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RIO E SÃO PAULO — Desde 2010, o cartunista Laerte Coutinho, de 61 anos, veste-se
somente como mulher. Depila o corpo, usa saia curta, pinta a unha de vermelho,
ostenta um longo e brilhante cabelo grisalho, fala a maior parte do tempo no
feminino. Compôs o visual com a ajuda de Dudda Nandez, uma jovem paulistana de
27 anos, casada, mãe de uma filha de 7 anos. Em seu sobrado, no modesto bairro da
Penha, Zona Leste de São Paulo, Dudda aconselha uma legião de homens que
desejam fazer o mesmo que Laerte.
Ela cobra cerca de R$ 300 por sessão, que inclui depilação, maquiagem, empréstimo
de roupa e fotos para o transformista levar de recordação. Ainda organiza encontros
semanais decrossdressers, onde todos ficam montados (termo usado para a
transformação), sem risco de exposição na rua.
Dudda estudou Direito por três anos, e largou. Quer prestar Medicina, com o objetivo
de ser neurocirurgiã. Sua filha anda pelo sobrado e é tratada com carinho
pelos crossdressers.
— Quando eles estão vestidos de menino, eu chamo de tio. Depois, viram as tias — diz
a menina, naturalmente.
Em respeito à privacidade de seus clientes, ela não dá nota fiscal e não aceita
cartão, “porque a maioria que vem aqui quer passar despercebida”. Começou
ajudando amigos a se montar para idas a festas ou boates. Viu ali uma oportunidade
de negócio. Fez cursos de depilação, massagem e maquiagem; criou um site. Hoje,
segundo os praticantes, é a única profissional do Brasil que faz este tipo de trabalho,
em reuniões pudicas que nada têm a ver com sexo.
— Ela foi imprescindível para mim. Depilar-me foi o passo mais decisivo dessa
trajetória na direção da representação da feminilidade. Ver meu corpo sem o
cobertor de pelos foi me olhar de outra forma — comenta Laerte, que já namorou
homens, mulheres e teve três filhos, dentre eles o também cartunista Rafael
Coutinho.
Pela definição tradicional, Laerte nem seria mais um crossdresser, porque passou a
se vestir de mulher em regime integral. Ele não toma hormônios (“por não haver
mais sentido na minha idade”), mas estuda a ideia de pôr silicone nos seios.
— O peito é uma conquista, uma representação forte da feminilidade. Mas não curto
o termocrossdresser, que é importado do contexto americano, que designa o homem
transgênero que faz questão de se declarar heterossexual — ensina. — No Brasil,
serve para marcar, ou tentar marcar, a diferença em relação à população travesti. É
uma distinção classista, porque travesti é muito associado à prostituição. Mas sou
travesti, ou uma mulher experimental.
Já Dudda acha que o termo crossdresser serve para apaziguar milhares de homens
como os que adotaram os nomes Priscila Marley, de 55 anos, engenheiro; Thaís
Heartilly, de 32, técnico de informática; e Diane Gonçalves, de 45, segurança
particular. Eles afirmam não querer — ou não poder — “ser mulher” o tempo todo.
Quando homem, Priscila é um verdadeiro tiozão paulistano: mora na Mooca, usa
casaco de náilon e tênis, tecla sem parar num smartphone de última geração. Uma
vez Priscila, muda a voz e o gestual. Vira uma periguete: saia curta, blusa justa,
peitão e muita bijuteria. Casado com uma psicóloga há 36 anos, pai de três filhos, a
versão masculina de Priscila conta que a coisa diz respeito à orientação sexual (“Sou
hétero, nunca tive vontade de transar com homem”). Prefere pensar na ideia como
um fetiche, uma transgressão, “uma identidade secreta, como Zorro ou Clark Kent”.
— Gosto de me vestir de menina desde a infância. Sofri muito com isso. Foi só na
maturidade, depois de muita terapia, que ficou mais fácil. Deixei até de fumar
quando passei a me vestir sem culpa, sem achar que tinha uma doença — atesta.
A mulher sabe desde o noivado — ninguém mais além dela, de Dudda e dos demais
praticantes decrossdressing que se encontram no sobrado. Os filhos de Priscila têm
31, 30 e 25 anos. Nem desconfiam, muito menos seus alunos numa tradicional
faculdade de Engenharia de São Paulo. A mulher conta que demorou a assimilar o
desejo do marido, e que o casamento só sobreviveu “porque existe muito amor”
entre eles.
Hoje, a mulher do engenheiro acha tudo até divertido. Ajuda o marido a se montar e
compra roupa com ele, fingindo ser para si.
— Outro dia, meus filhos viram um sapato feminino enorme embaixo da cama. Era da
Priscila, mas eu disse que era de uma amiga. Só não topo sexo com ele montado —
comenta a psicóloga.
