BELÉM
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BELÉM
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Banca Examinadora
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Prof. Dr. Ipojucan Dias Campos (UEPA) – Presidente da Banca
____________________________________
Prof. Dr. Manoel de Moraes Junior (UEPA) – Avaliador Interno
____________________________________
Prof. Dra. Taissa de Luca Tavernar – Avaliador Interno
BELÉM
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AGRADECIMENTOS
Resumo
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a cultura material religiosa de um sítio
arqueológico indígena do período pré-colonial na Amazônia brasileira. O sítio se chama
Greig II e se localiza no topo de um platô no município de Oriximiná, no estado do
Pará. Este sítio foi descoberto e escavado por uma equipe do Museu Paraense Emílio
Goeldi, e por meio de estudo do material em laboratório, foi possível notar que este sítio
se trata de um local cerimonial, pelas características de paisagem e pela cultura material
Konduri encontrada, pois possui muitos pratos, vasilhas e panelas, ricamente decoradas.
Através de estudos de paralelos etnográficos e uma análise iconográfica do material,
com base em métodos de análise semiótica, foi possível constatar que o sítio foi um
local especial para cerimônias xamânicas, onde ocorriam banquetes rituais. A
iconográfica na cerâmica Konduri apresenta forte relação com seres de forma animal e
humana, porém há predominância da forma animal de referência aquática como, rãs,
girinos, cobras e peixes, além do destaque da presença de ícones de morcegos. As
formas humanas apresentam predominantemente um estado metamórfico, uma mistura
de forma animal e humana, e para o entendimento deste aspecto foi utilizada a teoria do
pespectivismo ameríndio proposta por Eduardo Viveiros de Castro. Esta pesquisa pode
demonstrar a viabilidade e a importância do desenvolvimento de uma arqueologia da
religião na Amazônia, que proporcione o melhor entendimento das religiões indígenas e
não indígenas que possuem suas particularidades construídas na Amazônia, local
singular que é falsamente entendido como um vazio demográfico ou uma floresta
virgem. A pesquisa demonstrou que a paisagem da floresta foi moldada de acordo com
as antigas e atuais cosmologias indígenas, que após 1500 entraram em conflito e
influência de cosmologias não indígenas. Assim as Ciências da Religião podem
desenvolver bases próprias para uma epistemologia das religiões na Amazônia antiga e
contemporânea.
Abstract
This research aims to analyze the religious material culture of an indigenous
archaeological site of the pre-colonial period in the Brazilian Amazon. The site is called
Greig II and is located on top of a plateau in the municipality of Oriximiná, in the state
of Pará. This site was discovered and excavated by a team from the Museu Paraense
Emílio Goeldi, and through study of the material in the laboratory, was It is possible to
notice that this site is a ceremonial place, due to the landscape characteristics and the
material culture Konduri found, because it has many dishes, pots and pans, richly
decorated. Through studies of ethnographic parallels and an iconographic analysis of the
material, based on methods of semiotic analysis, it was possible to verify that the site
was a special place for shamanic ceremonies, where ritual banquets took place. The
iconography of Konduri pottery shows a strong relationship with animal and human
beings, but there is a predominance of aquatic reference animals such as frogs, tadpoles,
snakes and fishes, as well as the presence of bats icons. The human forms present
predominantly a metamorphic state, a mixture of animal and human form, and for the
understanding of this aspect was used the theory of the amerindian pespectivism
proposed by Eduardo Viveiros de Castro. This research can demonstrate the feasibility
and importance of the development of an archeology of religion in the Amazon, which
provides the best understanding of the indigenous and non-indigenous religions that
have their particularities built in the Amazon, a singular place that is falsely understood
as a demographic void or a virgin forest Research has shown that the landscape of the
forest was shaped according to the ancient and current indigenous cosmologies, which
after 1500 came into conflict and influence of non-indigenous cosmologies. Thus the
Sciences of Religion can develop proper bases for an epistemology of religions in the
ancient and contemporary Amazon.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9
CAPITULO I ................................................................................................................ 13
CAPÍTULO II ............................................................................................................... 27
1. INTRODUÇÃO
nos mitos desse povo (Konduri), pois não há como analisar tal aspecto extremamente
complexo e subjetivo a partir unicamente de vestígios arqueológicos cerâmicos.
Numa análise semiológica, dir-se-ia que não será possível analisar os
significados dos símbolos, mas apenas a significância, ou seja, o valor religioso dado a
estes materiais através do tipo de confecção, decoração (repetição ou o destaque de
alguns signos) e possíveis usos em locais especiais ou não.
A principal hipótese desta pesquisa é a de que o sítio Greig II foi uma área
cerimonial xamânica onde se realizavam curas e banquetes rituais, onde entidades que
faziam parte da cosmologia dos Konduri eram acionados ou evocados através de
oferendas especiais, servidas em pratos trípodes decorados; as bebidas eram servidas em
vasos de maiores dimensões e distribuídas individualmente em vasilhas menores, as
substâncias curativas e alucinógenas eram produzidas e servidas no local. Algumas
entidades possuíam formas animais que estão presentes na cerâmica como, morcegos,
peixes e sapos, outras não possuem forma que se possa reconhecer como animais ou
humanas. Há também a recorrência de vasos de porte mediano e pequeno, que são
antropomorfas e zooantropomorfas, o que nos remete aos estados de metamorfose do
xamã. Este espaço cerimonial no topo de um platô foi um local sagrado para este grupo
indígena, que o frequentava em períodos sazonais.
O primeiro passo nesta pesquisa foi de um maior levantamento bibliográfico que
diz respeito às práticas xamânicas de grupos indígenas da Amazônia. Após isto, se deu
um estudo dos documentos coloniais com uma abordagem de desideologizar estas
fontes, através de uma análise discursiva que possibilitou retirar, não apenas a
representação cristã ou eurocêntrica sobre os indígenas nas crônicas e diários de
viajantes e missionários na Amazônia, mais também de dialogar esses documentos com
os achados arqueológicos, no intuito destes servirem como fonte etnohistórica.
Estudamos os relatos de Frei Gaspar de Carvajal (1541), Maurício Heriarte (1662) e
Felipe Bettendorf (1668), com uma abordagem etnohistórica (PORRO, 1996).
Após as leituras, deu-se início a análise semiológica da iconografia da cultura
material (REDE, 1996), ou seja, a cerâmica arqueológica Konduri do sítio Greig II,
disponível no laboratório de arqueologia do Museu Paraense Emílio Goeldi. A etapa de
descrição, desenhos técnicos de reconstituição e fotografias para o banco de dados foi
realizada em 2013-2014, sendo necessária agora uma esquematização do banco de
dados para se aplicar o arcabouço teórico aos dados que se levantaram, e assim realizar
a produção textual da dissertação de mestrado. Lembrando que tudo aqui observado e
11
problematizado está dentro da esfera religiosa, tanto nas descrições de ritos religiosos
presentes nos relatos de viajantes quanto o material cerâmico estudado.
Para a análise iconográfica utilizamos de técnicas da semiologia (FIDALGO,
1998; GEERTZ, 2008) e de uma semiótica mais voltada para a cerâmica arqueológica
amazônica, como a desenvolvida por Denise Schaan (1996) ao trabalhar com a cerâmica
arqueológica do Marajó, e a de Denise Gomes (2012) que utiliza a teoria do
perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro para estudar a cerâmica dos
antigos Tapajós, onde elaborou hipóteses sobre uma estética ameríndia. Utilizamos
também de algumas interpretações de estudos etnográficos de grupos indígenas
amazônicos contemporâneos (BARCELOS NETO, 2011; DOLMATOFF, 1971;
FRANCHETTO, 2003; LAGROU, 2007; LÉVI-STRAUSS, 1989; VELTHEM, 1998).
Como estamos falando da cultura material de um povo pré-colonial, utilizamos a
etnografia sobre os povos atuais cruzando-as com as informações das fontes coloniais,
pois mesmo que tenham ocorrido rupturas socioculturais no período colonial da
Amazônia, através dos assentamentos missionários, catequese e políticas escravistas e
civilizatórias por parte do colonizador, alguns aspectos dentro do universo indígena
tiveram continuidade. Procuramos signos e seus significados na cultura material dos
indígenas contemporâneos (PORRO, 2010) e nas suas lendas e cosmogonias.
