Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tradução
Alda da Anunciação Machado
i s i
20100617-9
Edições Loyola
Rua 1822, 341 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
T 55 11 3385 8500
F 55 11 2063 4275
editorial@loyola.com.br
vendas@loyola.com.br
www.loyola.com.br
ISBN 978-85-15-02172-7
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2010
Sumário
Introdução................. ...9
2 A humanidade de Deus............................................... 25
10 Jesus e o dinheiro.......................................................141
11 Jesus e o p od er............................................................171
12 Jesus e o puritanismo................................................191
Mais ainda, e sem exagero de qualquer espécie, pode-se assegurar que, neste
momento, a ética é vista como um assunto mais importante e mais urgente do
que a dogmática. E, sem dúvida, parece bastante claro que a ética tem hoje mais
ímpeto do que a espiritualidade e do que a mística.
Não se requer nenhum esforço mental para persuadir-se de que as coisas
estão assim. Um exemplo muito claro, que confirma o que acabo de dizer, é o
que está acontecendo na Espanha e nos países da União Européia em geral. Os
grandes temas que hoje apaixonam os homens da religião e da política, e que
transcendem em amplas dimensões a opinião pública, são quase sempre temas
que dizem respeito, de algum modo, aos comportamentos éticos, ou que estão
no âmbito da ética. São os temas que aparecem, de uma forma ou de outra, nas
manchetes dos jornais e dos telejornais. Os temas dos quais os bispos e polí
ticos tratam todos os dias. Os temas que muitas pessoas debatem na rua e nos
encontros de todo tipo e de qualquer natureza. Refiro-me a questões como o
debate sobre as células-mãe, o aborto e a eutanásia, os problemas relacionados
com a moral do sexo e da família, o casamento gay, o uso do preservativo, a
fecundação in vítro, a liberdade religiosa, o ensino da religião na escola públi
ca, o financiamento das diferentes confissões religiosas, a laicidade do Estado
e um longo et cetera que sempre termina ligado a problemas éticos.
O que vem nos dizer tudo isso? Trata-se de algo positivo ou negativo?
E alentador ou preocupante? Existem dois fatos que, em minha opinião, são
inegáveis. Em primeiro lugar, há pouco mais de cinquenta anos, os grandes
problemas teológicos, que eram vividos e discutidos apaixonadamente no
cristianismo, qualificavam-se, acima de tudo, como problemas dogmáticos: a
cristologia, a eclesiologia, a escatologia, a antropologia teológica, na qual foi
determinante o debate sobre o problema do “Sobrenatural”. Eloje, porém, em
contraste com o que acabo de dizer, os temas teológicos que agora se discu
tem e apaixonam dizem respeito, principalmente, a problemas morais, ou seja,
aos temas relacionados com a ética, que acabo de assinalar de forma bastan
te resumida. Em segundo lugar, faz aproximadamente cinquenta anos que no
cristianismo (tanto católico como protestante), havia uma geração de grandes
teólogos, cujos nomes perduram e permanecerão por muito tempo como os
homens geniais que tomaram possível a renovação da teologia cristã. Nos dias
de hoje, as grandes personalidades teológicas escasseiam e não parece exage
rado dizer que a teologia se empobreceu de forma alarmante. Nomes como
Bultmann, Barth, Bonhoeffer ou Tillich, no protestantismo; ou como Rahner,
Introdução
Podem ser justificados do ponto de vista de uma ética que apela para Cristo ou
nada têm a ver com isso? Sem ir mais longe, na Espanha, os representantes da
Igreja afadigam-se em manter privilégios que inevitavelmente lesam a igual
dade de direitos de todos os cidadãos, com o que também é lesadâ a imagem
pública da Igreja diante de grandes setores da opinião pública. Entretanto, é
significativo o fato de que, para justificar tais privilégios, aqueles que os bus
cam e os defendem costumam lançar mão da filosofia, da história, do direito
internacional... Raramente apontam o exemplo de Jesus ou apelam para o
Evangelho. Não será porque não encontram no Evangelho justificação para
suas práticas? Realmente, não o sei. Porém, qualquer que seja o caso, é uma
pergunta que deve ser feita com honestidade e liberdade. Mais ainda, com a
mesma liberdade e a mesma honestidade, também é preciso perguntar-se por
que acontece, muitas vezes, que os delineamentos éticos que se impõem nos
ambientes eclesiásticos são precisamente os delineamentos que mais convêm à
direita política. Com o Evangelho nas mãos, justifica-se eticamente essa forma
de proceder e a orientação que, nesse sentido, foi dada à Igreja?
Ampliando mais o horizonte desta introdução, é preciso defrontar-se com
os problemas traçados pela orientação geral tomada pela ética nos últimos anos.
Resumindo ao máximo este complexo assunto, pode-se afirmar que o proces
so de secularização da moral se acelerou até dissolver socialmente sua forma
religiosa: o próprio dever. Entramos, assim, no que se denominou “a época do
pós-dever” (G. Lipovetsky). Como afirma este mesmo autor, “nisto reside a ex
cepcional novidade de nossa cultura ética”2. Nossa sociedade, longe de exaltar
as ordens superiores, as ordens do dever e da obrigação, torna-as ineficazes,
tira-lhes crédito e consistência, dissolve e desautoriza o valor da renúncia e do
sacrifício, dedicando-se a estimular os desejos imediatos, a felicidade intimista
e materialista, a pura diversão sem algo mais. Não parece exagerado afirmar
que nossas sociedades liquidaram os valores sacrificais, quer se trate de valores
ordenados à “outra vida” quer de valores com finalidades profanas. O que im
porta às pessoas e as preocupa não é o dever, mas sim o bem-estar3.
Assim sendo, chegados a este ponto, atingimos â contribuição que, em
minha maneira de ver, este livro pode oferecer. Nele procura-se ajudar, a
quem o ler, a se dar conta de que a grande contribuição de Jesus e do cris
4 E. FUCHS, LÉtíque chrãienne. Du Nouveau Testament aux déjíts contemporains, Genebra, Labor
et fides, 2003, 151.
1
Uma ética desconcertante
O processo de mudança
Sendo esse o estado das coisas, a pergunta que muitos se fazem é esta:
Onde vai parar tudo isso? Não estamos nos precipitando por uma ladeira
que nos leva diretamente ao despenhadeiro, ao desastre, à desintegração da
sociedade em que vivemos?
O Evangelho e a mudança
A ética de Jesus foi uma ética de mudança. Com efeito, Jesus mudou muitas
coisas. Todavia, de tudo o que Jesus modificou, o que mais chama a atenção,
sem dúvida, é a mudança que introduziu nos valores que devem reger a vida
das pessoas e na conduta que têm de adotar aqueles que pretendem assumir
a forma de vida traçada pelo Evangelho.
As mudanças introduzidas por Jesus, mediante sua forma de entender
a ética, foram tão profundas que surpreenderam, desconcertaram e até es
candalizaram muita gente. Nesse sentido, o que mais chama a atenção é o
fato de que Jesus desconcertou e escandalizou principalmente as pessoas
mais religiosas de seu tempo. Os pecadores, os publicanos, as prostitutas,
as mulheres de má fama, os excluídos da sociedade, toda essa espécie de
“chusm a” (com o dizem os “observantes”) estava encantada com Jesus e o
seguia entusiasmada. Isso quer dizer que aquelas pessoas infelizes se sen
tiam bem com Jesus, sem dúvida, porque ele as compreendia, as acolhia,
nunca lhes jogava nada na cara, tratava-as com respeito e, por certo, aque
las pessoas que, para os “respeitáveis”, eram uns desventurados, sempre
encontravam carinho em Jesus.
Lendo os evangelhos com atenção, percebe-se de imediato que Jesus
compreendeu que a religião então existente, em seu povo e em seu tempo,
não levava a lugar nenhum. E, menos ainda, a ética pregada por aquela reli
gião. Era, certamente, uma religião solene, metódica, autoritária, com mui
tos sacerdotes e levitas, com um templo imponente, que possuía centenas
de funcionários e normas para tudo e para todos. Porém, pelo visto, Jesus
compreendeu também rapidamente que, com tudo aquilo, não se conseguia
o que mais importa na vida, a saber: que todos sejamos pessoas melhores e
que todos vivamos mais felizes. Definitivamente, uma religião e uma ética que
não servem para isso servem para quê? Daí a correlação entre o Evangelho e
a mudança. Justamente do que necessitamos agora. i
A ética de Cristo
Mudança e desconcerto
O enterro e as núpcias
A mudança que Jesus trouxe a esta terra, à nossa maneira de entender e praticar
a religião e a ética nesta vida, é tão forte que o próprio Jesus a comparou com as
duas coisas mais opostas que existem no mundo: a morte e a vida. Ou, dito com
mais propriedade, Jesus comparou todo esse assunto com os símbolos da morte
e da vida: o enterro e as núpcias. Porque nisso, nada menos que nisso, está a di
ferença entre João Batista e Jesus. O relato encontra-se no evangelho de Mateus,
quando compara João Batista com Jesus, utilizando a pequena e singela história
de dois grupos de crianças que brincam na praça de um povoado. Um dos gru
pos brincava representando um enterro, cantando lamentações, ao passo que o
outro brincava de representar umas núpcias, tocando uma flauta (Mt 11,16-17).
E Jesus explica o que quer dizer isto: “De fato, veio João; não come nem bebe, e
dizem: ‘Ele perdeu o juízo’. Veio o Filho do Homem, ele come e bebe, e dizem:
‘Eis um glutão e um beberrão, amigo dos coletores de impostos e dos pecado
res!’” (Mt 11,18-19). Jesus compara João Batista com um enterro, enquanto com
para a si mesmo com um casamento. João não comia nem bebia, ao passo que
Jesus fazia essas coisas até o extremo de haver quem o tomasse por um comilão e
um beberrão. João não desfrutava da vida, de sorte que sua vida era morte. Jesus,
ao contrário, desfrutava da vida, a ponto de ser tido por um vicioso.
A ética de Jesus é a ética da vida, do prazer e do desfrute da vida. Jesus não
foi um asceta do deserto. Nem foi um penitente que castigava seu corpo, como
o fazia o Batista. Jesus acreditava na vida. E queria (e quer) que todos vivamos
e gozemos da vida. O que acontece é que todo o mundo quer desfrutar, porém
desfrutar ele próprio, ele, acima de tudo. E a muitos, pouco importa que os
demais passem bem ou mal. A ética de Jesus é a ética do prazer de viver para
todos, do prazer compartilhado por todos, sem excluir ninguém. E isso é o que
mais custa assumir e aceitar como projeto de vida, porque a ascética mais dura
não é a da renúncia, mas sim a da doação. Nós, cristãos, vivemos durante vinte
séculos a ascética da renúncia. Está amanhecendo o dia luminoso da doação.
A mudança desconcertante
certo provém, acima de tudo, das mudanças que modificam nossas crenças e
nossos valores. É isso o que está ocorrendo. E isso trouxe como consequência,
entre outras coisas, que as duas grandes instituições transmissoras de crenças
e valores, a religião e a família, não só se veem submetidas a uma profunda
crise de deterioração, mas também (precisamente por isso) perderam capa
cidade para transmitir as crenças e os valores que, durante séculos, deram
sentido à vida das pessoas em nossa cultura. Como se disse, com toda a razão,
“a família e a religião, enquanto instituições primordiais de um sistema de or
ganização social baseado nelas, veem-se profundamente afetadas pela emer
gência de outro sistema, que promove o desenvolvimento de organizações
racionais desenhadas intencionalmente para cada tipo particular de função”6.
