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Falando um pouquinho mais de Hélio

Durantes aqueles últimos anos da década de 60, Hélio era conhecido por
milhares de jovens, país afora.
Morando numa república de estudantes em Botafogo, li o famoso artigo “A
honra de ser inseto” — publicado no Correio da Manhã — transcrito numa cópia de
mimeógrafo. Um recorte original do jornal, com o artigo, era exibido por um primo meu
como uma relíquia, e ao pegarmos o jornal era inevitável demonstrar-se alguma
emoção.
Hélio oxigenava os meandros cerebrais dos jovens, entupidos por preconceitos;
apoderava-se da voz ainda balbuciante da juventude; fazia vibrar os corações sedentos
de futuro… Seu entusiasmo, sua energia, sua inteligência, lançavam luz nos
subterrâneos das mentes ainda confusas pela recente descoberta do mundo. O colorido
poético de suas palavras atiçava as ilusões que ensaiavam os primeiros passos na dança
da vida.
A despeito da incipiente comunicação entre os estudantes do país, Hélio era
admirado, pude comprová-lo várias vezes, por jovens das principais universidades,
então existentes quase que exclusivamente nas capitais dos estados. Uma certa “cultura”
circulava por caminhos mágicos, telepatia fruto da ilusão de uma ciranda universal a
cingir mãos estrangeiras, de tantas peles e tons, mas de um só ideal: um mundo fraterno,
de “pão, paz e trabalho”. Fenômeno parecido com o das religiões, também a tal
“cultura” pressupunha uma interação entre os líderes e seus seguidores. Como se a
luminosidade das doutrinas anunciadas irradiassem os corações ansiosos por luz e rumo;
como se os pregadores e seus rebanhos, ao submeterem-se aos rituais das utopias,
tivessem ampliadas as energias que os moviam, que os faziam mover montanhas…
No fundo, tudo se resumia à velha árvore de duzentos anos, plantada no Século
das Luzes, florescendo com exuberância agora em plena maturidade. Se, dessas flores,
são amargos os frutos, não sei dizê-lo com segurança. Ainda vacilo quanto ao quanto
terá valido a pena… E talvez a secreta intenção ao escrever-lhe novamente resulte da
estreita e limitada visão para avaliar o presente, avaliar as possibilidades do futuro, que
é mais seu, ainda que, a seus olhos, não faça sentido desgastar-se nessa áspera
indagação.
Hélio, como outros homens assinalados na fronte pelo heroísmo, fez escolhas
heróicas. Afinal, que celebrar naqueles que foram empurrados na direção das decisões
inevitáveis, dos atos fatais, e, estufados pela coragem da hora, rasgaram bandeiras
inimigas, imolaram-se em praça pública, mártires por impossibilidade de fuga? Só
quando há escolhas, há heroísmo. Hélio teria seguido a medicina por influências
familiares. Mas certamente não teria chocado se outras profissões houvesse escolhido.
Os bacharéis faziam sucesso, na banca e nos corações femininos… E, ainda, nada como
um casamento nobre — como foi o casamento dele — para cobrir de predicados um
oportunista medíocre. Não imagino o curso de medicina menos árduo do que nos dias
de hoje. Eu mesmo convivi com estudantes que, ao concluírem o curso, tinham os
cabelos brancos: o anel de doutor no dedo representava um rombo irreparável na massa
cinzenta e na vitalidade. Ainda assim, Hélio poderia ter montado seu consultório na
Afonso Pena, feito clientela fácil, afinal… eram tempos das róseas “pílulas de vida
doutor Ross”… Entraria nos confortáveis quadros do PRM, seria deputado, secretário
de saúde, enfim…
Ao interessar-se pela psiquiatria, como se demonstra no seu Lucidez
Embriagada, dava ele um primeiro passo… longa trajetória de muitos enfrentamentos.
Ao dedicar-se à psicanálise fazia uma escolha, no mínimo incomum para os padrões da
época. Quantas suspeitas inconfessáveis terá provocado no meio que o circundava?! Ao
submeter-se à analise didata, anos a fio, permitia-se, o que por si só já é ato heróico,
vasculhar as cavernas da alma, deparando-se com os demônios que tão amistosamente
se apoderam do coração e tão assustadoramente mostram suas presas e seus tridentes,
quando lhes sentem ameaçado o poderio. Essa etapa da vida de Hélio, verdadeiro rito de
passagem, doloroso calvário presumido sobre silêncio e resignação, o corpo e a alma
conduzidos pelas próprias mãos ao altar para receber os golpes que os armariam da
têmpera dos sábios, essa fase de sua vida queda-se no interlúdio de sua história pessoal
— quanto lhe terá custado emocionalmente, quanto lhe terá exigido em renúncia, em
desconstrução dos sagrados preconceitos impregnados pela tradição familiar?! Porque a
lógica da psicanálise, grandiosa e perversa, pressupõe lavar a própria alma antes de
pretender lavar alma alheia; expor ao espelho as próprias feridas, antes de pretender
curar as feridas do “Outro”. Desse longo suplício, nasceu o homem que conhecemos:
lúcido, sábio, sonhador — inteligência, discernimento, utopia!
Ao dedicar-se ao conhecimento, Hélio visitou pensadores herméticos, doutrinas
escatológicas, teses contraditórias, mensagens enternecedoras, propostas irrecusáveis,
versos arrebatadores… Leitura crítica? — quão absurda é essa pretensão! Separar o joio
do trigo? — quão extenuante, essa missão! Ele, como poucos, soube empreendê-los!