Utilizamos aqui os mitos Dessana, Tukano (DOLMATOFF, 1971; FERNANDES &
FERNANDES, 1996); dos Wauja e dos Kamayurá (BARCELOS NETO, 2011) por
possuírem riquezas de detalhes e uma bibliografia mais acessível, entre outros que
encontramos ao longo da pesquisa.
A divisão dos capítulos foi elaborada no intuito de se fazer entender
primeiramente o contexto amazônico e a identificar o povo Conduri (Konduri), por isto
o primeiro capítulo é focado nas fontes escritas dos antigos viajantes e missionários. Em
seguida há um breve apanhado historiográfico em relação às pesquisas arqueológicas
realizadas na região amazônica, e o esclarecimento sobre alguns termos e teorias
utilizadas por esta área de estudo, a fim de se fazer mais clara esta pesquisa.
Posteriormente, já no capítulo dois há um foco no que diz respeito ao sítio
arqueológico Greig II e sua cerâmica, o objeto desta pesquisa. Mas também já ocorre o
debate teórico sobre xamanismo, pajelança e banquetes rituais, com um método de
afunilamento, concebendo-se do macro ao micro, que seria o xamanismo em aspecto
global e o na América do Sul.
12
CAPITULO I
1
Segundo CUNHA (1992, p. 12-13) o termo contato não passa de um “eufemismo envergonhado”, por
isso deve-se utilizar o termo conquista no sentido de que houve sim imposição de poder através da
violência e política, houve escravidão e extermínio de muitos grupos indígenas. Porém isto não quer dizer
que os indígenas não foram agentes de sua história e o ainda são, e nem que devam ser vistos apenas na
posição de resistência; não atribuindo a ideia de que foram responsáveis pelo seu destino de sofrimento,
longe disto.
2
Ritos ou cerimônias onde um prisioneiro de guerra era executado e comido para fins simbólicos. Muito
comum em grupos indígenas como os Tupinambás.
14
da antiguidade clássica que classificava assim todo aquele que não conhecia o poder
centralizado, não falava grego e não habitava a polis (cidade-estado grega), estas seriam
características do “homem civilizado” (FREITAS, 2011). O termo bárbaro, também era
muito empregado pelos missionários, pois estes viam além das guerras e nudez dos
indígenas, a adoração de ídolos ou a chamada muitas vezes de idolatria (VAINFAS,
1990). Isto os tornava cultuadores do diabo, mas abordaremos com detalhes esse
aspecto mais a frente.
O mito do El Dorado é um dos mais presentes nos relatos e crônicas de viajantes
do século XVI e XVII. A ideia dos europeus em encontrar nas margens do mundo, ou
seja, nos locais longínquos, cidades repletas de ouro, de prata, pedras preciosas e
riqueza proveniente das especiarias naturais que brotariam da terra em abundância, era
muito motivado por empreendedores e reis/rainhas europeus, pois certos artefatos em
ouro, prata, bronze e jade, produzidos e utilizados pelos ameríndios de áreas andinas
excitou o imaginário do Velho Mundo.
Os vários povos da América Central e do Sul, no Peru e Colômbia, possuíam
enfeites corporais e outros objetos confeccionados com estes materiais3, mas nada
comparado a uma cidade feita de ouro e outros metais preciosos. As regiões mais
próximas do vale amazônico incitavam na mente dos viajantes a possibilidade do mito
ser real, e que se localizava mais ao interior das florestas, o que incentivou, além da
procura por mão de obra escrava e de exploração de novos territórios, buscas pelo El
Dorado (UGARTE, 2003).
A historiografia necessitou de muitos cuidados ao analisar os relatos dos
viajantes e diários de religiosos missionários na Amazônia, pois expressavam um
discurso etnocêntrico baseado em muitos mitos e conceitos greco-romanos e medievais
como o caso das guerreiras amazonas do frei Carvajal, com isto, parece que houve a
rejeição de vários dados apresentados por esses relatos como, grandes populações
indígenas habitando cidades no vale amazônico.
Isto foi o que a historiografia fez durante muitos anos, porém com as contínuas
pesquisas da arqueologia esta noção sobre o passado da Amazônia foi extrapolada para
além das “fontes escritas clássicas”, que são os ditos documentos oficiais (cartas da
coroa, relatórios de carregamento de embarcações, códigos legislativos, relatórios da
3
Haviam artefatos indígenas feitos de ouro, jade, bronze e prata na região da Colômbia e Peru, hoje,
muitos destes expostos no Museu do Ouro em Bogotá. Talvez por isso a busca por mais ouro ao leste dos
Andes, em direção das florestas, como um reino escondido. Ver mais em SHIMADA & GRIFFIN. Os
objetos preciosos do Sicán médio. Scientific American Brasil. Edição especial. Nº 10, p. 36-45.
15
nesse relato é a ideia de que tais vasilhas estavam depositadas dentro de uma “casa”.
Carvajal afirmou que Orellana resolveu invadir um assentamento a procura de
alimentos.
En este pueblo estaba una casa de placer, dentro de la cual había mucha loza
de diversas hechuras, así de tinajas como cántaros muy grandes de más de 25
arrobas, y otras vasijas pequeñas como platos, escudillas y candeleros, desta
loza de la mejor que se ha visto en el mundo, porque la de Málaga no se
iguala con ella, porque es toda vidriada y esmaltada de todas colores y tan
vivas que espantan. Y demás desto, los dibujos y pinturas que en ellas hacen
son tan compasados que, normalmente, labran y dibujan todo como lo
romano. Y allí nos dijeron los indios que todo lo que en esta casa había de
barro, lo había en la tierra adentro de oro y de plata, y que ellos nos llevarían
allá, que era cerca. (CARVAJAL, 2011, p.40)
grupo indígena “Conduri” com o nome da dita “senhora Coñori”, pois pode bem ser
“Cunuri” ou “Conduri”, como outros viajantes se referiam ao nome do rio que hoje
conhecemos por Nhamundá, o mesmo nome era dado aos grupos indígenas que viviam
na boca deste rio e mais adentro em terra firme.
Desta forma, percebemos o início da denominação do povo indígena da região
do Rio Nhamundá e Trombetas, os “Conduris”, que em primeiro momento são
representados como sendo subordinados ou aliados às “guerreiras amazonas”. Além do
que, no resto do relato Carvajal destaca as riquezas materiais a forma de reproduzir a
lenda do El Dorado.
Partimos agora para o relato do jesuíta Christóbal de Acuña. Este documento foi
escrito porque em 1637, Pedro Teixeira, juntamente com 70 portugueses e 1.100
indígenas, distribuídos em 47 canoas, saíram de Gurupá até Quito, mapeando a área
percorrida para a divisão das terras de Portugal e Espanha. Na viajem de volta, deveriam
reivindicar terras em nome da Coroa Portuguesa. Os espanhóis com receio de perderem
território para os portugueses, mandaram dois jesuítas com a expedição de regresso,
Acuña e Andrés Artieda (MARTINS, 2007).
Em 1639 Acuña apresenta-nos o relato chamado de O novo descobrimento do
rio das Amazonas, onde descreveu, em linhas gerais, as nações indígenas e seus
costumes, tudo com uma linguajem eurocêntrica e moralista por ser ligado a igreja.
Afirmou que os nativos eram muito inclinados às bebedeiras e faziam vinho de várias
frutas; também explicou sobre o consumo de peixes e tartarugas em grande escala.
Além disso, cita um grupo indígena que vivia no “Rio Cunuris” ou “Conduris”, que
seria também o nome do grupo indígena em sua foz (PORRO, 1996), onde hoje é o Rio
Nhamundá. Rio acima, estavam os “Apantos”, que falavam a língua geral4, os
“Taguaus”, e depois os “Cacarás” ou “Guayearas” em um suposto contato direto com as
“amazonas”.
Acompanhando a viajem de Pedro Teixeira estava também Maurício de Heriarte,
que escreveria somente em 1662 sua crônica. Heriarte também classificou, assim como
Acuña, os indígenas como “selvagens”, “canibais” e “beberrões”. Porém o que nos
interessa aqui é a informação de que no rio Trombetas estavam os Conduris:
(...) esta o rio das trombetas, muy povoado de índios de diferentes nações:
como Sam, Conduris, Bubuis, Aroazes [sic], Tabaus, Cariatos, e outros
4
Nheengatu, uma língua proveniente do Tupi, criada por padres para se comunicaram com os indígenas.