Isso é, provavelmente, o que mais deslocou a todos nós. Por isso nos assusta
a decomposição da família a que estamos assistindo. Basta pensar na violência
familiar que, com relativa frequência, chega até o assassinato. Assustam-nos,
igualmente, os comportamentos das religiões que, por vezes, desencadeiam
tanta violência, a ponto de chegar-se à imolação dos terroristas suicidas ou às
agressões que, por motivos religiosos, são feitas aos que não compartilham
determinadas crenças ou certas normas de conduta.
Segundo parece, o fundo do problema está em que antigamente as pes
soas buscavam o sentido da vida a partir das duas grandes instituições: a reli
gião e a família Agora, no entanto, estamos vivendo uma mudança pela qual
a relação institucional está sendo substituída pela relação pessoal. O que dá
sentido à vida das pessoas não é a instituição a que cada qual está vinculada,
mas as pessoas com as quais se relaciona. Assim sendo, para buscar um senti
do para a vida, o fator determinante é cada dia menos a relação institucional
(religiosa, fam iliar...). E é cada dia mais a relação baseada na “comunicação
emocional”, em que as recompensas derivadas dela são a base primordial para
que tal comunicação se mantenha7. Ao afirmar isso, estamos falando do que,
com razão, foi denominado “relação pura”, que se baseia na comunicação, de
tal forma que entender o ponto de vista da outra pessoa é o essencial8. Por isso,
o casamento está em crise e ter um parceiro está no auge. Porque o casamento
6. J. PÉREZ VILARINO, Formas complejas de vida religiosa, in J. PÉREZ VILARINO (ed.), Religíóny
soáedad en Espanay los Estados Unidos. Homenaje a Ríchard A. Schoenherr, Madri, CIS, 2 003, 128.
7. A. GIDDENS, op. cit., 74.
8. A. GIDDENS, op. cit., 75. '
A ética de Cristo
nais e nos deveres que elas trazem consigo. Todavia, a relação com a pessoa
baseia-se na relação pura, o que supõe e exige clareza, transparência, sinceri
dade, doação de si mesmo, fidelidade sem condições e comunicação emocio
nal, que se expressa em afeto, bondade e ternura.
No momento que estamos vivendo, e tal como a vida se tomou, muitas pes
soas estão pessimistas, sentem-se mal, porque são demasiadas as coisas que,
efetivamente, vão mal. E, como disse, as duas grandes instituições (religião e
família) que dão sentido para o comum dos mortais estão indo mal. Daí abun
darem, quiçá em demasia, as críticas contra a religião e as censuras ou rejeições
à família Provavelmente, muitas das críticas contra a religião e contra a família
não carecem de razão, com o que estou afirmando que o criticável tem de ser
criticado. E o questionável tem de ser questionado. Por isso, a ética de que hoje
necessitamos tem de ser construída sobre a base de uma liberdade que seja ca
paz de questionar e criticar tantas coisas que, se houvessem sido questionadas
e criticadas muito antes, talvez o mundo não estivesse como está. Pior que a
maldade é a indiferença, porque a “maldade” atormenta as consciências, en
quanto a “indiferença” deixa a pessoa tranquila e pensando que a dor do mun
do, principalmente a dor dos mais infelizes, não depende dela, nem será ela a
remediá-las. A ética da mudança tem que ser, portanto, uma ética crítica. E isso
antes de mais nada. Por isso, a ética de Jesus foi enormemente crítica quanto a
muitas coisas que funcionavam mal em seu povo e em seu tempo.
Mas não basta criticar. Criticar é censurar, denunciar, rechaçar, e só com
isso não vamos a lugar nenhum. Além de criticar, é preciso construir. Se des
montarmos as instituições que dão sentido, e não fizermos mais do que isso,
ficaremos com o nada. A partir do nada, porém, só é possível o vazio, e não
a mudança. Jesus criticou o criticável. E, no lugar do que criticava, pôs outra
coisa, a saber, ofereceu os grandes valores do Evangelho.
É inevitável, é bom, é, inclusive, necessário o desconcerto em que vi
vemos, porque somente assim será possível sermos sacudidos para despertar
desta espécie de torpor que é a indiferença. E assim poderemos nos somar às
muitas testemunhas atuais da mudança que anuncia um futuro melhor e um
mundo diferente. Porém, contanto que, ao mesmo tempo em que desmonta
A ética de Cristo
Habermas não vai além desta afirmação, o que é um exemplo (mais um, entre
tantos) da dificuldade que muitos experimentam na hora de fundamentar
uma ética a partir da religião ou, mais exatamente, a partir da teologia.
E tal dificuldade é compreensível, porque, para começar, há o fato in
questionável de muitas pessoas de boa vontade, sem necessidade de lançar
mão de religião alguma, com portarem -se como pessoas idôneas e, certa
mente, darem exemplo de integridade e honradez a quase todos os crentes
do mundo inteiro. Ademais, basta folhear qualquer bom manual de ética
fundamental para dar-se conta de que, efetivamente, existem sérias razões
para compreender que haja pessoas persuadidas de que se pode fundamen
tar uma ética sem ter que recorrer a nenhum a crença religiosa. Mais ainda,
como acerta damente se afirmou, “a partir do Iluminismo, os modernos ti
veram a ambição de assentar as bases de uma moral independente dos dog
mas religiosos, que não recorre a nenhum a revelação, libertada dos medos
e recompensas do além: ofensiva antirreligiosa que estabeleceu a primeira
onda da ética moderna laica”h
Por certo, não é minha intenção analisar aqui a problemática que se
estabelece a partir do que acabo de apontar. O que quero deixar bem claro é
que a ética de Jesus foi, em todos os momentos, uma ética que se sustentava
; na fé em Deus e que, portanto, só se pode explicar com base em tal crença.
O problema suscitado para muitas pessoas quando se trata deste assunto é o
fato de que o Deus que lhes ensinaram é algo tão estranho e até tão difícil de
aceitar que, em lugar dele, preferem buscar outro sentido e outra orientação
para suas vidas, à margem de toda religião e de toda crença sobrenatural. Por
essa razão, se é que queremos compreender a fundo a ética de Jesus, a pri-
; meira coisa a ser feita é repensar a ideia que temos de Deus. E analisar a fundo
se esse nosso Deus coincide ou não com o Deus que Jesus anunciou. Aqui
está o primeiro problema que se delineia quando se trata de analisar a ética
de Cristo. Somente assim é possível entender a ética que ele nos deixou como
projeto de vida. Mais ainda, não parece arriscado garantir que, se a moderni
dade (a partir do Iluminismo) abandonou qualquer delineamento ético que
tivesse como ponto de partida a ideia de Deus, isso ocorreu porque o “Deus”
que as pessoas tinham em mente naqueles tempos era um “Deus” tão abso
lutamente insuportável que o que a cultura fez foi libertar-se de semelhante3
3. G. LIPOVETSKY, El crepúsculo dei deber. La ética indolora de los nuevos tiempos democráticos, 11.
A humanidade de Deus
carga. E isso se fez porque o que as pessoas queriam era simplesmente poder
viver sem medo, sem angústia, com paz e liberdade4.
Um Deus diferente
Quando, há anos, li o livro de Ch. Duquoc intitulado Deus diferente, não con
segui compreender a profundidade do que se afirma ali. Com o passar do
tempo e a força das adversidades com que a vida atinge a nós todos, eu me
dei conta de que a maior parte de nossos problemas de fé e religião tem suas
raízes em uma ideia de Deus que, por pouco que se pense nela, torna-se difí
cil de aceitar e, para muitas pessoas, é até possível que se torne insuportável,
porque Deus é relacionado com quase todas as desgraças que acontecem no
mundo, e é posto como censor e juiz de muitas e muitas coisas que nos pro
porcionam felicidade e nos fazem desfrutar da vida. Compreende-se como,
com um Deus idealizado nesses moldes, haja cada dia menos pessoas que o
aguentem. E muitos dos que o aguentam, carregam-no como um fardo pe
sado que é suportado por razões obscuras que ninguém consegue explicar.
Daí, em boa parte, os muitos problemas de caráter religioso suscitados com
tanta frequência aos crentes.
A questão está em que, desde crianças, nos ensinaram como coisa conhe
cida o que, na realidade, não se pode conhecer. O evangelho de João nos diz
que “ninguém jamais viu a Deus” Qo 1,18). Uma frase vulgar e sabida, se pas
sarmos por ela como gato sobre brasas. Uma vez que, por pouco que se pense
nesse texto evangélico, logo se compreende que, na realidade, o que o texto
de João quer dizer é que Deus não está a nosso alcance e que, portanto, não
podemos conhecê-lo tal como é. Por isso é o Transcendente, vale dizer, o que
está mais além de nossa capacidade de compreender, seja ele quem for.
O que acontece é que a curiosidade humana e, acima de tudo, a presun
ção e até a petulância de alguns homens pretendeu saber o que não se pode
saber. Mais ainda, a partir dessa presunção, foi-nos ensinado que Deus é como
o pensaram os filósofos antigos. E como o sentiram os homens religiosos de
tempos remotos. O fato é que o Deus que nos ensinaram na tradição cristã é
4. Esta é uma das conclusões mais claras que se deduzem do volumoso estudo de J. DELUMEAU,
Le péché et la peur. La culpabílisation en Occídent. XIII-XVIII siècles, Paris, Fayard, 1 983.
A ética de Cristo
Deus encarnado
a Deus é Jesus Portanto, o correto seria dizer, de um modo melhor, que Deus
é Jesus Porque em toda oração predicativa, o desconhecido é o sujeito, de tal
forma que a função do predicado é dar a conhecer o sujeito e explicar o sujei
to Exatamente a função e o papel que Jesus desempenha: revelar-nos Deus e
dizer como é esse Deus em quem cremos e a quem buscamos. Aí está o sentido
profundo da afirmação de Jesus: “Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho, e
aquele a quem o Filho quiser revelá-lo” (Mt 11,27). Somente Jesus nos pode
dar a conhecer o Pai-Deus. Ou, dito de maneira mais taxativa: somente em Jesus
conhecemos a Deus. Esta é a razão pela qual o próprio Jesus disse ao apóstolo
Filipe- “Aquele que me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Ver a Jesus é ver a Deus.
Por isso pode-se e deve-se dizer que em Jesus se concretizou o grande
acontecimento que marcou definitivamente a história das tradições religiosas da
humanidade No homem Jesus, o divino fundiu-se com o humano, de tal modo
que a partir de Cristo, ficou demonstrado que Deus é diferente do que se su
põe Porque o distintivo mais profundo de Deus não é sua divindade (que nem
sabemos o que é nem podemos sabê-lo), mas sim sua humanidade. Sem dúvi
da nisso está radicado o mistério profundo de Deus que, sem deixar de ser o
Transcendente é a realização mais plena e mais profunda da humanidade.
essa linguagem, porque essa maneira de falar de Deus é vista como uma falta
de respeito, sendo até possível que, para alguns, soe a blasfêmia. Por quê?
