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DE FREUD
MENTE E CÉREBRO
Criador da
psicanálise
discute
nosso cérebro e influindo em nossas escolhas, de impossível deter aquilo que à nossa revelia se esvai.
alguma forma nos manipulando? Ainda assim é possível escolher onde queremos in-
Durante muito tempo, falou-se sobre os riscos vestir nossa energia: em lamentar o que se foi (ou em
das chamadas “mensagens subliminares”. Mas breve irá) ou desfrutar do que resta...
até que ponto a propaganda, por exemplo, utiliza Boa leitura.
3
sumário 2010
novembro
Capa: Thais Rebello
24 20 Sobre a transitoriedade
por Sigmund Freud
Ao pensarmos que tudo que temos de bom desvanece e se trans-
forma em nada sob a ação do tempo, podemos tanto nos desiludir
quanto valorizar ainda mais o presente
24 capa
Mensagens para o inconsciente
20 por Christof Uhlhaas
Os sentidos captam informações que escapam à consciência, mas
há dúvidas de que esses dados possam manipular nossa vontade.
Pesquisas mostram, porém, que esses estímulos provocam rea-
ções cerebrais mensuráveis
34 40 Desenhando pensamentos
por Vera F. Birkenbihl
44 Técnicas que privilegiam a associação gráfica ajudam a exercitar a
imaginação e o raciocínio e a se conhecer melhor
54 54 O quantum da consciência
por Andrea Lavazza
A física quântica busca desvendar a consciência, que cientistas
entendem como resultado de interações entre o ser e o mundo
60 O portal da dor
por David Dobbs
60 Um transtorno raro, em alguns casos hereditário, inspira pesquisas
sobre como o cérebro recebe e processa os estímulos dolorosos
4 l mentecérebro l Novembro 2010
s e ç õ e s nas bancas
PSICOLOGIA Crianças, memória e emoção
3 CARTA DA EDITORA E X P E R I M E N TOS E SS E N C I A I S
no site
w w w. m e n t e c e r e b r o . c o m . b r
© diego cervo/shutterstock
82 LIMIAR NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e
O futuro é verde neurociências.
por Sidarta Ribeiro AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos.
5
palavra
do leitor
BOAS NOVIDADES
Adorei o novo projeto gráfico da Mente&Cérebro. O que mais me entusiasmou foi a
participação da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, sou sua fã! Os colunistas
Sidarta Ribeiro e Moacyr Scliar continuam produzindo artigos excelentes. A seção
móvel Psicopatologia do Herói foi outra ideia maravilhosa. Estou ansiosa pelo “caso
clínico” que será publicada em novembro. Parabéns pelos seis anos da revista, que ela
possa continuar auxiliando os profissionais da área e os interessados pelos assuntos
do cérebro e da mente.
Thaís Loss – Curitiba, PR
NOVO PROJETO Ela responde algumas das minhas dú- rém, fiquei decepcionada com o artigo
A Mente&Cérebro está linda! O projeto vidas em relação ao funcionamento do “A hora é esta, presidente” da coluna
editorial está mais moderno e leve. Ficou cérebro masculino e do feminino com Limiar, assinada por Sidarta Ribeiro,
ainda mais prazeroso ler a revista. Gostei linguagem simples e bem didática. As completamente política e idolatrando
muito do artigo “Para que servem os so- ilustrações enriquecem muito o material. o governo Lula. Achei que esse tipo de
nhos”, do neurocientista Sidarta Ribeiro. Vou colecionar. posicionamento não combinou com
Por algum tempo tive medo de sonhar Marcelo Silva – Salvador, BA a revista. Uma coisa seria ressaltar o
e de ter pesadelos, mas acabei desco- aumento das pesquisas sobre a mente
brindo que eles eram reveladores e me UMA DECEPÇÃO durante o governo, e ele poderia até
ajudavam a tomar decisões. Parabéns a Comprei a revista pela primeira vez no ter citado algumas. Outra é dizer que
toda a equipe pelo trabalho. aeroporto de Porto Alegre. Fiquei en- essa gestão do governo é responsável
Júlia Lima – Porto Alegre, RS cantada! Não sou da área, mas sempre por tudo de bom que temos no país
me interessei por assuntos ligados à hoje. Para mim, o posicionamento
EXPERIMENTOS ESSENCIAIS mente. A revista é linda e agradável de do colaborador não combina com
Para mim, a coleção Psicologia – Experi- ler, fiquei realmente impressionada e a revista.
mentos Essenciais foi uma grata surpresa. ansiosa para ver a próxima edição. Po- Lívia Zappa – Cruzeiro, SP
mente
cérebro
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COMITÊ EXECUTIVO CIRCULAÇÃO
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Alagoas/Bahia/Pernambuco/Sergipe: Pedro Amarante
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EDITORA Gláucia Leal Brasília: Sônia Brandão (61) 3321-4304 GERENTE Ana Paula Gonçalves
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Áurea Akemi Arata e Vera de Paula Assis (tradutoras/inglês); ASSISTENTE Michele Lima
Adriana Marcolini (tradutora/italiano); Carlos Eduardo Matos MARKETING
(tradutor/francês); Luiz Roberto Malta, Maria Stella Valli e DIRETOR Lula Vieira NÚCLEO MULTIMÍDIA
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conhecer
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CENTRAL DE ATENDIMENTO
Assinante, novas assinaturas, edições avulsas ou especiais Rua Cunha Gago, 412 – 2o andar
Tel. (11) 3038-6300 / Fax (11) 3038-1415 São Paulo – SP – Brasil – CEP 05421-001
De segunda a sexta das 8h às 20h
7
livre
associação
EXPOSIÇÕES
29a Bienal de São Paulo. Parque do Ibirapuera, Portão 3, sem número. Tel.: (11) 5576-7600 ou www.29bienal.
org.br.. Grátis. Até 12 de dezembro.
divulgação/tomie otake
planos, cores e volumes.
A mostra que reúne obras de 35 artistas brasileiros e tem
imagens: divulgação
Ponto de equilíbrio. Instituto Tomie Ohtake. Rua dos Coropés, 88, Pinheiros, São Paulo.
Tel.: (11) 2245-1900. De terça a domingo, das 11h às 20h. Grátis. Até 14 de novembro.
9
livre
associação
MOSTRA
Transformação e humor
na obra de Vik Muniz
INCLUSÃO SOCIAL
TEATRO
O discurso do louco
O nórdico. Sesi do Rio Vermelho. Rua Borges dos Reis, no 9, Rio Vermelho, Salvador,
BA. Tel.: (81) 3616-7061. De R$ 8,00 a R$16, 00. Dias 11 e 12 de novembro às 20h.
O espetáculo viajará pelo país, mas as datas ainda não estavam marcadas até o
fechamento desta edição.
PROJETO
PSICOLOGIA HOSPITALAR
reprodução
Voltaire, pseudônimo de Françoise-Marie Arouet,
filósofo, poeta e historiador francês (1694-1778) Flora Tristan, romancista francesa (1803-1844)
na rede
NA ONDA DOS Com que roupa eu vou?
REALITIES Comprar exageradamente pode ser uma
forma patológica de aplacar angústias.
Os primeiros dias sem fumar podem ser bastante Pesquisas apontam que 94% dos
desconfortáveis para quem está tentando compradores compulsivos são mulheres.
abandonar o cigarro. Irritabilidade, insônia, aumento de peso, ansiedade e Roupas, sapatos, bolsas e maquiagens
cansaço são alguns dos sintomas que os ex-fumantes terão de enfrentar. É por estão entre seus principais objetos
tudo isso que os publicitários João Bruno Werzbitzki, Ilana Stivelverg e Fernando de desejo. Mas não precisa nem ter
Christo estão passando. A diferença é que eles criaram um reality blog para comportamento patológico para encontrar
que outras pessoas possam acompanhar o drama cotidiano dos três colegas de dificuldades de resistir a uma vitrine
trabalho. A ideia surgiu quando eles foram encarregados de criar uma campanha atraente. Imagine-se escolhendo seis
para um programa on-line que ajuda as pessoas a parar de fumar. No Parar itens do guarda-roupa – não incluindo
de Fumar dá Trabalho (www.parardefumardatrabalho.com.br) o trio relata as acessórios e roupas íntimas – e passar
experiências e dificuldades de se livrar de uma vez da dependência. No espaço um mês vestindo apenas isso. Essa é a
virtual eles marcam quanto estão economizando sem o cigarro no Cofre cof proposta do Six Items or Less, projeto
(foto) e, no final de três meses os internautas que acompanham a saga vão criado pelas amigas Heidi Hackemer e
sugerir como devem gastar o dinheiro. Tamsin Davies. A experiência funciona
como uma “dieta das roupas”; além de
testarem sua “resistência” elas registram
© fanny71/shutterstock
desenvolvimento, diagnóstico e tratamento da patologia. As aulas ajudam na
compreensão de aspectos biológicos, psicológicos, sociais e éticos. O material está
disponível para estudantes e profissionais da área da saúde. O curso básico sobre
câncer é gratuito, e para participar basta acessar: www.icesp.org.br.
Ilusão ou realidade?
Imagine trilhos de trem bem no meio da sua sala ou uma escada rolante surgindo na
porta do quarto. Ao olhar para isso, você obviamente sabe que é um truque, mas alguns
dos seus neurônios processam a informação como se ela fosse real, causando o que
chamamos de ilusão de óptica. A Couture Déco, empresa francesa de design, criou
uma linha de adesivos em 3D que causam um efeito impactante. Há nove opções de
fotografias, entre elas uma estante cheia de livros, um armário vazio, um corredor de
um castelo e até as famosas escadarias de Montmarte, em Paris. O trabalho é feito
em trompe l’oeil (do francês “engana-olho”), técnica que utiliza imagens realistas. Os
reprodução
Mensagens de Verona
Cartas para Julieta, dirigido por Gary Winick, aborda um dos grandes anseios
dos seres humanos: o encontro do amor
// por Ingrid Esslinger
imagens: divulgação
ancião. Este seria o verdadeiro “final feliz”? Talvez.
O filme sugere, porém, que o afeto não resiste
ao encontro. A mulher de um dos “Lorenzos”
que Claire encontra ao longo de sua busca pede
desesperadamente que o levem embora! O casa-
mento da alma resistirá ao casamento como instituição? Podemos pensar nas palavras de Clarice Lispector: “Porque
O que faz com que um rosto que juramos amar por toda eu fazia do amor um cálculo errado, pensava que, somando
a vida se perca? Como escreve Rubem Alves, “longe do as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as
outro é possível amá-lo. Na distância ele não perturba sua incompreensões é que se ama verdadeiramente”. e
m c
15
psicanálise
inconsciente a céu aberto
contingente dos signos devolutivos e repara ou nada. Relatórios adicionais, horas extras, cursos
reconstitui frustrações e privações inerentes à re- compulsórios de aprimoramento, procedimen-
lação de cuidado. Ao caráter altamente simbólico tos de segurança, de prevenção, de controle e
do dom e seu potencial de moldagem de nosso de aprimoramento pessoal são contabilizados
imaginário amoroso acrescente-se que no dom cada vez mais como uma poluição de coisas
há algo de real irredutível à lógica das trocas. gratuitas. Não custa nada ser gentil, elogiar o
É esse “a mais”, que não custa nada e muda próximo ou sorrir para os outros; contudo, aqui
tudo, não só porque cria algo novo e diferente começa o próximo capítulo: como fazer alguém
de um comércio de investimentos ou de uma te odiar por ser obrigado a te amar... e
m c
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cuide-se!