Neste caso pode ser entendido como indígenas que aprenderam a língua geral realmente ou que teriam a
língua proveniente do tronco Tupi, algo que poderia ser entendido pelos portugueses e espanhóis.
18
logo todos com a vinda do Diabo começam a bailar e cantar na sua lingoa, e a
beber o vinho athé que se acabe, e com isto os traz o Demonio enganados.
(HERIARTE, 1874, p.36).
Portanto, essas fontes nos dizem que existiam casas cerimoniais que possuíam
em seu interior estatuetas para fins religiosos, no caso dos “Tapajós”, essas casas se
encontravam um pouco afastadas da aldeia, e que em determinada época havia
cerimônias de oferta de milho para as divindades que compunham a cosmologia desse
grupo, e que eram verdadeiras festividades com muito consumo de bebidas fermentadas,
dança e música, além de que essas bebidas eram transportadas em grandes vasilhas,
acredito que eram de barro, como as que já foram encontradas em escavações na região
hodiernamente. Claro que tudo isto, na visão dos europeus era visto como culto ao
diabo, como se pode ver, em outros trechos do relato de Heriarte e do Padre Daniel,
certa retaliação dos missionários a estas práticas, com a destruição de alguns corpos
mumificados preservados no interior de tais casas cerimoniais, e até com a destruição
dos famosos muiraquitãs, que eram pedras, em maioria esverdeadas, com formas de rã e
sapo, utilizadas como “amuletos” (Ibidem, p. 37-38)
Entre os anos de 1660 e 1698, com algumas interrupções, o jesuíta João Felipe
Bettendorff atuou nas províncias do Grão-Pará e Marahão. Em suas crônicas detalha
sobre os indígenas com quem mais entrou em contato, os Tapajós; porém aborda os
“Conduris” brevemente; informa que em 1658 o padre Manoel de Souza, juntamente
com o padre Manoel Pires foram enviados como missionários para catequizar, na região
setentrional, os “Aruaquis”, “Tupinambaranas” e os “Condurizes”; até que o padre
Souza veio a falecer:
(...) em uma aldêa dos barbaros Condurizes (...) Foi enterrado em uma egreja
que os indios mesmo lá fizeram, em reverencia de seu corpo (...) morreu e se
enterrou em os Condurizes, donde depois de muitos annos trouxe os seus
ossos Simão dos Santos, sendo subprior da casa de Santo Alexandre do
Grãopará, onde se enterraram na ermidazinha velha de S. Francisco Xavier
(...). (GUAPINDAIA, apud BETTENDORFF, 2008, p.15).
do cabo João de Seixas, e a aldêa desamparada toda, sem egreja, por andarem
os indios continuamente divertidos, fiquei obrigado a dizer missa em praia a
alguns brancos, que lá achei, os quaes me fizeram presentes de uns passaros
de muita variedade, de bellisimas cores, chamados aráras, que se acham
naquella terra dos Condurizes, mais engraçados que em outras terras, e por
isso os levei commigo, mui contente, para o Grãopará, donde mandei sete
delles ao illustrissimo senhor Nicolaini, o qual os tinha pedido com muito
encarecimento, estando eu com elle em Lisboa, e me escreveu de Pariz que
os não recebera por terem feito todos naufragio pelo mar, porém ficava muito
agradecido, esperando que outros que viessem não teriam a mesma desgraça
.Continuei minha viagem pelo bello rio das Trombetas, e percorrendo as
aldêas principais pelo rio das Amazonas abaixo e pelas ilhas dos Ingaybas,
dei commigo em Parijó, aldêa principal da Capitania de Cametá. (Ibidem, p.
16).
Nota-se que surge aos poucos o aldeamento dos “Conduris” da região, onde
foram catequizados, observa-se que o principal não estava presente, tendo se ausentado
na companhia do cabo Seixas, pois buscavam mais indígenas para levarem ao
aldeamento que surgiu. Em 1693 os capuchos da piedade se tornam responsáveis pelas
missões do Tombetas e Jamundazes (Rio Nhamundá), nome deste último dado em
homenagem a um cacique daquela região. Os assentamentos religiosos foram efetivados
onde se ergueu o forte dos Pauxis (Óbidos) fundado em 1697 e a missão dos
Jamundazes em Faro ou chamada de missão São João Batista.
Estes aldeamentos consistiam em aglomerar indígenas de diferentes etnias a fim
de catequiza-los, o que desarticulou tradições sociais, hábitos e crenças desses grupos.
Tornavam-se ainda trabalhadores como carpinteiros, oleiros, agricultores, soldados
entre outras atividades, tudo como parte do discurso civilizatório cristão (SOUZA
JUNIOR, 1993) e para o desenvolvimento dos vilarejos e fortes que cresciam na região
amazônica como um todo. A cidade de Óbidos se destacou pela posição estratégica, o
ponto mais estreito do Rio Amazonas e possui um terreno elevado, sendo a famosa
“sentinela” da Amazônia. A respeito do forte, sabe-se que foi construído para proteção
do território e fiscalização de embarcações holandesas e francesas que costumavam
transitar na região, passando também a servir de órgão fiscalizador de entradas e saídas
comerciais como das drogas do sertão (canela, cravo, ervas medicinais, tabaco, etc).
Segundo Arthur Cezar Ferreira Reis, em seu livro História de Óbidos (1979); em
1693 os padres Capuchos da Piedade foram à região do Rio Trombetas a pedido de
Manuel Guedes Aranha, Capitão-Mor de Gurupá. Montaram aldeamento ao estilo das
outras ordens evangelizadoras; segue a informação de Reis:
Fazendo referência a Ferreira Pena, Arthur Reis nos da informação que “Só em
1727, com a ajuda do comandante do forte de Pauxis, converteram 15 tribos no
Trombetas” (Ibidem, 1979, p. 26). Também nos coloca que na correspondência oficial,
“Pauxis-aldeia” era chamada de “aldeinha”, para diferenciar o aldeamento dos
missionários dos assentamentos indígenas comandados pelos militares que os
utilizavam como força de trabalho nas proximidades dos presídios.
Segundo frei Venâncio Willeke (1978, p.149) em 1720, o forte e seu aldeamento
(aldeinha) era povoado pelos índios “Pauxis, Arapiu, Coriati e Candori”, ou seja, ainda
existiam quatro grupos indígenas distintos no aldeamento, possivelmente entre eles os
“Conduris”, chamados nessa fonte de “Candori”. João Barbosa de Faria explica a
concentração de indígenas “Uaboí” no “baixo-Jamundá” como tendo sido provocada
pelos “Pauxis”, que em sua missão resistiram aos abusos cometidos pelos militares e
missionários, refugiaram-se entre os “Uaboí”, tendo originado a vila de Faro, respeitada
no comércio por sua produção de olaria.
O arqueólogo Peter Hilbert (1955) observou que Curt Nimuendajú, apresenta o
nome “Pauxis” como sendo de origem caribe, que significaria mutum (um pássaro do
tamanho de um pavão, comum na região) e que segundo Bettendorff, seriam indígenas
que falavam a língua geral e haviam sido retirados do Rio Xingu e transportados ao
forte no rio Trombetas. Diz-nos também que havia duas aldeias próximas ao forte que
se fundiram. O arqueólogo também destaca uma informação do Padre Fritz sobre o
grupo dos “Cunurizes”, que os localizou em seu mapa exatamente onde seis anos depois
se construiu o forte dos Pauxis (HILBERT, 1955).
As políticas de desenvolvimento dos aldeamentos em vilas no século XVIII,
implantadas através da força pelo Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
retirou o poder das instituições religiosas e elegeram diretores responsáveis pelos
indígenas, o que causou grande conflito por estes diretores e militares abusarem dos
indígenas como força de trabalho (não que os missionários também não o fizessem),
desta forma os aldeamentos foram desfeitos por conflitos e em 1754 muitos indivíduos
da Vila dos Pauxis refugiaram-se entre os indígenas do Rio Negro ou se deslocaram
para outras áreas formando mocambos (REIS, 1979).