Sem dúvida, é muito forte entre os humanos a sedução pelo divino. E, em
contrapartida, para determinadas mentalidades, é muito forte também o des
prezo pelo humano. E de fato é assim, por mais estranho que pareça. Nasceu das
religiões, em tempos remotos, essa maneira de pensar. E sabemos que os mitos
religiosos fomentaram essa mentalidade. No começo da Bíblia, no mito do
paraíso, afirma-se que a tentação satânica consistiu em seduzir com o desejo
de “ser como Deus” (Gn 3,5). Enquanto, totalmente ao contrário, o mistério da ;
encarnação nos diz que, para trazer salvação e esperança ao mundo, a primeira
coisa que Deus viu que tinha de fazer era “humanizar-se”, fazer-se homem, de
maneira que “não considerou como presa a agarrar o ser igual a Deus. Mas des-
pojou-se, tomando a condição de servo, tomando-se semelhante aos homens”
(Fl 2,6-7). Nesta altura, com toda a certeza, não se pensou suficientemente na
mudança assombrosa que isso representa. Refiro-me ao que já apontei antes:
nossa maneira de entender Deus e de nos relacionar com Ele. O Deus que se
nos revela em Jesus não é o Deus temido e temível que aparece em numerosos
textos e tradições do Antigo Testamento. Nem é o Deus Absoluto e distante, a
divindade “zelosa e perturbadora”, na qual criam os gregos (E. R. Dodds).
O Deus que se nos revelou em Jesus pulverizou e aniquilou nossa deso
rientada sedução pelo divino, por tudo o que é grande e poderoso, pela força e
pela grandeza, pelo domínio e pelo saber sem limites. Tenha-se em conta que
essa pretendida “sedução pelo divino” não é nem significa atração pela “vida
sobrenatural”, da qual falam os teólogos. Nem tampouco é a sedução por nos
parecermos com o comportamento entranhavelmente bom do Pai, tal como
Jesus o apresenta no Evangelho. A “sedução pelo divino”, da qual nós, mor
tais, padecemos é a atração perversa por tudo o que nós atribuímos a Deus:
a atração pelo poder e pela glória, pelo domínio e pela grandeza, pelo êxito e
pelo triunfo, pelo saber, por ter tudo o que imaginamos ser próprio do divino.
Coisa que se manifesta em nós até na linguagem de todos os dias. Quando
obtemos triunfos e êxitos, garantimos que as coisas estão acontecendo “divi
namente”. Quando alcançamos um posto importante ou dominamos os ou
tros, dizemos que isso é “divino”. Assim fazemos uma “divindade” na medida
de nossos desejos mais inconfessáveis.
Transformamos o “divino” no cabide no qual penduramos esses nossos
instintos que normalmente se traduzem em dor e humilhação para aqueles
A ética de Cristo
que não podem dizer que a vida lhes corre “divinamente”. Por isso, até nos
parece exemplar o amor divino, a “caridade” ( agape ), enquanto a pessoa
decente, a pessoa que pode andar pela rua com a cabeça bem erguida toma
distância do amor humano, da atração e do carinho que brota espontanea
mente entre as pessoas. Que dirá então quando se trata de um autêntico
“apaixonamento” (eros). A “caridade” é praticada com boa consciência e até
com ostentação. O “amor”, se é que se vive, se tem ou se pratica, é coisa
que as pessoas “de boa família” mantêm em segredo ou, inclusive, ocultam
para não prejudicar a própria imagem entre as pessoas “de bem ”. Afinal de
contas, amar é uma “fraqueza” humana. E existe um número excessivo de
pessoas que não suportam fraqueza alguma. O problema está em que, por
aí, começa nossa perdição. Refiro-me à perdição dos “puritanos” de sempre,
de todos nós que passamos a vida com a convicção (inconsciente) de que o
“meio principal da salvação está na pureza, e não na ju stiça” (E. R. Dodds).
Daí nos causar má impressão ver duas pessoas se beijando com paixão na
rua, ao mesmo tempo em que sentimos admiração pelos desavergonhados
que subiram até os altos postos e os pedestais que esta sociedade sobrecar
regada de mentiras e cinismos oferece.
O lado obscuro das religiões está em que, com frequência, procedem desu
manamente para com a pessoa, principalmente determinadas pessoas que,
por qualquer motivo, estão mais predispostas a integrar em suas vidas o
conservadorismo religioso, o fundamentalismo religioso e é até possível (em
determinados casos) o fanatismo religioso. Isto é certo até tal ponto que a
crise do cristianismo, nos últimos tempos, se explica porque, em boa parte,
o movimento que nasceu com o Jesus histórico, e foi reforçado com o Cristo
da fé, desumanizou-se. Porque nem os homens religiosos em geral, nem
nós, cristãos, de forma concreta, cremos verdadeiramente e levamos a sério
a humanidade de Deus. Assim sendo, estamos diante de uma das coisas mais
decisivas e mais urgentes neste momento histórico que estamos vivendo. Se
o enorme potencial das religiões se pusesse a serviço da humanização, em
vez de servir para desumanizar as pessoas, certamente a vida seria diferente
e este mundo seria mais habitável.
 humanidade de Deus
Á ética da humanização
Está claro que, se o próprio Deus viu que para trazer salvação e vida a este
mundo teve de se humanizar, todo aquele que quiser trazer algo de luz e es
perança a esta terra não tem outro caminho. Ou a ética é ética da humanízação
ou não é ética que mereça nossa atenção, nosso interesse e nosso respeito. Se
a questão for vista à luz trazida pelo cristianismo, o caminho de um compor
tamento honrado e correto está claro e bem traçado.
O problema está em saber o que se deve considerar como humano e o
que se há de qualificar como desumano. Ou, em outras palavras, trata-se de
estabelecer (com a precisão que for possível) o que nos humaniza e o que nos
desumaniza. Isso não é fácil de se explicitar, porque, em boa parte, é a cultura,
cada cultura, que se encarrega de fixar os limites do humano e do desuma
no. Não falamos de usos e costumes. Nem falamos de instituições religiosas,
políticas, culturais. Tudo isso, por muito importante que seja, estrutura-se e
organiza-se com critérios que são prévios: os critérios sub ministrados pela
cultura. E é neste ponto que está o problema. Há culturas nas quais se consi
dera como “humano” que algumas pessoas tenham mais direitos que outras.
Ou que tenham mais dignidade que outras. E assim sucessivamente. Isso
equivale a dizer que existem culturas nas quais a igualdade de todos os seres
humanos não é um valor humano fundamental. Falo da igualdade em direi
tos e deveres. E o que se diz acerca da igualdade, pode-se dizer de coisas mais
básicas ainda e, sobretudo, da própria vida.
Por essa razão, a proposta que se faz neste livro, em vista do que foi a
vida e o ensinamento de Jesus, é que a vida dos seres humanos implica neces
sidades inteiramente primárias e básicas que são o critério determinante da ética
i delineada e oferecida por Jesus em seu Evangelho. A própria necessidade de
viver, a segurança da vida, a integridade da vida, a defesa da vida, a dignidade
de toda pessoa viva, a igualdade entre todos os humanos, o respeito que todos
merecemos, tudo isso é tão básico, tão primário, tão fundamental que, a partir
daí, poderemos começar a construir e definir uma ética que seja válida para
aqueles que, a partir da opção livre da fé, queiram organizar sua vida e sua
. convivência com os demais, qualquer que seja a cultura a que pertençam.
Em última instância, tudo isso é assim porque, de acordo com ojor o Deus
no qual se crê, assim será a ética a ser deduzida dessa crença. Se no século XVIII
as pessoas criam em um “Deus” tão insuportável, que de semelhante crença se
A humanidade de Deus
i
relato da Paixão, lançam' ao rosto de Pedro: “Tu também estavas com Jesus, o
galileu!” (Mt 2 6,69). Parece, pois, que, se chamassem a alguém de “galileu”,
não era precisamente um elogio. Certamente por isso, ao relatar o julgamento
político que se fez a Jesus, o evangelho de Lucas conta que “a esSas palavras
(‘Ele subleva o povo [...] desde a Galileia até aqui’), Pilatos perguntou se o
homem era galileu” (Lc 23,6). E, em consequência, o procurador romano ten
tou livrar-se dele, enviando-o ao rei da Galileia, Herodes, que naqueles dias
se achava em Jerusalém. Mais tarde, precisamente no dia de Pentecostes, em
meio à confusão que se criou, motivada pelo ruído, pelo vento e pelas línguas,
o livro dos Atos diz que a multidão, sem dúvida algo perplexa por aquele
barulho, perguntava-se: “Todos esses que falam não são galileus?” (At 2,7). É
possível que se dissesse isso dos discípulos de Jesus em tom depreciativo. Em
qualquer caso, é certo que os galileus eram tão malvistos que a expressão “ga
lileu estúpido” era, segundo parece, uma forma habitual de insultar alguém,
como consta nos escritos dos rabinos daquele tempo1. Ademais, sabe-se que
os judeus riam dos galileus e faziam piadas de sua forma de falar12. E havia
aqueles que diziam que os galileus eram ignorantes impuros com os quais não
se devia manter relação alguma3. Tudo isso é certo a ponto de se haver tom a
do famosa a queixa de Yojanán ben Aakkai, desesperado pelo fracasso de sua
missão na Galileia: “Galileia, Galileia, tu odeias a Torah!”4.
Evidencia-se, portanto, que Jesus, quando pensou onde podia pôr em
prática seu projeto e difundir sua mensagem, a primeira coisa que fez foi diri-
gir-se à região dos pobres, ao país das pessoas sem importância e, além disso,
uma província cujos habitantes não eram bem-vistos e, para muitos, eram
pessoas desprezíveis ou que davam margem ao riso e à piada fácil, inclusive,
possivelmente, às expressões mais grosseiras. Além do mais, não esqueçamos
que Jesus era da Galileia, exatamente de Nazaré. De fato, Jesus era chamado
“o galileu” (Mt 2 6 ,6 9 ; cf. Mt 2 1,11). Um apelativo que continha certamente
uma carga de evidente desprezo. Mais ainda, sabemos que, segundo parece, o
primeiro nome que, provavelmente, se deu aos cristãos foi a “seita dos naza
1. Talmud de Babilônia, Erabín, 53b. Citado por M. PÉREZ FERNÁNDEZ, Jesús de Galilea, in
M. SOTOMAYOR e J. FERNÁNDEZ UBINA, Historia dei Cristianismo, I, El Mundo Antiguo, Madri,
Trotta, 2 0 0 3 , 96.
2. Talmud de Babilônia, Meguilla 24b. Cf. M. PÉREZ FERNÁNDEZ, op. cit.., 96.
3. Talmud de Babilônia, Pesahim 49b . Cf. M. PÉREZ FERNÁNDEZ, op. cit., 96.
4. Talmud de Jerusalén, Sabbat 15d. Cf. M. PÉREZ FERNÁNDEZ, op. eit., 96.
A ética de Cristo
renos”, uma expressão que, tal como apresentada por Lucas nos Atos dos
Apóstolos (24,5), tem uma carga de caráter político, inclusive com matizes de
cunho subversivo5, ao menos no que se referia ao comportamento de Paulo. E
evidente, pois, que Jesus não cuidou de sua imagem pública. Nem se afanou
por conquistar para si os notáveis ou as classes influentes da sociedade de seu
povo e de seu tempo. Isso leva a pensar que aquele “nazareno”, da desprezada
Galileia, tinha alguns critérios que não se ajustavam com o que normalmente
pensamos quando se trata de organizar e pôr em andamento uma obra, uma
instituição ou simplesmente uma campanha informativa que pretende influir
na opinião pública. Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comu
nicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou para isso nem
as plataformas de maior esplendor, nem os postos de privilégio, nem o favor
dos mais influentes, nem, por certo, os que detinham o poder e o dinheiro.
Decididamente, Jesus adotava alguns critérios apostólicos ou pastorais que,
em questões muito fundamentais, não se ajustavam aos nossos.
Mais do que isso, há um detalhe que não pode passar despercebido.
