Denhardt e Denhardt (2006) sugerem que, em primeiro lugar, os mecanismos de
controle já existentes, como as leis e estatutos ou regimentos dos servidores públicos,
canalizem preocupações para tanto. Além disso, os gestores devem criar e manter um clima
ético na organização, verificando os valores, crenças e atitudes do pessoal, desenvolvendo

26
uma declaração de valores a partir dessa verificação. Em seguida, deve-se criar programas de
treinamento e comunicação que fomentem a compreensão e a disseminação de valores junto
ao pessoal. Por fim, os administradores públicos em posição de liderança devem ter em mente
o fato de que são modelos de comportamento para os demais (DENHARDT; DENHARDT,
2006) – ou seja, por que não esperar que esses líderes sejam pessoas virtuosas?
Neste sentido, Hart (in COOPER, 1994) considera que a democracia será melhor
servida por pessoas virtuosas, que considerem o cuidado com o bem-estar de seus pares numa
comunidade uma de suas atribuições. Ele sugere que postos de comando em organizações
públicas sejam selecionados não apenas pela expertise, mas também pelo caráter (HART, in
COOPER, 1994). Naturalmente, não se trata de algo fácil; se mesmo os testes de
conhecimento não dão uma visão totalmente adequada do ocupante do cargo, o que se poderia
dizer dos morais? De todo modo, embora Hart considere a virtude um fundamento para as
finalidades políticas e práticas do governo, ele admite não ser suficiente: um bom governo
demanda boas instituições (in COOPER, 1994).
Frederickson (in FREDERICKSON; GHERE, 2015) considera que o entendimento da
virtude na vida pública será encontrado não na discussão e compreensão do que seja a virtude,
mas no esclarecimento do que é de fato a vida pública. Ele observa que o “público” é um
conceito mais amplo do que o governo, pois as organizações governamentais “flutuam” num
oceano público junto com as ONG, as igrejas, os clubes e outras coletividades humanas, e,
portanto, as atividades humanas nessa esfera são muito mais complexas e variadas do que as
que seriam encontradas somente em organizações governamentais. Frederickson afirma que
muitos elementos que se encontram em códigos e declarações de ética e nos procedimentos
governamentais refletem virtudes, e conclui que é preciso posicioná-las num sentido coletivo
em vez de individual, bem como levar em consideração as diferentes organizações que
conjuntamente formam o público (in FREDERICKSON; GHERE, 2015).
Frederickson afirma que, nos Estados Unidos, a aplicação de diferentes elementos e
normativas de fundo ético fizeram com que a Administração Pública se tornasse eticamente
muito mais sólida do que era no princípio do século XX. É uma visão otimista, e, mesmo que
bem fundamentada pelo autor, não reduz os problemas e dificuldades enfrentados. Neste
sentido, é interessante também observar alguns dos problemas éticos que mais comumente
afetam o administrador público (box 10), mesmo que se compartilhe do ponto de vista de
Frederickson.

27
BOX 10: Problemas éticos para o indivíduo na Administração Pública
1) Interação: os administradores públicos precisam interagir com cargos políticos no Executivo e no
Legislativo, o que, por um lado, aumenta a accountability do órgão público para com os poderes,
mas, por outro, nem sempre atende aos interesses públicos;
2) Obedecer ordens: as organizações possuem autoridade suficiente para indicar os caminhos que
devem ser seguidos, mas é preciso cuidar para não ferir os valores morais básicos;
3) Conflitos de interesse: pode existir um conflito entre os interesses do indivíduo e os da
organização, ou mesmo os da sociedade, como se observa na legislação a respeito das
quarentenas legais, aos presentes e doações, entre outras;
4) “Dedos-duros” (whistleblowers): a boa relação com os colegas e um bom ambiente de trabalho
exigem lealdade e coleguismo. Isso é suficiente para justificar que um administrador público
mantenha silêncio sobre desvios éticos, fraudes, mau uso dos recursos?
(DENHARDT; DENHARDT, 2006)

28
Considerações finais

O principal propósito deste pequeno trabalho é chamar a atenção para a vasta riqueza
do assunto. Questões éticas perpassam todas as esferas da nossa vida, e para quem exerce sua
profissão lidando com o interesse público, discutir e tentar responder essas questões é
essencial. Assim sendo, como deve agir o administrador público que enfrenta dilemas éticos
em sua função?
Não é possível, aqui, discutir todas as respostas possíveis; em vez disso, propõe-se
uma análise própria. Em primeiro lugar, é essencial seguir o que os autores ligados à ética da
virtude demandam: deve-se refletir cuidadosamente sobre a situação e os problemas
envolvidos. Essa reflexão é essencial para que se possa tomar uma decisão bem informada. Os
valores subjacentes à decisão precisam ser analisados, discutidos e questionados, e as
possibilidades de ação devem ser consideradas tendo-se em mente que é preciso evitar tanto o
excesso quanto a falha. A virtude é uma característica individual: uma sociedade virtuosa é
um conjunto de pessoas virtuosas antes de tudo o mais. No entanto, isso não é um obstáculo
para que se discuta e delibere coletivamente, como Frederickson (in FREDERICKSON;
GHERE, 2015) defende.
Em segundo lugar, não se pode perder de vista as consequências das ações. O bem-
estar da coletividade e o interesse público são conceitos um pouco nebulosos, mas precisam
ser considerados na análise da situação. Como aumentar o bem-estar, como maximizar o
interesse público? As respostas a essas questões derivam de um comprometimento do servidor
público com valores muito mais amplos que os individuais, e por isso precisam ser muito bem
discutidas antes de uma resposta definitiva.
Finalmente, não se pode desprezar o papel dos princípios. Os deontologistas defendem
a existência de princípios universais que, no final das contas, nunca foram encontrados. No
entanto, princípios de ampla aceitação, em muitos casos, podem ser seguidos. Ninguém
defenderá abertamente a desonestidade, a fraude e a mentira no tratamento das questões
públicas. Se isso é aceito em outras sociedades ou foi aceito na nossa própria no passado, mas
hoje é condenável, a força normativa do princípio, evidentemente, é menor do que seria no
caso de um princípio universal. Mas isso não impede de aplicá-lo em muitas situações
específicas. Os objetivos da ação em termos de bem-estar e interesse público podem ser
transformados em princípios de amplo espectro de aplicação nos problemas públicos.
29
Evidentemente, não se pode pretender que a aplicação das ideias descritas nos três
parágrafos anteriores solucionem todos os problemas éticos enfrentados pelo administrador
público no exercício das suas funções, mas se ajudarem na solução de alguns problemas
específicos, já terão cumprido ao menos parcialmente sua função. A Administração Pública
envolve o uso de poderes e capacidades que o indivíduo comum não dispõe, portanto, não se
pode dissociá-la de uma discussão de fundo moral. Cabe ao administrador público exercê-los
com virtude, com valores, e com o foco na produção do maior bem possível para os
administrados que a ele voltam seus olhos na busca pela solução de problemas coletivos.

30
Referências

ANNAS, J. Virtue ethics. In: COPP, D. (ed.). The Oxford handbook of ethical theory.
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