22
A palavra xamã, sendo um termo genérico, tem sua origem nos grupos Tungus
(ou Evenkis) da Sibéria (LARAIA, 2005, pág. 08). Acredita-se que no processo
migratório dos povos asiáticos através da Beríngia, a prática do xamanismo chegou ao
continente americano. O xamã seria o que é portador e ou receptor de habilidades de
cura, premonição, metamorfose e agenciamento entre planos cosmológicos, além de
portador de saberes tradicionais, sendo assim normalmente dirigente de cerimônias e
rituais. Porém o que caracteriza o xamã, o diferenciando de outras categorias como
curadores ou magos, é a habilidade do êxtase ou do voo mágico, quando este
especialista deixa o corpo em forma de espírito, podendo se deslocar em outros mundos
e se comunicar com outros espíritos (humanos, animais ou outras categorias de
entidades), onde este pode dominar ou ser dominado por entidades de diversas espécies
diferentes, inclusive se tornar uma destas (ELIADE, 2002, p. 15-17). O xamã também
pode ser entendido como um negociador que transita diferentes mundos e realidades,
visita entidades não humanas e retorna pra relatar o que viu ou vivenciou (VIVEIROS
DE CASTRO, 2011, p. 357). No caso dos indígenas brasileiros, costumou-se chamar
este sujeito de pajé, palavra oriunda do tupi-guarani pai’é (LARAIA, 2005, pág. 08).
Os xamãs precisam passar por treinamentos e iniciações diversas que incluem
mortes simbólicas e transformações comportamentais, esses processos normalmente são
cheios de provas físicas, restrições alimentares e aprendizagem de cânticos e
conhecimentos medicinais, sendo que as práticas de curas entre os xamãs sul-
americanos são intensas, utilizando tabaco, massagens e técnicas de sucção dos
patógenos para fora do corpo dos doentes, sendo que a causa da maioria das doenças
tem origem espiritual ou feitiçaria (ELIADE, 2002, p. 361; TAUSSING, 1993, p.421).
Vários tratamentos tem por base o uso de uma bebida feita a partir de cipós,
comumente conhecida como Ayahuasca, Yagé ou Caapi, que possui efeito alucinógeno.
Entre os Marúbo, grupo indígena da Amazônia brasileira, a Ayahuasca, depois de
receber “encantamentos” é ingerida pelo xamã para purificar ou limpar o seu corpo e
espírito, também é ingerida pelos doentes e pode ser passada na superfície do corpo
destes como tratamento (MONTAGNER, 1996, p.86-87). Muitas doenças envolvem a
presença de seres no corpo do doente como, espíritos malevolentes da minhoca, que
pode se alojar dentro do estômago de uma pessoa ou espírito malevolente do morcego,
entre outras entidades (Ibidem, p. 70). Só o xamã pode lidar com estes seres, pois este
24
foram passados aos humanos mortais para que estes pudessem ser “civilizados”
(FERNANDES & FERNANDES, 1996; KUMU & KENHÍRI, 1980, p. 116-118).
O mundo dividido em camadas também existe em cosmologias de vários lugares
do mundo, em várias tradições xamânicas existem descrições das descidas aos infernos
que muitos xamãs e profetas fazem (ELIADE, 2002, p.155 e 207). Em grupos indígenas
brasileiros como os Marúbo, entende-se que cada camada possui natureza diferente, só o
xamã pode transitar entre todas ou na maioria delas (MONTAGNER, 1996, p.21-26),
estas camadas possuem malocas, plantações, rios e animais (principalmente pássaros);
em algumas camadas vivem espíritos curadores e cantores chamados espíritos
benfazejos, que normalmente tomam o corpo dos pajés durantes os ritos. Em outras
camadas chamadas de Céu da Fumaça ou Terra da Fumaça encontram-se vários
espíritos malévolos que causam doenças (MONTAGNER, 1996, p.21-26).
Pesquisas arqueológicas na Amazônia já relacionaram os vasos da cerâmica
Tapajó com estruturas cosmológicas de camadas e a presença de pássaros nas camadas
superiores (Figura 01), além da representação de outros animais míticos como onças e
jacarés, que demonstram possíveis relações da cerâmica cerimonial com temas
mitológicos (GOMES, 2002).
Figura 1: Animais míticos representados em antigas cerâmicas e material lítico na Amazônia. Urubus na
parte superior do vaso de cariátide; vaso com mulher sentada em um jacaré; cabeça de uma onça e uma
estatueta lítica com uma onça montada em uma tartaruga/pessoa.
5
Palavra de origem grega, que se refere a imagens femininas que servem de suporte ou substituem uma
coluna em uma estrutura arquitetônica.
27
CAPÍTULO II
Os estudos para fins científicos dos povos da Amazônia e sua cultura material
começaram no século XIX e início do XX com João Barbosa Rodrigues, Ferreira Pena e
Emílio Augusto Goeldi, que apresentam ricos relatórios de pesquisa com destaque para
vasos cerâmicos, poços funerários, além de descrições e ilustrações dos grupos
indígenas que habitavam ao longo do Rio Amazonas, estudos estes que cresceram
concomitantemente com o Museu Paraense Emílio Goeldi que até hoje é uma referência
em pesquisas sobre a região amazônica (FERREIRA, 2009).
Os primeiros modelos teóricos arqueológicos mais sistemáticos surgiram nos
anos de 1940 a 1960 com vários pesquisadores norte-americanos, mas Betty Meggers e
Clifford Evans se destacaram em 1960 com o Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas (PRONAPA); já nas décadas de 1970 e 1980 os pesquisadores formados
pelo casal de americanos deram continuidade com os estudos a partir do Programa
Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica (PRONAPABA). Para
explicar a existência dos povos pré-colombianos na Amazônia, alguns destes
pesquisadores baseavam-se no determinismo ecológico, ou seja, os grupos indígenas na
floresta tropical, que possui baixa fertilidade de solo, não poderiam desenvolver
sociedades muito complexas autóctones e não poderiam ter um número demográfico
elevado, além de terem uma duração temporal curta, sendo que isto foi estabelecido a
partir de uma ênfase na classificação da cerâmica, estabelecida cronologicamente e
estilisticamente como fases e tradições (MAGALHÃES, 2016, p.97; NEVES, 2000, p.
89).
Com novas evidências e o crescente debate teórico que se seguiu nos anos de
1990 e 2000 o determinismo ecológico foi sendo cada vez mais criticado e se passou a
explicar a ocupação humana na floresta tropical de outras formas. As críticas
culminaram com a defesa de que na Amazônia surgiram sim sociedades complexas, a
Terra Preta Arqueológica (TPA) ou Terra Preta de Índio (TPI) é uma dessas evidências,
é uma terra de coloração escura por possuir rica presença de elementos como magnésio,
cálcio e manganês que tornam a terra propícia ao cultivo e dão sua coloração escura,
quase sempre acusando a presença de artefatos arqueológicos das populações indígenas
antigas, como resultado de áreas de descarte de material orgânico e inorgânico, que no
28
Figura 02: Montículos e estradas que interligavam aldeias. Imagem da esquerda é no Xingu, a da direita
são as evidências de uma aldeia e uma estrada, região do Acre.
modelados com formas das mais variadas, também pode-se decorar com furos (pontos),
incisões e vários tipos de grafismos geométricos; depois disso o vaso vai para o
processo de queima e pintura, além do usos de algumas substâncias para dar brilho e
impermeabilizar a peça (CHMYZ, 1966).
A cerâmica Konduri (Figura 03) é enquadrada em uma classificação
arqueológica chamada de “tradição”6 inciso-ponteda, que se caracteriza por uma
decoração complexa feita com incisões combinadas com pontuações, entalhados com
modelados biomorfos, sendo estes antropomorfos (forma humana), zoomorfos (forma
animal) e zooantropomorfos (formas humanas misturadas a animais), ou seja,
ambivalentes, de acordo com o ângulo de visão, percebe-se feições diferentes, em um
ângulo parece um animal e em outro um rosto humano ou dois animais simultaneamente
(RIBEIRO& RIBEIRO, 1986). A decoração também é feita com engobo7 vermelho e
branco, além de bases cônicas (bulbos) trípodes (HILBERT, 1955; PROUS, 1992). A
cerâmica Konduri também se destaca pelo uso do antiplástico cauixi, que é um
espongiário de água doce presente na região, fazendo com que a cerâmica fique cheia de
pequenos “espinhos” para reforçar a resistência da pasta para que esta não fissure no
momento da queima (Figura 04), a pasta da cerâmica possui uma dureza relativamente
baixa, entre 2 e 3 na escala de Mohs. Entre as representações animais (zoomorfas) há
maior presença de sapos e pássaros, mas a variedade de espécies é grande (PROUS,
1992, GOMES, 2002).
Figura 03: Cerâmica Konduri.