Paixão, amor,
casamento... SUZANA
HERCULANO-HOUZEL,
neurocientista,
professora da
Pesquisas neurocientíficas mostram que é possível Universidade Federal do
sentir-se encantado pela mesma pessoa por décadas Rio de Janeiro (UFRJ)
V ocê já se imaginou
vivendo 10, 20 ou 50
anos com a mesma pessoa?
torcemos para que o mesmo aconteça no cérebro dela, asso-
ciando um valor cada vez mais positivo à nossa própria compa-
nhia, claro). É o que fazemos no período de namoro, quando
Sentindo sempre o mesmo conversas interessantes, passeios agradáveis, boa música, boa
prazer em sua companhia, o comida e carinho oferecem prazeres que vão sendo associados
mesmo conforto em seus bra- à companhia do outro. Se rola sexo, então, melhor ainda: o
ços? Se a perspectiva parece prazer do orgasmo funciona como uma cola extraordinária
interessante, agradeça ao seu para o sistema de recompensa, que atribui (corretamente!)
cérebro (e se não lhe agrada, a satisfação incrível àquela pessoa específica (mas é verdade
a culpa é dele, também). De que isso não funciona tão bem em alguns cérebros...).
certa forma, é curioso que Com a repetição, o sistema de recompensa vai apren-
laços afetivos fortes, como dendo a ficar ativado não apenas em resposta, mas também
os amorosos, sejam tão em antecipação à presença daquela pessoa. Esse prazer
importantes para nossa es- antecipado é a motivação, que nos dá forças para alterar
pécie. Tecnicamente, viver compromissos, abrir espaço na agenda e ficar acordado
em sociedade, ou mesmo madrugada adentro. Essa é a paixão, estado de motivação
em pares, não é obrigató- enorme em que se faz tudo em nome de mais tempo na
rio para a sobrevivência presença do ser amado.
de nenhum animal – vide Quando vira amor? Essa questão é complicada, mas existe
tantos mamíferos, aves e outros bichos que procuram um ao menos uma definição operacional curiosa: passado o ardor
par somente para o acasalamento e imediatamente depois da paixão, descobre-se que se ama alguém quando pensar
seguem cada um o seu caminho. em uma vida sem ela causa angústia sincera e profunda. O
Se gostamos de formar pares a ponto de investir boa parte amor é esse laço que faz seu cérebro achar que sua felicidade
de nossa energia, tempo e esforços cognitivos em convencer está vinculada à presença e à felicidade do outro e que fazê-
um belo exemplar do sexo interessante de que nós somos lo feliz dá novo sentido à sua vida. Nesse estado, desejar o
a pessoa mais sensacional e desejável na face da Terra, é casamento é apenas natural.
porque o sistema cerebral humano, como o de outros ani- Se é para sempre? Depende de vários fatores, alguns
beto felício (foto); gonçalo viana (ilustração)
mais sociais, é capaz de atribuir um valor positivo incrível à deles fora de nosso alcance, como ser traído (e não apenas
companhia alheia. Isso é função do sistema de recompensa, sexualmente). A boa notícia da neurociência sobre a longe-
conjunto de estruturas no centro do cérebro especializadas vidade dos relacionamentos amorosos é que eles não estão
em detectar quando algo interessante acontece, premiar-nos necessariamente fadados ao esgotamento: é, sim, possível
com uma sensação física inconfundível de prazer e satisfação se sentir apaixonado décadas a fio pela mesma pessoa. E
e ainda associar esse prazer com o que levou a ele – o que não é mero acaso de sorte: você pode fazer sua parte. É
pode ser uma ação, uma situação, um objeto ou... alguém. uma questão de continuar inventando e descobrindo novos
Conforme o prazer se repete na companhia dessa pessoa, prazeres a dois. Tudo para manter o sistema de recompensa
o valor positivo que atribuímos a ela é reforçado (enquanto do outro interessado em você... e
m c
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Sobre a
transitoriedade
Ao pensarmos que tudo que temos de bom – as belezas da
natureza, o universo de sentimentos que cultivamos, nossos
amores e até sabedoria – desvanece e se transforma em nada
sob a ação do tempo, podemos tanto nos desiludir quanto
valorizar ainda mais o presente
Texto de
H
á algum tempo, em um dia de verão, fiz um passeio por um campo florescente em companhia
de um amigo, um jovem e calado poeta, que já desfruta de considerável fama. Ele admirava
a beleza da natureza à nossa volta, mas sem tirar grande experiência dela. Incomodava-o a
ideia de que toda aquela beleza estava fadada a se esvanecer, no inverno teria se dissipado,
assim como se perde a beleza humana e todas as coisas bonitas e nobres que os homens já
criaram e podem vir ainda a criar. Todas as outras coisas que ele, de alguma forma, teria amado e admirado
lhe pareciam desvalorizadas pela sina da transitoriedade à qual estão destinadas.
Sabemos que duas noções psíquicas diversas podem surgir do reconhecimento de que tudo, mesmo o
ilustrações de andrea ebert
que é belo e perfeito, se deteriora. Uma delas leva ao aflito fastio do mundo do jovem poeta; a outra, à insur-
reição contra a enunciada fatalidade. Podemos pensar ser impossível que todas essas maravilhas da natureza
e da arte, de nosso universo de sentimentos e do mundo exterior realmente tenham de se desfazer em nada.
Seria insensato e ultrajante demais acreditar nisso. Elas têm de subsistir de alguma forma, alheias a todas as
influências destrutivas.
21
P S I C A N Á L I S E
23
inconsci nte
M ensagens
para o
Q
uando falamos em estímulos subliminares, em
geral pensamos em imagens que aparecem de
forma tão fugaz a ponto de não serem percebidas
pela consciência, mas que mesmo assim são ca-
pazes de influenciar as nossas decisões. Alguns
acreditam que esse recurso permite criar determinados estados de
ânimo e até obter ganhos, influenciando as pessoas a fazer certas
escolhas. Usada de forma indiscriminada, essa técnica poderia
ser um risco nas mãos de publicitários e políticos. Os cientistas
demonstraram, porém, que o efeito da percepção subliminar não
é tão espetacular como durante muito tempo se acreditou.
Essas técnicas vieram à tona em 1957, com uma experiência
desenvolvida pelo publicitário americano James Vicary (1915-
1977), especialista em pesquisa de mercado. Durante uma pro-
jeção em um drive-in, ele exibiu – em velocidade muito alta, sem
que o público notasse – uma mensagem na tela: “Coma pipoca
e beba Coca-Cola”. Na ocasião, Vicary anunciou que o sistema
thais rebello
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C A P A // P E R C E P Ç Õ E S S U B L I M I N A R E S
que nunca levara a cabo uma experiência nesses te, Delta. Após a projeção, os 400 congressistas
moldes, e que queria apenas incrementar o fatu- tinham de escolher entre o Delta e outro produto,
ramento de sua agência publicitária. Mas o mito Theta. Resultado: 81% escolheu a primeira op-
da manipulação inconsciente já tinha nascido. ção. Mas nunca se procedeu a uma comprovação
Posteriormente, ele de fato fez uma experiência – normalmente usada nos estudos científicos
em um cinema na presença de um grupo de – para estabelecer se a mesma experiência sem
jornalistas, mas os dados haviam sido falsifi- as mensagens subliminares poderia trazer um
cados: o famigerado tactoscópio, aparelho resultado diferente.
que envia as breves mensagens, teria tido
seus dados fraudados. CRUCIFIXO MISTERIOSO
Para o cinquentenário de “Coma No final de 2007, suspeitou-se que o candidato
pipoca e tome Coca-Cola”, em 2007, o republicano à presidência dos Estados Unidos
psicoterapeuta Jim Brackin, especialista Mike Huckabee tivesse procurado manipular
em publicidade e hipnose, realizou uma os eleitores durante a propaganda eleitoral. No
experiência similar em um congresso de centro das suspeitas havia uma estante de livros
reprodução
© javarman/shutterstock
um estímulo percebido conscientemente, o target
(alvo). Os exemplos clássicos dessas experiências
têm base nos números: os participantes veem na
tela um número entre 1 e 9 e devem classificá-
lo, apertando a tecla esquerda se inferior a 5 e a
direita, se superior. É uma tarefa tão simples que,
em geral, ninguém costuma errar.
A ILUSÃO DE VENCER O JOGO
A ação dos estímulos subliminares se ma- Em 2007, em Ontário, Canadá, as máquinas caça-níqueis foram retiradas do
nifesta principalmente no tempo da reação: comércio porque se acreditava que exercessem influência subliminar sobre
os indivíduos reagem mais rápido se, antes do os jogadores. Nesse jogo, as três rodas com os símbolos giram e uma certa
estímulo-target percebido conscientemente, apa- combinação determina a conquista do jackpot. De acordo com o que descobriu
recer ligeiramente um estímulo-prime subliminar, a Canadian Broadcasting Corporation (CBC), as pequenas máquinas da Konami,
empresa produtora de videogames, mostravam os símbolos da vitória por 200
que requer apertar a mesma tecla. Se, por exem-
milissegundos, durante uma animação em vídeo realizada para ilustrar o jogo.
plo, um 7 for rapidamente iluminado antes de um A acusação era de que, dessa forma, as máquinas criavam a ilusão de haver
8 percebido conscientemente, os participantes mais probabilidade de ganhar e induziam assim os compulsivos a permanecer
decidem com mais rapidez apertar a tecla correta. sentados na cadeira. No entanto, a empresa garantiu que a causa era um defeito
Ao contrário, um 4 subliminar os faria hesitar por no programa de computação.
mais tempo. A experiência também funciona se o
FORAM LEVANTADAS
SUSPEITAS de que o filme
Férias de amor (Picnic),
dirigido por Joshua Logan
e interpretado por Kim
Novak (na foto) e William
Holden, incitasse ao
consumo de pipoca
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C A P A // P E R C E P Ç Õ E S S U B L I M I N A R E S
Ratos na campanha
Durante campanha eleitoral, em 2000 especialistas em comunicação que trabalhavam
com George W. Bush teriam recorrido a mensagens subliminares, nas quais a palavra
rats, “ratos”, aparecia para indicar os adversários e combater Al Gore. Na página seguinte,
protesto antirrepublicano no qual foi denunciada a publicidade veiculada por Bush
imagens : reprodução
número estiver escrito por extenso, como no caso Quando um realmente influenciava os eleitores? O grupo de
de “sete”. As palavras com significado emotivo, pesquisa coordenado pelo neurocientista cogni-
como “medo”, também influenciam a escolha, e número aparece tivo Stanislas Dehaene, pesquisador do Collège
a mímica dos rostos, mais ainda. por um segundo de France, em Paris, estudou de que maneira os
A elaboração subliminar da expressão facial estímulos subliminares podem ser captados. O
foi acompanhada em 2007 pelos psicólogos na tela, é pesquisador Lionel Naccache, membro da equi-
Monika Kiss e Martin Eimer, pesquisadores da percebido pe, forneceu a primeira demonstração direta da
Universidade de Londres, por meio do registro influência das palavras com conteúdo emotivo.
de medidas com o eletroencefalograma (EEG). conscientemente; Ao acompanhar três pacientes epiléticos que
Durante a experiência, 14 participantes eram mas se o tempo tinham em seu cérebro eletrodos para o trata-
orientados a diferenciar as fotos de pessoas com mento da patologia, chamou sua atenção que
expressão assustada ou neutra. Os voluntários de exibição for palavras subliminares com forte dose emotiva
conseguiam realizar a tarefa com desenvoltura reduzido, já não exercem influência sobre a amígdala, uma região
se o rosto fosse exibido por 200 milissegundos. cerebral determinante no processamento de
Quando o tempo era reduzido para 8 milissegun-
é possível notá-lo emoções. “Tais vocábulos modificavam a ativida-
dos, as respostas eram eventuais. Neste caso, de da amígdala, justamente como acontece com
o estímulo podia ser definido como subliminar. a elaboração consciente”, afirmou Naccache.
Mesmo assim o eletroencefalograma mostrava O cientista Raphael Gaillard, outro pesqui-
as mesmas variações que têm origem também sador da equipe de Paris, demonstrou que pala-
com a percepção consciente. vras fugazes com conteúdo emotivo entram na
consciência antes daquelas com sentido neutro.
