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6 que informam, outros que di- 1108 que apenas instruem. Es- do isso @ vai além. Ele nos mos- 8 possival abordar um tema ode modo nove ¢ desvendar ni- feragdo humana até entdo insus- B Lote livre 6 surpreendente. Ele nos re- Veli a) Camadas mais profundas contidas uma simples cole¢Go de cartas velhas. No BOGUS VI Os jesuitas que aqui chegaram __ Movidos por sentimentes plos tentaram rea- tiger uma tarefa Gnica: transtormar og habi- tanies da terra tecém-conquisiada em st- dling aptos da Coroa ede Deus. Pretendiam, no converté-los, alevatos a categoria de se fas humanos, come ge a condigae tribal em que viviam néo lhes permitisse atingir tal as- tatura, Osakio foi melanedlies, para nao dizer desasiroso. A conversao ao cristianismo acarfeloumortes, deformacées ¢ desenga- no. Em pouce tempo os povos de lingua 1u- i que habiiavam ao longo da costa passa- fam a sebreviver apenas nog registros dos cronistas ¢ viajantes que por aqui passaram. A oruzada crista, no seu ala de clvilizar, sem 66 dar conta destrulu mulio mais do que po deria justificar perante Deus. Quem foram os autores da dizimagao? Alam dos colonizadores, por certo foram as missionaries jesuitas, agentes por excelén- cia da Conquista. Em suas carias 4 sede da Companhia de Jesus relalarampassoa pas- 60 56u Martino ¢ o trabalho que faziam pe- Ja gloria de Deus. 4 primeira leitura dessa carrespandéncia nos sugere tarcm sido 08 missionaries homens devotos, idealisias a abnagados, Talvez o fossem. Mas aprofur- dando a andlise do coneddo dessas cartas, como a fez Roberto Gambini, chega-se a uma consiatagao espantosa: o que os mis- siondriog acreditavam ver no indigena nao Passava da projegdo de tudo aquilo que nao iam reconhecer em si measmos: ero tismo, espontaneidade, espiritualidade, en- ire outros aspectes. Ao catequizar o india, 6 PSuila queria exorcizar seu proprio demd- nin Mas ao fazé-to, revelou apenas sua pré- O ESPELHO INDIO Os jesuitas e a destruigao da alma indigena SUMARIO PARTE I — PROJECAO E CONHECIMENTO DO OUTRO 1. A visdo patolégica de projecdo ............ cece ce eees 17 2. O mecanismo de projegdo ....-... ccc. ccvaccccccces 35 2cTs OF descomiecida | ise eereee e204 25 oe one dteote eee 37 2.2. O papel dos complexos ...............000.00-. 40 2.3. [lusdes, subjetividade e “participagiéo mistica” ....43 2.4. O Cisco € a tLAVE 2... cece cence ct eeees 47 Os OO BANCNO? ese sit serecaceracase: vpestenararnomneyecoteces ware etew ane 51 2.6. Os quatro estdgios da projecio .................53 3. A funcdo heuristica da projecdo .....................57 PARTE I] — A CONVERSAO DOS INDIOS BRASILEIROS NA EPOCA DO DESCOBRIMENTO 1. As cartas jesuiticds 0.0... ccc cae ance eaes 69 2. O novo Mundo e a origem da Missdo ................ 73 3. O auto-retrato dos jesuitas .. 0.0.00. ccc ccc eee e cece 95 3.1. Os Soldados de Cristo e os Exercicios Espirituais . . .95 3.2. Os pecados confessos dos jesuitas .............. 110 3.3. Lamtrias, pobreza, sofrimento ...............4.. 114 3.4. A inflag&o dos jesuitas ..............0 cece euees 116 3.5. Os milagres dos emissdrios de Deus ............. 119 4. O retrato dos indios tragado pelos jesuitas ............ 121 4.1. Oespelho duplo: “Fagamos o homem & nossa imagem”121 4.2. O espelho duplo: a face obscura ............... 127 4,3. Oo mundo stim Deus ..sscicccse ceenwewaitinnices 135 4.4. A natureza execrada ......c cece secs enn cesaense 143 4.5. Antropofagia pensada e vivida ................. 149 3... 0 Reine das Trevas: cx ccccwssnncawncanccnweiusawnens 159 5.1. A progenitura do maléfico ..............00000. 159 5.2. A sombra dos jesuitas ...........0..ce cence nee 166 5.3. As indias e a anima ausente ..........0..00000. 173 6. A conversdo das alimas .....0.0c ccc ccc en se eeeeenes 191 6.1. A perda da identidade cultural ................. 191 6.2. Batismo, arma de conquista .........-.-.ee00: 199 6.3. Uma sagrada escravidao e o grande plano missionério202 BIBHORRGPIA 9:0::e9i9 no0:acerecace esis aiecne sae are a suacarennncenetatatet 209 Indice das ilustragdes ...... 000 cece tee 213 RelacGo das CArtdS 1... eee eens 217 PARTE | PROJECAO E CONHECIMENTO DO OUTRO C) fendmeno da projegaéo sempre foi um assunto de grande interesse para mim. A idéia kantiana de que moldamos a realidade no’ préprio ato de conhecé-la, como se fosse argila mole, foi uma revelagéo que sempre motivou em mim um sem-ntimero de reflexes. Nos circulos universitarios, essa concepgéo acabou dando lugar a outros sistemas de idéias. Recomendava-se a nocao melhor de que.a objetividade do conhecimento, especialmente nas ciéncias humanas, sé pode ser garantida através do uso do método dialético de investigagéo e explicacao da realidade social. Conhecimento e método passavam a ser indissocidveis. Quanto 4 consciéncia huma- na em si, ja nao se duvidava mais que, em Ultima andlise, as idéias séo determinadas pela estrutura social e pela posigao que se ocupa com respeito ao modo de producao. As relacdes sociais estabeleci- das com vistas 4 producao material seriam a realidade primeira a ser levada em conta; o resto, desde idéias até sentimentos religiosos, nao passaria de mera derivacio. A maneira de uma pessoa encarar-se a si mesma, aos outros e ao mundo veio a ser denominada ideologia e tida como condicionada pela classe social, portanto relativa. A unica possibilidade de evitar as ilusGes engendradas por tantas visdes contrastantes seria adotar o ponto de vista epistemologicamente pri- vilegiado dos socialmente dominados. A identificacao com essa pers- pectiva asseguraria um novo padrao de objetividade e transcendéncia e nesses termos a velha e inquietante questao de Kant poderia ser definitivamente descartada como resquicio de uma condi¢fo alienada. Estou é claro caricaturando um problema que tem hd muito ocupado os especialistas e que requereria extensiva critica biblio- 15 grafica caso nosso objetivo fosse promové-lo ou atacd-lo, Para mim, aquela simples idéia de que moldamos a realidade na tentativa de conhecé-la continuou por muitos anos como um germe vivo que acabaria por encontrar seu desenvolvimento empirico em meu con- tato com a psicologia analitica e o modo pelo qual C.G. Jung des. creve o fenémeno de projecio. Como séi acontecer com idéias cruciais, a de projecio tornou-se com o tempo uma espécie de pedra angular sobre a qual diferentes sistemas psicolégicos tém erigido vastas ramificagdes tedricas. O peso de tantos coroldrios tornou-se tal que a realidade da projecdo passou a ser decifrdvel apenas para o especialista em psicandlise. Além disso, o fendmeno denotado por esse termo nio é o mesmo para as diferentes escolas. Com a intensificagaio de seu uso, a pala- vra perdeu sua conotagio plena e foi reduzida a um lugar-comum, a uma explicacao instantinea do tipo “mas isso nfo passa de uma projegao”. © que me proponho fazer, de partida, é colocar lado a lado alguns aspectos do fendmeno de projecdo pelo prisma da psicologia junguiana com vistas a recompor sua magnitude ¢ suas implicagdes. 16 1. A VISAO PATOLOGICA DE PROJECAO A Palavra projegio foi usada pela primeira vez no século XIX pelo neurologista Meynert em suas teorias sobre a fisiologia do cérebro e foi nesse contexto que Freud a encontrou. A idéia cen- tral era de que o cértex cerebral contém algo denominado “siste- mas de projegdo”, cuja funcio seria transmitir ao cérebro estimulos externos, como se um filme mostrando a realidade exterior fosse projetado numa tela dentro de nossa cabeca. Em 1891, em seu en- saio sobre afasia, Freud menciona essa teoria ao discutir o modo pelo qual a imagem do corpo é representada no cértex e diz que essa representagao denomina-se “projecio”.’ Freud deve certamente ter trabalhado essa interessante nova idéia nos anos seguintes, aplicando-a a suas observagées. Em 1894, enfatizou a dimensio psicolégica do fendmeno em sua tentativa de explicar a origem dos estados de ansiedade e, em 1896, das ilusdes persecutérias na parandia. Freud manteve a nocao de representagio interior de uma imagem mas introduziu o elemento de engano ou distorgio, No primeiro caso, afirmou que a ansiedade sentida pelo sujeito como resultante de uma situacio objetiva na verdade deriva de uma repressio sexual, isto é, um actimulo de excitacio sexual que passa a ser projetada fora. Esta é a origem da idéia de que projegao resulta de uma repressio, Dois anos depois, Freud estabeleceu a ' Para o tratamento deste t6pico ¢ os primeiros uses do conceito por Freud. ef. Frey-Rohn, From Freud to Jung, pigs. 251-253 e Sami-Ali, De fa projection, pig. 14 © segs. \7 conexdo entre projegao e parandia. Esses dois aspectos devem ser levados em conta se quisermos entender de que tipo de fendmeno psicoldgico se fala quando se usa o termo “projegZo” no sentido freudiano: distorgao da realidade, repressiio ¢ ilusio parandica, tudo a servigo de uma defesa. Freud formulou essa idéia ao estudar um caso de psicose para- ndica, varios anos antes de aplicd-la para interpretar alguns aspec- tos cruciais de dois de seus mais famosos casos (Dora, de 1905, e Schreber, de 1911), Nesse contexto, a projegio é vista do seguinte modo; o ego é incapaz de lidar com um contetido incémodo ¢ finge que 0 mesmo nao existe, suprimindo-o do campo consciente. E entao que surgem os sintomas parandicos, porque a repressiio se deu atra- wés de uma projecao. Isto ¢, o proprio sintoma é uma projecao. Esse “contetido incémodo” quer dizer uma experiéncia sexual infan- til que, quando reativada, causa um sentimento de culpa e é refe- rida pelo sujeito a algum objeto exterior em lugar de seu objeto original. A pessoa entéo desconfia dos outros, pois estes Ihe apare- cem como juizes e acusadores. Eis ai a projecdo e¢ a distorgio que causa, Seu objetivo € poupar o ego da dificuldade de reconhecer uma auto-critica ¢ uma dolorosa experiéncia reprimida na origem desse mecanismo patoldgico. Ao analisar “Dora”, Freud considerou as acusacdes que a jovem lancava contra os envolvimentos sexuais de seu pai como sen- do na verdade uma auto-acusagéo disfargada: ela atribuia a outrem um desejo (em seu caso, pela amante do pai e também por ele), que se recusava a reconhecer em si mesma. Percebe-se assim que para Freud a projecdo é basicamente um disfarce e uma fonte de ilusdes. Em suas prdéprias palavras: “Uma série de acusagdes contra outrem nos faz suspeitar a existéncia de uma série de auto-acusagdes com o mesmo con- teido, Basta aplicar de volta ao acusador cada uma de suas frases, Ha inegavelmente algo de automdtico nesse método de defender-se de uma auto-acusagao langando-a sobre outrem, Um bom modelo desse procedimento pode ser encontrado na argu- merntagao infantil do tipa tu quoque (...) Na parandia, a pro- jecdo de uma acusagao em outra pessoa sem qualquer altera- gao de conteido e portanto sem a menor consideragda pela 18 vealidade forna-se manifesta enquanto processo formador de ilusdes,"* Desse ponto de vista, se um paciente projeta ao queixar-se ou no momento em que acusa alguém ou algo, seu discurso deve ser ouvido com um intercémbio de sujeito e objeto para que a situagao real possa ser percebida. A projegio seria entéo sempre um erro ‘ seu mecanismo uma série de malabarismos baseados em negacio, reversao e distorgaio. Outro aspecto importante é que em sua interpretagdo da pata- néia (o caso Schreber) Freud faz uma conexio entre projegio ¢ homossexualismo nao-reconhecido, afirmando que em tais casos o paciente mega seus sentimentos, transformando-os em seu oposto e a partir de enta@o esconde seus inaceitéveis impulsos julgando ser odiado. A descrigo desse mecanismo ficou famosa e pode ser en- contrada em qualquer diciondrio de psicandlise ou manual de psi- quiatria. Em suas linhas bdsicas, trata-se da idéia de que uma percepedo interior ¢ suprimida ¢ substituida por um conteido distorcido que atinge a consciéncia como se viesse do mundo exte- rior. A sensagdo de perseguigio deriva do fato de que o sujeite altera a natureza de sua emocdo proibida: o que deveria ser sen- tido internamente como amor é percebido externamente como édio? Neste ponto passa-s¢ para o terreno da ldgica, pois a formulagao desse mecanismo é usualmente apresentada em textos psiquidtricos nos seguintes termos: “A contradigio nesse caso é ‘eu nio o amo, eu o odeio’, mas como essa ajfirmagio tia familiar nado pode se tornar cons- ciente, a mecanismo de projecdo entra em cena e ao invés de dizer ‘eu o odeio’ ocorre uma transformagdo do tipo ‘ele me odeia e por isso eu a odeio', Nesse ponto a contradigdo real- mente passa a ser ‘eu néo o amo, eu a odeio porque ele me so persegue’. 2 8. Freud, “Fragment of an‘analysis of a case of hysteria" in Case Histories I, pag. 67. TraducSo minha, como em todas as demais citagdes de todos os tipos no decorrer do livro. 3° De [a projection, pag. 34 © segs. 4 Henderson ¢ Gillespie, Textbook of Psychiatry, pag. 292. Se quisermos com- Parar essa formulagao com o modo pelo qual Jung usa a mesma idéia, veremos 19 Seria esse entao o fendmeno abrangido pelo termo “projecdo”: uma estranha manipulagéo das emocgdes e uma confusio das bar- reiras entre mundo interior ¢ exterior que acabaria levando A lou- cura, Nao pretendo negar que esse aspecto exista; o que me pa- rece questiondvel é que essa percep¢do, tomada em sentido dema- siado estreita, acabou por contaminar um aspecto muito mais amplo da psicologia humana e desse modo impede sew reconhecimento. E como se esse insight nao pudesse se libertar do magnetismo da patologia. Creio que nao seria injusto dizer que a maioria das pas- sagens na literatura psicanalitica contemporanea que tratam de pro- jecao ainda carregam esse sinal de origem; de fato, sempre que projegdes sao interpretadas percebe-se um certo grau de “anor- malidade”. O leitor pode entéo descontrair-se, certo de que sd os psicologicamente perturbados projetam — ele nao. Em textos psiquidtricos pode-se claramente perceber que o con- tetido reprimido que desencadeia a projegio é um fracasso ou ato de m4 conduta, um desejo sexual néo admitido ou entio um sen- timento de hostilidade. Como esses contetidos sao negados ¢ proje- tados para proteger o ego, o sujeito capta erroneamente a realidade © passa a viver num estado de ilusfio, No fundo da questio haveria uma incapacidade de lidar com sentimentos de hostilidade; conse- qiientemente, a projegio é encarada como uma “desordem do ca- rater". Alguns autores se perguntam de que modo se lida com o édio conforme as diferentes estruturas de cardéter e chegam 4 con- clusio de que essa emogio pode ser reprimida, dirigida para dentro, expressa ou projetada. Em geral, considerase que no estado psicd- tico “a agressividade e o ddio sao tratados de modo distorcido que para ele o sujeite nao conhece a yerdadeira natureza de seus sentimentos © por isso ocorre a projegao. Jung nao fala de reversio de sentimentos ou tmudanga de sujeite ¢ objeto. Num de seus semindrios ele conta de uma jovem que amava a natureza e um dia comegou a suspeitar que os outros falawam dela. Jung entio diz o seguinte: “como véem, essa é a origem das idéias de perscguigio. Em tal condigio, o individuo nao percebe que, ao invés de amar, odcia os outros; ¢ camo nfo percebe isso, projela a iddia de ddio ¢ acredita ser odiado ¢ perseguido pelos cutros. Quando alguém diz que nin- guém o ama, trata-se invariavelmente de uma pestoa que odeia aos demais; naturalmente minguém a ama, pois éla reage a todos com ddio.” Vemos assim que na raiz dessa condigéo se encontra um problema de sentiments. Cf. The Visions Seminar, vol. U1. pig. 512. 