6
Este termo está entre aspas por ainda existir um grande debate sobre o modelo teórico de “fases” e
“tradições”, ver mais sobre isso em (SCHAAN, 2007).
7
Revestimento superficial de barro fino.
32
Figura 04: a) Espongiário cauixi encontrado na natureza; b) Cauixi visto por uma lupa binocular presente
na cerâmica; c) Esponja; d) Espículas de cauixi isoladas em escala microscópica.
A B
C D
Fonte: Peter Hilbert, 1914. J. Venom. Anim. Toxins incl. Trop. Dis vol.17 no.1 Botucatu 2011.
As pesquisas mais sistemáticas nessas áreas foram feitas por Peter Hilbert nos
anos de 1950 e posteriormente com seu filho Klaus Hilbert nos anos 1970, seguindo
referências deixadas por Curt Nimuendajú e Frei Protásio Frickel que apontou 41 sítios
de terra preta nas proximidades de Oriximiná, Óbidos e Faro, os cruzamentos das
informações desses autores totalizaram 120 sítios na região do Rio Trombetas e
Nhamundá.
Entre 1871 e 1874 o botânico João Barbosa Rodrigues, a mando do Governo
Imperial, foi explorar as regiões do Rio Tapajós, Trombetas e Nhamundá, relatou ter
encontrado na serra dos “Canurys”, artefatos que este atribuiu aos indígenas “Cunurys”
e “Uaboys”. As análises de Peter e Klaus Hilbert (HILBERT, 1955; HILBERT &
HILBERT, 1980) estabeleceram três tipos de cerâmica na região do Trombetas e
Nhamundá, a Konduri, a Pocó e a Globular. A Konduri aparece em menor profundidade
no solo, e datação entre o século XIII e XIV, já a Pocó está mais profunda e possui
datação entre 160 a.C a 200 d.C.. Pesquisas mais recentes mostram que existe cerâmica
Pocó na região da Amazônia Central e as novas datações chegam a 2.300 A.P.
(GUAPINDAIA, 2008, p. 10-11). A cerâmica Globular não possui uma definição muito
clara para além da quantidade de cauixi e das formas arredondadas dos apliques
modelados.
33
A arqueologia da religião é uma área de pesquisa que vem crescendo nos últimos
anos, porém no Brasil não é a mesma realidade que no resto do mundo. As religiões e as
práticas religiosas sempre foram estudadas em arqueologia, principalmente devido a
quantidade de pesquisas de ambientes funerários e de templos diversos, mas não havia
pesquisas suficientes que refletissem sobre métodos ou desenvolvessem teorias
específicas para se entender o recorte religioso dentro desta área.
No que diz respeito da recente Archeology of Religions, existe uma subárea que
trabalha com práticas xamânicas, porém algumas pesquisas são apontadas como
mantendo um paradigma evolucionista ou ideia de primitivismo em relação às antigas
práticas religiosas (ROWAN, 2012, p. 4). Outras pesquisas que se destacam no mundo
acadêmico são voltadas para religiões mundiais, principalmente cristianismo e
islamismo (INSOLL, 2004, p. 1), isso parece entrar em concordância com o que Yorke
M. Rowan argumenta sobre as pesquisas que ainda pensam nas práticas xamânicas
como primitivas, como cultos ou práticas mágicas, se distanciando das religiões
mundiais que são entendidas como religiões verdadeiras (INSOLL, 2004, p. 5;
ROWAN, 2012, p. 2).
Alguns autores clássicos nos estudos sobre religiões, de forma geral, carregam o
problema do paradigma evolucionista em suas teorias como o caso de Émile Durkheim,
34
Rudolf Otto e Mircea Eliade, como podemos visualizar em suas principais obras com
forte carga eurocêntrica. No caso de Rudolff Otto, este conceituou que a ideia de
Sagrado é algo complexo que evolui progressivamente, começando pelo primordial e
irracional que é o numinoso; algo que pode causar terror e êxtase, que possui estágios
com formas selvagens e bárbaras (OTTO, 2007, p. 45). Na perspectiva de Otto essa
emoção que cresce e arrebata pode levar a coisas “boas” ou “ruins”, as boa se devem à
evolução desse numinoso a um processo de racionalização, um “enobrecimento” ou
“refinamento” que leva ao “moral” e ao que é “bom”, refinando o pensamento e
sentimento para a crença em um único deus todo poderoso; já o aspecto ruim é
selvagem e demoníaco, mistério e temor que sempre vem do medo do fantasmagórico,
típico das “sociedades primitivas” (CASTRO, 2017, p. 80). Ou seja, o numinoso é algo
irracional que pode ser sentido dentro de uma experiência religiosa, e que possui
estágios, começando pelo “receio demoníaco” presente nos “homens primitivos”, que
passam num processo de racionalização e moralização para uma manifestação do
sagrado “bom” ou “santo” que se vê no cristianismo (OTTO, 2007, p. 45, 48, 50 e 155).
O autor parte do pressuposto que as práticas de culto aos ancestrais, as forças da
natureza, crença em espíritos dos mortos, feitiços, contos e mitos não são religiões, são
uma ante-sala da “religião verdadeira”, porém já possuem o numinoso na forma
rudimentar (Ibidem, p. 155). O alemão classificou os “homens primitivos” como
ingênuos, compartilhando da ideia geral da sua época (século XIX), de que indígenas
e/ou aborígenes são pessoas na infância da humanidade e que não conseguem
racionalizar, portanto fantasiam (Ibidem, p. 156-157).
A obra de Durkheim chamada As Formas Elementares de Vida Religiosa: o
sistema totêmico na Austrália, um marco nas Ciências Sociais no século XX. O objetivo
desta empreitada era o de tentar compreender o que faz uma religião ser religião, quais
as causas da religiosidade entre os seres humanos? O francês, influenciado pelo
empirismo alemão, acreditava que a etnografia era o melhor instrumento para conseguir
compreender o comportamento de povos como, os nativos da Austrália ou da América
do Norte, partindo da premissa que tais grupos humanos, afastados do turbilhão da
modernidade, da complexidade das instituições religiosas judaico-cristãs e mulçumanas,
poderiam fornecer informações sobre um suposto comportamento religioso elementar;
nativos estes que nas palavras do autor seriam primitivos ou bárbaros. Podemos
visualizar bem esta estrutura de pensamento no trecho:
35
Eis porque procuramos nos aproximar das origens. Não é que pretendemos
atribuir às religiões inferiores virtudes particulares. Elas são, ao contrário,
rudimentares e grosseiras; não se poderia, portanto, pensar em fazer delas
espécies de modelos que as religiões ulteriores deveriam simplesmente ter
reproduzido. Mas a própria simplicidade as torna instrutivas; porque elas
constituem experiências cômodas onde os fatos e suas relações são mais
fáceis de se perceber. (DURKHEIM, 2002, p. 37).
O sociólogo francês, por mais que criticasse muitos estudos sobre culturas e
religiões demasiadamente generalistas, sem um rigor profundo e metódico, ainda assim
propôs linhas gerais para o comportamento religioso como sendo um instrumento de
coesão social. Devido a sua formação erudita baseada nos estudos ocidentais clássicos e
tendo vivido boa parte do século XIX, foi muito influenciado pelos pensamentos de
linearidade histórica (CASTRO, 2017, p. 82-83).
Mircea Eliade estudou a fundo os clássicos da área como, Max Muller,
Durkheim, Hume e vários outros, devido a formação como filósofo e historiador. Por
mais que o romeno tenha tido diversas experiências em realidades periféricas, ou seja;
fora do padrão cultural europeu imperialista, este não deixou de carregar com sigo
valores eurocêntricos e evolucionistas, por mais que tenha tentado se distanciar deles
algumas vezes, utilizando aspas em termos como “primitivo” para se distanciar das
ideias de progresso linear nas sociedades, dando a entender que o termo era utilizado
para se referir ao arcaico ou algo recuado no tempo, mas fica bem clara a sua percepção
evolucionista logo ao início da obra Aspectos do Mito, no primeiro capítulo, onde
esclarece a relevância de se estudar os mitos: “Compreender a estrutura e a função dos
mitos nas sociedades tradicionais em questão não é apenas explicar uma etapa na
história do pensamento humano, é também compreender melhor uma categoria dos
nossos contemporâneos” (ELIADE, 2000. p.10). Ou seja, entende que os mitos são
valorizados num estado “atrasado” humano e em culturas tradicionais, afastando o
pensamento mítico de sociedades modernas, urbanas e industrializadas (CASTRO,
2017, p.84).