Priscila acha a exigência “tranquila”, porque seu travestismo “não tem nada a ver
com sexo”. Ele tampouco diz querer ser mulher de forma permanente ou tomar
hormônio, “porque tanta montagem cansa”. Adora, no entanto, manter-se depilado.
— Digo para nossos filhos que ele teve uma alergia aos pelos. Ninguém desconfia —
garante a esposa.
Thaís também afirma que o prazer de se vestir de mulher não passa pelo sexo. Como
Priscila, a “brincadeira” começou em criança, escondida. Não sabe explicar seu
desejo, sente-se bem, a explicação basta. Apaziguou-se ao perceber, pela internet,
que existem muitos como ele.
— Tinha a ideia de que ser travesti era sinônimo de ser gay, mas não tenho tesão em
homem. Gosto de namorar mulher. Por que não namorar mulher e ser uma de vez em
quando? — indaga Thaís, atualmente solteira.
Segundo ela, é difícil as namoradas toparem. Mas o melhor a fazer é ser honesta.
Assim como Priscila, não pretende ser mulher em regime integral.
— Nem todos os travestis evoluem para uma operação de mudança de sexo — conta
Letícia, de 61 anos, que só conseguiu deixar de ser Geraldo completamente há cinco
anos.
Letícia é hormonizada e casada há 37 anos com uma mulher. Tem dois filhos e uma
filha. A parceira sabe desde 2002; os filhos souberam em 2005. Houve dificuldades,
mas hoje a família vive em harmonia. A psicanalista não pensa mais em operar. Diz
que só cogitou se livrar do pênis por se sentir pressionada a escolher um papel de
homem ou mulher:
— Muitas transgêneras acabam operando numa tentativa de se adequar aos gêneros
sociais, mas é mais complicado. Há aqueles que são mulheres mesmo, em corpos de
homens, ou vice-versa. Aí operar aparece como solução. Mas a psicologia do travesti
é mais complexa, ele nunca vai se identificar como homem ou mulher. Ele é travesti.
Se Priscila e Thaís parecem confortáveis com a vida dupla, Diane confessa que
adoraria “passar mais tempo como mulher, tomar hormônio” e eventualmente se ver
livre do pênis. Segurança particular de uma empresa em São Paulo, divide a
identidade secreta com duas irmãs com quem mora. Se como homem Diane tem
gestos contidos e uma voz melancólica, como mulher, se solta: é falante e
articulada.
— Fico mais eu, a satisfação é enorme. Passo 12 horas por dia no trabalho, e penso
constantemente em voltar para casa, pintar a unha, me maquiar, colocar peruca,
vestido curto e virar Di — conta ela, para quem o prazer de ser mulher passa, sim,
pelo sexo. — Ganho alegria e autoconfiança. Sou mais gay do que hétero quando me
visto de mulher.
Ainda assim, diz que adoraria se casar com uma mulher que lhe ajudasse a se
montar:
— Todos somos complicados mesmo. E carentes. Companhia é sempre bom.
Apesar da dificuldade em obter dados estatísticos, a Abrat estima que um em cada
dez homens se traveste ou vai se travestir em algum momento da vida (vestir-se para
um baile de carnaval não é considerado crossdressing).
Anna frequentou, entre 2007 e 2009, o Brazilian Crossdresser Club, então a principal
casa do gênero, em São Paulo. Desde lá, o grupo se desmobilizou.
— Quando o clube foi aberto, há 15 anos, as pessoas não tinham para onde ir. A ideia
inicial era ter com quem compartilhar as angústias e os prazeres relativos à prática
do crossdressing — explica a antropóloga. — Agora a situação é outra. Mesmo antes
do Laerte se vestir de mulher, já havia gente falando disso. Hoje, você vê as pessoas
saindo para a rua vestidas de mulher. Os “cross” não estão no movimento LGBT, mas
pegaram a rebarba das mudanças provocadas pelo movimento.
O teatro, por sinal, tem longa tradição de apresentar homens em papéis femininos.
Na Grécia antiga ou na Inglaterra elizabetana, personagens marcantes como Jocasta
(mãe de Édipo), ou Julieta, eram vividos por homens, maquiados ou escondidos atrás
de uma máscara.
Já no Japão, um ato proibitivo por parte do governo deu origem a uma tradição.
Desde 1629, o kabuki (forma típica de dramatização, com maquiagem pesada) é
encenado exclusivamente por homens. Explica-se: até aquele ano, as peças eram
mais assistidas em função do sucesso provocado pelas curvas das atrizes — que
dançavam de forma libidinosa —, que do teor das histórias. O medo da
“desmoralização” do público levou à decisão de proibir moças em papéis femininos.
Bom que no Brasil tal medida nunca tenha surgido. O país seria pior sem Bibi Ferreira
e Fernanda Montenegro.
Fonte: O Globo