20 através do mecanismo defensivo de projegio”.” Como o parandica é incapaz de lidar com a prépria hostilidade, a dmica saida ¢ projetiJa — tal qual uma vilvula de escape para liberar um vapor excessivao — e@ concretizida cada vez mais no plano exterior. A passagem que segue deixa bem claro esse pomnto: "QO parandico cai na teia de suas préprias projegdes. Nao é capaz de abrir mao de seus medos projetados e redireciond- Jos porque estes sio em si mesmos parte integrante de wma manobra defensiva para nao ser tomado e desintegrada pela prdpria hostilidade. Nesse ponto, a tinica coisa que pode fazer é continuar projetande até atingir uma ‘realidade’ reconstruida de modo mais estdvel, que inclua em sua organizagdo suas pro- jegdes defensivas.”* A idéia contida nessa teoria é que em primeiro lugar vem a hostilidade, e depois a projegdo e a ilusio. Nos estdgios iniciais da doenga a projegdo nao tem foco e portanto o paciente nao é capaz de localizar um perigo especifico. Com o desenvolvimento da enfermidade, essas projecdes gradativamente compoem um qua- dro organizado de uma realidade exterior na qual os perigosos “ou- tros” so finalmente percebidos como um grupo especifico num complé definitivo. © mesmo autor prossegue: “A pseudo-comunidade parandica & uma organizagao imagind- ria, composta de pessoas reais e ficticias, as quais sfio wistas pelo paciente como unidas em torno do objetivo de fazer-the algo. A presumida ‘agdo' corresponde a seus prdprios impul- sos libidinosos e hostis, que sda projetados.” Podemos aqui perceber como essa abordagem tedrica atribui a projecdo a funcio ativa de elaborar uma visio psicdtica da reali- dade. Repetindo, essa nogdo pode ser pertinente & compreensio da psicose — mas o problema é que o fenémeno da projegiio acabou reduzindo-se basicamente a esse aspecto. De fato, essa linha de 5 J. Michaels, “Character Structure, Character Disorder", in Americar Hancl- book of Psychiatry, vol. 1, pag. 518. § N. Cameron, “Paranoid Conditions and Paranoia", in American Handbook of Psychiatry, vol, 1, pag. 518. 1 Ibidem, pig. 519. pensamento condiciona o uso do termo nos mais variados contextos. Seria bom lembrar que se encaramos uma “ilusao parandicu” a partir de um ponto de vista simbdélico poderemos chegar a resul- tados muito diversos, Em meu trabalho analitica em Zurique, tive oportunidade de tratar de uma mulher que numa certa altura de sua vida viu-se em meio a grandes dificuldades psicoldgicas que culminaram na convicgio de que seu marido estava tentando enve- nené-la. A “evidéncia” de que dispunha consisltia num pequeno ponto irritado em sua pele; mas para ela isso indicava que seu marido havia the aplicado injegdes de veneno enquanto dormia, Nao conseguindo mais compreender o que se passava, ela decidiu chamar a policia, Nessa época a relagio matrimonial estava pés- sima e as brigas eram muito freqiientes, Como ela era estrangeira e nao falava nem o alemfio nem o dialeto suigo, o marido en- tendeu-se com a policia, declarando que ela tinha enlouquecido; com base nessa informagiio, as autoridades levaram-na para uma clinica psiquidtrica, © diagndstico entio feito sustentava que ela tivera um ataque esquizofrénico de natureza parandide; a paciente foi entéo internada e medicada por um curto periodo, retornando @ casa sem nenhum tratamento psicoteraplutico, O diagndstico se baseava principalmente nas informagdes fornecidas pelo marido, visto que ninguém podia de fato falar com ela e penetrar em sua si tuagio psicolégica, Pouco tempo depois o marido deu entrada a um processo de divdreio alegando que a esposa estava mentalmente perturbada e totalmente incapacitada para o desempenho de suas fungdes domésticas. Ela nunca pdde pronunciarse em defesa pré- pria no tribunal, assim como jamais compreendia as acusagdes que lhe eram feitas — além de nfo conhecer a lingua, seu nivel edu- cacional era bastante rudimentar. Néo demorou muito e¢ cla teve que abandonar a casa do marido, la deixando todos os bens que haviam adquirido juntos; viu-se entio forgada a viver apenas com uma pequena pensio. Devido a suas limitagdes, acabou se empre- gando como faxineira num hospital. No inicio da terapia ela mal conseguia se comunicar — e nao tinha um ponto de vista a partir do qual pudesse julgar sua situagéo, Trago algum de iluséo parandica evidenciou-se durante a terapia. A histéria de seu casamento sé comegou a vir 4 tona depois de muito tempo. Para comegar, ela nunca ‘quis casar com esse homem; sua intenco era antes ter com ele uma experiéncia num pais estrangeiro e ver o que aconteceria. Ele porém insistiu 22 e ela acabou concordando. Nos primeiros anos de sua vida em comum ela trabalhava numa f4brica e entregava mensalmente o saldrio ao marido para ajudélo a montar um pequeno negécio. Nesse tempo ela se sentia cheia de energia e entusiasmo, sempre encorajando-o quando ele vacilava diante da aventura que esco- Ihera, A essa altura ela sentiu necessidade de aprender o dialeto suigo para melhor integrar-se no novo ambiente mas o marido impediu, alegando niio haver necessidade visto que lhe daria tudo o que fosse preciso, Algum tempo depois, ele comegou a insistir que ela ficasse em casa o méximo possivel e passou a controli-la como um detetive. Nesse ponto ela demitiu-se da fabrica, limitando- se a trabalhar em casa exclusivamente para o negdcio do marido e sem qualquer remuneragio, Ele costumava dizer que esse es- forgo todo era um investimento em seu empreendimento comum. Pouco a pouco, todos os seus lacos exteriores foram cortados. A situagio chegou a tal ponto que cle passou a exigir que ela usasse camisola o dia inteiro, argumentando ser cssa a nica vestimenta adequada a uma dona de casa que passa o dia no lar. Nio de morou muito e ela teve uma depressio, perdeu toda a energia e comegou a ter diilogos imagindrios com uma amiga ficticia que the fazia companhia, No seu sexto ano de casada essa mulher vivia uma vida cativa, esgotada e sem a menor compreensiio do que de fato estava se passando. Foi entéio que um dia ela teve o “delirio parandico"” de que o marido a estava envenenando. Seria correto dizermos que seu problema cra apenas a projegéo de hosti- lidade reprimida ¢ que ela tinha um cardter parandico? Sua pro- jecio continha um gréo muito importante de verdade simbdlica sobre sua situagio psicoldgica e a realidade de seu casamento, além de conter um pedido de socorro. Evidentemente ela nfo era apenas uma vitima inocente de um marido psicopata, pois foi sua prd- pria constelagio interior que a levou dquela experiéncia, Mas com- preender sua projegio de que estava sendo envenenada apenas no sentido patoldgico sé serviria para agravar sua condigio ainda mais, além de ser um-grave equivoco. F interessante notar que o prdprio Freud, originador da visao essencialmente patolégica de projegio na medida em que partiu do pressuposto de que se ligava & parandia, revelou-se apesar de tudo mais aberto que alguns de seus seguidores a outras perspectivas mais amplas para compreender esse complexo fendmeno. Pelo me- nos € o que parece depreender-se da passagem que segue, extraida 23 de A Psicopatologia da Vida Cotidiana, embora a idéia nao seja desenvolvida. No texto em questio, Freud vem falando de projegio e num certo ponto afirma que “na parandia muitas coisas fazem pressio para entrar na consciéncia, coisas essas cuja presenga no inconsciente de pessoas normais ¢ neurdticas s6 podemos demons- trar através da psicandlise". O parandico seria entéo alguém mais receptivo a contetidos inconscientes — mas a énfase acabaria sen- do posta pela teoria na prépria repressio desses contetidos. Freud prossegue: “Num certo sentido, portato, o parandico estd certo, pois ele reconhece algo que escapa d@ pessoa normal: ele vé mais ela- ramente que alguém de eapacidade intelectual normal, mas o fato de deslocar para outras pessoas a situagdo que reconhece torna imitil sew conhecimento. Espero que nado me pecam agora para justificar as vdrias interpretagdes parandicas, Mas a justi- ficagao parcial que concedemos & parandia {...) nos permi- tird atingir uma compreensdo psicoldgica do senso de convic- cio com que o parandico faz todas essas interpretagdes. Ha de fato alguma verdade nelas (...)."* Parece-me que esse germe de idéia foi logo posto de lado por- que levaria logicamente a uma compreensio distinta da relagéo en- tre proje¢io e © inconsciente que acabaria por contradizer a teoria dos mecanismos de defesa e do inconsciente como algo que con- tém principalmente (o advérbio é importante e aparece na formu- lacéo do préprio Freud) material reprimido. Alguns comentadores asseguram que Freud desenvolyeu essa idéia de um nticleo de ver- dade no delitio parandico em seus escritos posteriores, mas parece que isso se deu em outra direcdo, ou seja, a interpretagaa dos mitos e da histéria segundo postulados arraigados em sua teoria. Creio porémn nao ser preciso ir muito longe para ver comu essa idéia se desenvolve — basta continuar a leitura de alguns pardgrafos no mesmo capitulo mencionado acima Tendo discutido o comportamenta dos parandicos, e apds grifar a frase “ha de fato & §. Freud, The Psychopathy of Everyday Life, cap. XI; “Determinism, Belief in Chance and Superstition — Some Points of View", pag. 318. Grifada no original, 24 alguma verdade nelas", Freud passa a examinar o fendmeno da superstigéo, que novamente interpreta como uma projegio de mo- tivagdes interiores subjacentes a agGes fortuitas. Assim fazendo, Freud nega-se a admitir qualquer possibilidade de uma interagio significativa entre a psique e eventos externos, visto que nao se inclinava a encarar o inconsciente como algo que pudesse trans- cender os limites de uma dada personalidade. Como sua preo- cupagéo bdsica era encontrar as motivagdes secretas ou inaceitd- veis por tras dos erros e agdes fortuitas de nossa vida cotidiana, ele passaria a ver em toda parte esse problema. O jogo mental de intengdes e seus disfarces seria entio a realidade psicoldgica _pri- meira, desprovida de fundo, sem nada além do aleance da cons- ciéncia — e é precisamente essa visio redutiva da realidade psi- quica que ele chamou de “metapsicologia”, Creio estar ai a raiz de toda a diferenca entre Freud e¢ Jung e, no que nos concerne aqui, de sua compreensio diversa do que seja a projecio. No encadeamento de idéias que vimos examinando, Freud passa da parandia 4 superstigao e dai nega toda e qualquer transcen- déncia — que ele pejorativamente denomina “metafisica”, um cu- femismo, aqui, para nfo dizer mera ignorfncia do sujeito. Como seu foco era primordialmente desmascarar impulsos mentais negati- vos escondidos atrés da fachada do comportamento, Freud acabou concluindo que “a supersticao deriva de impulsos suprimidos crudis e hostis”. Diante de tal asserefio, deveriamos ter em mente o rico simbolismo contido nas crendices, supersticgdes e no folclore do mundo inteiro, ¢ o modo pelo qual esse material pode tornar-se significativo enquanto expressdo do inconsciente coletivo. Mas para Freud essa questao evidentemente estava fora de cogitagiio pois pre- ferencialmente pensava na projegao de uma motivaciio. Se nos per- guntarmos em que consistiria tal motivagao, encontraremos: “A superstig¢aa é em boa parte uma expectativa de um pro- blema iminente; alguém que tenha abrigada desejos maléficas fregiientes contra outrem, mas que por ter sido edueado para ser bom tenha reprimido tais desejas na inconsciente, estard especialmente inclinado a esperar um castigo para sua mal- dade inconsciente sob a forma de problemas que o ameacam no plano exterior.” 9 Ibidem, pig. 323. Devemos notar que Freud deixa de lado superstigdes positivas como bons pressdgios, simpatias, etc., pois seu foco estd nas in- tengdes malévolas escondidas que espreitam no inconsciente e que serviriam de mecanismo de projegio como uma espécie de porta para o mundo exterior. Ao mesmo tempo, a irracionalidade enquanto tal néo teria o direito de existir, sendo quando muito conseqiién- cia de um sentimento de culpa. A partir desse ponto, sé falta um passo para negar também o significado psicoldgico da mitologia ¢ reduzi-la a uma expressio projetada do jogo travado entre desejos, motivagdes ¢ proibigSes no dmbito do ineonsciente pessoal. A pas- sagem seguinte requer especial cuidado, pois seus termos-chave po- dem levar a confusio: ' “Na verdade, creio que boa parte da visio mitolégica da mun- do, que se insinua nas religides modernas, ndo passa de uma psicologia projetada no mundo exterior, O obscure reconhect- mento (...) de fatores e relagdes psicoldgicas no inconsciente se espelha — é dificil expressd-lo em outros termos, e aqui a analogia com a@ parandia nos serve — na construgdo de uma realidade sobrenatural, destinada a ser novamente revertida pela ciéncia na psicologia do inconsciente. Poder-se-ia dessa forma tentar explicar os mitos do paraiso e da queda do ho- mem, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade, ete, trans- jormando a metafisica em metapsicologia.”” Af temos o quadro completo ¢ agora podemos ver a que le- vou a idéia de um “griio de verdade” na projegio. Ao pensar em projesio, Freud parte da parandia e desemboca no problema da origem da religifio, que no fim revelaria a mesma natureza ilusdria, Voltaremos adiante a essa nogéo de que a psique (e no uma “psico- logia") pode ser projetada no mundo exterior apoiando-nos num ponto de vista completamente diverso, ou seja, a descoberta de Jung dos arquétipos e do inconsciente coletivo, e nesse momento a imagem de espelho seré novamente usada. Ao dizer que toda essa insensatez mitolégica deveria ser reduzida pela ciéncia a uma “psicologia do inconsciente”, Freud de fato encara o mito como espelho ou derivativo da patologia, do jogo que postula entre i Jbidemt, pag. 321, Grifado no original. 