Logo em seguida, na mesma obra, demonstra como entende a evolução do
pensamento mítico nas sociedades africanas: “Poder-se-á supor que o ‘comportamento
mítico’ desaparecerá com a independência política das antigas colônias.” (Ibidem, p.11).
Também demonstra certa crença de que existe, de alguma forma, uma narrativa mítica
original quando diz:
Tal como as Grandes Mitologias, que acabaram por ser transmitidas como
textos escritos, também as mitologias “primitivas”, conhecidas pelos
primeiros viajantes, missionários e etnógrafos no estado oral, têm uma
36
Por mais que Eliade continue sendo uma grande referência e seus méritos não
diminuam, pois também ajudou a quebrar outros paradigmas preconceituosos como a
crença de que os mitos seriam abstrações ou fantasias irrelevantes para as sociedades, as
caracterizando como algo muito real para as diversas culturas antigas ou
contemporâneas, o europeu foi influenciado por sua própria cultura e suas referências
teóricas (CASTRO, 2017, p. 85). Portanto, não devemos deixar de nos preocuparmos
com os detalhes de como determinadas concepções podem levar a estruturas teóricas
com sérios “buracos” ou equívocos, perigos ideológicos muito abordados pelos
pesquisadores que trabalham com uma arqueologia da religião (FOGELIN, 2008, p.
132; INSOLL, 2004, p. 6).
O antropólogo Claude Lévy-Strauss trabalhou em sua obra O Pensamento
Selvagem a complexidade dos pensamentos e das linguagens indígenas para classificar
variedades de plantas, animais, fenômenos meteorológicos, tecnologia e sua própria
cosmologia, como sinais que estes grupos, muitas vezes entendidos por cientistas e
filósofos como selvagens portadores de uma inteligência e linguagem limitada, são
possuidores de uma linguagem complexa sim e tem uma ciência própria, fruto de
muitos séculos ou mesmo milênios de experimentação, curiosidade e racionalidade
(LÉVY-STRAUSS, 1989, p. 29-39). Então como entender essa ciência específica deste
povos tradicionais? Aqui pensamos que uma via para este entendimento seja a cultura
material, pois esta pode demonstrar muito da sofisticação tecnológica, o que aponta uma
sofisticação de racionalidade e linguagem.
Talvez a literatura sobre os povos andinos seja mais volumosa que a de povos do
Brasil, devido a riqueza material conservada quantitativamente e qualitativamente, pois
o clima tropical dificulta a conservação de alguns materiais arqueológicos na Amazônia,
principalmente em áreas alagáveis. Mas os povos andinos possuem regiões
montanhosas e muitas estruturas em rocha, diferentemente dos povos das áreas de
várzea que construíam e constroem estruturas em madeira e palha, e isso levou também
a uma espécie de hierarquização evolutiva entre os próprios grupos ameríndios, na visão
37
dos intelectuais ocidentais. Não quer dizer que, povos usarem madeira e palha em suas
construções os façam menos sofisticados intelectualmente ou culturalmente que povos
que utilizam rocha, mas que são apenas opções culturais diferentes e também feitas
diante da escassez de matéria prima de cada região, além das condições climáticas.
Além dos iakayreti existem os enore-nawe, que são deuses celestes, belos e
cheirosos que estão sempre jovens e habitam os céus, “a essas divindades são
organizados os rituais de salumãe kateokõ, marcados pela oferta de mel e alimentos à
base de peixe, milho e mandioca” (Ibidem).
Estes exemplos etnográficos servem para demonstrar o valor dado aos processos
de trocas rituais entre os indígenas e suas divindades, espíritos ancestrais e outras
entidades que compõem suas cosmologias.
Na tentativa de entender essa dinâmica no passado dos povos indígenas da
região amazônica, Denise Schaan notou um padrão de sepultamento relacionado ao
status social dos indivíduos nos tesos do Marajó. Há tesos com maior número de urnas
funerárias bem decoradas do que em outros, Schaan acredita que esses tesos eram
ocupados pela elite local que controlava alguns recursos naturais. As urnas desses tesos
eram enterradas em templos ou casas, acredita-se que eram periodicamente manuseadas,
pois o prato/tampa das urnas ficava na superfície, nivelado com o solo, e ao redor das
urnas foram encontradas tigelas decoradas para fins ritualísticos, talvez como oferendas
de alimentos (SCHAAN, 2007, p. 52).
Devido a alta quantidade de pratos e tigelas encontradas em superfície no sítio
Greig II, aquele que estudamos aqui, além de vestígios de fogueiras e restos de sementes
carbonizadas, é possível inferir que esses pratos eram utilizados em banquetes
cerimoniais e rituais xamânicos. Com isso, entende-se que os diversos seres com formas
animais, humanas e animais-humanas na decoração desses pratos e tigelas, poderiam
identificar determinadas entidades na cosmologia “Conduri” ou Konduri, porém iremos
40
elaborar esta lógica mais a frente no próximo capítulo, pois acreditamos ser necessário
este entendimento prévio das artes e das lógicas indígenas para que a análise
iconográfica seja compreendida.
As pesquisas em relação a iconografia das cerâmicas da Amazônia tem ganhado
força com o tempo, sendo analisadas com mais rigor em relação ao seu contexto, ou
seja, as pesquisas de novos sítios arqueológicos e a revisitação a coleções ou sítios já
estudados, tem ajudado na compreensão dos símbolos existentes nas cerâmicas, o
contexto geográfico e geológico, e o estudo da paisagem tem aberto novas janelas de
possibilidades interpretativas.
Isso fica mais fácil de compreender quando observamos as recentes pesquisas
sobre os geoglifos do Acre, onde a hipótese até o momento acredita no objetivo
ritualístico da construção das valas e muretas com formas geométricas interligadas por
caminhos, que se localizam sempre na proximidade de fontes de água (SCHAAN;
RANZI; BARBOSA, 2010).
Segundo Mircea Eliade (2008, p.295) os locais cerimoniais em um momento
foram profanos, e através de uma hierofania geram uma cratofania, ou seja, através de
um ou mais eventos especiais num espaço, este passa a se tornar local sagrado. Para os
grupos indígenas a sacralidade do espaço nunca se faz por si só, isoladamente, mas pelo
seu contexto, pois este sempre faz parte de um complexo que inclui as espécies vegetais
e animais, além dos lugares onde nasceram ou caminharam heróis míticos.
Eliade também se utiliza do arquétipo do “centro do mundo” para estabelecer a
compreensão de espaços sagrados, e o centro do mundo normalmente está associado a
cumes e montanhas, como o caso de Sião e Jerusalém, sendo que muitas vezes são
locais que sobreviveram a grandes catástrofes e dilúvios. Além de representar um pilar
de conexão entre Céu e Terra (Ibidem, p.302). Como já vimos anteriormente, o sítio
Greig II é localizado no topo de um platô.
Já no sentido cerimonial ou de cura, que envolve banquetes ou recursos naturais
curativos, os ensaios sobre a dádiva são bem vindos para esclarecermos o quanto as
práticas de trocas rituais foram e continua sendo estudadas. Marcel Mauss nos entregou
algumas reflexões gerais e outras específicas sobre os “Esquimós”, demonstrando os
contratos estabelecidos nas práticas de trocas entre “homens e homens”, e “homens e
deuses”:
As relações desses contratos e trocas entre homens, e desses contratos e
trocas entre homens e deuses, esclarecem todo um aspecto da teoria do
Sacrifício. Em primeiro lugar, compreende-se perfeitamente que elas
41
CAPÍTULO III
Figura 05: Área de pesquisa do Projeto Porto Trombetas no Rio Trombetas, afluente do Rio Amazonas.
Figura 06: Localização dos sítios arqueológicos ao longo do Lago Sapucuá e do Rio Trombetas
pesquisados desde 1950 a 2012. É indicado como branco e avermelhado as maiores altitude do terreno
(hipsometria).