O texto do evangelho de Marcos diz que Jesus foi para a Galileia quando foi
informado de que João Batista havia sido encarcerado (Mc 1,14). Com efeito,
João acabou sendo detido, lançado no cárcere e decapitado pela tirania de um
rei corrupto, Herodes (Mc 6 ,1 7 -2 9 par.). Como é lógico, Jesus tinha de saber
o que estava em jogo: o escândalo público do rei e a liberdade profética de
João, o que lhe custou a perda da liberdade e, posteriormente, a vida. Por
tanto, quando Jesus tomou a decisão de ir pregar na Galileia, o que na rea
lidade fez foi dirigir-se a um país governado por um tirano sem escrúpulos e
que, segundo parece, não estava disposto a admitir “denúncias proféticas” de
ninguém. Portanto, Jesus foi para a Galileia ciente de que estava se introdu
zindo na boca do lobo. Daí, nada haver de estranho que o rei Herodes tivesse
seus receios (Mc 6 ,1 6 par.), que expressavam a convicção de que Jesus era
“o profeta” esperado pelo povo6, o que tornava mais perigosa sua estada na
Galileia. Herodes, portanto, tinha suas razões para abrigar o desejo de matar
Jesus (Lc 13,31). Não obstante, nada disso freou Jesus em seu projeto de ir
em busca dos pobres, nem o fez duvidar ou tomar precauções, para falar com
“discrição” em semelhante situação. De fato, quando disseram a Jesus que
Herodes o procurava para matá-lo, sua resposta foi surpreendente e segura
mente provocativa: “Ide dizer a essa raposa: Eis que eu expulso demônios e
realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia chego ao termo. Mas é neces
sário que eu prossiga o meu caminho hoje, amanhã e no dia seguinte, pois
não é possível que um profeta pereça fora de Jerusalém” (Lc 13,32-33). Esse
dado é reconhecido como histórico pelos melhores comentaristas dos evan
gelhos sinõpticos7. E é claro que qualificar Herodes como “raposa”, como se
fosse um “zé-ninguém”, era o mesmo que dizer ao rei: “Não tens poder algum
sobre mim, nem vais modificar minhas idéias ou meus projetos”. Jesus tinha
a clara convicção de que era um profeta. E que seu final era a morte. Isso,
porém, não seria decidido por um personagem sinistro como Herodes, muito
embora não faltem estudiosos com a opinião de que talvez essa ameaça do
rei tenha impelido Jesus a seguir seu caminho rumo à capital8. Seja como for,
esse detalhe é secundário. O ponto forte é a liberdade profética de Jesus.
Sociologia e hermenêutica
Se Jesus viveu em um lugar humilde e pobre, e se, além disso, conviveu com
gente humilde e pobre e, consequentemente, seus amigos e acompanhantes
foram pessoas de condição ínfima, inclusive indivíduos que não eram preci
samente sujeitos exemplares, tudo isso não pôde acontecer por casualidade.
Nem cabe afirmar que Jesus não mediu bem as consequências da Ada pouco
“edificante” de tais indivíduos, como diria hoje uma pessoa “de ordem” ou
“de boa família”. Aqui tocamos um ponto delicado e, para alguns, a origem
do escândalo, com o qual todos nós, antes ou depois, acabamos nos chocan
do, porque não existe maneira de digeri-lo. A que me refiro?
A decisão de Jesus ao ir para a Galileia a fim de lá viver com os últimos
é a constatação de um fato que está mais do que demonstrado em sociologia:
as mudanças profundas e duradouras na sociedade não vêm de cima, mas de baixo.
A sociedade não muda por decretos ditados pelas autoridades, mas porque as
“Jesus veio para a Galilesa”
pessoas evoluem em sua forma de pensar, em sua avaliação das coisas e das
pessoas, em suas convicções e crenças. E o que se afirma acerca da sociedade
em geral vale igualmente para as instituições políticas, culturais ou religiosas.
Logicamente, em cada situação histórica produzem-se circunstâncias diferen
tes e atuam diferentes agentes de transformação. Porém, o que jamais varia
é o princípio que acabo de assinalar: a sociedade muda quando mudam os que
estão embaixo. À primeira vista, esse princípio pode parecer uma simplifica
ção ingênua da realidade social. Não obstante, os fatos estão aí. E os fatos
demonstram tenazmente, e até obstinadamente, que só quando muda a men
talidade do povo, das pessoas em geral, é que a sociedade muda. Para citar
um exemplo, a crise do “antigo regime”, deflagrada na Espanha entre 1808 e
1814, foi possível a partir daquela noite em que o Príncipe de Astúrias depen-
durou uma candeia em sua janela para dar o sinal de que começara uma alga-
ra, ou seja, uma investida contra seu pai, o que foi o começo de um processo
que havería de conduzir, através da monarquia constitucional, à república
democrática9. De um ponto de vista mais genérico, sabemos que ordinaria
mente as revoluções modernas foram realizadas, de acordo com seus líderes,
em nome das forças populares, contra o despotismo, a corrupção e a ordem
política e social desgastada, e sob as bandeiras do progresso, da liberdade
e da justiça social10. Quer dizer, sejam quais forem os líderes da mudança,
essa mudança nunca chegou a ser efetuada sem a ocorrência de uma ampla
e profunda implicação popular. E, como diziam os antigos, “contra fatos não
há argumentos”. Isso posto, o fato é que Jesus foi o ponto de partida de uma
profunda mudança revolucionária na história da humanidade. Ocorre que
essa mudança só se torna efetiva na medida em que se realizar tal como se
iniciou, a partir de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida
com os últimos deste mundo.
Ao que foi dito, é preciso acrescentar outro critério que é igualmente
chave na ética de Jesus. Trata-se do critério hermenêutico segundo o qual
somente a partir de baixo é que se vê a realidade nua e crua da dor do mundo. Sem
dúvida, nesse critério, a relação entre “conhecimento” e “interesse” é deter
minante. Embora J. Habermas, ao falar dessa questão, fizesse referência aos
“interesses que regem o conhecimento”, não resta dúvida de que a sintonia
parte deste mundo: foi um “homem de bem”, foi uma “boa mulher”. Ao dizer
isso, afirmamos que foi uma “boa pessoa”. Nem mais nem menos, trata-se de
uma pessoa que passou pela vida “como benfeitor”.
Há pessoas que, quando se vão deste mundo, são lembradas pela car
reira que fizeram, pelos cargos que ocuparam, por suas riquezas, seus títulos,
seus dotes como autoridade, a importância ou o prestígio de que gozaram.
Ou por outras coisas, talvez mais estranhas e até mais extravagantes: seus
costumes, sua maneira de falar, seu modo de vestir-se, ou seja lá o que for. O
problema está em que quando, a respeito de alguém, o que temos de recordar
é seu poder, seus títulos ou seus êxitos, isso quer dizer que provavelmente
passou pela vida buscando seu próprio bem, satisfazendo seus desejos, sendo
ele próprio o centro de sua vida. Nesse caso, a herança que deixa neste mun
do consiste lamentavelmente em perpetuar o amor a si mesmo que todos nós
carregamos em nosso âmago e, portanto, a ambição ou o orgulho que tanto
dano causa a nós todos.
O que define uma pessoa no final da vida é uma questão capital. Na
verdade, o que importa saber é se foi uma pessoa voltada para st mesma ou se
foi uma pessoa voltada para os demais. Aqui está o nó do problema.
Não é fácil responder a esta pergunta, porque a experiência nos ensina que
existiram (e continuam existindo) pessoas que, por “fazer o bem ”, causam
muito mal e ocasionam dano, provocando indiziveis sofrimentos. Sem ir
mais longe, é razoável pensar que os terroristas suicidas, que se imolam
matando criaturas inocentes, provavelmente façam isso por acreditarem que
dessa maneira realizam o maior bem que podem fazer. Não se tira a própria
vida por qualquer coisa. Aquele que tira sua própria vida, sem dúvida, é
porque está convencido de que pratica o ato mais heroico, porque vai con
seguir o bem maior. Se a vida é o bem supremo para qualquer ser humano,
tirar a própria vida é algo que se faz ou como ato de desespero e loucura,
ou porque se tem a convicção ou não sei que estranha segurança de que,
mediante esse tipo de morte, se alcança um bem que supera o humanamente
insuperável. Isso quer dizer que, para um terrorista suicida, o bem consiste
em matar, destruindo a própria vida e a dos demais. Inclusive no caso da
“Passou por toda parte como benfeitor"
queles que tiram sua vida porque pensam que dessa maneira vão conseguir
“outra vida” mais feliz e-na qual, por conseguinte, vão desfrutar muito mais;
também neste caso, o que está em jogo e se torna um ponto decisivo é uma
determinada forma de entender “o bem ”. Trata-se, supostamente, do bem
“para a própria pessoa”. Porém, com um matiz que é essencial: trata-se do
bem que “Deus quer” e que Deus promete e concede a seus heróis ou seus
mártires. Por tudo isso, ficou demonstrado que não se torna fácil determinar o
que é “fazer o bem ”. Existem muitas pessoas que estão convencidas de que se
passa a vida “fazendo o bem ”. No entanto, seria necessário perguntar àqueles
que convivem com semelhantes pessoas se eles se sentem “beneficiados” com
o bem que os outros lhes proporcionam. Ou se, ao contrário, maldizem a hora
em que conheceram tal indivíduo ou tal outro, um “benfeitor” que na realida
de é uma desgraça, para não dizer que é uma autêntica maldição.
E não se pense que, ao afirmar essas coisas, estamos falando de lou
cos ou de pessoas perturbadas. Nada disso. Apenas para citar um exemplo,
são Bernardo de Claraval, o grande mestre de espiritualidade do século XII,
quando pregava as cruzadas, escreveu um livro para convencer os cavaleiros
que iam à guerra de que matar os infiéis não era pecado algum, ou seja, não
era uma coisa moralmente má ou eticamente perversa. Porque, na opinião
daquele santo tão eminente em seu tempo, “aquele que mata o malfeitor
não se comporta como um homicida, mas como um (passe a expressão)
malicida”1. Ou seja, o que Deus quer é que se acabe com o mal, ainda que
para isso se veja como necessário acabar também com a vida do que comete
o mal12. Isso significa que, neste caso, antepõe-se o “bem” à vida, que é, pro
vavelmente, a tese mista propugnada por todos os terroristas que existiram
no mundo. A começar pelos inquisidores da santa madre Igreja que, para
defender a verdade “sagrada” e o bem “divino”, torturavam e queimavam
vivas as pessoas, até chegar aos terroristas de agora, quer sejam os da ETA
(Euskadi Ta Askatasuna), quer se trate de Bin Laden e seus fanáticos segui
dores ou do presidente Bush que, ao dar início ao lançamento de bombas
no Iraque, disse com toda a tranquilidade e com a maior firmeza que fazia
isso para estabelecer “o eixo do bem ”. Sem falar dos confessores e diretores
espirituais que, para fazer o “bem ” às almas, humilham homossexuais, di
O “bem” e o “mal”
abjeto, vulgar e plebeu”4. Trata-se, portanto, de algo que, além do mais, está
bastante comprovado pela experiência: as leis são ditadas pelos que têm poder
para ditá-las. E isso significa que a relação entre o poder e a ética é muito
mais forte do que imaginamos. São os poderosos que decidem sobre o que
convém e o que não convém, sobre o que é bom e o que é nocivo. Isso sem
pre foi assim. E continua sendo hoje.
Sendo assim, isso acarreta uma consequência simplesmente aterrorizante.