26 motivagdes secretas, ¢ nfo como expressio de um inconsciente que na verdade circunda a consciéncia por todos os lados. A mim pa- rece que o modo segundo o qual Freud relaciona essa “realidade sobrenatural” aos contetidos reprimidos do inconsciente é andlogo & proposigfo de Marx de derivar a “superestrutura” de idéias, re- presentagdes e cultura das condigdes materiais da produgio econdmica. Obviamente, o passo seguinte dessa argumentagiio tedrica se- ria dizer que entio os sonhos também sio uma projegio e nao algo em si mesmos — e como é sabido, é exatamente essa a con- clusio a que Freud chega, novamente postulando uma similaridade entre parandia e o processo de formagio do sonho.!' A idéia é que sonhar é em si um ato narcisistico, pois a libido reflui do mundo exterior € volta-se para o ego visando proporcionar-lhe uma satisfagao alucinatéria de seus desejos — o que explicaria por que a figura central nos sonhos é sempre o préprio sujeito. FE como se, tendo sonhado, a pessoa pudesse continuar dormindo em paz, uma vez que um problema interior seria retratado desenvolvendo- see sendo solucionado no plano externo, Assim a teoria afirma que o sonho € uma projecio, posto que externaliza um processo interior ¢ transforma um pensamento ou desejo pré-consciente em imagens. No que diz respeito a nosso tépico, a conclusio freudiana é de que a regressiio do ego a um nivel narcisista é condigio sine qua non para a projecio, o que seria demonstrado pelos sonhos, E como para Freud todo sonho contém uma distorgio produzida pela “censura”, novamente podemos perceber que para ele projegio e distorgio vém juntas.” Sem nos aprofundarmos ainda mais no assunto, eu diria que em sua tentativa de compreender a estrutura de nosso “aparato mental” (como diz) postulando a existéncia de duas “agéncias”, uma que expressa um desejo € outra que o cen- sura, Freud estava de fato projetando no inconsciente algo que na verdade pertencia & sociedade em que vivia, Seria interessante con- trastar esse fato com a negagiio, por parte de Freud, do modo pelo qual os povos antigos lidavam com sonhos, isto é, sua crenga de que os mesmos tinham origem divina, eram capazes de predizer it Sami-Ali, op. cit., pig. 51. 2S. Freud, The Interpretation of Dreants, cap. [V; “Distortion in Dreams”, pags. 224-226, 27 o futuro, tinham um efeito curativo e podiam ser interpretados simbolicamente: . “A visdo pré-cientifica dos sonhos adotada pelos povos da An- tiguidade estava de certo em completa harmonia com sua visdo do universo em geral, a qual os levava a projetar no mundo exterior como se fossem realidades coisas que na verdade sé eram reais em suas prdprias mentes.” Isso certamente se liga & redugdo feita por Freud daquilo que denominow “realidade sobrenatural” ou “metafisica*. Como vimes, aQ mesmo tempo em que projeta um aspecto historicamente condi- cionado da sociedade vitoriana na natureza do inconsciente, Freud acusa a antiga concepgao, tio combatida por sua mente cientffica, de projetar o inconsciente no mundo — quando esta ultima pro- jego, como sera discutido adiante, revelava de fato as “agéncias” do inconsciente, ou seja, os deuses. A “mente pré-cientifica" sus- tentava que os sonhos provém de outro mundo, ¢ isso podemos perfeitamente compreender no sentido de que os mesmos se ori- ginam num nivel do inconsciente que ultrapassa de longe o al- cance de nossa consciéncia. Mas como para Freud isso seria mero obscurantismo, ele agarrou-se A convicgiia de que os sonhos seriam a projecio de um conflito interior ¢ nada mais. Como é de conhecimento geral, todos os seus insights sobre projegio e aspectos correlatos foram classificatoriamente elabora- dos num sistema tedrico, no qual a projegio ocupa um Iugar defi- nido. Como nao se encontrard jamais algo do tipo na psicologia junguiana, seria talvez conveniente sumarizar as linhas mestras do esquema freudiano para clarificar nossa discussiio. Freud postulou a existéncia de cinco modos distintos de uma pessoa resolver frustragdes, conflitos ou ansiedade: (1) identificacao, (2) deslocamento, (3) sublimagio, (4) transformagio dos instintos através de fusio ¢ compromisso e (5) mecanismos de defesa." A teoria afirma que os mecanismos de defesa surgem para auxiliar o ego a lidar com perigos e ameagas que afetam a pessoa e€ pro- vocam ansiedade. Neste caso haveria duas possibilidades: ou o ego G [bid., cap. I: “The Scientific Literature on Dreams”, pag. 60. 4 ¢. Hall, A Primer of Freudian Psychology, cap. IIL, “The Development of Personality”, pass. 28 {cm uma constituigéo saudavel e ¢ capaz de contornar o perigo adotando métodos realistas para solucionar problemas, ou entio envereda por um caminho patoldgico e adota métodos que negam, falsificam ou distorcem a realidade & impedem o desenvolvimento da personalidade. Dependendo de como o ego lida com situacdes de perigo (excluindo-se todas os meios racionais), entraria em acio um dos seguintes mecanismos de defesa: (a) repressiio, se o ego negar 0 perigo; (b) formagao de reagies, se oculta-lo; (c) fixacgio, se permanecer imdvel; (d) regressio, se fugir; ¢ finalmente (e) pro- Jegao, se o ego externalizar o perigo. E importante tentarmos compreender como Freud coneebia @sses mecanismos, pois sé assim poderemos realmente captar o sen- tido da projecdo para ele. Além de falsificar a realidade, esses cinco mecanismos de defesa impediriam o desenvolvimento psicolégico na medida em que comprometem uma certa dose de energia que o ego poderia usar para outros fins." O ego entao se enrijece e vé-se permanentemente ameagado por um segundo perigo, ou seja, a possi- bilidade de seus mecanismos de defesa falharem — caso em que perderia o controle e seria tomado pela prdpria ansiedade da qual procurava defender-se. Essas defesas so portanto danosas e sé tém razo de ser porque o ego infantil — que lanca mao de to- das — é demasiado fraco para poder integrar todas as presses que o afetam. As defesas sé persistem enquanto o ego for incapaz de se desenvolver, pela simples razéo que a energia necessdria para tanto est toda investida nas defesas — e¢ ai se estabelece o cir- culo vicioso. A teoria sustenta que a solucao seria o amadureci- mento sob a forma de mudancas orgénicas no sistema nervoso. Em condigGes ideais de educagio infantil tais mecanismos nfo de- veriam persistir além do necessdrio. FE claro que nesse encadea- mento de idéias a projecio é uma das causas do subdesenvolvi- mento da personalidade, quer dizer, seria uma das forcas respon- sdveis pela estagnacio mérbida. A projegdo é entio algo a ser definitivamente diagnosticado e erradicado, sendo substituida, na personalidade “estabilizada", pelo pensamento realistico. Essa concepgio de projecio permanece basicamente inalterada em boa parte da literatura psicanalitica mais recente. A despeito de toda uma gama de claboragdes tedricas, o fato é que, nessa 3 Ibid. pag. 96. 29 abordagem psicoldgica, pouco ou nada se discutiu ¢ exploruu s0- bre o que viria a ser a manifestagao empirica mais geral desse estranho fen6meno denominado “projegio". Temos ai um caso clissico de uma teoria excessivamente bem elaborada fechando a porta a um contato vivo e nao preconceituoso com a realidade da psique. Hoje ha quem chegue a se perguntat se a projecao nao resultaria de lesdées cerebrais,"” ou a usar o termo como critério central para caracterizar a psicologia dos “casos limitrofes”. Por exemplo: “Sdo narcisistas; seu superego e seu julgamento sao pouco de- senvolvidos, sua motivagio é fraca, apresentam nitidos distir- bios da voligéo, e sua relagéo com a realidade é problemd- tica. Relutam ou sdo incapazes de atribuir consegiiéncias a seu comportamento e fazem excessive uso da projegao e das mecanismos de negagdo."" Quanto a diferenciagies tedricas recentes do conceito, gostaria de examinar brevemente alguns exemplos, esperando poder demons- trar que permanecem num nivel formal e sé se aplicam 4 limitada esfera da experiéncia clinica, quer dizer, & transferéncia, sem ja- mais abrir-se a dreas mais amplas da vida e ainda menos da cultura. O tom patolégico esta sempre presente. Isso se percebe, por exemplo, no modo de Melanie Klein usar o conceita de “iden- tificagao projetiva”, caso especialmente negativo de transferéncia que essa autora concebe como uma espécie de inveja primitiva.” Outros autores igualmente preocupados com esse problema concei- tual tentam aproximar Klein e Jung, a meu ver equivocando-se e limitando-se & transferéncia patoldgica.” Desse ponto de vista, a “identificagio projetiva" é uma tentativa de criar uma fusio em 6 H. Brosin, “Psychiatric Conditions Following Head Injury", in Arterican Handbook of Psychiatry, val. I, pag. 1.188. 0 M. Schneideberg, “The Boderline Patient", in American Handbook of Psy- chiatry, vol. L. pag. 412. ; OR. E. Money-Kyrle, “British Schools of Psychoanalysis — [. Melanie Klein and Kleinian Psychoanalitic Thought” in American Handbook of Psychiatry, vol. IM, pag. 228. " Por exemplo, R. Gordon, “The Concept of Projective Identification” in Journal of Analytical Psychology, vol. 10, no 2. 30 heneficio de uma personalidade fragmentada cujas partes encon- lrum-se projetadas. Nesse caso a projecdo ¢ vista como um ato de exeregio, imagem a bem dizer apta para quem sempre vé uma erlanga por tris de todo ato psicolégico. Através do mecanismo aim postulado, o paciente faria com que o analista se sentisse do mesmo modo como se sentiu face a seu progenitor negativo e¢ © propésito de todo esse malabarismo inconsciente seria “encontrar um lugar seguro para proteger a vulnerabilidade do self infantil” Kssus interpretagdes podem ser de grande utilidade para quem con- centra toda a atengio na transferéncia, como se esta fosse o tnico ado inconsciente; mas os fafos que pretendem relatar sé podem ser apreendidos pelos que dominam a teoria. Caberia entao per- guntar se a propria teoria nao estaria antes de mais nada criando tois fatos, posto que ao olho comum eles nao se apresentam de lal forma. Se a projecio fosse unicamente um t6pico de discussdes eapecializadas poderiamos perfeitamente viver sem jamais nos preo- suparmos com ela, Mas nao se trata disso, como o presente estudo pretende relembrar. : A mesma critica pode ser feita ao trabalho de Sami Ali sobre a teoria € o uso clinico da projecio. O autor serve-se da comparacao de Freud entre um sonho ¢ um rébus e¢ aplica a mesma analogia i projegio, que passa a ser vista como um texto hieroglifico nao decifrado. Concebendo a projegdo nfo como um modo fundamen- {ul de expressiio do inconsciente, mas antes como uma condigao deturpada ¢ circunserita, o autor faz a seguinte descrigao do fenémeno: “Esse mundo cifrado Jala uma lingua que @ sujeito capta sem poder compreender. Tudo se transforma em signos, misteriosas intengdes se escondem atrds de coincidéncias fortuitas e o acuso é excluido de um universo repentinamente povoado de premonigées. Nert as pessoas nem as coisas sia o que pa- recem, da mesma forma que as palavras e os gesios aludem a um sentide que se pode apenas entrever sem qualquer cer- ieza de té-lo adivinkado, e os acontecimentos, dada sua corres- pondéncia, querem dizer algo que permanece indizivel.“™ tM fbid., pig. 140, " Sami-Ali, Qe fa projection, pig. 127, 31 Essa abordagem parte do pressuposto de que a projecdo é uma espécie de defeito ou disfuncdo do aparato perceptivo e, o que é pior, a pessoa que vé o mundo a tal ponto distorcido acredita ver uma realidade objetiva — em contraste com aqueles que, por de- finicao, perceberiam a realidade tal qual é. E exatamente nesse aspecto que me parece estar a redugao da abordagem patoldgica, pois esta s6 apreende uma fracao do fenémeno e ignora o resto. A critica neste caso seria no mesmo espirito daquela feita por Jung ao dogma freudiano de que todos os sonhos sio a realizagio de um desejo. Alguns certamente o sao, mas outros séo de natureza completamente diversa. A partir do momento em que se reconhece, através da observacao empirica, a generalidade da projegdo, pode- se igualmente abrir mio da abordagem patoldgica. Sami-Ali, po- rém, opera com cortes abruptos; para ele, projecdo e falsidade an- dam juntas e o problema passa a ser do tipo ou isto/ou aquilo. Para perceber a realidade corretamente nao se deve projetar, como se isso dependesse de uma auto-disciplina. Como diz esse autor, *o contrério da projecdo nao & portanto o real mas o verdadeiro”= Trata-se assim, segundo suas palavras, de um processo psicdtico;” a percepgao, voltada para a satisfacio de um desejo inconsciente, funcionaria exatamente como uma alucinacao2* QO interessante € que essa teoria toda se sustenta numa fan- tasia sobre a vida intra-uterina e nao numa observacao empirica da psique. A idéia é que a projecio, assim como os sonhos, seria um mecanismo primitivo operante no interior do ttero ¢ no de- correr de toda a primeira infancia para reduzir as tensdes do bebé. Como tais tedricos conseguem observar tais fatos é algo que me escapa! Tanto a projegao como os sonhos seriam entdo vestigios desse estado inicial. Como diz o autor, “somente quando esse jogo se revela initil € que a crianga busca alhwres. Esse ‘alhures" é o real”.” © que se passa aqui é de fato irdmico: os autores dessa linha projetam no momento exato em que tentam explicar o que é projecgo, mas recusam-se a reconhecer aquela de sua autoria. Jd em 1912, na época em que comecava a romper com Freud, Jung ™ fbid., pag. 17B. % Ibid., pag. 183. 4 [bid.. pag. 196. 3 fbid., pag. 198. 