Além disso, a autora apresenta diferentes funções para os diversos sítios como,
os ribeirinhos com características de habitação, os de terra firme como habitação e
acampamento, ou seja, locais utilizados temporariamente (para caça talvez) e os em
topo de platô como acampamentos, porém um deles possui características especiais, o
sítio Greig II. O arqueólogo Marcos Magalhães (2010; 2011; 2013) foi quem estudou
melhor este sítio e o caracterizou como local de natureza cerimonial, devido suas
evidências de cultura material e botânica, que indicam a presença de um número
considerável de plantas úteis como a bacaba, o cacauí, o jatobá (Himenaea courbaril), a
sapucaia (Lecythis pisonis), o pequiá; a copaíba, a quina (Coutarea hexandra), uxi-
amarelo (Endopleura uchi), sara-tudo (Byrsonima japurensis), marapuama
(Ptycopetalum olacoide), e o caripé (Couepia sp.) usado na fabricação da cerâmica.
Também foram encontradas contas de bauixita, duas lâminas de machado gastas, muito
carvão e sementes carbonizadas no sítio (MAGALHÃES, 2013).
É possível visualizar através das imagens dispostas abaixo, o platô se encontra
afastado dos outros sítios/habitações e que na ponta sudeste do platô, onde se encontra o
sítio, já existe um declive que é possível observar na imagem topográfica (Figura 07), as
manchas em azul são as indicações de localização dos fragmentos cerâmicos distribuído
pelo terreno. O arqueólogo Marcos Magalhães atribuiu à cerâmica Konduri da região de
44
Figura 07: Distribuição dos sítios arqueológicos na área pesquisada em Porto Trombetas.
Figura 08: Platô Greig e indicação da localização do sítio Greig II a sudeste do platô.
Figura 09: Recorte topográfico do sítio arqueológico localizado na ponta sudeste do platô Greig.
ESTAQUEAMENTO
CURVAS DE NIVEL
Fonte: Fotografia de acervo pessoal (esquerda) e imagem retirada de GOMES, 2002, p. 230.
cacicado para a cultura tapajônica, também visto como uma espécie de núcleo
ideológico (GOMES, 2002). Porém não descarta totalmente a possibilidade de serem
sociedades independentes se relacionando.
Desta forma o conceito de “fase” ou “tradição” dentro do debate epistemológico
da arqueologia está se dissolvendo, sendo utilizado não mais como uma ideia
generalizada ou como um horizonte cultural, e sim como o entendimento de culturas
simultâneas no espaço/tempo que se relacionam. Ao utilizarem termos como “Cultura
Tapajós ou Santarém”, também se desfaz a visão temporal linear. Na perspectiva linear
entende-se que a mudança na cerâmica é reflexo de mudanças nas sociedades, onde o
simples fato da cerâmica ser diferente significa que foi produzida por outro grupo
posterior, fato que não se diferencia muito da ideia de “fases” (SCHAAN, 2007). Porém
é necessário esclarecer que apesar dessas críticas e fragmentações por classificações,
não se perdeu a noção de globalidade na região amazônica, devido às relações
estabelecidas e saberes compartilhados. Isto pode ser entendido como:
(...) o todo é constituído de partes, mas um todo nunca é “o todo”, porém um
fragmento de um todo muito maior. Enfim, o todo é um múltiplo, composto
de múltiplos de múltiplos de múltiplos. Portanto, não é porque as antigas
teorias não conseguem explicar a realidade existente além desses fragmentos,
que vamos ignorar a capacidade conectiva que a construção das grandes
narrativas tem para entendermos a história. Essa história não é meramente
global. Deve-se entender que o regional também é um espaço do universal,
mas que se subdivide em territórios particulares agrupados num conjunto
maior, para cuja construção histórica todos contribuem. Ou seja, da
perspectiva do espaço regional, não só temos o particular, como também o
sentido global compartilhado. (MAGALHÃES, 2010, p.22-23).
Tendo isto em mente, os novos modelos teóricos que explicam as possíveis
complexas redes de interação entre os vários grupos indígenas que viveram na
Amazônia ao longo de milênios ainda estão se estabelecendo e se difundindo,
principalmente com mais dados encontrados a cada escavação.
4.1. METODOLOGIA
4.1.1. SIGNOS NO XAMANISMO DA AMAZÔNIA
Partindo para uma fase mais prática, se começa a análise da cerâmica Konduri
coletada no sítio Greig II, focando-se na escavação cinco em 2013. Porém, para o
melhor entendimento de algumas peças foi necessário o estudo de fragmentos de outras
escavações e de superfície, o que ocorreu em 2014. Partindo da reunião de fragmentos
49
2010, p.21-26). Denise Schaan (1996, p. 30) também destacou como os estudos de
iconografias a partir de uma semiótica de Nancy D. Munn contribuíram para o
entendimento dos sentidos e as bases comunicativas e significativas das artes indígenas.
Antônio Fidalgo (1998) especialista em semiótica entende que o signo é uma
linguagem em código que está dentro de um sistema semiológico. Desta forma, existe
uma “função signo”, ou seja, todo o signo possui uma função utilitária do objeto e seu
sentido, existindo sentidos primeiros e segundos como:
a) Prato = depositar comida. Prato + fogueira = Aquecer comida, servir ou
comer.
b) Muitos pratos reunidos = Banquete. Banquete + local especial = festa ou
ritual.
Toda a conotação precisa de uma denotação, a questão é a ideologia por trás
disso, ou seja, o modelo de pensamento cultural é a chave semiológica. Para o presente
trabalho, se tem como chave a etnografia sobre os indígenas da Amazônia.
Como foi exposto anteriormente, entende-se que a forte presença de pratos e
restos de fogueiras no sítio Greig II está vinculada a prática de banquetes cerimoniais no
local. Assim como a presença de várias espécies vegetais para fins medicinais implicam
em práticas de cura no local, essa manipulação da paisagem e os vestígios cerâmicos
levaram o arqueólogo Marcos Magalhães a apontar o Greig II como um local
culturalmente construído para fins cerimoniais. Com isto, parto para uma análise mais
profunda, observar a decoração da cerâmica deste local para estabelecer uma
compreensão dos usos deste espaço com estes artefatos, de como a arte nesses pratos e
tigelas podem nos comunicar uma cosmologia antiga.
Para isso é importante entendermos que se o signo caracterizar o objeto
denotado, demonstrando semelhança com o objeto reconhecível, ou seja, o objeto real,
este é um ícone. Se não for esse o caso, trata-se de um símbolo. O significado se dá
quando decodificam-se os signos, encontrando o seu sentido, sejam estes símbolos ou
ícones. Porém a significância se dá quando descobre-se a importância destes signos
numa cadeia semiológica e na cultura como um todo. Denise Schaan sintetizou:
Um signo é, em princípio, tudo aquilo que possui significado para alguém,
que diz ou comunica alguma coisa. Os vestígios materiais de uma sociedade
pré-histórica são signos que informam algo sobre o comportamento social e
cultural daquele grupo. Os signos podem ser arbitrários ou artificiais, e nesse
sentido a compreensão de seu significado depende de uma convenção
estabelecida e socialmente aceita (...).
(...) Alguns signos não necessitam de convenções para que sejam
compreendidos e são chamados signos naturais ou índices. Um exemplo
54
(...) Em seu trabalho de campo junto aos Wayana, Velthem observa que os
padrões decorativos utilizados, apesar de sua temática “abstrata”,
representam uma visão cosmológica socialmente compartilhada e são
condição de valorização étnica. Para esse povo, não só a pintura corporal
representa humanidade e socialização, como os objetos, para se tornarem
sociais, devem ser decorados com os desenhos, que são tidos como
“sobrenaturais” (SCHAAN, 1996, p.27).
humano, mas só pode ser visto como tal por outro animal, desta forma o xamã veste
diversas roupas no intuito de reconhecer os seres que lida, e para traduzir seus dizeres
aos outros durante o rito.
Lagrou (2007) para falar sobre a fluidez das formas entre os xamãs, utilizou de
um relato sobre o processo de iniciação de um xamã através de um yuxin (ser
espiritual):
Pajé dá e tira vida. Para virar pajé, vais sozinho para mata e amarra o corpo
todo com Envira. Deita numa encruzilhada com os braços e as pernas abertos.
Primeiro vêm as borboletas da noite, os husu, elas cobrem seu corpo todinho.
Vem o yuxin que come os husu até chegar a tua cabeça. Aí você o abraça com
força. Ele se transforma em murmurú vai se transformar em cobra que se
enrola no seu corpo. Você aguenta, ele se transforma em onça. Você continua
segurando. E assim vai, até que você segura o nada. Você venceu a prova e
daí fala, aí você explica que quer receber muka e ele dá. (LAGROU, 2007, p.
58).