Admirador sem adesismo; discípulo sem capitulação; correligionário sem tutela. A
solidão! A solidão de quem articula a palavra sua. Nos ombros, o fardo de arcar com a
profecia que proclama. Hélio, quem o lê sente a confluência, suave e plena, da idéia
com a palavra, do pensamento com a expressão, do desenho das letras com o significado
profundo. Nos poemas de juventude, publicados em Minérios Domados, já faz uso de
expressões sofisticadas, primores léxicos, metáforas de estética requintada. Os artigos
que escrevia para os jornais, antes que panfletos ideológicos, proselitismos a soldo de
lobistas, ou “medonhices” lavradas sobre a perna, tão comuns aos articulistas de
plantão, os escritos de Hélio eram verdadeiras lições, lições de vida, armadas de ciência,
poesia e fé, três ingredientes para sempre imiscíveis, em suas mãos, harmonia,
inteligência, proposta de mudança. Quanto sucesso teria ele alcançado, se se dedicado à
exploração dos corações ansiosos por realizar, a preços módicos, as paranóias do
misticismo, do narcisismo, tão bem sintonizados com os mercadores do “auto-
ajudismo” e de da magia obscurantista, tipo ”seja feliz em dez lições”, ou “diário de um
alquimista do tempo dos faraós”! Teria morrido coberto de medalhas e glórias, além de
fantásticas contas bancárias. Ao contrário, Hélio sabia transmitir idéias e filosofias, com
simplicidade e clareza, dividindo com seus leitores noções arrancadas de formulações
sofisticadas e herméticas. Citava pensamentos-chave de autores inalcançáveis pelo
senso comum. Marx, Sartre, Lacan e mesmo Freud, este aparentemente mais acessível,
tinham seus requintados axiomas inseridos na escrita de Hélio com suave didática,
tornando-nos sócios de conhecimentos valiosos. No oceano de confusões e contradições
da epistemologia, quanto terá Hélio se dedicado a pesquisar, ler, entender, refletir,
avaliar, para, só então, decidir-se por uma determinada verdade?! Cite-me, por favor,
um outro intelectual brasileiro que o tenha empreendido com o despojamento
acadêmico com que ele o fez! A sabedoria, para Hélio, não era metal nobre ou pedra
preciosa que se ostentassem em salões aristocráticos; era barro plástico com que se
deveria moldar as almas. Bem que poderia ter se isolado em torre de marfim, cultivando
as flores raras do pensamento, distante da plebe ignara, descendo à profundidade das
especulações indefinidamente… Teria sido agraciado com o diploma, o fardão e a
espada; mas, sentado a uma cadeira numerada, seria outro homem, nobre, admito, mas
não um líder histórico, inquieto, beligerante, indomável, extravasando as dimensões de
seu tempo, estendendo-se além da cosmologia em que devia transitar… Ele sabia que
toda profundidade é um abismo!
Falar das lições de Hélio mereceria um longo e competente estudo. Deveria ser
de pronto arredado o conceito de scholar, que tivemos um, não muito tempo atrás,
Mefistófeles soprando quimeras ao ouvido do ex-presidente Collor, morto cedo, que
Deus o tenha… Hélio jamais se intumescia em citações beletristas, mago da oca
erudição livresca, pletora de clichês e pavonices fardadas. Talvez você possa pensar que
me atenho a essa consideração em razão do meu apreço sem limites por ele. Mas, saiba,
cultivo um estranho ponto de vista. Seja tolerante ao julgar-me: penso que existirá
sempre uma elite intelectual; a formação do homem médio (considero-me como tal!)
dependerá desses mestres, do humanismo e sabedoria que possam cultivar e transmitir.
Uma elite intelectual que enfatize a concorrência, a disputa, o “cada-um-por-si”, que
aceite a realidade humana como imutável, e adote a roleta do mercado como a solução
para os conflitos sociais, essa elite pode até estar certa em diversos aspectos, mas erra,
grosseiramente, em um único: cada vida humana é um universo prodigioso, singular e…
“inútil”! Inútil no sentido, tão sublinhado por Hélio, de que o homem não é um “tijolo”
para a construção do mundo, para a glória da história. O homem não é um degrau nas
escadarias que erguem as torres do futuro. Para cada coração, é como se o universo
principiasse… Como se um “fiat” desse partida ao incomensurável cósmico, cada vez
que uma criança lançasse seu grito inaugural. Para ele, a ênfase deve ser a construção do
homem; o mundo, bem, o mundo lhe seria dado por acréscimo.
Ah, que terá ele e seu divã, por fiel escudeiro, ouvido das bocas escancaradas,
durantes os longos anos de consultório! Bocas secas, famintas por um fio de esperança,
olhos esbugalhados ansiosos por um cisco de luz no túnel escuro das angústias
existenciais!… As infidelidades, as fantasias sexuais reprimidas, os egoísmos e taras de
vaidade, arrogância, megalomania!… Ah, os sete pecados capitais renunciariam a seus
cargos honorários, constrangidos de tantos horrores e pavores!… Verdadeiro “marechal
de ferro”, de que forças terá esse homem-poeta, sonhador, romântico e aventureiro,
alma de minérios aéreos, se feito entrincheirar para resistir a sítio tão cruel. Que
atmosfera exalava no silêncio do consultório, dia findo,

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