32 fez uma conferéncia sobre a psicandlise ¢ nao deixou de perceber esse ponto. Disse entio: “a expressio ‘polimorfo-perverso’ foi to- mada de empréstimo da psicologia da neurose e projetada regres- sivamente na psicologia da crianga, onde na verdade esta comple- tamente fora de lugar”* O modo de Jung usar o conceito — nio como um mecanismo de defesa! — numa época em que procurava explicar para um publico mais amplo o que era a psicandlise revela que a projecao, desde o comego, era para ele algo muito diverso. = C. G. Jung. “The Theory of Psychoanalysis” in Frewd and Psychoanalysis. Collected Works — (daqui por diante, apenas CW), § 293; e também L. Frey- Rohn, From Freud to Jung, pag. 149, Grifo nosso. wt ot 2. O MECANISMO DE PROJECAO LD tintamente de Freud, Jung nao se preocupava essencial- mente em erigir um sistema tedrico e articular conceitos definitivos. Seu interesse era antes o de expressar de forma sem- pre renovada as descobertas que fez no decorrer de uma longa e persistente observagado empirica da psique. Quem se interessar pelo mecanismo de projegao — expressiio que Jung jamais usou — tera diante de si um longo trabalho, pois em sua vasta obra Jung freqiientemente se refere a projecio em diferentes contextos, sem- pre apresentando o fenémeno a partir de um Angulo novo, Como pretendo demonatrar, a atitude de Jung a esse respeito permaneceu estrilamente consistente ¢ mesmo o mais classificatério dos pesqui- sadores no encontraria a menor base para falar de “diferentes fases” nas varias descrigdes e interpretagdes da projegao enquanto fenémeno psiquico encontraveis nas Obras Completas e em escritos de outra natureza. Isso se deve ao fato de que Jung nao se sentia compelido a reformular seus conceitos de tempos em tempos para ajusté-log a um sistema; muito pelo contrério, @ que se percebe através da leitura de sua obra de 1902 a 1956 é que novos cam- pos de investigagao sempre deram lugar a novas ramificapdes e implicagdes. Por essa razio, niio me parece necessdrio abordar o nosso tépico acompanhando os trabalhos de Jung em ordem cro- nolégica, Na verdade, nao encontrei um “conceito” de projecio, uma formulagio tedrica do tipo “se presumirmos que a psique humana ¢ assim ¢ assado, ¢ se postularmos que funciona de modo “tl ae tal e tal, entio projegio € isso ou aquilo”; pelo contrario, o que se encontra, na maioria dos casos, sio descricGes, exemplos e ex- plicagSes do que ocorre, num certo caso, a0 nivel psicoldgico. : Nao seria este o lugar para discutirmos até qwe ponto Jung assimilou ou reformulou as idéias de Freud ¢ nem cabe a mim fazé-lo. O fato & que jf em 1902, em sua dissertacao de douto- tamento € antes de seu contato com Freud, Jung mostra como os contetidos inconscientes so projetados, sem no entanto usar o ter mo. Wé-se assim que desde seu primeiro exame do problema, Jung nunca associou Projecdo a repressio ou a qualquer outro meca- nismo psicolégico postulado por definic¢ao, mas simplesmente en- carou-a como um fato natural inerente A psique humana.! Comecemos perguntando o que é projecio. Em primeiro lu- gar, € um fato que ocorre involuntariamente, sem qualquer inter- feréncia da mente consciente, quando um contetido inconsciente pertencente a um sujeito (um individuo ou grupo) aparece como S¢ pertencesse a um objeto (outro individuo ou grupo ou o que quer que seja, desde seres vivos até sistemas de idéias, a natu- reza ou a matéria inorganica). Como isso ocorre involuntariamente © inconscientemente, o sujeito nao sabe que uma Projecio esta ocorrendo, da mesma forma como é incapaz de produzi-la ou im- pedi-la. que pode fazer, ex post facto, é talvez reconhecer que O qué a primeira vista parecia pertencer i i verdade ser seu. Mas como isso ae eyes cee eee que vivemos € temos sempre vivido sob condigdes de incomensu- niveis projegdes pois é assim que funciona a psique humana. A chave para compreender o que € projecio est4 no fato de que através dela tudo o que é desconhecido na Psique — ow seja, inconsciente — pode se manifestar, uma vez que nao pode ser visto ou iniegrado diretamente.? Esse modo de expressdo é um fato natural € nao uma patologia de uma personalidade Perturbada, pois © Inconsciente aparece inicialmente de forma projetada? Os con- teidos inconscientes nfo podem “subir” diretamente & consciéncia, pois se assentam fora de seu campo de luz; sé conseguem apro- ' Como diz Jung em Mysterium Coniunctionis: “(_..) a proj 5 : Brees Projegio nao € um ato voluntério; € um fendmeno natural fora da interferncia da mente cons- ee | name 4 natureza da psique humana.” (CW 14, §131). I aparece em CW 10, §714 dllew wee $714 e em CW 16, $469. 36 ximar-se da area limitrofe, e a questéo que se coloca é o grau de abertura e a habilidade da atitude consciente para “pescd-los”. Essa situacio peculiar deve-se ao fato de que apesar da comscién- cia ser gerada, envolvida e nutrida pelo inconsciente, esta sé pode aproximar-se dele gradualmente, caso contrario corre o risco de ani- quilamento. A observacio empirica deste processo tem demonstrado suficientemente que o préprio inconsciente determina o andamento e o grau de sua absorgdo. Cada integracio de um contetido in- consciente implica uma alteracao da consciéncia; se repentinamente invadida pelo inconsciente, esta perderia sua continuidade e¢ assim © continente nao abrigaria contetido algum. FE preciso lembrar que o dinamismo desta relagao peculiar entre um campo de luz relativa- mente recente e¢ outro sombrio e muito anterior é dado pelo fato de que este tltimo quer ser reconhecido e o faz através da via indireta da projeg¢ao. Ocorre que a intensidade de uma projecio é proporcional & abertura relativa da atitude consciente. Se a cons- ciéncia combater obstinadamente a emergéncia de um contetido in- consciente, este poderd recorrer a medidas drasticas para ser re: conhecido. Como? Segundo Jung, “o inconsciente o faz claramente através da projecdo, extrapolando seus contetidos num objeto, que passa entao a refletir o que antes nele se escondia.™ 2.1. O desconhecido Uma das melhores situagies para esse modo de expressio do inconsciente surge quando o homem confronta o desconhecido, seja em outra pessoa, outra cultura, uma idéia diferente, um novo am- biente ou tudo aquilo ainda por ser explorado ¢ investigado. Este ponto, que Jung iluminou através de seu estudo da alquimia, com sua suposta descoberta das leis da nmatureza pelo iniciado, é de enorme importancia para a teoria do conhecimento. Tudo o que é obscuro, ¢ precisamente por isso, € um espelho. Em Psicologia ¢ Alquimia pode-se ler: “Tudo o que é desconhecido e vazio estd cheio de prajecdes psicoldgicas; é como se o prdéprio pano de fundo do inves- tigador se espelhasse na escurida@o, O que vé mo escuro, ou * CW 10, §609; também Marie-Louise von Franz, The Psychological Meaning of Redemption Motifs im Fairytales, pag. 98. cil ucredita poder ver, é principalmente um dado de seu préprio inconsciente que ai projeta. Em outras palavras, certas quali- dades @ significados potenciais de cuja natureza psiquica ele é totalmente inconsciente.”* © desconhecido atua portanto como uma espécie de estimu- lante da projecio. E interessante notar que o trecho acima tem um certo toque kantiano; a diferenga, porém, € que enquanto Kant enfatizaria a impossibilidade de um conhecimento objetivo direto desprovido de uma dimensdo subjetiva, Jung mostra que através da projegio a psique sub-repticiamente se infiltra frente aos olhos do observador no momento em que ele acredita estar vendo outra coisa. Creio que a descoberta de Jung sobre a natureza da pro- jecdo e sua relagdo tanto com o inconsciente como com o des- conhecido foi a chave que lhe permitiu penetrar nas obscuridades da alquimia e nela encontrar um sentido. Se tivesse adotado uma compreensio restritiva e patolégica de projegdo como expresso de um conflito pessoal reprimido, Jung nao teria sido capaz de per- ceber que o inconsciente coletivo revelava alguns de seus aspectos ha visio que o alquimista desenvolveu sobre a matéria e suas trans- formagdes. Em suas préprias palavras, “(...J @ verdadeira raiz da alquimia deve ser buscada nao nas doutrinas filosdficas, mas nas projegdes de investigadores individuais. Com isso quero dizer que enquanto trabalhava em seus experimentos quimicos 0 operador tinha certas experién- cias psiquicas que lhe pareciam estar expressando as peculia- ridades do préprio processo quimico. Como se tratava de pro- jegao, o alquimista naturalmente nao tinkha a menor consciéncia do fato de que o experimento nao tinha nada a ver com a matéria em si."* : O que se deve ter em mente é que tais projegdes ocorriam involuntariamente. No linguajar comum, dizemos que alguém pro- jeta, como sé isso implicasse uma ago consciente. Nao € 0 ego que projeta; o inconsciente € que se projeta. No mesmo paragrafo acima = CW 12, §332. A mesma idéia aparece novamente no §345. * CW 12, §546. 38 citado, Jung afirma que “a bem dizer, nao se faz uma projegao, ela simplesmente ocorre”. Esse fato natural se da porque tudo o que é@ desconhecido no plano exterior é como um eco de um des- conhecido interior. E prossegue: “na obscuridade de tudo o que é exterior a mim encontro, sem reconhecé-la como tal, uma vida interior ou psiquica que é minha”. Nao se trata de narcisismo, mas de uma afirmagfo sobre a condigio humana ¢ a relagdo entre psique e mundo. No ensaio O Espirito Mercurius encontramos ou- tra referéncia ao desconhecido que igualmente diz respeito a projegio: “A experiéncia prdtica tem repetidas vezes evidenciado que qualquer preocupagiio mais prolongada com um objeto desco- nhecido funciona como uma isca quase irresistivel para que o inconsciente se projete na natureza desconhecida do objeta ¢ para que se aceite a percepeao resultante, bem coma a inter- pretagao dela deduzida, como algo objetivo.” © mecanismo de proje¢io posto em agéo quando nos defron- tamos com o desconhecido é admiravelmente bem descrito por um esquimé que explicava a Knud Rasmussen como o mundo foi criado. Ele dizia que é muito dificil saber como viemos a existir € oO que acontece quando morremos, visto hayer escuridao tanto no principio como no fim. Dai ele prossegue ¢ diz algo absolu- tamente andlogo 4 idéia de Jung de que o inconsciente se projeta nas brechas de nossos pensamentos: “Ninguém pode saber nada ao certo sobre o comego da vida. Mas quem abrir seus olhos e¢ ouvidos ¢ tentar lembrar-se do que diziam os velhos poderd preencher o vazio de seu pen- samento com esse ou aquele conhecimento.”* Através desse “vazio no pensamento” o inconsciente se pro- jeta e produz um mito de criagio, o qual, como diz Marie-Louise von Franz, retrata a origem nio de mosso cosmos, mas da cons- ciéncia que o homem tem do mundo.” O mesmo mecanismo apa- 7 CW 13, §253. ® Citado por M-L. von Franz in Creation Myths, p4g. 21. 3 Ibidem, pag. 8 Ver também sew Alchentical Active Imagination, pag. 16: “(...) como sempre ocorre quando nos defrontamos com o desconhecido, a imagineg3o inconsciente projeta hipotéticas imagens arquetipicas.” 39 rece de forma grdfica ao analisarmos mapas antigos, como von Franz sugere em Creation Myths: no centro do campo visual, por exem- plo, estaria a Grécia. Nas margens os contornos estio ligeiramente distorcidos e os pafses vizinhos se fundem numa espécie de conglo- merado disforme; a drea conhecida é circundada por um Uroboros © nos quatro cantos do mapa os quatro ventos sopram em diregdo ao centro, O mesmo pode se observar nos mapas desenhados pelos descobridores do Novo Mundo: apesar de mal terem tocado a costa eles retratam a terra inteira, primeiro como ilha ¢ depois coma todo um continente, com as mais inesperadas formas e habitada por es- tranhos seres ¢ animais mitoldgicos. Vernos assim que a descoberta de Jung sobre o mecanismo de projecdo na alquimia pode aplicar- se a varias outras dreas da experiéncia humana. Nas palavras de von Franz, “esses mapas demonstram ad oculos que onde cessa a realidade conhecida, [i onde se toca o desconhecido uma ima- gem arquetipica é projetada,”™ 2.2, O papel dos complexos Acabamos de examinar um aspecto do mecanismo de praje- Gio: seu cardter involuntirio, sua telagaéo com um contetido in- consciente que se desloca em direcio a consciéncia e a ativagao exercida pelo desconhecido. A questo que se coloca agora € saber © que desencadeia a projecio. Para responder a essa pergunta, de- vemos considerar o que a psicologia junguiana tem a dizer sobre © papel dos complexos. Em seu ensaio Os fundamentos psicolégicos da crerica em espi- ritas" Jung nos fornece um claro exemplo biblico desse problema comemtando a conversio de Saulo. A idéia basica é que um com- plexo auténomo, ou seja, ndo associado diretamente ao ego, pode aparecer através da projecio como se nao pertencesse ao sujeito, Saulo era inconscientemente cristio, mas como sua consciéncia — assim como a consciéncia coletiva dominante em seu tempo — nao podia aceitar tal fato, ele odiava e perseguia os que professa- vam essa fé, O momento em que esse complexo-Cristo aparece pro- jetado exteriormente sob a forma de visio — deixando de lado as 0 Creation Myths, pag. 5, Mo The Psycholugical Foundations of Belief in Spirits, CW 8, § 582-584. 40 possibilidades metafisicas ¢ focalizando apenas o nivel psicoldgico — corresponde 4 sua abrupta associagiio ao ego. Esse é pois o me- canismo: Saulo, ou de fato qualquer pessoa com idéias persecutérias, atribuia a outrem as peculiaridades de seu complexo desconhecido, encarando os demais como hostis porque ele proprio era hostil para com seu complexo, Essa, em suma, seria a descrigéo de um fend- meno psiquico imemorial. Podemos acompanhar o desenvolvimento desse mesmo pensa- mento no Comentdrio sobre o Segredo da Flor de Ouro. Nesse en- saio Jung diz que complexos dissociados, isto é, contetidos psiqui- cos auténomos, sio uma experiéncia que todos nds temos e que seu efeito desintegrador sobre a consciéncia manifesta-se quando os mesmos s¢€ tornam um sistema psiquico separado e¢ fragmentario. Tais sistemas, que apresentam as caracteristicas de “pessoas” dis- tintas do sujeito, aparecem com toda a forca na doenga mental, em casos de cisio da personalidade e em fendmenos mediinicos — assim como na fenomenologia da religiio, Segundo Jung, “contet- dos inconscientes ativados sempre aparecem primeira como proje- gGes sobre o mundo exterior, mas no decorrer do desenvolvimento mental eles sio gradualmente assimilados pela consciéncia e refor- mulados em idéias conscientes desprovidas de seu cardter original auténome e pessoal”.” Enfatizo mais uma vez que nao se trata de uma condigéo patolégica em si (apesar desta poder vir a prevale- cer), pois tais tendéncias & dissociacao sao increntes A psiqué hu- mana — caso contrdrio, contetidos dissociados ndo seriam projeta- dos e nem espiritos ou deuses teriam jamais existido.'? O perigo psicoldgico reside exatamente em negar a existéncia de tais siste- mas aut6énomos, pois eles continuam a funcionar de qualquer jeito, criando distiirbios dos mais variados tipos — e nesse caso mao serio compreendidos nem assimilados, permanecendo como resultado de algo maléfico operando fora de nés. Quando “os deuses” nao sio reconhecidos cai-se na egomania — nao ha nada senfio o ego, o unico senhor da casa — ¢ ai ja se esta perto da doenca, Percebe- mos assim o dilema ¢ a sutileza da projegao: ou se aceita tais con- tetidos como psicologicamente reais, ou entéo eles se tormam con. erctamente reais enquanto projecdes no mundo exterior, Jung ¢ 12 Commentary on “The Secret of the Golden Flawer", CW 13. § 49. (Grifu nosso.) 3 [bidem, $51. 