Trata-se, como é lógico, do fato de que o “bem ” e o “mal” são determinados,
fixados e impostos de acordo com as conveniências e os interesses dos que
manejam e acumulam o poder. É “bom ” o que convém aos interesses do
poderoso. E é “mau” o que prejudica esses mesmos interesses. O direito,
a moral e os costumes sempre foram organizados desse modo. Daí resulta
que os fracos, os que estão embaixo, os que carecem de poder têm de se
convencer de que é “bom ” e lhes convém precisamente o que beneficia os
interesses daquele que todos os dias lhes põe a bota sobre o pescoço. Ou seja,
é “bom ” o que interessa ao explorador e ao causador dos sofrimentos e da
desgraça dos que não podem sair de sua triste e miserável condição. Por isso,
Nietzsche tem razão quando acrescenta: “É a partir deste pathos da distinção
que (os poderosos e os nobres) se arrogaram o direito de criar valores, de
cunhar nomes de valores: o que importava para eles a utilidade!? O ponto de
vista da utilidade redunda o mais estranho e inadequado de todos, precisa
mente quando se trata desse ardente manancial de conceitos supremos de
valor, ordenadores da classe, que põem em destaque a categoria”5. Por isso,
como adverte o mesmo Nietzsche, “o pathos da nobreza e da distância..., o
sentimento global e radical duradouro e dominante de uma espécie superior
dominadora em sua relação com uma espécie inferior, com alguém que está
‘abaixo’ — esta é a origem da antítese ‘bom ’ e ‘mau’”6.
Qualquer pessoa entende, sem muito esforço, o perigo que tudo isso
encerra, se é que efetivamente o bem e o mal se configuram dessa forma e têm
essa origem. E não resta dúvida de que algo disso é verdade. Ou até muito
disso. Parece-me que um exemplo recente evidencia isso. Há pouco tempo,
um conhecido professor de ciências morais assim escrevia: “A civilização do
o bispo são boas pessoas não é o que o presidente, o papa ou o bispo dizem
de si mesmos, mas o que os outros deles dizem.
Por tudo isso, compreende-se a razão profunda que levou o apósto
lo Pedro a dizer que Jesus “passou por toda parte como benfeitor”. Aquele
homem viu com seus próprios olhos e ouviu com seus próprios ouvidos a
alegria dos enfermos curados por Jesus, a alegria dos pecadores acolhidos e
perdoados pelo mesmo Jesus e o entusiasmo das pessoas que comeram até se
saciar quando se encontraram sozinhas no desamparo dos pobres desta terra.
Jesus passou fazendo o “bem ” porque os que se aproximaram dele se senti
ram “bem”. A ética de Jesus ficou descrita e delimitada pelos beneficiários do
bem-fazer de Jesus. Foi dito de Jesus que foi boa pessoa e passou por toda
parte como benfeitor, não porque ele o proclamou, mas porque os outros
o viram e o sentiram. Jesus nunca disse a seus discípulos, nem aos pobres,
nem aos pecadores: “Eu os amo muito”. O que ocorreu é que todos os que se
aproximavam de Jesus encontravam nele acolhida, tolerância, compreensão,
bondade, um olhar de profunda humanidade e, certamente, um interesse in
questionável por seus problemas. Por isso, e não por outra razão, Pedro disse
que “passou por toda parte como benfeitor”. Não passou dizendo que fazia o
bem, mas fazendo-o. Nem mais nem menos que isso.
Existem duas escolas ou, se preferirmos, dois pontos de vista na hora de julgar
as condutas. Por um lado, está a escola chamada deontológica, que se funda
menta sobre as normas ou as regras que é preciso cumprir e os deveres que
daí procedem. O protótipo desta escola de moralidade é a ética de Kant. Por
outro lado, está a escola consequencialista, assim chamada porque adota como
critério, para distinguir o bem do mal, as consequências, a saber, os resultados
ou os benefícios que se seguem de determinado comportamento. O protótipo
desta teoria pode ser, ao menos em parte, o “utilitarismo”: uma ação é boa ou
má de acordo com a utilidade boa ou má que dela decorre.
Estabelecida essa distinção, a primeira coisa que se deve dizer é que as
duas formas de entender a ética não podem se excluir, porque a ética, que se
baseia nos deveres, tem que estar atenta às consequências que se seguem do
cumprimento de tais deveres. E, em contrapartida, a ética, que visa às con
“Passou por toda parte como benfeitor 1
se mantêm porque assim o dispôs tal concilio ou tal papa, assim se deduz de
uma argumentação especulativa baseada em um conceito de “natureza” que
hoje já pouca gente aceita. E tudo isso se mantém, caia quem cair, e por mais
que de todo esse discurso advenham consequências desastrosas para a paz,
para a convivência e para o bem-estar das pessoas, das famílias e dos povos.
Mais ainda, a partir do momento em que a verdade divina e a vontade
divina estão muito acima de todas as verdades humanas e das vontades hu
manas, pode-se chegar, e de fato se chegou, a situações e atos da mais brutal
barbárie. Não resisto à oportunidade de recordar aqui um fato simplesmente
surpreendente. No ano de 1209, durante o pontificado de Inocêncio III, na
cruzada contra os cãtaros, quando os exércitos cristãos, mandados por Simão
de Montfort e pelo Duque de Borgonha, tomaram de assalto a cidade de
Béziers matando mais de 60 mil habitantes, sabe-se que o abade Arnoldo,
quando os soldados lhe perguntaram como poderiam distinguir os católicos
dos hereges, para respeitar os que se mantinham na verdade da Igreja, re
plicou sem restrições: “Matai, matai-os todos, que Deus os distinguirá depois no
céu”101. É o efeito inevitável de uma ética da “norma” que se antepõe a qual
quer tipo de ética de “consequências”.
Todavia, o problema que se estabelece, quando se trata deste assunto, é
mais profundo do que parece à primeira vista. Quando falamos do compor
tamento moral das pessoas, deveriamos ter presente que a moral ou a ética,
na estimativa que uma pessoa comum faz dessas coisas, costumam referir-se a
formas de conduta interpretadas por meio âe filtro imposto pela instituição, quer
se trate da instituição política, jurídica ou religiosa. E então, o que ocorre é
que já não se trata somente do mal que objetivamente se faz, mas do mal
interpretado política, jurídica ou religiosamente. Como sabemos, no caso da
interpretação “religiosa”, deparamo-nos com o “pecado”, que não é simples
mente o mal, mas “a qualificação religiosa negativa de um comportamento
humano”11. Com isso nos deparamos com o fato de que o humano se julga com
base em critérios não-humanos ou, mais exatamente, com base em critérios
10. Uma boa análise das circunstâncias e da crueldade desta cruzada contra os cãtaros encon-
tra-se em BERNARD HAMILTON, The Albigensians Crusade and Heresy, in The New Cambridge
Medieval History, V, Cambridge University Press, 1 9 9 9 , 1 6 4 -1 8 1 .
11. D, SITZER-OSING, Sünde, in Theologische Realenzyklopãdie, 3 2 , Berlim, Walter de Gruyter,
2001, 360.
‘Passou por toda parte como benfeitor”
que as coisas são vistas assim, o Evangelho, antes de ser uma mensagem re
ligiosa, é, sem dúvida, uma mensagem para a vida. Não porque o conteúdo
do Evangelho venha a prescindir de Deus, mas porque o critério central do
Evangelho de Jesus consiste em que a mediação essencial entre o ser humano
e Deus é a vida, a humanização da vida.
Sendo assim, se a ética de Cristo deve ser entendida a partir deste deli-
neamento, a consequência que daí decorre é que a ética de Jesus é, antes
de tudo, uma ética “consequencialista”. Certamente Jesus levou em conta
as “normas” que Deus ditou à humanidade, porém, a partir de uma con
dição prévia, que é básica: contanto que tais normas, que se consideram
“sagradas”, “divinas” ou “reveladas”, não tragam como consequência de
seu cumprimento mais sofrimentos, mais desgraças e mais desastres para a
humanidade. Absolutamente ao contrário, uma norma qualquer, por mais
divina que se considere, se não nos tornar mais sensíveis à dor do mun
do e à felicidade das pessoas, é uma norma que certamente não vem do
Deus que Jesus anunciou. Em qualquer caso, a ética de Cristo tem que ser
uma ética para a felicidade, para fazer com que nos sintamos felizes por ter
nascido, e para tornar mais felizes os que estão a nossa volta. Isso supõe
tornar-nos mais sensíveis a tudo o que gera ventura ou desgraça, bem-estar
ou sofrimento. Nesse sentido, só podemos estar inteiramente de acordo
com Richard Rorty quando afirma que a felicidade humana só é possível
fomentando o que ele denomina “educação sentimental”: tornando viável
a maior sensibilidade dos homens diante da dor e do sofrimento dos que
são estranhos a nós. Contribuir para o bem-estar dos outros, erradicando a
dor desnecessária, é possível desde que nos esqueçamos de ideologias, me
tafísicas, religiões e teologias que, conforme pensa Rorty, influíram mais no
crescimento do horror do que na melhora das condições de vida12. Quando
nosso comportamento é tal que dele decorrem essas consequências, temos
o critério seguro e reto para saber que nosso comportamento é eticamente
correto. Por isso, com toda a razão, pode-se insistir em que a ética de Cristo
foi, antes de tudo, uma ética “consequencialista”.
12. Cf. E. BONETE, Éticas en esbozo. De política, felicidad y muerte, Bilbao, Desclée De Brouwer,
2 0 0 3 , 150. R. RORTY desenvolveu estas idéias sobretudo em duas obras fundamentais: Espe-
ranza o conocimiento? Una introducción al pragmatismo, Buenos Aires, E E .C , 1 9 9 7 ; Consecuencias
dei pragmatismo, Madri, Tecnos, 1996.
“Passou por toda parte tom o benfeitor” l
13. Cf. MIROSLAC MILOVIC, Comunidad de la diferencia, Granada, Edit, Universidad de Gra
nada, 2 0 0 4 , 11-1 3 .
14. MIROSLAC MILOVIC, op. cit., 125.
15. MIROSLAC MILOVIC, op. cit., 1 2 5 -1 2 6 . Cf. J. CAPUTO, Against Ethics, Bloomington, 1 9 9 3 ,
3 8 e 8 5 . Citado por M. MILOVIC, op. cit.
A ética de Cristo
Ética, fé e vida
neste capítulo, de analisar por que ocorre isso hoje. Se faço menção a este
assunto, é porque ele dá ensejo a que se compreenda um dos aspectos mais
desconcertantes da ética de Cristo. Vou explicá-lo analisando o primeiro dos
“sinais” que Jesus realizou em sua vida pública.
Antes de tudo, é preciso dizer algo sobre os “sinais”. O evangelho de
João termina seu relato com estas palavras: “Jesus operou ante os olhos de
seus discípulos muitos sinais que não estão consignados neste livro. Estes
foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para
que, crendo, tenhais vida em seu nom e” (Jo 2 0 ,3 0 -3 1 ). Assim resume o
último evangelho o que foi a atividade de Jesus. De acordo com o que aqui
se afirma, tal atividade consistiu em uma série de “sinais”, que ficaram por
escrito porque tais smais produzem “fé” e essa fé dá “vida”. Temos, por
tanto, três palavras-chave: “sinais”, “fé” e “vida”. Jesus realizava coisas que
tinham um significado. Por isso, tais coisas são denominadas “sinais”, smais
que produzem uma profunda experiência que é a fé. E com tudo isso, o
que Jesus queria, defimtivamente, era dar vida. Que a pessoa tivesse uma
vida plena, digna, segura, feliz. Por isso curou os enfermos, deu de comer
aos famintos, acolheu os estrangeiros e excluídos sociais, tratou com res
peito e delicadeza as mulheres e as crianças, conviveu com os pecadores
e as pessoas malvistas na sociedade de seu tempo. Mas não somente isso.