FORTES EMOÇÕES Durante sua experiência, mudou o tempo em que
O “mito da ação subliminar” tem, portanto, um vocábulo apresentado de forma subliminar é
uma base empírica: estímulos não captados disfarçado, aleatoriamente, pela exibição de vá-
conscientemente provocam reação que pode rias de letras na mesma cena. No caso daquelas
ser medida no cérebro. Não é aceitavel, porém, neutras, de cada dois pacientes um se lembrava
falar de 1 manipulação profunda dos nossos do que estava representado na tela. Quando se
julgamentos e decisões. tratava de termos com conotação negativa, três
Em 2000 surgiu o temor de possíveis em cada duas pessoas se recordavam deles.
influências políticas ocultas quando, para comba- Gaillard concluiu que o conteúdo emotivo de
ter o adversário político Al Gore, um assessor da uma palavra pode reduzir o limiar da percepção
equipe de George W. Bush sugeriu iluminar mui- consciente. E que as palavras percebidas de
tas vezes em uma propaganda eleitoral a palavra que possamos nos dar conta são elaboradas
bureaucrats (burocratas) e, por três centésimos de maneira específica, de acordo com o seu
de segundo apenas, as quatro últimas letras: rats, conteúdo semântico. É muito improvável que
ou seja, ratos. Mas o uso da palavra “negativa” com esses artifícios seja possível manipular
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PERFUME DE HOMEM AJUDA A ARRANJAR EMPREGO
O olfato também pode nos ajudar a fazer escolhas – mesmo que usavam perfume masculino foram avaliadas quase duas
sem que percebamos a influência dos aromas em nossas deci- vezes mais positivamente em relação às que haviam passado
sões. Um estudo desenvolvido pelas psicólogas Sabine Sczesny fragrância feminina – e quase três vezes melhor do que as que
e Dagmar Sahlberg, da Universidade de Berna, na Suíça, de- não usavam perfume algum. Para os homens, os resultados
monstrou que mesmo perfumes de boa qualidade nem sempre foram similares: o perfume masculino aumentou as chances de
causam boa impressão. E podem até atrapalhar na hora de contratação. Mas entre usar um perfume de mulher e nada, é
conseguir emprego. Mulheres, por exemplo, têm mais chances melhor que os candidatos fiquem com a última opção.
de ser aprovadas numa entrevista ao pleitear um cargo executi- Esse resultado se baseia no estereótipo segundo o qual se
vo quando usam perfume de homem. deve confiar um cargo executivo e responsabilidades profis-
Para chegar a essa conclusão, as pesquisadoras contaram sionais a uma pessoa com características consideradas mais
com a ajuda de 116 voluntários que atuaram como assistentes masculinas, como assertividade, raciocínio lógico aguçado e
de um recrutador do departamento de recursos humanos. Sua capacidade de tomar decisões difíceis sem se deixar levar pelo
função era acompanhar uma avaliação de pretendentes a uma sentimentalismo. Mulheres com um lado masculino mais pro-
vaga numa empresa. Os participantes, obviamente, não sa- nunciado (uma característica indicada pelo perfume), portanto,
biam, mas os candidatos eram, na realidade, atores treinados teriam mais vantagens. A consideração dessa informação, po-
para se comportar exatamente da mesma maneira. Não apenas rém, raramente é percebida conscientemente pelos avaliadores.
o sexo variava (homem ou mulher), mas também o perfume Quando o cargo pretendido está mais ligado a um estereótipo
(masculino, feminino ou nenhum). O trabalho dos recrutadores mais feminino (por exemplo, secretária), um perfume de ho-
consistia em estar presente no momento da entrevista e depois mem pode trazer desvantagens. Também não adianta perfumar
fazer considerações sobre o candidato. o currículo. Outra experiência dessas mesmas pesquisadoras
As psicólogas logo perceberam que o olfato do recrutador mostrou que os recrutadores preferem candidatos não estão
era um elemento importante na tomada de decisão. Mulheres perfumados. (Da redação)
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C A P A // P E R C E P Ç Õ E S S U B L I M I N A R E S
Para as crianças
Volta e meia circulam e-mails denunciando que desenhos animados estão
repletos de figuras eróticas escondidas, garantindo que uma “evidente”
ilustração de caráter sexual está oculta no logotipo de uma famosa marca de
cigarros e que mensagens satânicas foram camufladas em meio aos versos de
músicas de sucesso. O tema das mensagens subliminares e a sua capacidade
de influenciar a mente de quem as recebe atiçariam o imaginário coletivo,
mas é difícil delinear precisamente um limite exato entre verdade e lenda. O
mundo adocicado de Walt Disney esteve muitas vezes no centro de acusações e
polêmicas ligadas a supostas mensagens subliminares de natureza sexual, mais
preocupantes ainda porque tinham como alvo o público infantil. No cartaz do
filme A pequena sereia e em alguns fotogramas da obra, estariam escondidos
símbolos fálicos, enquanto no céu estrelado que serve como pano de fundo para
uma cena do longa-metragem O rei leão apareceria em um trecho a palavra
“sex”: os autores dos desenhos animados sempre desmentiram que essas
possíveis alusões tivessem sido criadas deliberadamente – de qualquer maneira, O REI LEÃO, de 1994, e A pequena sereia,
elas quase nunca podem ser reconhecidas sem um pouco de imaginação. No de 1989: suspeitas de mensagens ocultas
entanto, sempre resta a dúvida. nas animações da Disney
as pessoas, porque, quando o estímulo não faixas com as letras colocadas ao acaso, havia
atinge a consciência, a influência dura pouco
Percebemos uma desativação da parte superior do lobo tem-
tempo. A experiência de Gaillard demonstra os estímulos poral. Ao contrário, na tarefa de leitura a área
serem determinantes não apenas a duração da de maneira magnética precisava estar na parte inferior do
percepção, mas também o seu conteúdo. Além lobo temporal. Isso significa que a área em que
disso, os estímulos subliminares são elaborados consciente o estímulo subliminar deixa rastros no cérebro
de acordo com a atividade que a pessoa está quando é determinada pela tarefa na qual os candidatos
desempenhando naquele momento. são submetidos à percepção subliminar.
Esse tema foi estudado pelo neurologista produzem uma Segundo Stanislas Dehaene, pode ser que
Kimihiro Nakamura, da Universidade de Kyoto. “reverberação” elaboremos o estímulo subliminar em nível
Fazendo uso da estimulação magnética trans- semântico. Seria um resultado fascinante: o estí-
craniana (EMT), ele desativou algumas áreas do duradoura mulo óptico é reconhecido como palavra, a faixa
cérebro em um grupo de pessoas que enxerga- no cérebro de letras é decifrada e a representação da palavra
vam imagens subliminares nas palavras. Com é lembrada pelo cérebro. Tudo isso acontece sem
essa técnica, ele podia interromper dois efeitos nos darmos conta.
priming. No primeiro caso, em um teste de re- De acordo com Nakamura, o efeito priming
conhecimento verbal, os voluntários deveriam subliminar passa de uma modalidade sensorial
apertar uma tecla para comunicar se a faixa de a outra. Mesmo se a palavra fosse inserida sob
letras rapidamente sobrepostas formava ou não a forma escrita por 3 centésimos de segundo
uma palavra. Se o mesmo vocábulo era proposto e a tarefa sucessiva de reconhecimento verbal
de forma subliminar, os voluntários reagiam consistisse na sua pronúncia, a faixa de letras
com mais velocidade, desde que o estímulo inserida de forma subliminar diminuía o tempo
magnético não impedisse essa ação. de reação das pessoas. Dehaene deduz que
No segundo caso, os participantes do teste percebemos os estímulos de maneira consciente
tinham de pronunciar em voz alta uma palavra quando produzem uma “reverberação” distribuída
inscrita. Desta vez a resposta era mais rápida e duradoura no cérebro. Portanto, não apenas o
quando era projetada de forma subliminar. tempo do estímulo é determinante, mas também
E, também neste caso, a EMT podia anular o os processos cognitivos superiores: por exemplo,
efeito priming. a tarefa em que a pessoa está envolvida naquele
Com base nessa tarefa, era preciso desa- momento ou na qual deve se concentrar.
tivar várias áreas do cérebro: se os indivíduos Mas a questão científica ainda está aberta.
mantinham separadas entre si as palavras e as Os céticos refutam a ideia de que possamos
30 l mentecérebro l Novembro 2010
HORMÔNIOS QUE DESPERTAM A
RIVALIDADE MASCULINA
As preferências das mulheres pelos aspectos físicos masculinos
mudam de acordo com as fases do ciclo menstrual. Durante o período
da ovulação, elas tendem a considerar atraentes os homens mais viris.
O motivo é que, nessa fase, elas se interessam em ter relações com
um representante do sexo masculino com alto nível de testosterona.
Trata-se de um resquício evolutivo para preservação da espécie surgido
de forma inconsciente. Afinal, mulher alguma olha para o espelho de
manhã e diz: “Hoje quero me arrumar para aumentar a probabilidade
de ser fecundada”. Querendo ou não, porém, as mensagens que envia
aos parceiros do sexo oposto causam efeitos claros – e mais uma vez
esse processo se dá em um limite que não alcança a consciência.
Uma nova pesquisa destaca que os homens percebem de forma
imagens: divulgação
Outra razão para considerar as ordens de uma pessoa como Brasileira de Força Aérea (AFA).
N
// por S. Alexander Haslam e o passado, a fábrica, com seus equipamen-
Craig Knight tos sujos e barulhentos, era um ícone dos
países industrializados; atualmente, esse
lugar é ocupado pelos escritórios. Milhões
de pessoas – pelo menos 15% da população
dos países desenvolvidos – trabalham em uma mesa, com
ou sem a divisória que as separe dos outros colegas, em
frente a um computador. Embora muitos acreditem que uma
© ola dusegård/ istockphoto
35
T R A B A L H O
37
T R A B A L H O
BÁSICO INCREMENTADO
Este último cenário pode aparentemente não lugar daqueles”. A produtividade e o bem-estar
ter relevância na vida real, mas, na verdade, é aumentaram ainda mais – cerca de 30% – no
surpreendente como esse tipo de interferência se ambiente customizado pelos participantes. “Foi
torna um incômodo. Recentemente, entrevista- demais; adorei. Que escritório maravilhoso”,
mos um gerente de tecnologia da informação (TI) disse um dos voluntários. No entanto, quando as
em um banco importante de Sydney, Austrália, escolhas pessoais foram ignoradas, seu desem-
cujo projeto e decoração tinham sido mudados penho e bem-estar caíram para os mesmos ní-
36 vezes nos últimos quatro anos. “Eu me sinto veis demonstrados no escritório básico. “Eu me
como um peão no tabuleiro de xadrez, e todos senti sabotado”, declarou um dos empregados
ao meu redor pensam o mesmo. É uma das do escritório “retomado”. “Gastei um tempão
principais coisas sobre as quais conversamos arrumando a sala para nada... Sinceramente?
no escritório: o que vão inventar da próxima vez. Tive vontade de bater em quem mexeu no ‘meu
Essa situação não é nada divertida, aliás, é bem espaço’ ”, afirmou outro funcionário.
estressante”, declarou
Nossos estudos, publicados em junho SOB CONTROLE
na Journal of Experimental Psychology: Applied, Outros fatores além do projeto e das armadilhas
mostram que a produtividade do trabalhador de um local de trabalho, como a acústica, podem
aumenta quando sua autonomia é valorizada.
Em algumas afetar o desempenho profissional. Um estudo de
As pessoas em um escritório incrementado empresas 2009, da Universidade de Turku, na Finlândia,
trabalharam 15% mais rapidamente e com funcionários avaliou como os funcionários se saíram em
menos erros em comparação àquelas que es- tarefas cognitivas em ambientes variados com
tavam no escritório básico e reportaram menos
chegam a relação a sons. A equipe descobriu que, quando
queixas relacionadas à saúde. “As pinturas e as competir para os trabalhadores ouviam sons irrelevantes de
plantas realmente alegraram o local” foi uma ver quem fala por perto (imagine um rádio ligado na mesa
observação típica em relação ao escritório incre- consegue criar do colega ao lado), o desempenho em tarefas
mentado. Um participante avaliou, referindo-se de compreensão de leitura e memorização de
ao escritório básico: “Parecia um cenário, sem o espaço mais números declinava, assim como o conforto dos
nada fora do lugar; não dava para relaxar num atraente participantes. Os pesquisadores especulam
38 l mentecérebro l Novembro 2010
imagens: craig knight
PARTICULAR RETOMADO
que o ruído pode perturbar a memória, além sofisticados, “favoráveis ao funcionário”, como
de estimular o estresse; por isso recomendam a de uma agência de turismo no Reino Unido,
paredes altas entre as estações de trabalho e uso estudada pelo pesquisador Chris Baldry, pro-
de materiais que absorvam o som. fessor de administração da Universidade de
Mostrar aos empregados como manipular Stirling, na Escócia. Aparentemente, o lugar
os ambientes de trabalho em benefício próprio parecia promissor: áreas com cores fortes eram
tem vantagens distintas. Em um estudo de 2009, enfeitadas com palmeiras. Mas um espaço no
do Liberty Mutual Research Institute for Safety, estilo Panaopticon, o chamado Controle da
em Hopkinton, Massachusetts, avaliaram-se os Missão, permitia que os gerentes monitoras-
efeitos de oferecer um curso de treinamento em sem clandestinamente os funcionários. Estes,
ergonomia aos funcionários e fornecer cadeiras por sua vez, reclamavam constantemente da
de escritório altamente ajustáveis. Aqueles que PARA SABER MAIS sensação de sufocação e da tosse seca.
