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Elisabeth M. Petersen
a fazer’,1 Cicely Saunders estabeleceu as bases ótica. Por este motivo, Ruud5 afirma que todos
que viriam a constituir os Cuidados Paliativos: os fatos da vida do indivíduo poderiam ser
promover qualidade de vida através do controle narrados pelas músicas que comporiam sua
e alívio da dor e sintomas decorrentes do avanço ‘trilha sonora’: única, singular, a marca de sua
da doença, e um cuidado abrangente a pacientes identidade.
e familiares envolvendo aspectos psicológicos, A música alcança além das palavras: permi-
sociais e espirituais.2 te refletir sobre a proposta e o sentido existencial
No contexto clínico, uma das abordagens e até mesmo ajudar no enfrentamento de situa-
terapêuticas que oferecem possibilidades de ções de maior dificuldade na vida.
suporte aos aspectos privilegiados por esse novo Na Musicoterapia, a música é um dos ele-
enfoque é a Musicoterapia. mentos do processo terapêutico que envolve:
O uso terapêutico da música remonta às - um paciente/grupo (sua história de vida,
mais antigas culturas, porém somente em mea- clínica e sonoro-musical);
dos do século passado a Musicoterapia* se ins-
- um musicoterapeuta qualificado;
tituiu como disciplina e profissão, unindo Arte
e Ciência e processo interpessoal.3 Sua inserção - a música; e
no campo dos Cuidados Paliativos acontece em - uma relação dinâmica que se desenvolve
1978, nos Estados Unidos, objetivando, como
através da música e desse processo interpes-
definem Munro e Mount,4 auxiliar na integração
soal, com técnicas específicas,6 num con-
dos aspectos fisiológicos, psicológicos e emo-
tinente sonoro de intimidade e segurança.
cionais do indivíduo em tratamento de doenças
No contexto da música, os terapeutas
ou incapacidades, utilizando a música, seus
esforçam-se para oferecer presença, sinceridade
elementos e influências de forma controlada.
e criatividade, visando permitir ao paciente
encontrar estratégias de enfrentamento mais
Música e Musicoterapia positivas, além de auxiliar na melhora de sua
Ao longo de toda a história humana a qualidade de vida.
música acompanha o homem, intimamente
Musicoterapia em
associada a muitas atividades da vida, e está
presente em todas as culturas do mundo como
Cuidados Paliativos
forma de expressão. Afeta os seres humanos de No contexto dos cuidados paliativos, a Mu-
forma integral, atingindo os aspectos físicos, sicoterapia é a utilização dos sons e da música
psicossociais e espirituais. Exerce uma função num relacionamento envolvendo cliente e tera-
social, de agregar e congregar; pode conectar o peuta objetivando oferecer suporte e encorajar
indivíduo com seu mundo interno e refletir as o bem estar físico, mental, social, espiritual e
emoções humanas; pode despertar prazer ou emocional de pacientes com doenças em estágio
desconforto. de terminalidade e de suas famílias. O ato de
A música tem característica evocativa, e ouvir e cantar música viva, e de improvisar ajuda
todas as memórias a ela relacionadas possuem a integrar mente-corpo-espírito.7
caráter de presença afetiva: situações, lugares, O foco principal dos Cuidados Paliativos é
pessoas, suscitam uma revivescência, sob nova o suporte existencial psicoespiritual para pro-
* Definição da Federação Mundial de Musicoterapia: “Musicoterapia é a utilização da música e/ou dos elementos musicais (som, ritmo,
melodia e harmonia) por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente ou grupo, num processo para facilitar e promover a comu-
nicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar
necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. A musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e/ou restabelecer funções
do indivíduo para que ele/ela possa alcançar uma melhor integração intra e/ou interpessoal e, conseqüentemente, uma melhor qualidade
de vida, pela prevenção, reabilitação ou tratamento.” In: Revista Brasileira de Musicoterapia. Rio de Janeiro:1996;1(2):4.