Porque a vida, inclusive a mais segura e a mais digna, afinal de contas,
chega a um momento em que se vê limitada, enferma e termina na morte.
Daí que Jesus disse muitas vezes que a vida, que ele prometia, é a vida
“eterna” (Mt 2 5 ,4 6 ; Mc 1 0 ,3 0 ; Lc 18,3 0 ; Jo 3 ,1 5 .1 6 .3 6 ; 4 ,1 4 .3 6 ; 5 ,2 4 .3 9 ;
6 ,2 7 .4 0 .5 4 .6 8 ; 1 2 ,2 5 .5 0 ; 1 7 ,2 .3 ), a saber, uma vida sem limitação alguma,
uma vida plena, que não acabará nem com a morte, mas que, mediante a
morte, ver-se-á transformada e chegará à sua plenitude total.
Assim sendo, o que gera esta maravilha de projeto, que satisfaz toda
aspiração humana, são os “sinais” que Jesus fazia. O que quer dizer o evange
lho de João quando fala desses “sinais”? O texto grego do Evangelho utiliza
a palavra semeton, a qual indica um ato que é um sinal ou um distintivo que
garante, constata e confirma algo2. Diferentemente dos milagres, como atos de
poder, os “sinais” são atuações que confirmam a presença de um profeta en
viado por Deus e que suscita a fé (cf. Ex 4 ,l- 9 ) 3. Na realidade, trata-se de atos
de Jesus que produziam, naqueles que os viam e viviam, um efeito concreto
e profundo: davam fé (Jo 2 ,1 1 .2 3 ; 4 ,5 3 -5 4 ; 6,30; 11,48; 12,37; 20,30-31). E,
mediante a fé, potencializavam e enriqueciam a vida das pessoas que tinham
a felicidade e a sorte de estabelecer contato com tais “sinais”.
É importante recordar essas coisas porque são a resposta adequada aos
que se lamentam da pouca credibilidade de que- goza hoje a Igreja, especial
mente seus dirigentes, seus hierarcas. Que “sinais” apresentam esses hierarcas
diante de tantas pessoas que hoje não se sentem atraídas a crer na mensagem
transmitida pela Igreja? São tais dirigentes religiosos “profetas” que suscitam a
fé na pessoa, ou são “funcionários” que velam pela ortodoxia e pelo prestígio
da instituição clerical? Aqui está o ponto de partida de quanto é possível dizer
sobre a ética de Jesus.
Não é o caso de explicar aqui, passo a passo, o relato das bodas de Caná
(Jo 2 ,1 -1 1 ), a respeito do qual o evangelho de João diz que foi o primeiro
“sinal” feito por Jesus (Jo 2 ,1 1 ). O que importa é responder a esta pergunta:
em que consistiu aquele “sinal”? Como é bem sabido, o que lá aconteceu
foi que, quando no meio da festa ficaram sem bebida para continuar a cele
bração e o divertimento, Jesus converteu a água em vinho (Jo 2,9). Dizendo
isso, porém, não tocamos o fundo do assunto ou, se preferirmos, não ati
namos com a chave do problema. Chegaremos à compreensão dessa chave
quando nos dermos conta de que a água que Jesus converteu em vinho não
era água para os usos domésticos ou, mais propriamente, para usos “profa
nos”, ou seja, não era água para a vida (beber, preparar alimentos, lavar-se,
regar...), mas era água para a religião. O Evangelho diz isso expressamente:
“Havia lá seis talhas de pedra destinadas às purificações dos judeus; elas
continham cada uma duas ou três medidas” 0 ° 2,6). Portanto, seiscentos
litros de água, envasilhadas em pedra. Expressa-se assim, em linguagem m e
tafórica, a enormidade e o pesadume da religião que, como é frequente nas
3. O. BETZ, Semeíon, in H. BALZ, G. SCHNEIDER, Diccionario Exegétíco dei N.T., II, Salamanca,
Stgueme, 1 9 9 8 , 1391.
A ética de Cristo
Só o amor é digno de fé
Ainda não tocamos o fundo. O fundo desse relato surpreendente. Não nos
esqueçamos de que tudo isso aconteceu em uma festa de casamento. E é fato
sabido que, na cultura judaica, o vinho evocava, entre outras coisas, o sím
bolo do amor prazeroso e apaixonado que flui entre o esposo e a esposa, o
amor que os leva a se entregarem mutuamente na intimidade. O Cântico dos
Cânticos, obra que expressa o auge da literatura amorosa na Bíblia, começa
falando de beijos, precisamente os beijos que se comparam com o vinho:
uma vez que em todo o Novo Testamento não consta em parte alguma que
existisse uma relação direta entre Jesus e esse sacramento. Tampouco a pre
sença e a intervenção de Maria, a mãe de Jesus, constitui o centro do relato.
Nem mesmo a referência do próprio Jesus a que não havia chegado ainda
“sua hora” (Jo 2,4). Esses dados não serviram para outra coisa além de distrair
a atenção daquilo que é a chave de compreensão do relato. E essa chave está
em um fato que é inegável e que, na religiosidade judia daquele tempo, era
fundamental, a saber: Jesus não produziu o vinho do nada, mas tudo consis
tiu em que converteu a água em vinho. Não, porém, uma água qualquer, mas
precisamente a água da religião. A água daquelas purificações rituais, às quais,
segundo o evangelho de Marcos, os judeus se aferravam, enxaguando taças,
jarras e panelas (Mc 7,3-4).
Pois bem, nessa situação e nesse contexto de idéias e sentimentos sagra
dos, Jesus suprimiu a água da religião, convertendo-a em vinho de festa. Con
siderando-se que a relação simbólica do vinho com o amor apaixonado dos
enamorados não deve ser entendida como uma explicação rebuscada e fora de
contexto. Sabemos que o relato de Caná foi explicado a partir da chave ofe
recida pela lenda de Dionísio9. Um ponto de vista reforçado por R. Bultmann
em seu comentário ao quarto evangelho: “Na realidade, o motivo da história,
a conversão da água em vinho, é típico da lenda dionisíaca”10. Por mais ina
ceitável que seja para alguns a ideia proposta por W Bousset, segundo a qual
o relato de Caná deve ser interpretado em relação com a lenda do deus Díoní-
sio, que durante a noite, no santuário de Elis, enchia de um vinho excelente
três vasilhas vazias (R. Schnackenburg), é certo que a abundância e o prazer
proporcionados pelo vinho têm muito a ver com o que, em qualquer cultura
(judaica, helenista, cristã), representa o prazer e o desfrute do amor conjugal,
tal como se expressa no simbolismo amoroso do Cântico dos Cânticos.
O ensinamento de fundo que a pessoa encontra neste relato é genial:
“Não ponhas tua fé na eficácia mágica que possam ter os rituais religiosos, por
mais que sejam rituais de pureza imaculada; nem ponhas tua fé na presumida
e dissimulada salvação que brota do puritanismo dos irrepreensíveis; nem
9. Cí. J. GRILL, Untersuchungen über die Entslehung des 4 Evang. II, Tübingen, 1 9 2 3 , 1 0 7 -1 2 0 ;
J. E. CARPENTER, The Johannine Wrítíngs, Londres, 1 9 2 7 , 379ss; W BOUSSET, Kyrios Christos,
Gôttmgen, 1 9 3 5 , 2 7 0 -2 7 4 .
10. R. BULTMANN, Das Evangelium des Johannes, Gôttmgen, Vandenhoed & Ruprecht, 1957, 83.
“Eles nao têm vinho”
nos conselhos que te são dados pelos que te querem ver indo pela vida como
pessoa incensurável; põe. tua fé somente no amor, no qual a alegria inefável
do carinho compartilhado é palpável e se faz visível, no qual os amantes se
fundem em um mesmo projeto e com uma única ilusão, a ilusão apaixonada
e apaixonante de dar e receber a entrega livre de quem te quer sem interesse,
porque és tu, tal como és, e nada mais”.
nem fazê-la à nossa imagem e semelhança, sem desejar que lhe agrade o que
agrada a mim, sem querer de modo algum o meu triunfo mais do que o do
amigo ou da amiga, do amado ou da amada, sem censurá-la em nada, sem
jamais pedir algo em troca. Amar assim, com tal transparência de sentimentos
e de intenções, isso é pureza, isso é a coisa mais difícil da vida. Por essa razão,
aí nos deparamos todos com o grande obstáculo para nos deixarmos deslum
brar pela “glória” do Senhor. E o afirmo novamente: não nos educaram para
isto, nesta ascética do amor prazeroso e da felicidade compartilhada. O co
nhecido historiador Jean Delumeau, em seu excelente estudo sobre “o pecado
e o medo”, estudou até que ponto a pregação eclesiástica rechaçou, durante
séculos, tudo o que representa ou produz diversão, alegria e prazer. Desde
São Jerônimo até São Bernardino de Siena, repetiu-se constantemente a paté
tica afirmação que hoje nos causa espanto: “Rir e regozijar-se com este mundo
não é próprio de uma pessoa sensata, mas de um frenético”11. E Grignion de
Montfort fazia com que as jovens que iam ingressar no convento cantassem:
“Beber, comer, dormir, rir, tudo isso deve ser para nós um grande martírio”1112.
Assim sendo, a ideia que se pregava antigamente é que, se Jesus assistiu as
bodas de Caná, “é porque sabia que os convidados se comportariam dentro
dos limites da mais estrita decência”13. Segundo a pregação religiosa ocidental
de todos os tempos, isso é o que importa e é o que se há de buscar antes de
qualquer outra coisa. Daí que, para muitas pessoas religiosas de nossos dias,
isso continua tendo o valor que sempre teve.
O fundo do problema está no fato de que a obrigação religiosa não ape
nas se dissociou da necessidade humana, mas (o que é pior) ambas as coisas
se defrontaram até o extremo de, com frequência, tornar-se incompatíveis
entre si. Por essa razão, pode-se afirmar, sem medo de exagero algum, que
a grande revolução trazida por Jesus, na história das tradições religiosas
e da humanidade, consistiu em apresentar um caminho para encontrar
o divino que não só não supõe entrar em conflito com o humano, mas de
monstra que precisamente a divinização do homem consiste em sua mais
profunda e radical humanização.
Falo de ética leiga não pelo que concerne aos motivos do comportamento hu
mano, mas por tudo o que afeta os conteúdos da conduta. E falo deste assunto
porque, se Jesus acabou, naquelas bodas, com a água da religião e a substituiu
pelo vinho da festa, de tal modo que assim, dessa maneira tão surpreendente,
manifestou a “glória” de Deus, até o ponto que, por esse procedimento, “au
mentou a fé de seus discípulos” (Jo 2 ,1 1 ), pode-se, e até mesmo deve-se pen
sar que lá aconteceu algo muito mais forte e sério do que se pode imaginar
à primeira vista. Para dizê-lo em poucas palavras: Jesus substituiu a religião
sagrada por uma religião leiga.
Ao dizer isso, faço chegar à compreensão que não falo de religião civil,
mas sim de religião leiga. Por certo, falo de “religião”, porque Jesus foi um
homem profundamente religioso, que falou constantemente de Deus, o Pai
do céu. E que passava as noites em oração diante desse Pai bom, com quem
ele se identificava. Se da vida de Jesus de Nazaré extirparmos sua relação com
Deus, Jesus deixaria de ser o Senhor, a quem os cristãos recordaram durante
tantos séculos como o exemplo vivo do que deve ser a vida e a conduta de um
crente que aspirar a ter esperança.