Surviving the toxic workplace:
receberam o treinamento e a cadeira não ape- protect yourself against co-
A impressão de estar sendo vigiado também
nas correram menos riscos de problemas com workers, bosses and work está ligada à produtividade. Cientistas da Uni-
músculos e ossos, como se sentiram melhor na environments that poison versidade de Chung-Ang, em Seul, pesquisaram
your day. Linda Durre. Mc-
situação do trabalho em geral. Graw-Hill, 2010. quase 400 trabalhadores e descobriram relação
Na verdade, oferecer ou negar controle sobre The relative merits of lean, entre o controle percebido pelos funcionários
as condições de trabalho dos funcionários tem enriched, and empowered em seus locais de trabalho e sua capacidade de
offices: an experimental
implicações significativas para seu bem-estar examination of the impact concentração. Nesse estudo, o “controle” foi
e costuma deflagrar a chamada “síndrome do of workspace management definido, parcialmente, como ter a possibilidade
strategies on well-being and
prédio doente”, com sintomas como irritação productivity. Craig Knight e S. de mexer na mobília dentro do ambiente pro-
nos olhos, nariz, garganta e pele, fadiga, náu- Alexander Haslam, em Journal fissional e individualizar os enfeites, da mesma
of Experimental Psychology:
sea, dores de cabeça e tonturas. A patologia Applied, vol. 16, págs. 158-172, forma como nosso escritório incrementado. As
geralmente é atribuída a propriedades físicas do junho de 2010. respostas da pesquisa indicam que quando as
local de trabalho, como problemas de ventilação, Office psychology: optimizing pessoas sentiam que tinham poder de decisão
work space for the next gene-
aquecimento ou sistemas de ar-condicionado. ration of employees. Natalia sobre os aspectos físicos de sua área de trabalho
Mas, em 1989, uma grande pesquisa da Universi- O’Hara, em Prague Post, dis- os efeitos negativos do barulho e de outros fatores
ponibilizado na internet em
dade de Copenhague desafiou esse conceito. Os 16 de dezembro de 2009. de distração eram reduzidos. O fato é que quando
cientistas descobriram que as reclamações são Princípios da administração nos sentimos desconfortáveis ficamos menos en-
duas vezes mais comuns entre profissionais que científica. Frederick W. Taylor. volvidos com as atividades. Mas se trabalhamos
Editora Atlas, 1995.
estão em posições inferiores e, portanto, exercem em espaços aos quais nos sentimos conectados
Work places: the psychology
pouco controle sobre seus ambientes. of the physical environment ficamos mais felizes e produtivos – e até mesmo
A relação entre a falta de autonomia em in offices and factories. Eric mais saudáveis. Ou seja: felicidade nos torna
Sundstrom e Mary Graehl
relação ao próprio espaço e a síndrome do Sundstrom. Cambridge Uni- mais comprometidos e criativos. Pena que alguns
edifício doente é verdadeira até em ambientes versity Press, 1986. patrões ainda não sabem disso... e
m c
39
Desenhando
pensamentos
Como o cérebro humano processa
imagens até mil vezes mais rápido do
que palavras, o uso de técnicas que
privilegiam a exploração criativa
por associação gráfica ajuda a
exercitar a imaginação, treinar a
racionalidade e se conhecer melhor
G
// por Vera F. Birkenbihl ostaria de convidá-lo para participar de dois
pequenos experimentos. E como a primeira vez
só existe uma vez, você sairá perdendo caso leia
este artigo sem participar dos experimentos. Mas
é uma escolha... Exercitar o cérebro significa tam-
bém embrenhar-se por aventuras mentais, experimentar coisas
novas, adquirir conhecimentos. Para aceitar esse desafio peço
que você pegue lápis, papel e borracha. E me acompanhe nos
exercícios a seguir.
Primeiro, faça uma lista daquelas atividades que, em geral,
fazem parte de sua rotina de trabalho, indicando logo à frente
a porcentagem aproximada que ocupam de seu dia. Lembre-se
apenas de que a soma não deve ultrapassar 100%. Utilize no
© bodhi hill/istockphoto
ANALOGRAFITE
CRIADO por Vera
F. Birkenbihl:
letras, símbolos
e figuras são
recursos eficazes
para organizar
o raciocínio
e expressar
sentimentos
Sobre o primeiro experimento: talvez você tenha descoberto anos de idade é capaz de desenhar, são mais do que suficientes.
que pode ser bastante difícil listar com rapidez aquilo que fa- De resto, as fronteiras da arte costumam ser elásticas: podemos
zemos em um dia típico de nossa vida. Na maioria das vezes, arriscar dizer que muitas obras tardias de Pablo Picasso nada
a soma das atividades ultrapassa 100%, requerendo solução mais são do que explorações criativas por associação gráfica. Ao
para um problema aritmético. Vamos agora para outra etapa compor muitos de seus trabalhos o artista espanhol sacrificou
do experimento: construir uma imagem desenhando um típico a beleza convencional em prol da expressão de determinadas
dia de trabalho com lápis de cor. ideias. Assim, reuniu, por exemplo, num mesmo rosto, as visões
Mas antes vale partilhar algumas considerações. Essa téc- de frente e de perfil.
nica é denominada exploração criativa por associação gráfica Também gráficos e diagramas, pictogramas e ideogramas
(ou analografite) e propõe a apresentação de ideias sob a forma podem ser considerados analografite. Eles são mais agradáveis
de pequenos desenhos. O objetivo é promover uma expansão à mente do que as meras palavras, uma vez que o cérebro pro-
www.analograffiti.ch/reprodução
de nossas capacidades mentais e ver situações cotidianas com cessa imagens numa velocidade bastante elevada, até mil vezes
maior clareza. À parte o fato de que essa ferramenta fomenta mais rápido do que palavras. Os antigos chineses já sabiam que
a criatividade, é importante ressaltar que ela pode ajudar a “uma imagem pode valer (até) mil palavras”. Simplificações à
fortalecer o pensamento racional e analítico. E, para tanto, parte, em alguns casos essa afirmação é verdadeira. E é bom
não é necessário nenhum talento especial para o desenho, no lembrar que quanto mais conhecida uma imagem, quanto mais
sentido mais usual da palavra. Os mais simples esboços de familiarizados estamos com o que ela reproduz, tanto mais
homenzinhos esquemáticos, como os que uma criança de 4 rápido somos capazes de processá-la.
41
I M A G E M
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AMIGOS ESTUDO TRABALHO FAMÍLIA an as
tém ar e
contatos regul ?
PRIORIDADES
dade, mas com melhor disposição psíquica, a bem compreendidos pelos professores se eles ape-
distância é maior”. O quadro resultante da Prism nas pedissem que seus alunos desenhassem o que
exibe nítidas similaridades com os resultados de sentiam sobre determinados assuntos (incluindo
outros procedimentos de diagnose. dificuldade de relacionamento ou aprendizagem)
De novo, vemos que esse tipo de ferramenta e depois falassem sobre o que fizeram.
pode auxiliar o pensamento, porque nos permite O que menos importa é se as pessoas em-
expressar, sem o auxílio das palavras, aquilo que pregam seu incômodo com perfeição. O fato
não conseguimos exprimir. A imagem ajuda a é que as imagens são instrumentos preciosos
tornar palpável o abstrato – no caso da Prism, de comunicação, que às vezes surpreendem até
tanto para os especialistas responsáveis pelo mesmo quem desenha. Em séries de estudos
tratamento quanto para seus pacientes. E todos duplos-cegos, neurologistas analisaram os dese-
saem ganhando. nhos de pacientes nos quais não haviam sequer
Direção semelhante toma o procedimento PARA SABER MAIS realizado exames fisiológicos. Seus diagnósticos,
adotado pelo neurologista americano Carl Stafs- Paradoxos da percepção. baseados apenas nas analografites, coincidiram
trom, da Universidade de Wisconsin em Madison. Vilayanur S.Ramachandran e em grande parte com aqueles de colegas que,
Diane Rogers- Ramachandran.
Ele pediu a seus jovens pacientes, com idade entre Especial Mente&Cérebro no
para o mesmo fim, utilizaram recursos técnicos
4 e 19 anos, que desenhassem suas dores de 16, págs. 16-19. sofisticados. Ambos os procedimentos chegaram
cabeça, fazendo-lhes perguntas parecidas com as A fisiologia da percepção. ao mesmo diagnóstico de 83% dos pacientes que
Wlater J. Freeman. Especial
que sugeri neste texto, no segundo experimento: Mente&Cérebro no 3, págs.
não sofriam de enxaqueca, e em 93,1% dos casos
onde está a dor? Como é senti-la? 30-39. de enxaqueca. e
m c
43
Meditação
para combater a
ansiedade
A prática tem ensinado muitas pessoas a prestar mais atenção
às emoções e ao próprio corpo e a lidar de forma mais
saudável com o estresse; estudos mostram sua eficácia no
controle de patologias como depressão, pânico e ansiedade
C
riada na Índia há mais de 3 mil anos, a me-
ditação sempre existiu tanto nas principais
religiões quanto nas organizações seculares.
Mais recentemente, a prática baseada na
autorregulação tem atraído a atenção de pes-
quisadores e sido utilizada como aliada eficaz no tratamento
de estresse, depressão, síndrome do pânico e transtorno de
ansiedade. Nos estudos médicos, dois aspectos são mais
frequentemente analisados: a concentração (representada
aqui pela meditação transcendental, MT, e técnicas de rela-
xamento) e a chamada mindfulness (sem tradução exata no
© michelangelo gratton/shutterstock
45
T E R A P I A
é o mais utilizado em estudos sobre meditação meditação os níveis de lactato declinam significa-
Estudos
devido à sua abordagem bem definida, sistemá- tivamente, o que provavelmente está relacionado
tica e centrada no paciente. Há duas décadas o mostraram à concomitante redução da pressão sanguínea e
cientista também utiliza o programa de redução melhoras clínicas da necessidade de medicação hipertensiva.
do estresse com base em técnicas de meditação imediatas dos A meditação tem sido associada também a
em ambientes hospitalares. quedas drásticas nos níveis de alerta e excitação,
A meditação transcendental envolve o ato sintomas e o que ajuda a controlar o estresse e a ansiedade.
de voltar toda a atenção para algo específico. É depois de três Além disso, os praticantes parecem dispor de um
preciso esforçar-se constantemente para que a anos, aqueles sistema de recuperação autonômica do estresse
concentração fique restrita e a mente não diva- mais rápido que os não praticantes.
gue. O objeto escolhido pode ser uma imagem,
que persistiram Há várias confirmações de que a meditação,
um mantra, uma emoção, a própria respiração ou na prática especialmente a MBSR, reduz sintomas de pa-
partes do corpo. Já durante no estilo mindfulness conseguiram tologias crônicas e recorrentes como a síndrome
o praticante exercita a “observação desapegada”: do pânico e do transtorno de ansiedade genera-
inicialmente focaliza a atenção na própria respira-
manter os lizada (TAG). Sessões em grupo do programa
ção até que esteja estabilizada. Desse ponto em benefícios MBSR têm ensinado as pessoas a cuidar melhor
diante, a pessoa é capaz de observar quaisquer de si e a viver de forma mais saudável. Nos
eventos físicos ou mentais que possam surgir no últimos anos, foi desenvolvida uma abordagem
campo da consciência. Esses eventos mudam terapêutica que integra técnicas de meditação e
de um momento para o outro e são observados terapia cognitivo-comportamental, voltada para
com curiosidade – e nunca julgados ou avaliados. pacientes com ansiedade crônica e depressão
Essa maneira de estar presente e perceber o – em especial aqueles que não querem fazer uso
ambiente e a si mesmo ajuda o indivíduo a lidar de medicamentos controlados, gestantes ou que
com estresse, dor e doenças. desejam um tratamento adicional.