4! muito clara a esse respeito, lembrando-nos que tendéncias disso- ciativas configuram-se como verdadeiras personalidades possuidoras de realidade prdpria: “Sao ‘reais’ engquanto nado reconhecidas como tais ¢ conseqiien- lemente projetadas; so relativamente reais quando se estabe- lece um relacionamento com a consciéncia (em termos religio- $08, quando hd@ um culta), mas sao irreais na medida em que @ consciéncia se desliga de seus contetidos."" No antigo texto chinés comentado por Jung hé uma ilustragio mostrando um sdbio sentado na Posigio de létus numa atitude de profunda meditagdo. Uma aura que contorna sua cabeca irradia cinco correntes mentais que se abrem, cada uma, como plataformas Para cinco outros homens em dimensio menor. A mesma dissocia- ¢40 ocorre novamente, e cinco homens emanam de cada uma das cinco personalizagdes anteriores, O sdbio meditante contempla assim a dissociag¢io de sua prépria consciéncia ¢ a progressiva diferencia- cao de cada fragmento, Ao meditar, estabelece com os contetidos inconscientes um relacionamento que os integra, mantendo-os porém dentro do recepticulo de sua propria psique. Permite que se proje- tem a si mesmos e adquiram forma humana em sua tela mental para atingir um nivel de consciéncia no qual nao se é mais apanhado ou confundido com essas figuras. QO aspecto mais importante para a nossa discussio € que esse individuo certamente nao precisa pro- jetar esses contetidos exteriormente e combatélos ou amé-los ld onde nao se encontram, Talvez niio me engane de todo ao suspeitar que o insight de Jung sobre projecdo e complexos auténomos — que tio bem péde formular no momenta em que um velho texto chinés lhe foi envia- do pelo amigo Richard Wilhelm — jé estava presente como germe quando estudou fendmenes de mediunidade no principio de sua carreira {isto 6, 27 anos antes). Com alguma reserva, poderiamos dizer que a médium observada por Jung teve uma experiéncia simi- lar & acima descrita, ou seja, figuras espirituais gradualmente emer- giram de sua mente sob forma huntana € s¢ manifestaram verbal- mente. A diferenga Gbvia é que a jovem médium nao meditava, “ Ibidem, §55. 42 sendo antes a vitima passiva de um ataque por parte de contetidos inconscientes que ela interpretava como espiritos vindos do além. Esta atitude, é claro, impede qualquer possibilidade de assimilagao e tem um efeito negativo sobre o desenvolvimento da personalidade. Como ja indiquei, Jung ndo usava nessa acasiic o termo “projegao : Sua interpretagao do que observou, na tese intitulada Sobre a Psi- cologia dos Assim-Chamados Fendmenos QOcultos, é, em suma, a seguinte: “A influéneia da escuriddo sobre a sugestibilidade (...) é bem conhecida, (...) A pacienie se enconirava num estado de hip- nose parcial, e além disso uma personalidade _subconsciente intimamente ligada d drea do discurso jd se havia constituida. {...) Tratava-se provavelmente de uma dissociagao da perso- nalidade existente, e essa parte separada apropriou-se do mate- rial disponivel mais prdximo para expressar-se."" 2.3. IlusGes, subjetividade e “participagaéo mistica” Fazendo um pequeno desvio, passaremos a encarar © problema que nos interessa a partir de um novo ingulo, ou seja: se é que a projecao interfere nos atos de cognigao € percepgao, como eal guirei de fato ver em sua propria realidade esse Outro que se coloca diante de mim? Sera que sé vejo pedagos de mim refletidos nele no momento em que acredito estar vendo sua verdadeira face? Se ° Outro ¢ o Mundo nao passam de espelhos de minha psique, haverd também um sujeito ¢ uma realidade do outro lado do vidro? Com base em Jung, afirmamos que a projegao é um mecanismo intrinseco da psique humana, ¢ que simplesmente nos deparamos com ela. Por outro lado, a projecio isola e cria um relacionamento ilusdrio com o ambiente. Como diz Jung em Aion: “As projegdes transformam o mundo numa réplica de nossa face desconhecida, Em ultima andlise, portanto, levam a uma condigio auto-erdlica ow autista na qual sonha-se um mundo cuja realidade permanece para sempre inatingivel. (...) Quanto 3 CW 1, 997. 43 mais projegdes existirem entre o sujeito e o ambiente, mais di- ficuldade terd @ ego de ver através das ilusdes.”* Jung serve-se da imagem de um fator inconsciente tecendo ilu- sdes em torno de uma pessoa como um casulo, que no fim poderia envolvé-la por completo, Um bom modo de discutir esse problema Seria seguir de perto as consideragdes de Jung a respeito do nivel subjetivo de interpretagio de material inconsciente em seu ensaio Aspectos Gerais da Psicologia dos Sonhes, Procurarei sintetizar o argumento central. Todos nés criamos uma série de relacionamentos imaginarios porque sempre presumimos que o mundo é tal como o vemos e¢ os outros como os imaginames. O problema é que nao existe nenhum teste para provar que isto é uma realidade e aquilo uma projecHo, A nica saida desse emaranhado — ou casulo — seria o auto-conhe- cimento, empreitada sempre longa, dura ¢ dolorosa. Isso se da “por- que a mente, em scu estado natural, pressupde a existéncia de tais projegdes. Para os contetidos inconscientes, a coisa mais natural € serem projetados”.” Toda pessoa normal prende-se ao ambiente em qué vive através de um sistema de projecdes; na medida em que as coisas caminham sem maiores complicagdes, nfo se tem a menor idéia do caréter compulsivo dos relacionamentas, A solucao, ou alte- ragdo desse estado, sé surge no momento em que a imagem (Jung usa 0 ferma imago) que se espelhava no objeto exterior é restituida, com seu sentido, ao sujeito — que a partir de ent3o pode reconhe- cer o valor simbélico do objeto. O ponto crucial da questao — base para qualquer trabalho psicolégico — é que imago ¢ objeto nao sio a mesma coisa, apesar do primitive em nds preferir permanecer nesse estado de identificacio com o objeto. No momento em que tomamos consciéncia de uma projecdo perdemos uma ponte de ilu- sao ¢ dai somos obrigados a carregar nas costas tudo o que sempre detestamos nos outros. O interessante & que o neurdtico, através da terapia, € forgado a dar esse passo — ¢ nao a assim-chamada “pessoa normal”. Talvez seja essa uma das razées que levou Jung a dizer que a neurose pode ser um ato de graga. 1% CW SIL, §17. 7 CW 8, §508. O sumédrio que segue cobre §508-524, 44 E esse o valor de interpretar material psicolégico a nivel sub- jetivo. Somente assim a relacio entre imago e objeto pode ser exa- minada. Mas ai nos defrontamos com um novo problema, ow seja: até onde deve ser levada a interpretagfo subjetiva? Algum trace qualitativo pode de fato pertencer ao objeto. Poder se-ia ainda assim falar de projegao? A resposta de Jung a essa questfo é que mesmo em tal caso a projeg’o ainda tem um significado puramente subje- tivo na medida em que exagera o valor daquela qualidade no objeto. De modo que se uma projeg’o corresponde a uma qualidade no objeto — o que nao é sempre o caso — esse contetido esté ao mes- mo tempo presente no sujeito, posto que a imago do objeto ¢ psico- logicamente distinta da percepcio do mesmo. Em outras palavras, trata-se de uma imagem baseada na percepcio mas independente dela, pois em iltima instancia sua base é€ um arquétipo, uma dis- Posi¢ao a priori.” Nao € possivel perceber que essa imago é auté- noma e realmente pertence a nds enquanto coincidir com o com- portamento do objeto externo. Isto é, a projec¢do torna a realidade do objeto tio forte que esta encobre o contetido interior. O resul- tado desse mecanismo é que, devido a essa identidade, o objeto — por exemplo, uma situagio ou pessoa que “vemos” como extrema- Mente negativa — adquire um acesso direto a nossa psique, algo assim como um poder mdgico. Como vemos. a projegdo pode nos tornar menos livres do que acreditamos. Se o objeto for valorizado demais, o sujeita nado pode se desenvolver ¢ diferenciar-se enquanto individuo, pois a cnergia necessdria para tanto prende-se ao objcto e nao pode ser usada para outro fim. Nisso consiste a importancia da interpretagio ao nivel subjetivo, e ai esta a dificuldade: acaba- mos ficando sem um inimigo externo.” Para examinar esse aspecto de forma ampla devemos também considerar o que Jung tem a dizer sobre empatia em Tipos Psico- Idgicos, 0 que por sua vez nos levard ao conceito de “participagao # CW 8, §521 ¢ nota 17. 8 Ha uma passagem de von Franz em The Psychological Meaning of Re- demption Motifs in Fairytales que aborda claramente esse aspecto, nas pags. 96-97: “O que projeto é algo que nunca tornei meu; algo que permanece numa cra arcaica c que pode projefarse em alguém. Enquanto ha um ‘clique’ no sc pode falar de projecSo porque hd um fato, uma verdade, Se sua som- bra mente, e¢ vocé encontra alguém que também mente, como provar que hii uma proje¢ao? E a verdade. Mas se minha sombra menie ¢ scuso outra pessoa 6 mistica”. No capitulo intitulado “O problema dos tipos ma Estética” Jung diz que hé duas atitudes possiveis frente a0 objeto estético — empatia e abstracio. Sendo um processo elementar de assimilacao, a empatia é um ato perceptivo através do qual, passando pelo sen- timento, um contetido psicoldgico é projetado no objeto, o qual passa a ser a tal ponto assimilado pelo sujeito que este sente-se no objeto.” Este aparece entio como animado, O pressuposto é de que o objeto € vazio e precisa ser imbuido de vida. J4 a atitude contraria, abstra- gao, pressupondo que o objeto é vivo e ameacadoramente ativo, é uma tentativa de afastar essa influéncia. O que ocorre é que ambas as atitudes, enquanto atos conscientes, sdo precedidas por uma pro- jeclo inconsciente. No caso da abstra¢do, trata-se de uma projecio negativa, pois o objeto é visto como ameaga; na empatia, temos uma Projecio que neutraliza o objeto, transformando-o num recepticulo adequado para contetidos subjetivos. A abstracao corresponde A ex- troverséo, e a empatia & introversiio. Ou o mundo é pleno de alma € nos confundimos com ele, ou entio nos afastamos do mundo para encontrar a prdpria alma. A relagdo arcaica ou primordial, em que sujeito e objeto se confundem, foi denominada participation mystique pelo antropélogo Lévy-Bruhl. Jung foi capaz de compreender essa expressdo e de corroboré-la com seus préprios achados numa é€poca em que a An- tropologia académica condenava o termo a um crescente descrédito — assim como o conceito de animismo. O fato € que enquanto Jung se interessava em conhecer o homem — e sua compreensio da psicologia dos povos aborigenes é uma prova de quao longe con- seguia chegar — os antropélogos se afastavam do homem em busca da estrutura social e de uma base mais “cientifica” para sua disci- plina, Essa atitude contribuiu para agucar a linha de demarcacdo entre “nds” e “eles”, ao passo que Jung sempre foi capaz de ver © primitivo em nds. Diz ele em seu ensaio O Homem Arcaico: que na verdade niio mente hi um mal-estar, um, incémodo, algo mao faz ‘clique’. Fica-se com ma consciéncia, uma Parte da personalidade nao acredita na coisa, © dai podemos dizer que projetamos algo. Foram feitas falsas suposigoes que nao correspondem & verdade, mas sé quando surge esta fase de desarmonia € que se pode falar de projegio. Até entio havia uma identidade arcaica entre duas pessoas, um fenémeno realmente interpessoal, que impedia questioner o que pertence a cada um.” 3 CW 6, §486-495, 46 “A projepao é um dos fenédmenos psiquicos mais comuns, E o mesmo que participation mystique, que Lévy-Bruhl teve o-mé- rito de enfatizar como sendo um trago especialmente caracte- ristico do homem primitive. Nés apenas Ihe damos outro nome, e€ em geral negamos que a cometemos. Tudo o que é incons- ciente em nds mesmos descobrimos no vizinho, ¢ assim o tra- tamos."" Essa situagéo é mais comum em nossa vida civilizida do que acreditamos. Basta considerar a identificagio imconsciente entre os membros de uma familia em nossa sociedade para que se tenha um exemplo gritante desse fendmeno bem & nossa frente. A identifica- Gao arcaica impede o reconhecimento da dimensio subjetiva e a interiorizac¢ao do processo consciente. No ensaio de Jung Mente e Terra enconiramos uma passagem na qual participagao mistica, pro- jecao e complexo acham-se interligados nesse “estado de identidade na inconsciéncia mitua”.” Quando o mesmo complexo é constelado em duas pessoas ao mesmo tempo o resultado é uma projegao, uma forte emocao que leva & atracio reciproca ou 4 repulsa; um se torna idéntico ao outro ¢ se comporta frente ao parceiro da mesma forma como inconscientemente se coloca face ao complexo em questiio. 2.4. O cisco e a trave Gostaria agora de examinar nosso tépico a partir de outro ponto de vista. Desta vez, consideraremos o problema ético colocado pela projesio, ou seja, a critica ¢ o julgamento. Levando em conta tudo © que foi dito até agora, a questo passa a ser: “como posso julgar e condenar os outros? O que vejo e critico é uma falha real ou uma projecio minha?” A pergunta pode parecer supérflua; na ver- dade, porém, a resposta é extremamente dificil. O certo é€ que a maioria das pessoas simplesmente a ignora. Entretanto, ao nivel co- 2 CW 10, §131. Ver também CW 15, §66: “Quando no ha consciéncia da diferenga entre sujeito e objeto, prevalece uma identidade inconsciente. O in- consciente é entSo projetado no objeto, ¢ este é introjetado no sujeito, tor- mando-se parte de sua psicologia. Dai plantas ¢ animais se comportam como seres humanos, seres humanos so ao mesmo tempo animais, ¢ tudo vive per- meado de espiritos ¢ divindades.” = CW 10, §69. 47 letivo, esse problema est4 na raiz das guerras ¢ todas as demais for- mas de conflito social. Em termos individuais, essa questo é que estimula a auto-reflexéo. Como se refere a um trago humano uni- versal, esse problema tem sido expresso dogmaticamente na maioria dos textos religiosos. Por exemplo, podemos encontrar uma descri- co biblica do mecanismo de projegio no Sermo da Montanha, Mateus 7:1-5, quando Cristo diz a seus discipulos: “Nao julgueis para néo serdes julgados. Pois com o julgamento com que julgais sereis julgados, e cam a medida com que medis sereis medidos, Por que reparas no ciseo gue estéd no alho do teu irmao, quando néo percebes a trave que esté no feu? Ou como poderds dizer ao teu irtndo: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando tu mesmo fens uma trave no teu? Hipécrita, tira primeiro a trave do teu olho, e entdo verds bem para tirar o cisco do olho do teu irmao,” A chave est no terceiro versiculo, O texto latino é mais directo ¢ diz simplesmente: “Vés o cisco no olho do teu irmio e nao a trave no teu”, Esta frase contém uma dimensio ética e outra psi- coldgica, mas a doutrina cristé sé enfatizow a primeira. Um certo comentador da Biblia interpreta essa passagem nos seguintes termos: Cristo ensina o amor e profbe o julgamento (apesar, acrescentaria- mos, de té-lo pronunciado varias vezes, chegando a condenar uma pobre figueira!), Um cisco, para esse comentador, representaria um pecado menor, algo assim como um graveto, enquanto uma trave, que sustenta o telhado de uma casa, seria mil vezes maior que o proprio olho e corresponderia & “falta de amor, o mais monsiruoso, na lei de Cristo, de todos os vicios”“ A despeito desse concretismo um tanto forgado, pereebe-se que do ponto de vista ético nfo hd psicologia alguma, resumindo-sc tudo a uma questo de amor e ao reconhecimento dos préprios pecadas em primeira lugar. Nao lango pedras porque minha casa tem telhado de vidro, e assim por diante. E como as maximas dogmaticas se desgastam com o tempo, * 0 texto da Vulgata & “Quid autem vides festucam in oculo fratris tui et trabem inocula ium non vides’, Cf. também a Logia 26 no Evangelho Se- gundo Tomas ¢ Lucas 6:41. 