Todavia, tão claro e tão patente como isso é o fato de que Jesus entendeu
e viveu a religião “de outra maneira”. Quero dizer, Jesus entendeu a religião de
um modo que sua forma de praticá-la não se ajustou ao modelo estabelecido
até então. Jesus foi um leigo, que não fundou nenhum templo, nem levantou
altares, nem organizou um estamento sacerdotal, nem impôs jejuns e privações
ascéticas, nem dispôs cerimônias rituais ou purificações sagradas. De nada dis
so falam os evangelhos. Totalmente ao contrário, os relatos evangélicos ates
tam muitas vezes que Jesus teve sérios conflitos com a religião sagrada de seu
tempo, a ponto de os sacerdotes daquela religião verem em Jesus um perigo,
uma ameaça. O perigo e a ameaça que os “sinais” (semeia ) representavam para
o “lugar santo” (o templo) e sua religião em geral (cf. Jo 11,48). Simplesmente
por isso, nem mais nem menos, decidiram acabar com ele (Jo 11,50-53).
Seria um despropósito sem fundamento deduzir disso tudo que o cristia
nismo deve ser uma religião “civil”. Não existe, nem nos escritos do Novo Tes
tamento, nem na tradição cristã dos séculos seguintes, fundamento algum para
chegar a semelhante conclusão. Seguramente, o primeiro autor que se referiu
a uma espécie de “religião civil” foi Maquiavel, que interpretou a religião cívica
A ética de Cristo
14. Cf. S. GINER, Carismay razôn. La estructura moral de la sociedad moderna, Madri, Alianza,
2 0 0 3 , 76.
15. Op. cit., 77.
16. J. J. ROUSSEAU, Contrato Social, 1. IV, c. VIII, ed. Espasa-Calpe, 1 9 8 0 , 166.
17. J. J. ROUSSEAU, op. cit., 1. iy c. VIII, p. 162. Cf. J. R VILLAIME, La religión civile à lajran-
çaise et ses meta.morpb.oses: Social Compass 4 0 (1 9 9 3 ), 5 7 1 -5 8 0 ; H. LÜBBE, Religión nach der
Aujklãrung, Viena, Styria, 1 9 8 6 ; G. E. RUSCONI, Possíamo fare a meno di una relígíone civile?,
Bari, Laterza, 1 9 9 9 ; S. GINER, op. cit., 6 7 -1 1 3 .
18. Cf. S. GINER, op. cit., 80.
“Eles não têm vinho”
cia em não poucas pessoas de fortes crenças, cujos comportamentos como cida
dãos deixam muito a desejar. Trata-se de pessoas que, com muita j é em Deus,
mantêm ao mesmo tempo uma conduta que faz delas simplesmente más
pessoas como cidadãos de determinado país. São indivíduos que/ao mesmo
tempo em que se preocupam obsessivamente em cumprir normas litúrgicas
ou ritos religiosos, cito por acaso, são pessoas autoritárias e dominadoras,
teimosas, orgulhosas e, o que é pior, que provocam com frequência divisões
e confrontos. Ou algo que é muito mais frequente: estamos cansados de ver
homens e mulheres que são profundamente cnstãos e piedosos, que não têm
consciência de fazer mal a ninguém, mas que, ao mesmo tempo, deixam-se
ficar indiferentes perante a dor do mundo e diante da humilhação dos mais
fracos desta terra. Sendo assim, não nos esqueçamos nunca de que o pior de
tudo, e o que causa mais dano nesta vida, não é a maldade, mas sim a indife
rença. A parábola do bom samaritano não condena os bandidos que rouba
ram e espancaram o caminhante. A parábola condena o sacerdote e o levita
que não fizeram nenhum mal ao infeliz que estava estendido na valeta da
estrada, porque eram homens cuja consciência não lhes permitia fazer o mal.
Mas o fato é que passaram sem se deter, isto é, ficaram indiferentes diante de
um moribundo. Aí está um exemplo típico de ética religiosa que não cumpre
com os postulados mais elementares de uma boa ética leiga.
Por que acontece isso? Já Maquiavel se deu conta do problema. E diz isso
com toda a clareza: “Os que estão à frente de uma república ou de um reino
devem, pois, manter as bases de sua religião e, feito isto, ser-lhes-á fácil manter
o país religioso e, portanto, bom e unido. E devem favorecer e acrescentar to
das as coisas que forem proveitosas para ela (a religião), mesmo que as julguem
falsas”19. O que interessa a Maquiavel e o preocupa não são as crenças, por mais
“falsas” que sejam consideradas. O que interessa a Maquiavel é que o povo se
mantenha “bom e unido”. Essa é a razão pela qual este autor critica tão dura
mente a Igreja Romana. Não porque ele fosse anticlerical, mas porque via o
dano que a corte papal causava na Itália. Ele diz isso com toda a clareza: “Pelos
maus exemplos daquela corte, a Itália perdeu toda devoção e toda a religião,
o que tem infinitos inconvenientes e provoca muitas desordens; porque assim
como onde há religião se pressupõe todo bem, onde ela falta, ocorre absoluta
19. N. MAQUIAVELO, Discursos sobre la primera década de Tito Lívio, L. I, c. 12, Madri, Alianza,
2 0 0 3 , 72.
A ética de Cristo
mente o contrário. Nós, italianos, temos, pois, com a Igreja e com os curas esta
primeira dívida: o haver-nos tomado irreligiosos e perversos; temos, porém,
uma ainda maior, que é a segunda causa de nossa mina: que a Igreja manteve
nosso país sempre dividido”20. Isso, na opinião de Maquiavel, significa que o
dano provocado pela Igreja não está em que falhe em sua fé, mas no fato de
semear divisão. O que preocupa a Maquiavel não é o dogma, e sim a ética.
O problema estava proposto: como se explica que pessoas profundamen
te religiosas, crentes e espirituais, sejam ao mesmo tempo pessoas que não
se interessam pelo que se passa no mundo, pelos males que a sociedade pa
dece e pela dor do povo? Rousseau encontra a resposta na forma como é
compreendido e vivido o cristianismo. O equívoco de Rousseau consistiu
no fato de pensar que isso era devido à própria “natureza” do cristianismo e
não à sua “deformação” histórica. Seu ponto de vista nesse sentido não deixa
lugar a dúvidas: “O cristianismo é uma religião completamente espiritual,
que se ocupa unicamente das coisas do céu; a pátria do cristianismo não é
deste mundo. Cumpre, por certo, com seu dever; cumpre-o, porém, com
uma profunda indiferença para com o bom ou o mau êxito. Contanto que
não haja nada a censurar, em nada lhe importa que as coisas vão bem ou mal
aqui embaixo”21. Confesso que poucas vezes li um parecer tão correto do que
ocorre nos ambientes mais profundamente marcados pela religiosidade cristã,
quando essa religiosidade é mal entendida e vivida pior ainda. De semelhante
religiosidade saem pessoas “totalmente espirituais”, como diz Rousseau, às
quais, no entanto, o que importa é “que não haja nada que reprovar nelas”.
O restante, “o bem ou o mal aqui de baixo”, é coisa que costuma deixá-las
indiferentes. Pelo menos, assim o foi durante séculos.
O erro em tudo isso está em Rousseau, ao falar dessa maneira, estar
refletindo o cristianismo que ele conheceu no século XVIII. O cristianismo
formado na França pelos educadores da consciência burguesa, aqueles pre
gadores que, seguindo as idéias do bispo Tronson, em sua obra tão reeditada
e lida, Examcns particuliers sur divers sujets propres aux Ecclésiastiques, pergun
tavam aos cristãos: “Sentimos também contra o mundo todo o ódio e toda a
aversão que pede Nosso Senhor e que seu exemplo deve nos infundir?”. Mais
ainda, que a pátria do cristianismo não é este mundo, como dizia Rousseau,
22. Estudo de todo este assunto, com abundante documentação e notas bibliográficas, é o que
se encontra em B. GROETHUYSEN, Laformación àe la concíenda burguesa en branda durante d
siglo XVIII, M éxico, Fondo de Cultura Econômica, 1 9 8 1 , 2 0 4 -2 0 5 .
2 3 . B. GROETHUYSEN, op. cit., 2 1 2 -2 1 3 .
A ética de Cristo
24. Cf. X. ALEGRE, Los responsables de la muerte de Jesús. Revista Latínoamericana de Teologia
XIV (1 9 9 7 ), 1 6 8 -1 7 0 .
2 5 . J. M. MARDONES, Los valores religiosos y los valores laicos en la sociedad actual, in J. E
TEZANOS (ed.), Tendências en identidades, valoresy creencias, Madri, Sistema, 2 0 0 4 , 406.
.V
6
Em primeiro lugar a vida,
e não a religião
que com a pena de m orte1. Assim, pois, na acusação de blasfêmia feita contra
Jesus, estava sendo feita a denúncia mais grave que se faz contra ele em toda
a seção de enfrentamentos, que vai desde o começo do capítulo segundo do
evangelho de Marcos até o relato da cura do homem com a mão paralisada
que, como veremos, termina precisamente com o complô para matar Jesus.
Depois desse incidente, sem dúvida muito grave na mentalidade de en
tão, o evangelho de Marcos narra que os escribas e os fariseus jogam-lhe na
cara que andava com más companhias, pecadores e publicanos (Mc 2,15-16).
Nas linhas seguintes, explica-se como e por que Jesus e seus discípulos não se
submetiam à lei do jejum nos dias em que isso estava prescrito (Mc 2,18-22).
E — a questão mais delicada entre todas — este capítulo de Marcos termina
com a primeira desobediência (consciente e manifesta) dos discípulos de Jesus
ao descanso obrigatório do sábado (Mc 2,23-24). Todavia, no final do relato
consta que Jesus, de maneira surpreendente para um bom israelita de então,
em vez de repreender os discípulos por sua desobediência às normas religiosas
estabelecidas, defende o comportamento de seus seguidores. E termina com a
afirmação lapidar: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sá
bado” (Mc 2,27). Para Jesus, a “meta suprema”12 é o amor aos outros, no cum
primento do preceito religioso. Uma afirmação que, levada verdadeiramente
a sério, antepõe o humano (amar) ao religioso (cumprir observâncias sagradas).
Isso significa que estamos diante de uma autêntica subversão da “ordem sa
grada” que as religiões estabeleceram neste mundo e em virtude da qual, com
bastante frequência, introduziram um princípio de desordem radical na con
vivência humana, a ponto de degenerar, não raras vezes e como bem sabemos,
em formas brutais de violência. A experiência que estamos vivendo na atuali
dade, sobretudo a partir d o l l S e d o l l M , é eloquente a esse respeito.
Tudo isso suposto e, como é óbvio, segundo os dados que acabo de apontar,
no evangelho de Marcos ficam evidenciadas quatro coisas: 1) que os discípulos
de Jesus não cumpriam determinados e importantes deveres da religião oficial-
mente estabelecida naquela sociedade; 2) que Jesus estava de acordo com seme
lhante conduta; 3) que, além disso, apresentava argumentos para justificar aquele
comportamento; 4) que, para o cúmulo, o próprio Jesus fazia e dizia tudo aquilo,
porque estava convencido de que o ponto central para Deus não é a religião (re
5. SÊNECA, Dial. 4, 3 0 , 1; TÁCITO, Ann. 14, 18, 1. Cf. Thesaurus Linguae Latinae, VII, 1 671, 80.
Em primeiro lugar a Tida, e mão a religião
lação repetida do sábado era castigada com a pena de morte. Além disso,
segundo o mesmo direito, um crime só chegava a ser objeto de julgamento
depois que o autor houvesse sido advertido notoriamente diante de testemu
nhas e assim ficasse assegurado de antemão que o suposto infrator havia
agido deliberadamente6. já no segundo capítulo do evangelho de Marcos
nos é informado que chamaram a atenção de Jesus pela violação do sábado,
quando seus discípulos iam arrancando espigas no dia de descanso (Mc 2,24;
cf. jo 5,10). Ademais, naquela ocasião, Jesus chegou a afirmar que estava
violando o sábado por convicção (Mc 2 ,2 5 -2 8 ). Portanto, a infração seguinte
da lei do descanso sabãtico (se nos ativermos aos preceitos legais da religião)
poria em perigo a vida de Jesus7— o que efetivamente aconteceu, como ve
remos em seguida. Por isso, compreende-se o dramatismo da passagem que
relata a cura do homem com a mão paralisada.