Um número cada vez maior de estudos
mostra isso. O pesquisador Scott Bishop, da PENSAR MELHOR
Universidade de Toronto, no Canadá, por exem- Geralmente, são prescritos ansiolíticos aos
plo, sugere que mindfulness, que frequentemente pacientes com doenças crônicas e recorrentes
é, por si só, o próprio objetivo da meditação, relacionadas à ansiedade. A combinação de
abarca dois componentes: o primeiro é a au- farmacoterapia e outras abordagens, como a
torregulação da atenção (que envolve inibição psicoterapia, favorece as chances de recupera-
do processo de elaboração); e o segundo é a ção. A meditação surge então como uma opção
possibilidade de vivenciar a experiência com complementar, de baixo custo, que favorece o
curiosidade, abertura e aceitação. tratamento. Além disso, reforça a autonomia
Embora os mecanismos fisiológicos por meio JULIA ROBERTS em cena do do paciente. Por isso mesmo a mindfulness é o
dos quais a meditação atua ainda não sejam filme Comer, rezar, amar sistema de meditação mais usado em pesquisas:
completamente claros para a ciência, é reconhe-
cido o fato de que a prática produz a redução
generalizada de diversos sistemas fisiológicos,
promovendo um estado profundo de relaxa-
mento. Alguns autores ressaltam que, durante a
meditação, ocorre um estado de funcionamento
fisiológico único: consumo de oxigênio reduzido,
resistência basal da pele aumentada, frequência
cardíaca reduzida e aumento da densidade e am-
plitude de ondas cerebrais alfa. Vários trabalhos
apontam para o rebaixamento do lactato sanguí-
neo, um marcador bioquímico de relaxamento.
Níveis elevados da substância no organismo
divulgação
A PRÁTICA MOSTRA-SE
EFICAZ NO TRATAMENTO
de pacientes que não podem
fazer uso de medicamentos,
como as gestantes
© aldo murillo/istockphoto
Respiração e ritmo influenciam Sul, investigou os efeitos da meditação mindful-
estados de humor ness em 46 pessoas diagnosticadas com transtor-
no de ansiedade generalizada e pânico, algumas
Entre as várias técnicas da ioga, os estimular o sistema parassimpático. das quais sofriam de agorafobia. Os participan-
exercícios respiratórios (Pránayáma) Com a prática dos exercícios tes foram divididos em dois grupos, sendo um
parecem ser os que exercem maior propostos pela ioga, os
deles submetido à redução de estresse baseado
influência nos estados de humor, quimiorreceptores sensíveis à
em mindfulness e o outro, ao programa de edu-
justamente pela notória relação elevação de CO2, localizados no
das emoções com a respiração. centro respiratório do cérebro cação em ansiedade. Comparado ao grupo de
A regulação respiratória depende (no tronco cerebral), começam a educação, o grupo que praticou meditação mos-
de uma série de mecanismos responder menos a esse aumento trou melhoras significativas em todas as escalas
involuntários, podendo ser realizada durante a expiração, de modo que que mensuram ansiedade. Esses e tantos outros
sem a interferência do controle o indivíduo consegue expirar mais estudos presentes na literatura evidenciam os
voluntário. Assim, as características prolongadamente, reduzindo a efeitos dessa prática nos níveis de ansiedade
da respiração se ajustam de acordo frequência cardíaca. As técnicas
de pacientes ansiosos e sujeitos normais. No
com as emoções. Entretanto, é têm como finalidade prolongar a
possível alterar voluntariamente seu expiração e valorizar a retenção
entanto, algumas dessas pesquisas apresentam
ritmo, frequência e profundidade. de ar. Esse princípio conduz a um falhas metodológicas e experimentais, sendo
As técnicas respiratórias orientam treinamento tão forte do SNA que necessária a constante replicação desses resul-
justamente esse controle ocorre um aumento das variações da tados e formulação de novos experimentos. Es-
voluntário, exercendo influência frequência cardíaca, mesmo quando tudo de 2008, realizado pela pesquisadora Susan
em mecanismos involuntários que o indivíduo não está praticando, pois Evans, na Universidade Médica Weill Cornell,
regulam a respiração e o sistema o padrão respiratório involuntário em Nova York, obteve resultados semelhantes
cardiovascular, podendo modular é profundamente alterado. Essas
com pacientes que sofriam de transtorno de
a interação entre sistema nervoso pesquisas talvez expliquem por que
simpático e parassimpático e, os praticantes de ioga são menos ansiedade generalizada.
consequentemente, o eixo HPA. propensos a desenvolver transtornos Há algumas décadas, pesquisadores vêm
Esses exercícios ativam o sistema de ansiedade e de humor e apontando a ligação entre meditação e a te-
nervoso autônomo com a finalidade respondem melhor às alterações rapia cognitivo-comportamental. Em 2002,
de inibir o sistema simpático e emocionais negativas. a Associação de Terapia Comportamental e
48 l mentecérebro l Novembro 2010
Cognitiva (então Associação para o Progresso ÁREAS ATIVADAS DURANTE A MEDITAÇÃO
da Terapia Comportamental) publicou uma
edição especial dedicada à integração da filo- Giro pós-central
Giro pré-central
sofia budista a essa abordagem psicoterápica.
Os autores argumentam que interpretações Córtice pré-frontal Córtice parietal
budistas para o sofrimento estão intimamente
relacionadas a deduções embasadas no conhe-
cimento a respeito do “eu”. A ideia de carma,
por exemplo, estaria “refletida” nas técnicas da
terapia cognitivo-comportamental que enfati-
zam comportamentos positivos e não prejudi-
ciais como terapêuticos. Eles indicam ainda que Lobo temporal
49
Antes das
palavras discussões sobre os processos mentais que levam uma
criança a aprender rapidamente a língua materna
dividem cientistas: alguns acreditam que essa
capacidade é inata, outros afirmam que é determinada
por relacionamentos sociais e influências culturais
A
// por Annette Lessmöllmann pediatra Ghislaine Dehaene-Lambertz, do
Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Mé-
dica da França, demonstrou, há alguns anos,
que bebês de 3 meses já reconhecem frases
simples e reagem a elas. Mesmo sem matu-
ridade para a fala, regiões cerebrais semelhantes às dos
adultos para o processamento da linguagem são ativadas
nessas situações. A conclusão da pesquisadora reforça o
que parece, a princípio, comprovar algo que muitos estu-
diosos defendem: o cérebro de crianças bem pequenas
já estaria programado para o futuro desenvolvimento da
linguagem. Podemos pensar, portanto, que não basta
compreender a forma como um bebê
age para apreender processos
complexos como a aquisição
da fala, é preciso considerar
outros aspectos.
O linguista americano
Noam Chomsky foi um dos
primeiros a discordar, no fim
editora record/divulgação
DESAFIANDO O BEHAVIORISMO,
predominante no meio científico nos
anos 50 nos Estados Unidos, o pesquisador
A AUTORA americano Noam Chomsky incluiu o estudo da
É linguista e jornalista. linguagem na área da psicologia
da década de 50, do que propunha o behaviorismo (do in- behaviorismo, Burrhus Frederic Skinner (1904-1990), postu-
glês behavior, comportamento). Segundo essa abordagem, la que a linguagem só poderia ser estudada como sistema
para entender o funcionamento mental era necessário de reação a estímulos. Chomsky, por sua vez, sugeriu que
© joseph mcnally/the image bank/getty images
concentrar-se totalmente no comportamento manifesto, a caixa-preta fosse aberta. Sua resenha da obra de Skinner,
ou seja, nas reações apresentadas quando a pessoa era publicada na revista Language em 1959, impulsionou o
exposta a certos estímulos vindos do ambiente. A mente surgimento de uma nova linha de pesquisa. A ordem era
seria uma “caixa-preta”, o que tornaria impossível compre- recorrer a métodos psicológicos para reconhecer o funcio-
ender os processos ocorridos ali secretamente. namento mental. Assim, Chomsky, professor de linguística
Essa forma de pensar dominava, na época, extensa desde 1961 do Instituto de Tecnologia de Massachusetts
parte das pesquisas psicológicas nos Estados Unidos. Em (MIT), incluiu o estudo da linguagem na área da psicologia.
seu livro Verbal behavior (Comportamento verbal, lançado no A pergunta de real interesse, segundo ele, seria: “De que
Brasil em 1959, pela Cultrix), o principal representante do forma a língua é processada pelo cérebro?”.
51
D E S E N V O LV I M E N T O I N FA N T I L
Como poderia ser possível que uma crian- sobre a aquisição da linguagem. Em resumo,
ça aprendesse alemão, suaíli ou filipino em ela transformou completamente grande parte
poucos meses, apenas por simples reação da linguística, a ponto de muitos linguistas se
a estímulos, sem que seus pais tivessem de considerarem mais cientistas naturais do que
despender grande esforço dando-lhe aulas cientistas humanos, uma vez que se propõem
de gramática? A suposição de Chomsky é a descrever o aparelho fonador e seu funciona-
de que, por trás de tal desempenho haveria mento com o auxílio de modelos matemáticos
uma espécie de processador, um “órgão da e algoritmos. Além disso, linguistas que usam
linguagem”, que utilizaria regras como um estritamente os preceitos de Chomsky não tra-
programa de computador, ajudando a formar tam da fala e da comunicação. Eles estudam a
frases concretas. competência, o conhecimento linguístico fun-
damental, ou seja, um objeto abstrato, que
CHAVE NEURAL se encontra guardado nas profundezas
Assim que compreende, inconscientemente, da caixa-preta.
que as orações em alemão sempre precisam O psicólogo Michael Tomasello,
de sujeito, a criança alemã é capaz de cons- porém, defende uma visão com-
truir corretamente infinitas frases como: pletamente diferente. Diretor do
Ich aß süß (“Eu comi doce”). Já a brasileira Instituto Max Planck de Antropologia
aprende rapidamente que não há problema Evolucionária em Leipzig e codiretor
em deixar o sujeito “eu” de fora: “Comi doce”. do Centro de Pesquisa de Primatas
Hoje estamos acostumados à ideia de que em Göttingen, ambos na Alemanha,
o cérebro processa informações de forma ele estuda homens e macacos. Com base
semelhante a um computador e trabalha sob na comparação entre as diferentes espécies,
determinadas normas. No final dos anos 50, Tomasello desenvolveu uma teoria sobre a
essa visão era revolucionária. E Chomsky aquisição da linguagem pelos humanos que
ainda acrescentou que muitas dessas regras parte de princípios bastante diversos dos
seriam inatas: ao nascer, todo ser humano já de Chomsky. Em vez de pesquisar na mente
disporia de conhecimento gramatical abstra- humana a competência linguística inata que
to. De fato, Chomsky e colegas elaboraram nos diferencia de todos os outros seres, ele
mais tarde uma teoria que explicava essa estuda o uso da língua – sua performance, tão
questão do sujeito na frase: tanto a criança negligenciada por Chomsky. No desempenho
alemã quanto a brasileira já “saberiam” desde da língua, poderia ser encontrado o porquê de
o nascimento que existe algo como a posição nossa espécie ser tão talentosa para línguas
do sujeito. Haveria, então, uma espécie de – e a explicação sobre como toda criança
“chave neural comutadora” movida para a aprende a língua materna com tanta rapidez
posição “sujeito-necessário” ou “sujeito- e segurança. Segundo Tomasello, o que nos
possível”. E esse dispositivo seria inato. Com distingue dos animais nesse quesito é nossa
esse modelo, Chomsky conseguiu explicar capacidade de nos colocar no lugar do outro e
instituto max planck de antropologia evolucionária/divulgação
por que as crianças aprendem a língua ma- compreender intenções e sentimentos alheios.
terna tão depressa; segundo suas suposições, Desse modo, nos relacionamos de forma
o processo de direcionar um mecanismo
Para Chomsky, comunicativa: “lemos” a mente do outro e
preexistente para um ou outro lado ocorreria nascemos com interpretamos seus desejos.
rapidamente. um “órgão da É exatamente isso que motiva uma criança
Como nos adultos a chave já está em de- a decifrar os sons estranhos que saem da boca
terminada posição – ou seja, os parâmetros
linguagem”; da mãe e do pai: “O que eles querem me di-
da língua estão fixos – é mais difícil para eles já Tomasello zer? E o que eu posso fazer para que eles me
compreender as regras de uma língua estran- prioriza a compreendam?”. Tomasello não contesta o
geira, enquanto para os pequenos esse pro- capacidade fato de que deve haver uma estrutura básica
cesso parece bastante “natural”. A linguística biológica para que se possa lidar com a lingua-
de Chomsky, a chamada “gramática gerativa”, empática na gem. Segundo ele, no entanto, a força motriz
pode ser considerada também uma teoria aquisição da fala durante o aprendizado de uma língua – e sua
52 l mentecérebro l Novembro 2010
Língua materna
Para Chomsky as crianças têm um “órgão
da linguagem”, enquanto na opinião do
linguista de Leipzig Michael Tomasello o
que nos permite falar é o constante exer-
cício de nos colocar no lugar do outro,
compreendê-lo e interpretar seus desejos.