4 Dummelow, |, Ri: A Commentary on the Holy Bible. pag. 649, 48 esta ¢m particular acabou se diluindo num mero problema de boa- vontade para com os “pecados” alheios que na verdade equivale i um cinismo pragmatico. Mas se encaramos essa passagem a partir de um dngulo psico- ldgico veremos algo mais profundo, que acaba nos levando a um problema ético mais complexo. Em termos simples, o terceiro ver- siculo do Sermao da Montanha poderia ser parafraseado assim: meu olho tem um defeito que nio reconheso mas, no entanto, com esse olho falho vejo um problema ainda maior no olho de meu irmio. Isto é, minha consciéncia de ego (alho) nao sabe que pode ser afe- tada por complexos inconscientes (trave) e julga-se perfeitamente apta para ver a realidade objetiva do préximo, quando na verdade © que vejo nele é um incémodo reflexo (cisco) de meu préprio ponta obscuro — e tragicamente equivocado quanto 4 natureza de meu problema quero acusé-lo pelo seu. O reverso dessa situagao seria expresso pelo dito popular “a beleza est4é nos olhos de quem vé". Goethe, repetindo um velho dito de Plotino, perguntava: “como poderia o olho perceber o sol se nao contivesse um pouco de seu poder?” Em todos esses casos, ha claramente uma conexao entre quem vé e o visto, ¢ creio que a verdade mais profunda contida no terceiro versiculo de Mateus é que ter olhos impuros faz parte da condicao humana, Somente Deus pode ver as coisas como sao; nds témos o olho travado ¢ se nao podemos eliminar o problema por completo, devemos ao menos ter consciéncia dele. Jung freqiientemente alude a Mateus 7:3 em diferentes con- textos. Levando apenas alguns casos em consideragdo, poderemos perceber o significado pleno dessa passagem do Sermio da Mon- tanha, Em seu livro Psicologia ¢ Religido Jung discute o poder avas- salador do inconsciente ¢ diz: “Como ninguém é capaz de perceber exatamente em que panto é emt que medida somos possuidos pelo inconsciente, simples- mente projetamas nossa prépria condigao na prdximo.”* Em Tipos Psicofdgicos, ao examinar o papel desempenhado pela constelagio psicoldégica do investigador no processo de conhecimen- to, Jung afirma: CW IL, §85. 44 “O efeito da equagéo pessoal jé se faz sentir no ato de obser- vaio, Wemos o que conseguimos ver melhor. Assim, antes de mais nada, vernos o cisco no olho de nosso irmao. Sem dtivida o cisco estd Id, mas @ trave pesa em nosso préprio olha — muitas vezes impedindo consideravelmente 0 ato de ver.” Esse fato tem conseqiiéncias epistemolégicas de longo alcance. Sua implicagio central é que a aceitacdo de uma determinacgao sub- jetiva do conhecimento € condigdo bdsica para o reconhecimento da psique, Nas palavras de Jung, “O fato de que a observacao e a interpretacio subjetiva esteja de acorda com dados objetivos sé prova a verdade da inter- pretagdo na medida em que esta nado tenha pretensoes de vali- dade universal, mas apenas com respeito aquela faceta do obje- to que esté sendo considerada, Nesses termos, é a trave em nosso olho que nos permite detectar o cisco no de nosso irmio. Essa trave em nosso olho, como dissemos, nao Prova que nosso irmdo nao tenha um cisco no seu. Mas a reducio de nossa visao poderia facilmente dar lugar a uma teoria geral de que todos os ciscos sie traves."™ Pouco antes de morrer, Jung foi filmado respondendo a per- guntas. O entrevistador The perguntou se é verdade que em nossa vida didria reprimimos o que cria tensao. Jung explicou claramente em que termos diverge da teoria freudiana de repressio, afirmando que essas coisas desagraddveis simplesmente desaparecem, ou nao aparecem porque nunca chegaram a ser conscientes — o mesmo se dando com a projegio: “As pessoas costumam dizer que se faz Projegdes. Isso niio tem o menor sentido. Nao se faz, mas se encontra as projecdes! Elas id estéo Id, porque aqui o inconsciente nado é consciente, mas la, emt mew irmdo, ele é. Ld eu vejo a trave de meu olho como um cisco no dele. E assim esses desaparecimentos, ow assim- chamadas repressOes, siio exatamente como projecdes. (.__) ™ CW 6, §9. 7 Ibidem, $10. 50 —. Essa foi minha primeira diferenca com Freud. (...) Pois, como véem, o inconsciente é real, € uma entidade, funciona por si e é auténoma,”™ oO equivalente moderno da imagem de cisco e trave aparece na obra final de Jung: alguém vé um certo brilho num objeto ¢ nao percebe que ele préprio é a fomte de luz que faz reluzir o olho de gato da projecio.” 2.5. O gancho Passaremos agora a examinar um aspecto final do mecanismo de projegao, isto é, o fato de haver uma semelhanca entre o objeto receptor ¢ o contetido inconsciente projetado. Esse aspecto ja foi mencionado em nossa discussiio a respeito de imago ¢ agora iremos um pouco além. “Projicere”, em latim, significa lancar algo adiante; se aquilo que é lancado ou jogado para a frente permanece onde caiu é porque algo o reteve. Uma imagem concretista seria a de atirar um anel numa drvore: se nfo se prender num dos galhos e cair no chao a projecao nao se consolida. A polaridade entre um impulso para a frente e um recipiente passivo é uma condigao indis- pensdvel 4 vida psicoldgica, nfo podendo portanto ser encarada apenas como problema patoldégico. Essa qualidade de um objeto que possibilita a aderéncia de uma projecio chama-se “gancho"™ no jargdo psicoldgico. Em seu livro A Psicologia da Transferéncia Jung aborda esse ponto dizendg o seguinte: “A experiéncia demonstra que o portador da projegae nao é um objeto qualquer, mas sempre aquele que se revela adequa- do @ natureza do contetido projetada — isto é, que oferece a este um ‘gancho’ onde pendurar-se.”™ A existéncia ou nao de tal gancho no objeto costuma criar enet- vantes dificuldades para quem procura conscientizar-se de suas prd- prias projecdes ou para alguém que se proponha a analisar relacio- C. G. Jung Speaking, “The Houston Films”, pag. 304. CW 14, $129. CW 16, $409. woe 31 hamentos — como serd o caso na segunda parte deste estudo, A questio que essa atitude coloca ¢ a seguinte: se digo que uma parte do incensciente de A é projetada em B, sera que hd algo em B que permite tal fato ou trata-se de um mecanismo arbitrario? Por que o contetido em questo seria langado sobre B, e nio C ou D? AL guém desonesto pode projetar sua desonestidade no vizinho; mas pode ser que este também o seja e sirva de gancho. Como vimos, quem nao tiver em si mesmo uma determinada qualidade niio pode- ri detecté-la em outrem. A dificuldade psicoldgica em tal caso pode ser muito grande porque, mesmo sendo o segundo também deso- nesta, nada fica provado quanto 4 retidéo do primeira, como este gostaria de acreditar. Outro aspecto do problema consiste no fato de que o objeto — no caso, a pessoa — que ofereceu um gancho pode assumir duas atitudes: aceitar a projecio ¢ identificar-se com ela, ou simplesmente recusd-la em todo ou em parte. Esse é um problema tipico que se configura sempre que a anima ou o animus sio projetados, Em seu ensaio Um Mito Moderno Jung. tentou explicar o sig- nificado psicolégico da difundida crenga na existéncia de seres extra- terrenos. Ele néo se perguntou se tais seres concretamente existem ou no, Oo que transcende o ambito da observacgio do psicdlogo. O que Ihe interessou foi pesquisar as implicagdes dessa crenga. Obje- los voadores ndo-identificados sio um excelente pancho para uma proje¢do coletiva que expressa a espera de um salvador, um ines- perado desconhecido capaz de sanar a cisio da civilizagio moderna. A forma circular atribuida aos OWNIs é um bom gancho devido & sua qualidade arquetipica. Como é sabido, o circulo se liga simbo- licamente 4 idéia de totalidade e divindade. Jung sugere que uma tendéncia coletiva inconsciente 4 unificagio, num certo momento histérico, é dirigida para cima e literalmente vagueia pelos céus até encontrar o pancho dos objetos néo-identificados. Vé-se assim que uma coisa se encaixa na outra, ainda mais que essa ansia incons- ciente € também ela nao-identificada ¢ nao pode ser apreendida pela consciéneia coletiva. O problema fica entio suspenso no ar, como é lipico de nossos tempos, Jung se refere a esse fendmeno como uin mito moderno, pois em seu aspecto psicoldgico o mecanismo é¢ o mesmo dos mites de todos os tempos. Em outras épocas, em vez de OWVNIs teriamos anjos ou pdssaros mdgicos. Pode-se assim perceber que o gancho nao ¢ causa da projegdo, mas apenas um precipilante 52 que possibilita uma corporificagao especifica num momento deter. minado, Além disso, o mesmo contetido inconsciente pode encontrar os mais diversos ganchos em diferentes pessoas, culturas ou perio- dos, pois em si o contetido ndo tem nome nem forma — somente quando projetado € que ganha expresso. 2.6. Os quatro estagios da projecdo Podemos agora encerrar a discussio. Os quatro estégios da projecio, na expressio de Jung, sfo um aspecto fundamental que nos permite compreender o desenvolvimento da consciéncia no tempo, Seria interessante notar como Jung foi conduzido a essa iddia. Em seu ensaio O Espirito Mercurius ele comenta um conto de fada intitulado “© espirito na garrafa". Um mogo entra na floresta para cortar lenha e ouve, proveniente das raizes de um enorme carvalho, a voz de um espirito aprisionado numa garrafa. Jung diz que esse espirita corresponde ao principium individuationis, um self ainda inconsciente. Daf Jung passa a relatar o caso de um nigeriano que trabalhava na floresta ¢ repentinamente ouviu uma drvore que o chamava. Poderiamos dizer que se tratava de uma alucinagdo audi- tiva, pois para nés isso nfo passaria de uma projegao. Mas para o africano era uma coisa real, pois toda arvore é animada por um espirito vivo — como se observa entre as populagdes indigenas do mundo inteiro.” E esse o primeiro estdgio da projegio, percepltivel na Antigui- dade, entre os assim-chamados primitivos e no principio do desen- volvimento consciente individual. Nesse estégio ha uma total equi- yaléncia entre o mundo de dentro ¢ o de fora, uma identidade arcai- ca entre psique inconsciente ¢ mundo exterior (participagdo mis- tica, como vimos), Nao ha diferenga entre o que hoje denominamos projecia © uma percepgao correta da realidade, O mundo todo é permeado pela psique, uma totalidade incomensurdvel que envolve a tudo e a todos. A consciéncia sé podia se desenvolver com a pro- gressiva introjecdo de tais projegGes. A bem dizer, 0 termo nao cabe aqui: nada foi lancado fora da psique, mas simplesmente encomira- HCW 13, $247; também CW 11, $140; CW 91, $54 ¢ M-L. von Franz, Croation Myths, pags. 78 e C. G. Jung — Son Mythe dans notre Temps, pig. 96, 53 do fora — numa drvore, por exemplo, e & medida que a natu- reza & progressivamente desespiritualizada a psique ganha em com- plexidade. Nesse estdégio de participagdo primordial nossa psique nao é nossa, pois tudo é psique. Em seu Semindrio das Visdes Jung diz que nessa fase “nada foi projetado, issa é um equivoco; o termo projecdo esta errado, O canteido psicoldgico (inconsciente) sempre esteve fora, e nao dentro, Uma ‘projegdo’ é apenas uma coisa que é& descoberta fora e depois integrada por quem a descobre den- fro de si. Nossa psicologia foi toda ela descoberta fora, ndo estava escondida no bolso do colete. E é assim que as coisas sao com os primitivos: seu funcionamento psicoldgico é exte- riorizade, é@ idéntico as coisas e as coisas sio sua mente... seus pensdmentos se estendem coma uma rede sobre o chao em que pisanr.”* O segundo estdgio comega com a separagéo entre homem ¢ na- tureza. Essa discriminagéo surge primeira como uma divida sobre a adequacio entre o comportamenta do objeto e o modelo domi- nante, o qual ¢ entao substituido por outro mais “correto". Um exemplo é a substituigio da velha sabedoria astroldgica pelas pri- meiras leis astronémicas cientificamente descobertas — ao mesmo tempo em que os deuses comecam a abandonar as montanhas, os rios, as drvores ¢ os animais até que um dia se espalha a noticia de que “o grande Pa morreu”. No fterceiro estégio ocorre uma qualificagio moral ¢ a projegéo passa a ser vista como erro ou ilusdo. Essa é a atitude tipica da Antropologia positivista, ou mesmo da Teologia: poderes supra- pessoais, ou a idéia de divino, sio dissociados entre um Deus bom eum espirito inferior ou mau — representado, por exemplo, por aquele que falou numa drvore. No segundo estigio o objeto “drvo- ade _ sere trace saan Gostando deste documento? wy Ginny SEMinur, pags ss, 54 primeira; a psique é uma ficgdo mitica, a projegao uma patologia, Deus estd morto. O quarto estdgio, que Jung contribuiu para inaugurar, & um fechamento do ciclo e uma volta ao espirilo na drvore, no sentido de um reconhecimento da realidade da psique. Nesse ponto, pode- se perguntar de onde provém esses estranhos mitos e concepgdes da Antiguidade, esses mapas distorcidos de continentes, essas alucina- des e indecifraveis sonhos de hoje, essas absurdas receitas alqui- micas, essas histérias sobre deuses e demanios, essas idéias sobre © que sejam o homem e€ a realidade fisica — e acaba-se descobrindo que a psique inconsciente estd por tras disso tuda. 9 resultado é que pela primeira vez o homem pode tomar consciéncia de que possui uma psicologia, de que “camadas inteiras da psique esto vindo & luz pela primeira vez."" 53 Salvar | 3. A FUNCAO HEURISTICA DA PROJECAO Noe propdsito aqui, em contraste com o capitulo anterior, é discutir o aspecto positivo que a projecdo pode assumir no processo cognitive. Convém ter em mente o que foi dito sobre © motivo do cisco e da trave, bem como a idéia kantiana de que ao manipular a argila disforme da realidade para conhecé-la, a homem nela deixa a indelével marca de suas m&os. Esse assunto poderia nos levar longe — em que medida é objetivo o conhecimento? — e a ele Jung se dedicou bastante em Tipos Psicofldgicos. Limitar- nosemos aco fato de que através da via indireta da projecio algo pode ser descoberto. A primeira questio é: descoberto por quem? Pelo sujeito que sem saber sofre os efeitos da projegdo em seus envolvimentos com o mundo, com os outros, com algum objeto de investigagao, ou por um investigador com um ponto de vista distinto? Como vimos, uma pessoa sd pode tomar consciéncia de uma projecio quando esta préxima do ponto em que comega a sentir um desconforto na situa- cio, vagamente percebendo que sua imagem disto ou daquilo nao corresponde exatamente ao objeto, A partir de entao, através de um arduo processo de auto-reflexfio, a pessoa pode comegar a ver o que estd por trés da projecao, e nesse preciso instante pode ocorrer uma descoberta. Mas essa nfo é de modo algum a regra. Estatisti- camente, s6 uma diminuta fracio estaria em condigées de fazé-lo. Em geral, as pessoas perturbadas por uma neurose seriam forgadas a dar esse passo para livrar-se de uma condigao demasiadamente uni- lateral, com o auxilio da andlise. Caso porém a psicoterapia consi- 57 nao se pode falar em descobertas ou funcdo heuristica no sentido aqui utilizado. A psicologia