A figura 15 demonstra uma vasilha da escavação cinco (05), que foi encontrada
entre 0-5 cm de profundidade no solo. A reconstituição demonstrou que se trata de uma
vasilha de contorno simples, pasta amarelada e densa, base circular plana de 15
milímetros (mm) de espessura, a borda de 11 milímetros (mm) é reforçada
internamente, possui 46 cm de diâmetro, indicando a possível função de preparo de
alimentos por possuir uma dimensão de médio a grande porte, o que possibilita a
mistura de várias espécies de produtos no mesmo recipiente, sendo útil assim para o
preparo de bebidas ou alimentos complexos. Além de possuir um motivo decorativo
icônico zoomorfo, uma rã em relevo na parede externa e borda da vasilha.
Na imagem há uma relação dos períodos de metamorfose no processo de
desenvolvimento fisiológico do anfíbio, que será útil para esta e próximas análises
iconográficas. A fotografia de campo localizada no canto abaixo, foi realizada pela
equipe de escavação do Museu Emílio Goeldi, que apresenta como os fragmentos da
vasilha foram encontrados in loco. Ao lado na imagem, é possível observar a
reconstituição virtual da forma da vasilha a partir da análise dos fragmentos em
laboratório, a reconstituição apresenta apenas o perfil, como é de costume em pesquisas
arqueológicas.
Figura 15: Esquema de vasilha de grande dimensão com iconografia zoomorfa de rã.
Fonte: Pedra verde (LIMA, 2010, p.346). Mapa (COSTA; SILVA; ANGÉLICA,2002, p.476).
8
Uma bebida fermentada ou alucinógena produzida a partir da combinação de alguns cipós.
62
9
Onde há listras pequenas paralelas nos desenhos técnicos, normalmente na diagonal, simboliza a área
fragmentada da peça, local onde o material se partiu ou está erodido.
64
Figura 18: Motivos decorativos geometrizantes da fase Jauarí (acima) e Apostadero (abaixo).
Konduri, foi possível chegar a conclusão que tal aplique estilizado é uma repetição da
forma do girino, já abordado anteriormente neste texto. Mas em outra pesquisa,
realizada pela arqueóloga Lilian Panachuk (imagem B), o fragmento encontrado por ela
é menos estilizado e mais fácil de observar, por tanto, de identificar, mas a população
local, que vive aos arredores do sítio escavado pela pesquisadora, identificou a
decoração zoomorfa como um lagarto, o que realmente parece possível, se visto de
forma mais isolada, porém mantém-se aqui a interpretação iconográfica como sendo um
girino, devido as outras formas existentes no mesmo sítio e devido a observação que
existem formas mais detalhadas e outras mais estilizadas, quase abstratas, todas sendo
uma variação das com formas anatômicas mais claras. Também ficando clara a relação
que esta iconografia tem com os pratos.
A figura 20 apresenta um prato de 40 cm de diâmetro, borda dobrada e lábio
plano, corpo simples e base plana simples. A decoração encontra-se na borda, do lado
interno, que consiste em incisões em zig e zag, que se cruzam, formando triângulos ao
centro do cruzamento das linhas.
vermelho por todo o prato, inclusive vestígios desse nos bulbos (C e E) que não
estavam conectados as bordas, mas estavam no mesmo local e profundidade.
Há linhas em zig e zag entalhadas nas bordas logo abaixo dos apliques. Estes por
sua vez, são duas cabeças, que haviam sido chamadas por Hilbert (1955) de “caretas
duplas”. Possuem engobo vermelho e branco, com muitas incisões e ponteados
decorando as cabeças.
Nestes apliques é notável o processo metamórfico xamânico, a decoração
zooantropomorfa salta aos olhos do observador. Na peça A é possível identificar um
rosto com, dois olhos, boca aberta em forma elíptica e um nariz, este que é nariz e ao
mesmo tempo a cabeça de outro ser, onde as narinas do ser maior podem ser
identificadas como os olhos do menor. Na peça B se repete o conjunto do A, mas com
um acréscimo, por trás da cabeça antropomorfa há a cabeça de um jacaré, que é possível
de ser identificado como tal, devido a sua coluna em relevo, o focinho alongado, os
olhos sobre o focinho e a grande incidência de tal animal na região. A posição é como
se a cabeça antropomorfa estivesse sendo abocanhada pelo jacaré.
Figura 22: Fragmentos de prato trípode decorado.
Figura 32: Fragmento de borda com aplique icônico de morcego e base do vaso.
Seriam eles invocados pelos xamãs para ajudarem no cultivo das sementes ou na cura de
problemas de saúde no Greig II? É notável nas três análises que foram realizadas com
iconografia de morcegos, que as core preta e vermelha possuem forte relação com a
coloração comum do animal e da relação deste com a cor do sangue. Sabe-se que a
maioria dos morcegos se alimenta de frutas ou insetos, porém parece ser comum a
ligação morcego-sangue feitas entre os grupos indígenas.
Um rito de iniciação xamânica entre os Ikpeng, relata que os neófitos devem
mergulhar à meia-noite de lua cheia, em um córrego. Precisam afundar até segurarem-se
em um tronco submerso. De lá devem voltar seu olhar para a superfície, vendo o
exterior através do fluído disforme que é a água, e desta forma aprenderam a ver os
sons, igualmente ao morcego-cego. Esta é uma habilidade imprescindível ao xamã, pois
as visões são sons, os sons estão nos olhos. O instrutor à margem do rio queima uma
resina presente no Jatobá e a despeja na água. Isto faz com que o aroma do jatobá atraia
e paralise diversas espécies aquáticas, que flutuam ao redor do iniciado em estado de
semitorpor. Essas espécies enchem os ouvidos do iniciado com suas vozes
ininteligíveis. A resina se mistura a outros elementos dos corpos dos peixes, dos seres
espirituais e no corpo do noviço, desta forma seu corpo é construído como um
receptáculo dos sons.
Para os Tikmu-un-maxakali, o morcego-espírito é um dos grandes transmissores
dos cantos da sua gente, sendo que oferecem bananas em troca de cantos e da faculdade
de ver como o morcego, ver os sons. Por isso, entre este grupo, os iniciados como
xamãs devem passar resina com mel nos olhos, para ficarem “cegos” como os morcegos
(TUGNY, 2011, p. 96, 97 e 98). Isso demonstra o conhecimento que estes povos
indígenas possuem do processo de eco-localização que os morcegos utilizam ao
realizarem os ruídos em pleno voo no escuro.
O artefato abaixo, uma pequena vasilha inteira, foi encontrada ao lado dos
fragmentos da vasilha anteriormente trabalhada. Possui engobo vermelho e algumas
manchas de queima; possui o tamanho aproximado de um punho e tem duas figuras
modeladas nas extremidades opostas das bordas, figuras idênticas muito estilizadas,
com apenas três orifícios. Foi classificado como tendo a função de transporte de líquido
de forma individual e já que não possui tanto rigor na ornamentação, pode ter sido
produto de um (ou uma) aprendiz de ceramista ou destinado a uma criança.
78
Fonte: fotografia da equipe de pesquisa de campo do MPEG, 2007. A foto de laboratório é autoral, 2014.
Foram encontrados ao lado da grande vasilha com a rã, dois apliques modelados
estilizados de pasta marrom-amarelada, com decoração zoomorfa não identificada, onde
há a cabeça de um ser e outro menor sobre a cabeça do maior. Inferiu-se que são “alças
pegadeiras” decoradas, como Peter Hilbert (1955, p. 63) classificou outras semelhantes
provenientes de Oriximiná e Faro. As do sítio Greig II são bem estilizadas e são ôcas,
não é possível saber com certeza se são as alças da vasilha com decoração de rã.
Outro artefato similar, porém menor e mais erodido, foi encontrado na escavação
seis, o que parece ser um tema repetido dentro da iconografia Konduri.
87
Apliques
18
16
14
12
10
8 Apliques
6
4
2
0
zoomorfo antropomorfo zooantropomorfo zoomorfo não
identificaveis identificado
90
Motivos geometrizantes
9
8
7
6
5
4
3 Motivos geometrizantes
2
1
0
Zig e Zag Losangos Linhas Outras
paralelas
horizontais
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
saberes tradicionais indígenas. Além de que ficou constatado que as práticas religiosas
indígenas interferiram em muito a paisagem da própria floresta tropical. Para estes
povos nenhum rio é só rio, nenhuma pedra é só pedra, e nenhuma panela de barro é só
uma panela.
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