Já para pesquisadores americanos da área
de psicolinguística, como Jenny Saffran e
Peter Jusczyk, o que conta é o aprendizado
estatístico da língua. Segundo eles, de
início o que o bebê escuta são apenas sons
encadeados; o primeiro passo em direção à
linguagem é isolá-los em palavras e depois
lhes conferir sentidos. Atualmente estão
em curso vários experimentos científicos
© calek/shutterstock
53
54 l mentecérebro l Novembro 2010
N E U R O C I Ê N C I A
O quantum
da consciência
Um dos objetivos da nova física quântica é desvendar
o funcionamento da consciência; pesquisadores dessa
área compreendem como um acontecimento, resultado
da dinâmica de interações entre o indivíduo e o mundo
A
consciência é um fato. Qualquer coisa que ve-
mos, sentimos ou fazemos provoca um efeito
indefinido, do qual não podemos fugir. Não
por acaso, no início do século 20 o psicólogo
americano William James dizia que consciência é
aquilo que começa quando acordamos e se interrompe quan-
do adormecemos. Porém, se tentamos defini-la de forma mais
precisa, começam os problemas. “Não existe acordo em rela-
ção a uma descrição, embora muitos concordem que tenha a
ver com as experiências subjetivas: preocupações, sensações,
observações”, afirma a psicóloga britânica Susan Blackmore,
que recentemente revisou todas as teorias propostas sobre o
tema. Muitos especialistas concordam que nada nos autoriza
a pensar que estamos próximos a explicar a consciência como
um conjunto de processos eletroquímicos no tecido cerebral
© colin anderson/photographer’s choice/getty images
REALIDADE FABRICADA
Penrose argumenta que existem dois níveis de
explicação na física: o habitual, clássico, chamado
newtoniano, usado para descrever objetos da
nossa vida cotidiana; e o quântico, utilizado para
as escalas subatômicas, guiado pela equação
de Schrödinger. Nesta dimensão encontram-se
casos em que existem duas possibilidades no
mesmo momento. Ficou famosa uma experiên-
cia mental chamada “o gato de Schrödinger”, na
qual se imagina o animal fechado em uma caixa
onde é colocada uma ampola de veneno ligada
a um complicado mecanismo detonador – o
felino pode, paradoxalmente, estar vivo e morto
no mesmo instante.
Mas quando fazemos uma observação (ou
seja, quando tomamos como ponto de partida
a física clássica), a sobreposição de estados deve
terminar em um dos dois, se considerarmos o
processo conhecido como colapso da função
de onda (ou seja, se abrimos a caixa, o gato está
vivo ou morto).
Físicos como Eugene Wigner sustentaram que
o colapso da função de onda é provocado pela
QUENTE E ÚMIDO
Tudo simples e linear? Não exatamente. A teoria
é altamente especulativa, e por enquanto não
há confirmação experimental. A filósofa e neu-
rocientista canadense Patricia S. Churchland,
professora da Universidade da Califórnia em
San Diego, criticou os argumentos de Penrose.
Ela observa que os microtúbulos existem no
corpo todo, não apenas no cérebro; existem
substâncias que podem prejudicá-los mas não
têm efeito sobre a consciência, e há anestésicos
capazes de “desligar” a consciência sem atuar
sobre os microtúbulos.
O que é teoria quântica? No que se refere à física, a principal objeção
apontada pelo físico Max Tegmark, do Instituto
Esse campo da física fornece atualmente a descrição mais confiável dos fenô- de Tecnologia de Massachusetts, diz respeito ao
menos físicos, em nível atômico e subatômico, no qual podem não ser levados isolamento do ambiente que deveriam ter as es-
em conta os efeitos relativistas. Estruturada no início do século 20, graças
truturas onde acontecem os processos quânticos
à contribuição de cientistas como Max Planck e Werner Heisenberg, Albert
Einstein, Niels Bohr e Erwin Schrödinger, a teoria quântica afirma em primeiro
para que eles mantenham o estado de coerência:
lugar a superação da divisão entre matéria (concebida como um conjunto de parece que essa condição (dificílima de ser repro-
minúsculos corpos localizáveis no espaço e no tempo) e radiação (entendida duzida até em laboratório) não é nem um pouco
como fenômeno contínuo e ondulatório). Seu nome deriva do fato de que a respeitada no cérebro quente e úmido.
energia da radiação eletromagnética pode assumir somente valores múltiplos Mesmo assim o filão quântico segue outros
inteiros de um valor fundamental, chamado “quantum”. Do princípio de in- percursos. O físico teórico Henry Stapp, ex-co-
determinação, do qual resulta impossível afirmar ao mesmo tempo a posição laborador de grandes nomes como Wolfgang
e o quanto uma partícula se movimenta, deriva uma interpretação da proba-
Pauli e Werner Heisenberg, confirma que “a
bilidade das trajetórias das partículas elementares, eliminando o determinis-
mo causal no âmbito microscópico e introduzindo elementos de incerteza
mecânica quântica ortodoxa introduziu na di-
estatística nas equações. Não obstante as múltiplas interpretações teóricas e nâmica algumas escolhas conscientes não de-
filosóficas do formalismo, nos dias atuais a teoria tem aplicações tecnológicas terminadas pelas leis da física conhecidas atual-
e industriais fundamentais. mente, mas com importantes consequências
57
N E U R O C I Ê N C I A
no mundo físico”. Isso é possível com base em Alguns que a intenção consciente do observador apre-
uma interpretação da teoria segundo a qual o sente uma pergunta ao sistema observado, o
conceito clássico de matéria é eliminado.
pesquisadores qual, de acordo com as leis estatísticas, pode
A chamada “interpretação de Copenhague”, acreditam a responder “sim” ou “não” (graças à interrup-
elaborada pelo físico Niels Bohr, provém da memória é ção da função da onda quântica), fornecendo
divisão da natureza em duas partes: uma é o associada aos conhecimento ao observador. A resposta é
sistema de observação que abrange corpos, dada pela natureza e não sofre influência do
cérebros e mentes que preparam os experimen- “estados de indivíduo. Pelo contrário, a causalidade tende
tos, descrito pela linguagem pela física clássica; vazio”, isso pode a anular o esforço consciente.
a outra é formada pelos sistemas observados explicar por Mas a possibilidade de formularmos pergun-
e questionados, descritos pelo formalismo da tas de forma sucessiva nos permite orientar as
mecânica quântica. John von Neumann, outro
que as novas respostas graças ao chamado “efeito quântico”.
grande nome da física do século 20, fala de um lembranças não A “escolha consciente” atua sobre o cérebro, que
processo contínuo constituído por infinitas comportam o por sua vez produz o comportamento manifes-
possibilidades quânticas em nível subatômico to na realidade física. No interior da interação
(os estados sobrepostos) e um processo de
cancelamento de quântica, as leis da física conectam a escolha
“investigação” da nossa parte (chamado “pro- rastros mnésicos consciente com os efeitos físicos. Assim, a mente
cesso 1”), que aponta em determinados obje- é considerada um primum ontológico capaz de
tos ou acontecimentos macroscópicos o que ação, em coerência com a física quântica, mas
a matemática descreve como um continuum. fora dela. Graças ao “esforço consciente” o ob-
No dualismo de interação de Stapp, Schwartz e servador consegue influenciar de forma peculiar
Beauregard, a posição cartesiana que diferencia o sistema observado
mente imaterial e cérebro físico se traduz na
afirmação de que a consciência é um fenômeno TEORIA DOS CAMPOS
real, enquanto nas outras entidades físicas se “Retomando de forma diferente a leitura da me-
reconhece apenas a descrição segundo as leis cânica quântica de Copenhague, todos esses mo-
expressas em forma matemática. Consideran- delos baseiam suas suposições no fato de que a
do que o “processo 1” é fundamental para o própria consciência se coloca acima da realidade
surgimento do mundo tal como o conhecemos observada e a determina. Dessa maneira escapa
e que este processo não é especificado pelas à verificação experimental”, diz a doutora em
leis da mecânica quântica, parece necessário psicologia cognitiva Antonella Vannini. O físico
aventar outras possibilidades. Pode-se afirmar Giuseppe Vitiello, professor da Universidade
A consciência saltitante
Coelho ou pato? Vasos ou rostos femininos? São as já familiares figuras
“biestáveis”, diante das quais damos um “salto de imagem”, passando
de uma à outra, uma vez que nosso cérebro não tem condições de per-
ceber as duas versões ao mesmo tempo. A mesma coisa acontece com
a “rivalidade binocular”, quando um objeto diferente é submetido a cada
olho. Os saltos observados e estudados com ressonância magnética
funcional (fMRI) levaram Efstratios Manousakis, professor da Universi-
dade do Estado da Flórida, a fazer uma conexão com o comportamento
quântico das partículas. Segundo ele, existem dois estados cerebrais
diferentes: a consciência “potencial” e a “real”. A primeira, o estado no
qual o cérebro recebe ambas as imagens simultaneamente, é repre-
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59
60 l mentecérebro l Novembro 2010
N E U R O P A T O L O G I A
O portal da
dor
Um transtorno raro, em alguns casos hereditário, inspira
novas pesquisas sobre como o cérebro recebe e processa
os estímulos dolorosos; a resposta para diminuir o
desconforto de milhões de pessoas pode estar no controle
do funcionamento dos canais receptores de sódio
D
urante a maior parte dos 140 anos desde
// por David Dobbs
que passou a ser chamada de “síndrome do
homem em chamas”, a eritromelalgia (que
significa “doença das extremidades vermelhas
dolorosas”) manteve-se na quase total obs-
curidade. Mesmo hoje, sabe-se que o distúrbio afeta alguns
milhares de pessoas no mundo inteiro, mas faltam dados
mais precisos. O transtorno causa intenso calor nos pés e nas
pernas e, às vezes, nas mãos, em geral sem que os pacientes
saibam o que desencadeia o sintoma. E a maioria dos que
sofrem desse tormento até há bem pouco tempo imaginava
que estava inteiramente só.