analitica fornece tanto ao sujeito como ao obser- vador externo um instrumento Para abordar o inconsciente e des- cobrir algo sobre ele através da via indireta (€ nao via régia!) da projegao. Ndo sei se outras disciplinas ou técnicas de auto-conscien- tizagao podem levar a esse mesmo resultado, mas é um fato que as formas de meditacdo que seguem um conjunto de regras ou um modelo pré-estabelecido para abordar o inconsciente — como os Exercicios Espirituais de Santo Inécio de Loyola, que veremos adian- te, ou as técnicas orientais de meditagiio — nao atingem o alvo, pois 48 projecGes nunca sfo encaradas como tais. Muito pelo contrdrio, 0 meditante sente que conseguiu ter a experiéncia Preconizada, mas na verdade apenas contempla a imagem projetada prescrita pelo manual. O maximo que se pode atingir por essa via é uma confir- magao de que tal ou qual técnica espiritual funciona, ou de que © individuo em questio é um praticante apto e pronto para figurar como membro de algum tipo de seita. O mesmo se aplica as formas cristis de prece ou meditagao acompanhando as estagdes do Cal- vario, etc. A pessoa contempla uma imagem dogmdtica — projecao eventualmente significativa — mas nao a relaciona & sua prdpria Psique e portanto nao estabelece um contato vivo com o incons- ciente, nem descobre nada de nove. A questao ¢ Paradoxal, pois as Projegdes podem ¢ ao mesmo tempo nao podem ser uma fonte de conhecimento, tudo dependendo de um sutil passo adicional, Depois de plenamente viver ¢ aceitar uma projegio, num certo Ponto o ego assume uma distancia critica c faz a pergunta clissica: “quem és tu?" E sé entdo que o contetido inconsciente pode comecar a descolar-se do objeto em que estava enganchado ¢ passar a mover-se num espaco psiquico interior. A consciéncia tem que fazer a sua Parte, € por assim dizer convidar o elemento inconsciente até ent&o projetado a mover-se € expressar- se. Um dos modas de fazé-lo ¢ aquilo que Jung denominou imagi- nagao ativa, baseado em sua Prépria experiéncia e no trabalho com seus pacientes. Trata-se de um jeito absolutamente nd@o-regulado de lidar com as Projegdes, fazendo-as falarem Por si. Em Psicologia e Alquimia Jung indica claramente os casos em que nao se pode abordar © conteiido Psicolégico projetado, Isso se 58 i di i écnii adas de medi- li foi dito ha pouco sobre técnicas program: taco, apessir de haver uma importante diferenga no trabalho do alquimista, ou seja, a auséncia de modelos dogmiaticos: “ icou muito claro o que os velhos fildsofos queriam on @ termo lapis (pedra filosofal). Para responder satis- fatoriamente a essa questao é preciso saber exatamente qual contetido inconsciente projetavam, Somente a psicologia do in- consciente estd em posigio de resolver esse enigma. Ela nos en- sina gue enquanto permanecer projetado um contetido é ina- cessivel, razdo pela qual a obra desses autores nos tem reve- lado to pouco sobre o segredo alquimico, Mas por outro lado a produgGo de material simbdlico é enorme, material esse inti- mamente relacionado ao processo de individuagao. Sob certas condigdes, porém, essa mesma inacessibilidade torna- s¢ uma porta para o conhecimento da psique. Para examinar esse aspecto, acompanharemos a linha de pensamento desenvolvida por Jung em seu paciente estudo da projegfo na alquimia. u , O alquimista Petrus Bonus, em seu livro Pretiosa argarita Novella, citado por Jung, diz que apés o estado conhecido por subll magao algo muito importante ocorre na obra, a saber, aa 4 fixada, tornando-se permanente (psicologicamente, isso correspon ¢ 4 conscientizagao da realidade objetiva da psique). o problema que essa fixagdo néo pode ser percebida pelos sentidos, me tio somente pelo intelecto, através da revelagio divina — que Petrus Bonus denomina “ver através do olho” — ou pela inspiragio — “compreender através do coracao”. Ha uma certa confusao quanto a0 que seriam esses “sentidos” e Jung comenta o seguinte: oO equi- valente psicolégico dessas duas categorias so a cognigao consciente baseada na percepgiio sensorial, e a projego de contetidos incons- cientes.”? Como se vé, a projegio é aqui um modo alternative de conhecimento, especialmente no que concerne a realidade da alma — que obviamente nao pode ser vista, medida ou tocada direta- mente. © coracdo simbolizaria uma base mais primitiya da cons- ciéncia, a fonte de pensamentos emocionais. De um ponto de vista 1 (CW. 12, 5155 (grifo nosso). 2 Ibidem, $462, nota 89. 39 exclusivamente Tacional e materialista esta segunda categoria nao seria de modo algum uma alternativa, uma vez que tanto a alm (o inconsciente) como seus contetidos projetados seriam encarados como irreais. Portanto nada se aprenderia sobre a Psique estudando uma ilustragio alquimica, ou mesmo um sonho. Mas para nds essa segunda alternativa é uma via indireta de conhecimento. C disse Jung em Aion: 7 me “A projegio nao elimina a realidade d, v7 € um conteiido psiquico. Da mesma Pi um fato nao serd tido como ‘real. sd por- que nao pode ser discutido sendo como ‘psiguico’ i é realidade por exceléncia,”® PGE A sigue Ao lidar com a matéria, o al wimista se i 2 mistério do inconsciente coletivo.. O ponto importante c _ Imagens projetadas nae estavam de acordo com a visio degntiicn do mundo © portanto n@o podiam ascender diretamente 4 conscién- cia. Assim € que o alquimista costumava “ver” a Paixdo de Crist no “sofrimento” da matéria ao ser cozida, corroida, liquefeita = Ora, as coisas de que falavam os alquimistas, seu mito de reden- co, era na verdade algo que se desviava do dogma cristdo, pois Se assim nao fosse, nfo poderia aparecer através da projecdio.’ Eon outras palavras, se o mito alquimico fosse idéntico ao mito reli- gioso oficial, uma projecSo seria Psicologicamente impossivel is nessas condigées ela estaria compensando uma atitude epee anti-crista — © que no era o caso, Os contetidos inconscientes que apareciam projetados na alquimia estavam, em alguns meccine are Senciais, em oposigio a certos Principios basicos da consciéncia coletiva* Até mesmo S. Tomds de Aquino, o patriarca da teologia usou uma linguagem completamente diversa num texto alquimico composto pouco antes de sua morte e que nada tem a ver com o espirito de sua obra teoldgica> O alquimista concebia Cristo como sendo o homem espiritual interior, ¢ nio o Cristo dogmético exterior + CW 9II, $120, nota 92, 4 CW 14, $486. * © texto em questio entitula-se Aurora Ce ‘Tanz argu- ; onsurgens. M.-L. von F, menta convincentemente que, se no escrito por 5. Toms, o trabalho foi trans- crito por algum seguidor que o ouviu dele. Cf. Alchemy — an Introduction fo the Psychology and the Symbolism, cap. 7. 60 a — ¢ como essa idgia contradiz o dogma, acaba se expressando, via projegao, como por exemplo um espirito vivo aprisionado na pedra. Ao estudar os trabalhos de Jung sobre alquimia percebe-se que o que realmente estava sendo transformado no opus era um domi- nante da consciéncia coletiva, ou seja, a cosmovisdéo medieval crista — eum problema de tal magnitude sé podia ser trabalhado incons- cientemente, através da projecao. Pode-se assim compreender o que significa dizer que a proje- gdo é uma via indireta de conhecimento. Em sua obra final, Myste- rium Coniunctionis, Jung afirma o seguinte: “A projec3o € sempre um processo de tornar-se consciente — indireto devido ao controle exercido pela mente consciente, pela pressio de idéias tradicionais ou convencionais que tomam o lugar da experiéncia real e a impedem de ocorrer. O individuo sente gue possui uma verdade vdlida com respeito ao desco- nhecido, e isso torna impossivel qualquer conhecimento real. O fator inconsciente deve necessariamente ter sido algo incorm- pativel com @ atitude consciente.”’ Outro aspecto da funcdo heuristica da projecio é que ela pode conter uma antecipagao de um desenvolvimento futuro que primei- ramente € preparado no inconsciente. As vezes o analista percebe isso claramente ao interpretar sonhos, ainda que o analisando, na ocasiao, esteja se sentindo completamente desorientado. Seu poten- cial aparece projetado em outra pessoa e ele néo vé a conexao con- sigo préprio. A nivel coletivo, Jung encontrou um exemplo inte- ressante desse fendmeno nas estranhas visdes do alquimista grego Zésimos. Este teve certa vez uma forte visio extremamente mistica, que interpretou enfatizando o aspecto exclusivamente fisico. Jung considera que a projecdo atraiu a mente para o nivel fisico porque na época (século III) a consciéncia comegava a desligar-se da névoa mistica que até ento a envolvia e a abrir-se para a realidade ma- terial do mundo. Nessa conjuntura, o inconsciente se projeta como uma imagem fisica capaz de atrair libido consciente ¢ isso indica que o processo de preparagdo do espfrito cientifico estava em an- ® CW 14, $488 e $507. 7 CW 14, $486. 61 damento! Nossa situagio hoje é o contrério — sabemos separar qualquer aspecto fisico de uma projegao e reconhecer o elemento psiquico porque ja conhecemos o processo quimico, mas nfo sabe- mos 0 bastante sobre o assim-chamado processo “mistico". A qui- mica cientifica comecou a se desenvolver no exato momento em que as projegdes “misticas" foram climinadas da alquimia e total- mente rejeitadas como absurdas. E se queremos ver como essa transiggo — ou qualquer outra — ocorreu, ao nivel inconsciente, devemos considerar as projegdes produzidas. De uma perspectiva junguiana, as projeg6es alquimicas iluminam certos aspectos do inconsciente coletivo numa época em que seus conteddos nfio podiam ser aceitos, E quanto mais primitivas essas projegdes, maior seu valor heuristico, Nas palavras de Jung: “O que para o quimico parece ser um conjunio de fantasias absurdas da alquimla, pode ser reconhecido pelo psicdlogo sem mailores dificuldaces como material psiquico contaminado com substdneias quimicas, Esse material provém do inconsciente co- letivo ¢ é portanto idéntico as fantasias que podem ainda hoje ser encontradas tanto entre pessoas doentes como normais que nunea ouviram falar de alquimia, Devido ao cardter primitivo dessas projegdes, a alquimia, esse campo tdo estéril para o qul- mico, é para o psicdlogo uma verdadeira mina de oure de ma- teriais que fangam uma luz valiosfssima sobre a estrutura do inconseiente,”” E por essa razio que em nosso trabalho terapéutico de hoje dispomos de um certo conhecimento sobre a estrutura do incoms- ciente, o que nos permite compreender melhor o aspecto dindmico de certas situagdes psicolégicas dificeis que afetam noassos pacientes, As vezes eles nos chegam num estado de completa desorientagao, ¢ conforme os sonhos apresentados podemos dizer que 14 no fundo ha um processo em andamento, que hi um principio de transformagéo em atividade, que convém assumir uma certa atitude adequada & manifestagio do material ineonsciente, da mesma forma que o al- quimista comegava seu trabalho construindo uma retorta para con- CW 15, $121. * Cw 13, $253. 62 ter a matéria-prima a ser transformada. Todas essas idéias terapéu- ticas provém do prépria inconsciente, indiretamente © via projegées alquimicas, Em outras palavras, 0 inconsciente pode nos dizer como devemos abordé-lo, algo que nosso ego consciente nao seria jamals capaz de descobrir — pois o que éste mais sabe produzir so téce nicas, Como disse Jung em A Psicologia da Transferéncia, a0 Wa- balhar com o material inconsciente de um paciente precisamos nao de opinides, mas de conhecimento — € cssa nogiio resultou de seus estudos, entre outras coisas, de projegdes alquimicas: “Para aumentar esse corthecimenta tao necessdrio, dirigi mi- nhas investigagdes para aguele tempo passado em que a it traspecgda ingénua e a projegdo ainda ocorriam, espelhando uma vasta drea da psique hoje virtualmente blogueada.” Se, como postula Jung, existe um inconseiente niio-pessoal, entio deve haver algum tipo de processo se desenvolvendo nesse nivel, um movimento geral de eventos arquetipicos no qual alguns arquétipos entram em ascensiio, outros se retraem, alguns: se disso- ciam e¢ outros se juntam, afetando tanto o nosso destino individual come o curso da Histéria, Mas a mente consciente sd pode percebt- los quando projetados, lo CW 16, $466 (grifo nosso). PARTE II ; A CONVERSAO DOS INDIOS BRASILEIROS NA EPOCA DO DESCOBRIMENTO en a finalidade desta segunda parte é demonstrar em que sentido a abordagem junguiana do fenémeno de projecéo pode nos ajudar a compreender certas situagdes histéricas. © tema escolhida serd o contato inicial entre os jesuitas missiondrios que desembar- caram no Brasil no século XVI e os habitantes da terra recém- descoberta. Analisaremos um conjunto de aproximadamente 200 car- tas escritas entre 1549 e 1563 pelos jesuitas, nas quais retratam a nova terra e seu modo de tratar os indigenas. Muitas dessas cartas, conhecidas ja de longa data, tém sido consideradas pelos estudiosos como importantes fontes histéricas, etnograficas e literdrias. Além disso, so documentos fundamentais para o estudo da Companhia de Jesus. No entanto, essas cartas nunca foram examinadas de um ponto de vista psicolégico, como se tal abordagem nao tivesse nada de relevante a oferecer para a compreenséo de uma interagio hu- mana altamente complexa que é, na vwerdade, a raiz primeira da sociedade brasileira. E precisamente essa a minha intengfo, ¢ pata tal propdsito limitar-me-ci estritamente ao material empirico esco- thido. O presente estudo nfo é nem histérico nem etnoldgico, mas simplesmente uma tentativa de mostrar que se uma teoria psicold- gica é valida para o individuo, ela deve poder também ser aplicada a situacdes coletivas. Apenas duas palavras sobre a escolha do material. Algum tem- po antes de decidir suspender minhas atividades no campo das cién- cias sociais e iniciar um longo periodo de estudo no Instituto C.G. Jung de Zurique, senti um crescente interesse pelos indigenas bra- sileiros. Naquela época, nfo era claro em que campo académico eu 67 poderia levar adiante um projeto nessa drea, especialmente porque estava prestes a mergulhar em algo completamente distinto, a psi- cologia analitica. Um dia, vagueando pelo centro de Sao Paulo, visme inesperadamente diante da fachada restaurada da primitiva capela jesuita e da escola para meninos indios que foram, em 1554, o nascedouro do que € hoje um dos maiores conglomerados urba- nos do mundo. A despeito de intencdes oficiais, o local é hoje de- _cadente, incapaz, em seu aspecto fisico, de evocar maiores refle- xées. De qualquer forma, foi 14 que toda uma histéria comecou. Entrei no museu indagando por alguma eventual exposicgo, mas ali s6 havia-um balcZo com cartées-postais e livros. Trés grossos volumes eram as cartas jesuiticas. Comprei-os sem saber exatamente para qué, mas certo de que tinham algo a ver com um trabalho por fazer. Com o passar do tempo, dei-me conta de que apesar de meu “campo de investigagfo” ser no século XVI, tanto os jesuitas como os indios de nosso drama original ainda vivem sob a forma de principios arquetipicos. Como os missiondrios ja foram suficien- temente honrados e tiveram plenas chances de contar sua versio da histéria, eu gostaria de poder falar um pouco em nome dos indios. 