a música com instrumentos de fácil manuseio, grado.23 A música e as crenças religiosas podem
apenas ouvir e se beneficiar dos oferecimentos representar um porto seguro, e “ajudar os pa-
e reflexões que possam ser feitas a partir da cientes a construírem um sentido do sofrimento
música. O oferecimento de uma canção re- inerente à doença, criando [ou] descobrindo o
criada, improvisada, apenas vocalizada, é uma sentido de vida para entender de que maneira
estratégia cuidadora, íntima, de comum-união a vida mudou”.24
(comunhão); uma forma de garantir ao paciente O sentido das músicas, porém, por mais
que ele não está sozinho. Em outras situações, conhecidas e familiares que sejam, é pessoal,
interconsultas com Fisioterapia, Psicologia, pois as associações, como já apontado no início,
possibilitam a conjugação de esforços e soma têm estreita relação com a história de vida de
de olhares e especificidades em benefício do cada cliente, o que produz novas recriações,
paciente: mobilização de membros no ritmo da em novos contextos, e outras elaborações e
música, exercícios de respiração e vocalização ressignificações (atribuindo novos significados,
para desviar o foco da dor e produzir relaxa- através da mudança de sua visão de mundo, a
mento físico e emocional. acontecimentos anteriormente vividos).
De modo geral, os pacientes relatam um Os temas mais recorrentes das músicas re-
certo alívio das tensões, e um resultado positivo criadas ou improvisadas, conforme observado
no aprofundamento das questões trabalhadas nos atendimentos realizados, enfatizam:
com a música; alguns relatam terem ‘viajado’ • saúde, amor, perspectivas de cura, es-
(sic) para lugares profundos dentro de si. Outros perança, confiança em Deus, expectativas
narram memórias da infância e de momentos de volta ao trabalho, a incapacitação para
felizes do passado que funcionam como ‘remé- realizar tarefas de outrora, desconforto pela
dio para a alma’ (sic), aliviando o sofrimento e dependência de outros membros da família,
ajudando o paciente a enfrentar sua “dor total”.** tristeza pelo afastamento de familiares e
Importante assinalar que as propostas de abandono, medo da morte.
participação oferecidas respeitam o direito do As funções atribuídas às músicas - impro-
paciente e/ou do familiar de quererem ou não visadas ou recriadas por pacientes e cuidadores,
participar. com suas respectivas mensagens, focalizam:
Cantar junto com um “Outro” oferece • declarações de amor, pedidos de perdão,
a oportunidade de harmonizar as vozes, de reconciliação, garantias de não abandono,
melhor estruturar emoções,20 de compartilhar/ saudades;
trocar olhares, entonações gestos, intenções, de
• revisão das realizações ao longo da vida,
“construir pontes de comunicação, reduzindo
aproximação de paciente e familiares/entes
o isolamento e restabelecer relacionamentos”.25
queridos.
Não há juízo de valor estético; a livre expressão
é estimulada. A música pré-composta, do reper- • o despedir-se, preparar-se para a partida;
tório do paciente, possibilita explorar e expressar viver o luto antecipatório.
sentimentos e pensamentos com mais segurança
ajudando-o a projetar conteúdos mais difíceis
Abordagem a Familiares e
de serem verbalizados: o paciente se apodera
Cuidadores
desta música21 e faz dela a ‘sua voz’. As canções É importante salientar que as abordagens
podem ainda assumir um caráter revelador,22 até aqui apontadas para atendimento de pacien-
clarificador,20 ou de compartilhamento do sa- tes são igualmente oferecidas aos familiares,25
** Cicely Saunders definiu a Dor Total como o sofrimento de uma pessoa acarretado não apenas pelos danos físicos, mas também pelas
consequências emocionais, sociais e espirituais que a proximidade da morte pode lhe proporcionar.1
por serem estes da mesma forma afetados pelo e uma melhor adaptação à nova situação (de
adoecimento e processo de tratamento do ente doença, internação, tratamento).