A americana Pam Costa, de 45 anos, viveu a primeira
década de sua vida dessa maneira. Ela é uma das 30 ou 40
pessoas nos Estados Unidos, e possivelmente está entre as
aproximadamente 500 no mundo, inteiro que têm comprova-
mulher nua sentada com o braço direito dobrado e levantado,
a menina estava na 5a série, mas caminhar até pesquisadores de dor da Escola de Medicina da
a escola inflamava suas pernas, e suas mãos Universidade Yale, apoiando-se na descoberta fei-
doíam demais quando segurava a caneta. A ta por uma equipe de pesquisadores de Pequim
carta dos pesquisadores lançou um pouco de acerca de uma mutação genética relacionada à
luz sobre a situação. A universidade estava eritromelalgia hereditária, não apenas confirmou
montando a árvore genealógica de uma família a base genética, mas também o que parecia ser o
que tinha vários membros com algo chamado mecanismo fisiológico fundamental da EM. Um
eritromelalgia, ou EM, um transtorno bem pouco canal de sódio defeituoso nos neurônios senso-
conhecido que, no caso dessa família, parecia ser res de dor das pernas e braços – uma espécie de
hereditário. Aparentemente, a genealogia incluía porta, através da qual os sinais dolorosos são
Pam e sua mãe. enviados ao cérebro, rápida demais para abrir e
“Aquela carta foi uma coisa monumental lenta demais para fechar. Quando essa passagem
em minha vida. Não que tivesse feito sumir o estava aberta, a dor “saía em disparada como
problema. Mas comecei a lutar contra ele como fogo”. Mas a pesquisa sugeria que era uma
algo fora de mim”, lembra Pam. Com a ajuda porta que algum dia poderia ser fechada.
de uma professora da 6a série, Sally Jackson (a
primeira a perceber que a garota tirava ótimas UM BOM MERGULHO
notas quando o clima estava frio), ela começou O titular de neurologia em Yale, Stephen Wax-
a enfrentar a doença. A menina levava pacotes man, chefe do laboratório que publicou o artigo
de gelo para a escola, conseguiu ser liberada da sobre o canal de sódio, gosta de um pouco de
educação física para ler, aprendeu a reconhecer história. Quando o trabalho de Pequim chamou
o que podia e não podia fazer e descobriu que sua atenção para a eritromelalgia, aproveitou a
conseguiria se sair bem nas provas. Fez a oportunidade para mergulhar nos arquivos do
graduação e depois a pós-graduação, obtendo homem que foi o primeiro a dar um nome à
um doutorado em psicologia. Casou-se, abriu doença, Silas Weir Mitchell. Embora atenda um
uma clínica, começou a lecionar e, há oito anos, grupo variado de pacientes, ele nunca tinha visto
adotou uma filha. Ao nomear seu sofrimento, a alguém com EM.
carta circunscreveu sua patologia, tornou-a finita. Filho de um médico rico de Filadélfia, Mit-
imagem de silas weir mitchell: biblioteca nacional de medicina, bethesda; imagem de stephen waxman: bill fitz-patrick
E o que é finito, por maior e mais feio que seja, chell foi um dos neurologistas mais importantes
pode ser encarado. do século 19. A transformação foi atribuída
Pam nunca esperou ter outro lampejo de SILAS WEIR MICHELL foi principalmente à Guerra Civil, durante a qual
compreensão tão poderoso assim. Entretanto, 28 o primeiro a descrever a ele dirigiu um hospital militar de 400 leitos
eritromelalgia, descoberta
anos depois, ele veio – desta vez via um e-mail da quando tratou lesões e
para tratar lesões e doenças neurológicas em
Associação de Eritromelalgia, um grupo de pes- doenças neurológicas em Filadélfia. Ali viu centenas de problemas, e foi o
quisa e de apoio do qual faz parte. Uma equipe de militares durante a Guerra Civil primeiro médico a descrever e definir três dis-
túrbios, ainda hoje misteriosos. O primeiro foi a
eritromelalgia. Os outros dois eram o membro
fantasma, a sensação de reter a parte amputada
do corpo, e a causalgia, uma queimação que se
instala perto do local de um ferimento que já
parece ter sido curado.
Essas duas últimas patologias resultam ex-
clusivamente de trauma; a eritromelalgia, não.
biblioteca do congresso, washington d. c.
subsequentes confirmaram que os canais de periféricas, o mau funcionamento das células nociceptoras envia sinais de dor
sódio (juntamente com os de cálcio, potássio mesmo que não haja lesão.
e de outros íons) transmitem sinais em mui-
63
N E U R O P A T O L O G I A
ferramentas de observação e manipulação que doença.” Pam tinha praticamente dobrado as me-
os ajudariam a respondê-la. Agora, eles pode-
Até poucos anos, dicações de dor nos últimos cinco anos e agora
riam examinar os vários canais de sódio de um pessoas com a estava tomando cerca de oito a dez analgésicos
axônio superexcitado e ver quais genes estavam doença eram por dia, outros oito anti-inflamatórios, além de
se comportando de maneira estranha – produ- 90 miligramas de morfina de liberação contínua.
encaminhadas a
zindo proteínas (e, portanto, disparando uma E ela ainda acordava algumas vezes com tanta
atividade) quando deveriam estar dormentes, dematologistas, dor que o marido precisava lhe dar uma injeção
ou estavam dormentes quando deveriam estar hematologistas, extra de morfina.
atarefados. Durante anos eles e outros cientistas cardiologistas, Um dia, conversando com Pam, ela me con-
estreitaram o campo de pesquisa. Para Waxman e tou: “Tenho um primo, Jacob, que quando estava
seus auxiliares do laboratório (bem como alguns reumatologistas com 2 anos, tinha tanta dor que começaram a
pesquisadores de outros lugares), os resultados e vários outros lhe dar morfina. No começo, acharam que sofria
implicavam cada vez mais o sétimo dos nove especialistas, de autismo, pois parecia não conseguir aprender
canais, o Nav1.7. Eles o chamaram de Um-Sete. nada nem se relacionar com ninguém, mas um
E ficaram bons na criação de Um-Setes hipe-
exceto reumatologista que o examinou disse que o
rexcitáveis. Mas não conseguiam encontrar uma neurologistas menino estava com tanta dor que simplesmente
maneira de bloquear sua atividade nos sistemas não conseguia assimilar nada. Vi Jacob há vários
completos de dor, o que significava que não po- meses, quando estava com 3 anos. Ele ainda
diam saber o que aconteceria se essa estrutura não estava andando”, contou Pam. A mãe de
estivesse ausente. Outra maneira de confirmar Jacob desapareceu, provavelmente dependente
seu papel seria identificar o gene responsável de opiato. Dor demais. A avó cometeu o suicídio
pelo comportamento estranho. Infelizmente, por causa da dor. O garoto está sendo criado pela
um neurônio lesionado reage alternando os bisavó, de 80 anos.
interruptores em centenas de genes, disparando- Uma das muitas singularidades desta histó-
os para produzir proteínas que enviam sinais na ria é que, embora Stephen Waxman soubesse
tentativa de recuperar a função prejudicada. Os sobre a eritromelalgia e até que tinha uma
pesquisadores enfrentavam uma situação de forma hereditária, ele não conhecia o estudo da
agulha em palheiro. Universidade do Alabama e, portanto, não sabia
“Precisávamos de uma alteração genética no nada sobre a família de Pam. Nem ninguém do
canal de sódio – supostamente do Um-Sete – que seu laboratório, nem os muitos colegas a quem
soubéssemos que estava isolada. Em resumo, perguntou sobre neuropatias familiares. Isso
precisávamos de uma mutação”, diz Waxman. pode parecer um pouco estranho – e de fato é.
a single sodium channel mutation produces hyper-or hypoexcitability in different types of neurons”,
de anthony m . rush, sulayman d. dib-hajj, shujun liu, theodore r. cummins, joel a. black e stephen g.
waxman, in: proceedings of the national academy of science u.s.a., vol. 103, no 2; 23 de maio de 2006
“Ou seja, precisávamos de uma família com a Reflete a obscuridade que a eritromelalgia mante-
MILIVOLTS
65
caso clínico
comentários de sua mulher pareciam animado- ais episódicas, nem muito frequentes, nem muito
res: “Ele recomeçou a sair no fim de semana, a raras. Enfim, já não somos tão jovens. Mas, veja,
andar de bicicleta; nos dias útetis faz compras, o problema é que ele...”.
faz seu joguinho na loteria e até adquiriu um O neurologista espera a continuação. Ela ter-
novo computador”. mina por contar: em alguns meses, C. tornou-se
68 l mentecérebro l Novembro 2010
69
caso clínico
obcecado por sexo. A mulher tinha dificuldade Enfim, ela cancela a assinatura da internet.
A patologia,
para acompanhar o seu ritmo incontrolável, Isso equivale a recuar para melhor saltar. C. co-
incansável e perpetuamente insatisfeito na que causa meça então a apostar em seu local de trabalho.
cama. “Não é que seja desagradável, mas pode enrijecimento Pego em flagrante, é advertido formalmente, com
acontecer que, um dia, eu já não baste para seu muscular, ameaça de demissão. O paciente se desespera,
apetite”, preocupa-se. mas não pode fazer nada. “É mais forte do que
lentidão nos eu, não consigo resistir, tenho de jogar. Sei muito
DESCIDA AO INFERNO gestos e no bem que vou perder meu emprego.”
Jogo compulsivo e hiperatividade sexual: eis andar e tremor Mas o que dizer de seus desejos sexuais?
um caso que difere bastante dos prognósticos Esses arrebatamentos incontroláveis que o
iniciais. O neurologista retomou o histórico e
característico, assaltam contrastam com seu temperamento
notou que C. começou com os jogos de azar resulta de uma habitual, contido em todas as circunstâncias.
em uma tabacaria. Os fregueses costumeiros degeneração O neurologista compreendeu. O medicamento
viram-no certo dia sair, raspar sua cartela e en- prescrito alivia os sintomas do Parkinson, porém,
trar de novo, para comprar outra. Depois uma
dos neurônios em certos casos raros, tem consequências inde-
terceira e uma quarta vez. C. é perseverante. que fabricam um sejáveis como a hiperatividade sexual ou a com-
Hoje, a tabacaria não é mais suficiente. neurotransmissor pulsão pelo jogo. Mas na época em que C. veio
Agora ele joga pela internet. Raspadinhas essencial consultá-lo, esses efeitos secundários ainda não
virtuais, pôquer, loterias, gamão, roleta... estavam comprovados. Portanto, ele participou,
Os sites são ilegais, mas pouco importa. A contra a sua vontade, da pesquisa médica.