1. AS CARTAS JESUITICAS cpt intelectuais da Companhia de Jesus dedicam especial aten¢do ao registro de sua propria histéria e¢ para tanto juntaram uma gigantesca cole¢io de documentos, intitulada Monumenta Historica Societatis Jesu, com mais de 80 volumes. O conjunto denominado Monumenta Brasilica, editado pelo Padre Serafim Leite, contém as cartas que nos interessam aqui e abrange os tomos 79-81 da série mais ampla. Ao lidar com essas fontes tem-se a impressao de estar diante de um enorme e solene monumento oficial digno de ser reverenciado com o maior rigor da metodologia historiografica. O peso é tamanho que o grande pdblico naturalmente evitaria tal lite- ratura, como se nao contivesse nada exceto notas de rodapé, mofo e latinismos. Tanta pompa acaba dificultando o acesso is cartas enquanto simples relatos de uma experiéncia vivida. O principal objetivo das cartas era informar aos superiores da Companhia em Roma e Lisboa sobre as caracteristicas da nova terra e as agdes quotidianas dos missionarios. Com base em evidéncias desse tipo, Indcio de Loyola e seus assessores podiam acompanhar e em boa medida orientar a expanséo surpreendentemente rapida e a influéncia da Companhia em varias partes do mundo. Na colegao mencionada, a maioria das cartas sio do Brasil para a Europa, con- tando-se relativamente poucas em sentido contrario. Além disso, como muitas foram perdidas, nao é possivel seguir a seqiiéncia completa de perguntas-respostas-reagdes. A maior riqueza de informagio ob- viamente vem do Brasil; as cartas curopéias tém antes o carater de instrugdes. 69 As primeiras cartas, escritas pelo Padre Manuel da Ndébrega logo de sua chegada ao Brasil em 1549, eram primeiramente lidas em Portugal e em seguida enviadas a Roma, a partir de onde eram distribuidas pelas escolas jesuitas na Italia e na Alemanha, final- mente atingindo a Africa, a India, a China e o Japao. Alguns anos depois, as cartas eram traduzidas, copiadas e dai distribufdas. Ou entéo era feito um sumério lido durante as refeigdes para todo um grupo de religiosos em diferentes casas da Companhia, com finalidades de estimulo e emulacdo. As noticias das aventuras dos irméos do outro lado do Atlantico eram um sinal vivo das mani- festagdes do Espirito Santo e um fermento para despertar voca- gées missiondrias. A maioria das cartas esté repleta de citacdes biblicas em latim, o que as torna uma demonstracdo empirica de que a verdade dogmatica também se aplica aos Trépicos. Seu es- tilo € comumente o de um sermfo ou meditacdo, e se as vezes ocorre ao autor ser levado por algum entusiasmo descritivo, a férmula adotada para finalizar é do tipo “... mas isso tudo é para a gléria do Senhor ¢ lembrai-vos deste pobre pecador em vossas preces didrias”. Muitas cartas foram vertidas para o latim, para que pudessem ser entendidas na Alemanha, mas os tradutores cos- tumavam suprimir passagens consideradas imprdprias e adulterar todos os termos em tupi, lingua geral do Brasil. As cartas so de dois tipos: as que trazem noticias e as “de negécios”. Somente as primeiras, habilmente denominadas “cartas de edificagio”, € que eram copiadas e distribuidas. Segundo Se- rafim Leite,’ estas eram lidas por um ptblico maior, j4 que con- tinham noticias dos indios. Depois da morte de Ndbrega em 1570, suas cartas foram agrupadas num verdadeiro best seller intitulade Informagdo sabre a Terra do Brasil, com seis edicdes em dife- rentes linguas. Mas as cartas de edificag3o, apesar de tao impor- tantes para fins de relagdes publicas, tinham que ser complemen- tadas por dados concretos mais adequados ao uso politico. Em 1553, Indcio de Loyola escreveu duas vezes a Nobrega? determi- nando que os dois tipos de cartas fossem mantidos separados e que todos os missiondérios fornecessem informagdes completas (na oca- sido eles néo chegavam a dez). Como era de seu feitio, Sto. Ind- ' CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, Vol. 1, preficio. ? Cartas 72 e 74 (1553). Ver Apéndice, 70 cio determinou que as cartas publicaveis apresentassem uma lista completa de tépicos, a saber: dados estatisticos, descrigdo das ca- sas missiondrias, ndmero de leitos, vestudrio, tipo de alimentacdo, atividades desenvolvidas, caracteristicas da regifo e localizagio no mapa, clima, descriggo dos nativos e mimero de gentio ou mou- ros (sic). Outros tépicos, presumivelmente problemas ou diividas, deveriam ser expostos com muita clareza numa carta separada. A resposta a essas ordens existe, ¢ pode-se wer que as mesmas fo- ram plenamente cumpridas. Nao deixa de ser interessante notar como em sua velhice o mistico Inécio se tornou um executivo pragmatico e imediatista,. Nao ha de fato uma tnica missiva de seu punho para o Brasil de natureza um pouco mais espiritual. Os jesuitas no Brasil costumavam reclamar da falta de cartas de seus irma@os em Portugal. Lancados ao fogo, nao tinham outro recurso sen@o seu préprio foro intimo para orientar-se naquele fas- cinante ¢ perigoeso mergulho no desconhecido. Escreviam muito, lon- gas cartas cheias de devocio que documentavam varios aspectos de sua experiéncia tinica. O isolamento era sua sina. Se os ventos soprassem favoraveis, uma embarca¢do portadora de noticias le- varia pelo menos dois meses para cruzar o oceano e pata eles cada barco era uma esperanca quase sempre frustrada de infor- magao, consolo e orientacéo. Os irmfos também se escreviam uns aos outros em diferentes pontos da costa, testemunhando a enorme importancia de tais contatos, como se lé ma passagem seguinte: “Tengo esperimentado las cartas de los Hermanos ser un pan de mucha sustancia y un fuego que mucho calienta a las frio- rentos, y causar mucho dnimo y confianga a los desconfiados.”* Essas cartas sio o documento de uma dificil aventura, na qual homens altamente motivados tentaram converter a alma de outro tipo de homem que nao compreendiam. Todas as suas palavras contém algum grau de distorcio. Para o historiador ou o antro- Pélogo isso é um problema sério, uma vez que, metodologicamente, o contetido das fontes pode ser esptirio. Para o investigador da psique, porém, é através dessa prépria distorgio que se pode captar o retrato do indigena e a matureza da psicologia da conversdo. 3 Carta 17 (1554). 71 1. Um missionario escreve uma carta para a Europa. Sua mente se volta Para o outro lado do oceano, alheia a uma realidade humana (os dois indies ao fundo) que sé conseguia compreender através da cruz. 72 2.0 NOVO MUNDO E A ORIGEM DA MISSAO I get palavras sobre a situagfo da nova terra talvez pos- sam fornecer um contexto para a compreensfo das cartas. Todos aprendem — embora a teoria seja combatida — que o Brasil foi descoberto por acaso e¢ inicialmente considerado uma ilha de belas paisagens e poucas riquezas. Levada por ventos que a impeliam para onde nfo queria ir, a frota portuguesa comandada por Cabral, que supostamente tentava seguir a nova rota maritima para a India costeando a Africa em busca de especiarias, acabou aportando em territério desconhecido. A primeira projecio de nossa histéria j4 ocorre nesse mesmo dia de 1500: como os marinheiros sonhavam com a India, arriscando a vida num oceano cheio de monstros mitoldgicos e¢ regido por poderes incontrolaveis, eles cha- maram de indios os primeiros homens que encontraram. Algo se- melhante ocorreu em 1537 quando a frota de Pizarro se aproxi- mava da costa peruiana, como nos conta Garcilaso de la Vega, El Inca, em sua Crénica Real do Peru: os espanhdis perguntaram ao primeiro homem que encontraram qual era o nome da terra, ao que um inca atdnito respondeu em quéchua — “belu” — o que quer dizer “nao te entendo”. Como a pergunta se repetia e a res- posta permanecia a mesma, os Conquistadores decidiram que a terra se chamava Belu, ou Peru — e de fato nunca a entenderam. Pa- rece que os portugueses naéo questionaram ninguém ma costa atlan- tica, pois ja vinham com um nome para a “ilha”: Vera Cruz, a cruz verdadeira, igualmente uma projecfo de enorme significado 73 ‘at simbélico. Quatro séculos de histéria demonstraram que esses “in- dios” tiveram que suportar o sofrimento de uma cruz européia. O primeiro ato indicativo da conquista foi a implantacio de um marco de pedra em Porto Seguro, com a cruz de Cristo de um lado e as armas de Portugal de outro (Fig. 2). Psicologicamente, a cruz ja estava presente no mome dado 4 ilha e, na atitude cons- telada no inconsciente coletivo. A cruz, ou seja, 0 cristianismo, se- tia a perspectiva através da qual o contato com o desconhecido poderia ser compreensivel para uma consciéncia européia, da mesma forma como seria o padrao escolhido para moldar a nova reali- dade. Isso quer dizer, os seres humanos a priori conquistados que porventura habitassem o territério teriam que ajustar-se & cruz e viver por ela. Nao se trata de retérica: esse fato ocorreu ¢ causou a quase total extingao da populagdo nativa, Os descobridores trans- portaram a cruz através do oceano e a fincaram em terra fresca, mas nao foram capazes munca de carregé-la sobre os préprios om- bros — nem mesmo os jesuitas o fizeram. Os europeus deixaram que os indios carregassem a cruz, enquanto se entregavam & pleni- tude de sua ganancia ma zona franca ao sul do Equador. Como logo se descobriu que a ilha nao era ilha, o nome foi mudado para Terra de Santa Cruz, mas a denominacio vulgar que pegou tinha a ver com o dnico bem comercializdvel encontrado nas matas, um pau cor de brasa que revolucionou o tingimento dos panos europeus em lugar da purpura. Na falta de ouro e prata, ou mesmo cravo e canela, os portugueses j4 podiam achar alguma utilidade nesses “fndios* fazendo-os derrubar drvores. Os nativos vieram assim a ser chamados de “brasis", pois era sé isso o que contava. O cartégrafo real Pedro Rainel desenhou um mapa da Terra Brasilis em 1525 no qual essa atividade é claramente documentada (Fig. 3). A linha costeira esta repleta de nomes cristéos porque uma das primeiras atividades dos descobridores consistia em bati- zar cabos, baias, montes e rios — em outros termos, em tomar posse simbdlica do territério. O que em tupi se chamava “a grande agua cheia de peixe” vira “rio Séo Fulano”, evidenciando a crenca no efeito apotropaico de tio intensa mania nominativa. O mapa revela o que entZo se conhecia da terra: indios vestindo penas e outros totalmente nus, transportando e cortando pau-brasil. No canto inferior esquerdo ha um gigante, alusio talvez aos patagdénios en- contrados por Magalhaes em 1519. No plano projetive, esse gigante 75 3. Pedro Rainel, Terra Brasilis (ca.1525). talyez expresse © enorme impacto que os indios teriam causado aos que os viram pela primeira vez. Ha também araras e outros pas- saros coloridos, macacos, um felino e um draga@o alado. Este tiltimo indica que na nova terra os europeus encontravam, materialmente projetadas, todas as suas fantasias inconscientes. Em relagZo ao mundo civilizado, a América, do outro lado da Terra, era de fato 0 reino do inconsciente, exatamente por localizar-se fora da esfera de qualquer conhecimento, fé ou poder. O continente tinha que ser conquistado, integrado e identificado com as nacdes-mae o mais ré- pido possivel e com lucro. Afinal, a Europa pretendia expandir seu territério e enriquecer, e nao alterar sua identidade através do contato com um segmento desconhecido da humanidade. No canto superior esquerdo do mapa lé-se que os indios sao selvagens, cruéis e se alimentam de carne humana. Se examinarmos mapas como esse por um prisma psicoldgico, lembrando que muitos foram tragados antes de 1530, periodo de 76 quase nulas tentativas de colonizagio, perceberemos que a cons- ciéncia européia aplicou o melhor de sua razao para lidar com o desconhecido, isto é, langou mao de nomes e linhas, pois a reali- dade recém-descoberta sé existia para o conquistador na medida em que pudesse ser chamada de alguma coisa e localizada com al- guma precisio numa carta geral do mundo. De fato, durante os primeiros trinta anos, Portugal na@o tinha o menor controle defen- sivo de uma costa que se revelava sempre mais extensa, a nao ser a circunstancia de té-la batizado e saber como chegar ld. Mas nao por muito tempo, pois os franceses se apressaram em também por o pé no novo mundo, fora o fato de ser a Espanha igualmente proprietéria do que ficava ao norte, oeste e¢ sul. O nome de ba- tismo e a linha reta, enquanto simbolos de uma atitude apostdlica associada a uma vontade férrea que nao conhece adaptagio a ou- tra realidade que nado a propria, foram as verdadeiras armas psico- légicas da conquista. Esses dois aspectos sao visiveis nos mapas de Waldseemiiller (1507), Visconti di Maiollo (1519) e Gaspar Viegas (1534), todos anteriores 4 colonizacio (Figs. 4, 5 e 6). O que vem do escuro é imediatamente rotulado e classificado, tanto na histéria das’ con- quistas como na eterna confrontagao com o inconsciente. O Mundo Novo deveria logo perder essa condigao. Muito cedo ele seria for- cado a comecar a assemelhar-se ao Velho. A primeira tentativa portuguesa de impor alguma estrutura ao caos tropical foi o regime das Capitanias, em 1534. Diante da dificuldade prdtica de administrar por vias diretas o territério, a Coroa fez doagdes fundidrias a stiditos distintos e leais que colo- nizariam © territério a suas custas, recebendo para tanto poderes especiais ¢ o titulo de Capitéo. Nesse episédio vé-se novamente o poder da linha reta, verdadeira antecipagao das cartesianas. A Co- roa portuguesa tragou as linhas horizontais a partir da costa, Gnica realidade tangivel powoada de indios, avancando a oeste rumo ao desconhecido, talvez até onde se encontrasse o Paraiso. O Papa Alexandre III tragou mais tarde uma altiva vertical, o Meridiano das Tordesilhas, para resolver uma acirrada disputa e manter em paz os dois poderios do mundo catdlico (Fig. 7). A terra imemo- rialmente possuida j4 estava assim mapeada a distancia, como para uma cirurgia, mas os indios nao sabiam de nada. Essas linhas in- visiveis eram tao poderosas coma a nova consciéncia que logo se apossaria deles. 7 4. Detalhe do mapa-mundi de Waldseemiiller (1507) com uma série de nomes ao longo da costa, As flechas indicam o local do desembarque cm 1500 (Porto Seguro) e um “rio de brazil”. A costa oeste é toda ela uma invencio. 78 com um delineamento nomeagao exaustiva. 5. Detalhe do mapa de Visconti di Maiollo (1519), mais preciso da costa brasileira. A localizagdo é clara € @ No centro vem escrito: “A terra toda chama-se de Santa Cruz e¢ perience ao rei de Portugal”. 79

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