querido. Os objetivos das experiências musicais
propostas podem variar, dependendo da avalia- Considerações Finais
ção da demanda apresentada pelo familiar ou A literatura4,8-16 confirma o papel da Musi-
cuidador no momento do acompanhamento da coterapia na promoção da qualidade de vida de
consulta. Nas situações em que o estado geral do pessoas que vivem os estágios mais avançados
paciente vai declinando (mensurado pelo Índice de doenças ameaçadoras à vida e encoraja a
de Karnofski), questões relacionadas à morte sua inserção em outros espaços clínicos de
tornam-se mais presentes, sendo trabalhado o tratamento, com possibilidades diversificadas
luto antecipatório através de canções de ofere- de atuação: nos processos de revisão de vida e
cimento desejando paz e conforto, declarando de reminiscências, de suporte biopsicossocial
amor e perdão, sentimentos de perda e luto. e espiritual, e preparação para os ritos finais.
Reflexos Ecológicos dos As propostas musicoterápicas e experi-
ências musicais recriadas ou improvisadas
Atendimentos
suscitam a emergência de conteúdos internos e
O fato de as intervenções musicoterápi- questões subjetivas relacionadas ao medo, aos
cas incluírem ‘música viva’ num espaço não relacionamentos, à autoestima, à raiva, culpa,
totalmente preservado permite a participação tristeza e outros tantos sentimentos comumente
indireta de outros pacientes, acompanhantes e vivenciados pelos pacientes que se encontram
mesmo dos profissionais; o som se espalha pelo nos estágios muito avançados, e oferecem
ambiente e transforma a atmosfera de trabalho, oportunidade de re-elaboração desses mesmos
oferecendo uma visão diferenciada de novas conteúdos, situações, relações.
possibilidades de atendimento. A Musicoterapia se apresenta, dentre as
Muitas vezes os profissionais participam em terapias expressivas, como uma possível estra-
conjunto da abordagem a um paciente – com tégia de enfrentamento (coping)27 para auxiliar
ou sem o familiar, às vezes apenas fazendo coro o paciente a melhor lidar com a doença e com
numa canção oferecida, ou com interações/in- os vários aspectos de sua vida que ficaram
tervenções orientadas. É a atitude humanista, ou comprometidos, em decorrência da doença,
humanizadora – como prefere denominar o Pro- do tratamento, e, por fim, da impossibilidade
grama Nacional de Humanização da Assistência de cura e da terminalidade.
Hospitalar26 - tão importante quando se trabalha A experiência de Musicoterapia, no contex-
com seres humanos que chegam angustiados, to aqui focalizado, em espaço ambulatorial, tem
sem esperanças, só vislumbrando a aproximação características singulares: imprime um clima de
rápida da morte, o que não necessariamente descontração num contexto de dor e incertezas.
acontecerá na mesma rapidez imaginada. E pode desempenhar um papel vital na humani-
A Musicoterapia pauta, dessa forma, sua zação dos espaços clínicos, promovendo sinergia
atuação no paradigma do cuidado, acolhendo e conectividade entre os envolvidos no serviço
com afeto, sem juízo de valor estético, toda e – os profissionais que dedicam seu serviço e os
qualquer manifestação sonora produzida por que se beneficiam do cuidado.
esses pacientes e familiares. Valorizando e As observações clínicas, fundamentadas
explorando o potencial criativo e saudável dos na prática cotidiana e na literatura específica,
mesmos, e utilizando técnicas musicoterápicas apontam para a necessidade de pesquisas cien-
específicas, a Musicoterapia favorece o aumento tíficas que possam ampliar o foco de atuação,
da autoestima, respostas mais positivas do sis- possibilitar novas construções teóricas e validar
tema imunológico na evolução da enfermidade resultados observados.
recursos do ser humano para enfrentá-lo. 13. Gazaneo LM. Musicoterapia e Oncologia.
[trabalho de conclusão de curso] Rio de
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