necessidade de jogar é mais forte. Tão forte A doença de Parkinson, que causa enrijeci-
que as perdas financeiras se acumulam. C. mentos musculares, lentidão nos gestos e no
consegue um empréstimo sem informar Sylvie andar e, muitas vezes, tremor característico,
disso. A mulher, alertada pelo banco, percebe resulta de uma degeneração dos neurônios que
que as dívidas são colossais. O casal vende o fabricam um neurotransmissor essencial do cé-
automóvel e a casa para pagá-las e instala-se rebro, a dopamina. A substância está implicada
em um pequeno apartamento. na transmissão dos sinais nervosos nos circuitos
EM BUSCA DE SENSAÇÕES
Córtex motor
dependendo do estágio da doença, o agonista minha idade, o senhor compreende... Veja bem,
dopaminérgico pode contribuir para o restabe- até certo ponto eu fico um pouco decepcionada,
lecimento de circuitos cerebrais de controle dos isso talvez fosse divertido...” e
m c
71
neuro
circuito
AFETO
Vínculo com a
mãe influi nas
escolhas e
no humor
Pesquisadores acreditam que
toque feminino traz segurança
e nos torna mais propensos a
viver novas experiências
um beijo no bebê anne, pastel sobre papel, mary cassat, c. 1897, coleção particular
voz é suficiente para mudar o humor primárias, inspirando a mesma atitu- “estressaram” um grupo de meni-
das pessoas, afetando até a tomada de observada em crianças pequenas nas entre 7 a 12 anos com exercícios
de decisões. A conclusão do estudo com mães que as apoiam”, explica o de matemática e oratória. Logo de-
desenvolvido na Universidade de autor principal do estudo. pois, reuniram algumas com suas
Colúmbia pelo adminstrador Jona- Para confirmar que um toque de mães e às outras ofereceram apenas
than Levav, professor de administra- uma mulher remete a sentimentos uma ligação telefônica. As garotas
ção, foi publicada na Psychological de segurança, os pesquisadores que apenas falaram com as mães li-
Science. Um grupo de estudantes de pediram a outro grupo para tomar beraram tanta ocitocina, o hormônio
administração de empresas teve de decisões financeiras após um exer- dos vínculos sociais, quanto as que
escolher entre apostas seguras – tí- cício no qual metade deles escreveu puderam abraçá-las. Os dois grupos
tulos com 4% de retorno anual – e sobre uma época em que se sentiam tiveram níveis igualmente baixos de
jogos arriscados, como investimen- seguros e apoiados, enquanto a outra cortisol, o hormônio do estresse,
tos na bolsa, por exemplo. Na meta- parte abordou justamente o oposto. o que pode explicar por que tantas
de dos casos, os pesquisadores toca- Evocar uma sensação de insegurança pessoas ligam para a mãe quando
vam levemente no ombro dos volun- deixou os voluntários do segundo estão tristes. ■
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SENTIDOS
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cores associadas ao prazer
PATOLOGIA
73
neuro
circuito
MOTIVAÇÃO
pesquisadores classificaram os estu- aproveitamento como “vença” e “seja quando uma tarefa é apresentada
dantes com habilidades semelhantes, o máximo”. Nos testes seguintes de como “divertida”, é fundamental para
distribuindo-os em categorias como aptidão, como caça-palavras, as crian- a melhora da motivação e, consequen-
dedicados ao sucesso ou interessados ças interessadas no sucesso se saí- temente, para o seu desempenho. Por
em diversão. Depois, fizeram com ram melhor que as outras. O estudo isso, educadores e pais, devem ser
que olhassem na tela do computador confirmou o que já se sabia, porém, cuidadosos ao rotular atividades. ■
NEUROCIÊNCIA
PRAZER
derando que a capacidade de apreciar grupo recebeu um pedaço de chocola- segundos contra 45 segundos). Esses
as experiências prediz o nível de feli- te após ter visto a fotografia do dinhei- resultados mostram que pensar em
cidade, o psicólogo Jordi Quoidbach ro e o outro depois de ter observado dinheiro pode tirar o prazer. Em ou-
e seus colegas da Universidade de a imagem borrada. Depois os pesqui- tras palavras, apesar de o dinheiro ser
Liège, na Bélgica, dividiram aleato- sadores cronometraram o tempo que um canal para o acesso a experiências
riamente 374 adultos, com perfis e cada um levou para saborear o doce. prazerosas, ele “rouba” a capacidade
atividade profissional variados, em As mulheres apreciaram a guloseima de apreciar as coisas simples. ■
75
neuro
circuito
NEUROECONOMIA
© dmitriy shironosov/shutterstock
acabam invariavelmente ultrapassando o
limite do cartão de crédito? Alguns colo-
cam a culpa desses excessos na inflação
ou nas altas de taxa de juros. Porém, re-
centemente, pesquisadores encontraram
mais um “culpado” para acrescentar a
essa lista: um gene associado à com-
CONTROLE DA IMPULSIVIDADE é menor em pessoas com baixo nível de monoamina oxidase
pulsão por gastos. Estudos anteriores já
haviam mostrado que a genética desem-
penha papel importante na forma como administramos Algumas pesquisas haviam associado versões de bai-
nossas finanças. Mas o estudo é o primeiro a mostrar xa eficiência desse gene à impulsividade. O novo estudo
que um gene específico pode ser o responsável por afetar mostrou que pessoas com uma “versão de baixa eficiên-
o comportamento financeiro de algumas pessoas. Ob- cia” de MAO-A tinham dívidas no cartão de crédito com
viamente a relação não é tão direta, mas está ligada ao frequência 7,8% maior que aqueles com duas versões
controle da impulsividade. Pesquisadores da Universida- maiores do gene. Isso pode ser observado mesmo quan-
de da Califórnia em San Diego e da Escola de Economia do fatores como condições socioeconômicas e escola-
de Londres, analisaram dados genéticos e questionários ridade foram levados em consideração. Em voluntários
preenchidos por mais de 2 mil jovens entre 18 e 26 anos com duas “versões baixas do gene”, esse número saltava
que integraram o Estudo Longitudinal Nacional da Saúde para 15,9 %. Os pesquisadores se surpreenderam com
do Adolescente. Com esses relatórios os pesquisadores essa diferença. “O efeito é quase tão grande quanto o
pretendiam saber se esses jovens tinham dívidas acumu- analfabetismo financeiro que traduz a incapacidade hu-
ladas e qual era o papel do gene de monoamina oxidase mana de digerir informações financeiras complexas”,
(MAO-A, na sigla em inglês), enzima que quebra os neu- observa o pesquisador Jan-Emmanuel de Neve, um dos
rotransmissores do cérebro. autores do estudo. ■
LIDERANÇA
77
l i v r o s
resenha
FREUD ENTRE APOLO E DIONÍSIO – RECORTES
FILOSÓFICOS, RESSONÂNCIAS PSICANALÍTICAS
Zeferino Rocha. Edições Loyola e Universidade Católica de
Pernambuco, 2010. 200 págs., R$ 36,00
Deuses da luz
Obra traz textos recentes de Zeferino Rocha que aproximam saberes da
filosofia e da psicanálise, com a proposta de discutir o sofrimento psíquico
// por Maria Consuêlo Passos
E m tempos de uniões instáveis e raras “sintonias pensamento, quanto desvelar sua complexidade, sobre-
finas”, Freud entre Apolo e Dionísio – Recortes filosó- tudo quando se trata da dimensão intrapsíquica, objeto
ficos, ressonâncias psicanalíticas, de Zeferino Rocha, é um da psicanálise. Preocupado não só com o conteúdo, mas
verdadeiro alento. O livro propõe um exercício refinado também com a forma e com o processo de criação, o autor
de enlaçamentos que expressam harmonias, tensões e apresenta, em cada ensaio, uma introdução, os objetivos
saídas, próprias a qualquer relação. Bem formado tanto do texto, os caminhos trilhados, sem perder de vista a
em psicanálise como em filosofia, o autor cria uma ponte dinâmica de elaboração que incita o leitor a participar do
entre esses dois saberes com admirável desenvoltura. Em debate e a fazer suas próprias reflexões.
certos momentos ele se coloca como Em certo momento do livro, ao se re-
narrador, outras vezes como mediador, O processo de ferir às implicações de figuras mitológicas
mas também como parceiro em um no trabalho de Freud, o autor afirma: “Em
diálogo criativo e tenso, cuja principal criação de uma teoria Apolo, o deus da luz e da razão, inspirava-se
intenção é desvelar pensamentos e pai- é tão importante o seu espírito racionalista, influenciado pela
xões. Tarefa difícil, já que entre ambos quanto o conteúdo Aufklärung (iluminação); de Dionísio ele
as fronteiras são tênues, marcadas por herdou a paixão pelo desconhecido, o que
muitas aproximações e complementari-
que ela engendra; o fez mergulhar nas profundezas da alma
dades, aliás, tratadas no livro. Zeferino isso nos alerta para humana e destacar sua dimensão irracio-
esmiúça as diferentes concepções teóri- a necessidade nal. Esse paradoxo vivo entre o apolíneo e
cas, mostrando o quanto a racionalidade o dionisíaco sustentou a quase impossível
e o arrebatamento vividos por Sigmund
de buscarmos os tarefa que ele se atribuiu de sistematizar
Freud e espelhados nas obras dos seus fundamentos das teoricamente o estatuto metapsicológico
mestres sustentaram a criação de uma nossas concepções do conceito de inconsciente, ousando,
metapsicologia, capaz de revolucionar o desse modo, colocar um pouco do sangue
conhecimento do psiquismo. Trata-se, portanto, de um es- de Apolo nas veias de Dionísio e do sangue de Dionísio
paço fértil no qual fluem, com naturalidade, transferências nas veias de Apolo”.
cruzadas e identificações entre os personagens. Se essa mistura favoreceu a concepção original da
O trabalho é composto por textos recentes que, em psicanálise, poderíamos dizer que é de Zeferino Rocha o
conjunto, oferecem um elogio ao paradoxo, sem que haja mérito de criar uma química por meio da qual ele conse-
nenhuma preocupação de resolvê-los. Ao contrário, a gue mostrar a paixão, a razão e a poesia necessárias para
intenção é tanto ressaltar a importância da formação do tornar viável uma teoria sobre subterfúgios e armadilhas
78 l mentecérebro l Novembro 2010
e revela a preocupação do autor em
manter aceso o debate filosófico e os
desdobramentos necessários à criação
de um conhecimento voltado ao so-
frimento psíquico. Esse fio ressalta o
quanto é fundamental buscar sentidos
da cadeia que origina determinadas
leituras e compreensões do humano,
mas também dos sentidos recriados ao
longo do tempo. Revela-se assim que
o processo de criação de uma teoria é
tão importante quanto o conteúdo que
ela engendra – o que nos alerta para
a necessidade de buscar sempre (e
criteriosamente) os fundamentos das
nossas concepções. Em síntese, po-
deríamos dizer que este trabalho é, da
primeira à última página, atravessado
pela preocupação com as origens das
fundações epistemológicas das ciên-
cias. Preocupação esta inerente aos
pensadores que não se contentam com
interpretações rápidas, tão frequentes
nos dias de hoje.
Os temas abordados indicam o
quanto o autor busca as origens para
se manter antenado com os aconteci-
mentos do nosso tempo. Sensível aos
dilemas psíquicos e às psicopatologias
que acometem o homem contemporâ-
neo, Rocha usa os recursos desse co-
baco/dionísio, óleo sobre tela, nicolas poussin, século xvii, museu
nacional, estocolmo / © the bridgeman art library/keystone
do psiquismo. Neste sentido, é preciso reconhecer que há nhecimento fronteiriço, entre a filosofia e a psicanálise, para
uma boa dose desse “sangue” nas veias do autor que toma problematizar o sujeito e suas mazelas, a crise e a violência
para si a tarefa complexa de interpretar as profundezas do dos dias atuais, sem esquecer os desvios éticos da cultura.
pensamento freudiano, apresentando uma interpretação Mesmo reconhecendo o quanto esses dispositivos são
sensível e amadurecida das influências que marcaram a responsáveis por certa barbárie, apresenta reflexões sobre a
origem da psicanálise. esperança, deixando antever a crença na capacidade originária
O debate proposto vai além da trilogia Freud, Apolo do homem de enfrentar as forças antagônicas. e
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l i v r o s
Lançamentos
Deuses de Freud
– A coleção de Fundamentos da
arte do pai da psicanálise – De Freud
psicanálise. Janine a Lacan – vol. 2. Marco A trilogia do
Burke. Record, Antonio Coutinho amor. Betty Milan.
2010. 462 págs., Jorge. Zahar, 2010. Record, 2010. 240
R$ 59,90. 290 págs., R$ 39,90. págs., R$ 37,90.
Violentamente
pacíficos. Maria de
L. Trassi e Paulo A.
Transtorno da Malvasi. 128 págs.
ansiedade da HIV/Aids
infância. Ronald M. – Enfrentando o
Rapee, Susan H. sofrimento psíquico.
Spence, Vanessa Voluntariado: uma Edna P. Kanhale,
Cobham, Ann dimensão ética. Cynthia Christovam
Wignall. M. Books, Rachele Ferrari. e outros. 144 págs.
2010. 176 págs., Escuta, 2010. Ambos da Cortez,
R$ 45,00. 160 págs., R$ 31,50. 2010. R$ 24,00 cada.
partir disso discutem o tema abordando entre outros temas, a diversidade de mais amplos e históricos. Já HIV/Aids-
desde medos menores, temporários, aos objetivos, valores e expectativas daqueles Enfrentando o sofrimento psíquico aborda
problemas mais persistentes, mais graves que se engajam nessa atividade. A proposta a busca de uma intervenção profissional
e invasivos, capazes de impor restrições à é discutir as intenções e os significados de que leve em conta as angústias vividas
vida do paciente. se dedicar a essa tarefa. por pessoas afetadas pelo vírus.
ria, experiência que descreveu em Recordações da casa dos perder seu dinheiro, o rapaz vai para um jardim, aparente-
mortos (1866) e Memórias do subterrâneo (1864). Tornou- mente para se suicidar. Ela, porém, o convence a desistir e
se místico e intransigente defensor da cultura eslava. Em os dois acabam na cama. A partir daí a mulher tenta salvá-lo
sua sombria obra que inclui os clássicos Crime e castigo, O da dependência, mas sem sucesso. Para Freud, o jovem via
idiota e Os demônios, loucura, autodestruição, crime são nela um misto de figura materna e prostituta. O resultado é a
temas recorrentes. Era um jogador compulsivo, e essa “má consciência” que o leva ao final infeliz. O jogador é uma
experiência é descrita em O jogador. Atolado em dívidas figura infantil, que tem problemas com as figuras parentais.
de jogo e pressionado pelo editor, ele concluiu o livro em E para ele o jogo da vida é ainda mais incerto e complicado
apenas 26 dias. que o de cartas ou uma simples roleta. e
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limiar
neurociências
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DE FREUD
MENTE E CÉREBRO
Criador da
psicanálise
discute