Tudo isso nos faz entender a força que tem esse episódio na hora de com
preender o que era (e continua sendo) verdadeiramente central na ética de
Jesus. Em uma situação como aquela, Jesus poderia perfeitamente deixar a
cura do homem com a mão paralisada que havia na sinagoga (Mc 3,1) para o
dia seguinte, e nada teria acontecido. Um homem que, afinal de contas, estaria
certamente havia muito tempo com aquela limitação, poderia ter esperado
algumas horas sem problema nenhum. Ou também, poderia curar o enfermo
parcialmente inválido “discretamente” e sem chamar a atenção. Mas Jesus
não fez nada disso. Ou, melhor dizendo, fez tudo ao contrário, de maneira
pública e até provocadora. Segundo o relato de Marcos, Jesus disse ao h o
mem que se pusesse de pé (Mc 3,3), ali, no meio da sala, onde era visto por
todos. E assim, com o homem sob os olhares de todos os que estavam ali,
Jesus ousou fazer uma pergunta surpreendente: “O que é permitido no dia
de sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou matá-la?” (Mc 3,4).
Com toda a clareza, dizer semelhante coisa ali, naquele ambiente tão carregado
e tenso, era uma autêntica provocação, porque, pelo menos à primeira vista,
naquele momento, parece evidente que ninguém pretendia matar o homem
com a mão paralisada. E, não obstante, a pergunta tinha sua razão de ser. Mais
ainda, tratava-se de uma pergunta que propunha o problema fundamental. Em
última instância, o que Jesus estava perguntando era isto: o que está em primei
ro lugar para a religião: o cumprimento do dever (a observância das normas) ou
a necessidade que tem qualquer ser humano de gozar sua vida em plenitude?
Não estamos acostumados a que nos façam essa pergunta. As religiões
sempre tiveram como critério determinante o cumprimento do dever, ou seja,
ser fiéis às obrigações de cada um. Daí os fiéis, nas diferentes religiões, se
rem educados para cumprir deveres e terem a consciência de que esse é o
caminho que nos aproxima de Deus. Não obstante, da satisfação de nossas
necessidades, nem as religiões nem seus dirigentes costumam falar e, em qual
quer caso, não é esse um assunto que, em geral, resulte em tema central de
qualquer discurso religioso. E se as necessidades humanas ocupam pouco
espaço na ética das religiões, menor importância ainda tem a satisfação de
tais necessidades, com tudo o que isso tem de prazer e desfrute. O prazer, a
alegria e o desfrute de viver em plenitude. Com toda a certeza, nessa maneira
de pensar está oculta a convicção de que a relação do homem com Deus é como
uma espécie de cópia da relação do súdito com o Senhor. Assim sendo, o que
é próprio do Senhor é o mandar. E é próprio do súdito obedecer e cumprir
com seus deveres. Eíá aí um modelo antropológico que configurou o modelo
sobrenatural de relação entre o homem e Deus.
Assim, as religiões converteram os deuses em senhores autoritários e
fizeram da experiência religiosa um produto, não só ingrato e duro, mas que,
além disso, pôs em primeiro plano do religioso o ponto mais desagradável da
vida. Enquanto, ao contrário, o lúdico, o festivo, tudo o que há na existência
de prazer, de alegria e de felicidade deixou-se ficar, não só à margem da rela
ção com Deus, mas também nos foi apresentado como algo que se deve vigiar,
controlar, reprimir e, se necessário, sancionar. Daí o puritanismo que marcou
tão profundamente a cultura do Ocidente a partir de autores que são bem
conhecidos. Refiro-me a Pitágoras e Empédocles8. “O prazer — diz o velho
catecismo pitagórico — é mau em todas as circunstâncias, porque viemos
aqui para ser castigados, e deveriamos ser castigados.”9 Esses autores, segun
do a explicação mais aceita, tomaram essas idéias das práticas e teorias dos
velhos xamãs das religiões primitivas das tribos do norte da Europa e da Ásia.
8. Sobre este assunto, cf. o excelente e clássico estudo de E. R. DODDS, Los griegosy lo irracio
nal, Madri, Alianza, 2 0 0 1 , 1 3 3 -1 6 9 .
9. IAMB., Vita Pyth. 85. Vorsokr., 5 8 C 4. Citado por E. R. DODDS, op. cit., 149; 165.
Em primeiro lugar a vida, e nao a religião
Nada menos do que das extravagantes teorias daqueles velhos xamãs chegou
até nós, como se fosse algo querido por Deus, a convicção de que o que im
porta, o que verdadeiramente interessa, para que este mundo ande bem, é a
pureza, porque o prazer suja e contamina. E é, portanto, o mais importante
a ser evitado na vida — a não ser que se desfrute de acordo com o mandado
p o r... Deus? Não existem traços disso na Bíblia. Assim o dispuseram os ve
lhos xamãs de religiões ancestrais cuja origem ninguém conhece com ciência
certa. Isso quer dizer que é dos xamãs, e não da Bíblia (e menos ainda do
Evangelho), que vem o ideal, que muitas pessoas tão bem assimilaram, do
homem que é “irrepreensível” porque sempre manteve as devidas distâncias
em assuntos amorosos, porém que, ao mesmo tempo, soube “triunfar” na vida
porque escalou postos de poder e porque foi rápido na hora de ganhar muito
dinheiro. Essa maneira de pensar é a expressão mais patente do puritanismo
que o Ocidente herdou dos velhos xamãs por intermédio dos gregos.
Oculta-se, no fundo dessas tendências puritanas, o afã de dominação
e de poder que se costuma observar nos dirigentes religiosos, desde os pri
mitivos líderes das antigas religiões até os últimos inventores de seitas inte-
gristas cuja ordem suprema de santidade é a submissão e a obediência? Seja
qual for a resposta a esta questão, o fato é que as religiões se fizeram odiosas
para grandes setores da opinião pública. Isso levou muitos movimentos re
ligiosos a se precipitarem em uma profunda crise da qual não sabemos se
algum dia poderão ressurgir. E é um fato que uma das manifestações mais
fortes dessa crise está em que o povo continua crendo em Deus, porém, é
cada dia maior o número de pessoas que vivem suas crenças à margem de
qualquer instituição. É a “espiritualidade sem Igreja”10, da qual tanto se fala
agora e cuja expressão popular é a conhecida fórmula “eu creio em Deus,
mas não creio nos padres”. O problema não está em que os sacerdotes sejam,
como todos os humanos, frágeis e pecadores. O problema reside no fato de
que há um número excessivo de religiosos que têm acentuada tendência a
comportar-se como os velhos xamãs no que concerne ao exercício do poder
e à consequente imposição autoritária sobre os fiéis: Não necessariamente
porque sejam mandões, mas porque estão convencidos de que suas decisões
são a expressão mais autorizada da vontade de Deus.
10. Cf. MILLÁN ARROYO, Hacia una espiritualidad sin Iglesia, in J. E TEZANOS, Tendências en
identidades, valoresy creencias, Madri, Sistema, 2 0 0 4 , 4 0 9 -4 3 6 .
A ética de Cristo
Pelo que acabo de explicar, é estimulante saber que Jesus se comportou de tal
maneira que para ele foi mais decisivo satisfazer as necessidades dos outros do
que cumprir seus próprios deveres, inclusive o dever de obedecer em condi
ções nas quais ele via que não devia submeter-se a mandatos que se antepu
nham à vida, à integridade e à felicidade das pessoas. Isso é o que explica que
Jesus tenha feito aquela pergunta na sinagoga, quando colocou o homem de
mão paralisada de pé, no meio de todos. E isso é também o que explica que
Jesus, naquela ocasião como em tantas outras, faltasse com seu “dever” de
observar o descanso sabático e, em lugar disso, curasse o homem, ou seja, sa
tisfizesse a “necessidade” que aquele homem tinha de recuperar a integridade
de sua saúde corporal — sem esquecer que Jesus o fez ciente do perigo em
que punha sua própria vida. O fato é que, segundo conta o relato, ao sair da
sinagoga, os fariseus foram direto em busca dos partidários de Herodes, o rei
que mandava então na Galileia, para ver como liquidariam aquele personagem
inquietante, que não hesitava em violar as leis mais sagradas, desde que curas
se um homem que, afinal de contas, poderia ter sido curado no dia seguinte.
Esse é o fato. Mas o que há por trás desse fato? Ou, em outras palavras,
por que Jesus agia dessa maneira? Respondo com poucas palavras: aquele que
anda obcecado por cumprir com seus próprios deveres, na realidade é uma
pessoa obcecada por sua própria conduta, ao passo que aquele que, em todas as
horas, anda preocupado com as necessidades dos outros é uma pessoa que põe
o bem e a felicidade dos outros acima de tudo (inclusive de si própria). Trata-se
de dois dinamismos contrapostos. O primeiro é um dinamismo centripeto, isto
é, o sujeito centrado em si mesmo. O segundo é um dinamismo centrifugo, ou
seja, o sujeito centrado nos outros. Não se trata, no segundo caso, de um sujei-1
12. Quanto a este problema, recom endo a leitura do excelente estudo de J. E. STIGLITZ, Los
felíces 90. La semilla de la destruccíón, Madri, Tauras, 2 0 0 3 .
Em primeiro lugar a vida, e nao a religião
em alta a cada manhã. René Girard, o grande estudioso das misteriosas relações
entre religião e violência, escreveu páginas iluminadas sobre a mudança tão
profunda que estamos vivendo, enquanto se refere à “crescente preocupação
pelas vítimas”. Será certo, sem dúvida, que a cada dia somos menos sensíveis ao
“dever”. Porém, tão certo quanto isso é que a cada dia somos mais sensíveis às
“necessidades” das vítimas deste mundo. Há anos, por volta da década de 1960,
estava na moda a violência revolucionária: “revolução”, “liberação”, “igualdade”
eram as palavras-chave do momento. Hoje, tudo aquilo nos soa como velha
cantilena. E, contudo, é verdade que “o poder de transformação mais eficaz não
é a violência revolucionária, mas a moderna preocupação com as vítimas”17.
Essa preocupação está aumentando e transcendeu as fronteiras, até transformar-
se em um fenômeno de âmbito mundial. Girard insiste nisto: “Nosso mun
do não inventou a compaixão, mas a universalizou. Nas culturas arcaicas, a
compaixão era praticada apenas no seio de grupos extremamente reduzidos. A
fronteira ficava sempre assinalada pelas vítimas. Os mamíferos marcam seu ter
ritório com seus próprios excrementos, algo que durante muito tempo vieram
fazendo também os homens com essa forma especial de excremento que para
eles representam os bodes expiatórios”18. Bem, pois isso terminou, ou está em
vias de extinção, pela simples razão de que, progressivamente, as fronteiras vão
desaparecendo. As vítimas já não são “nossas”, mas de “todos”. E emergem as
sim com força interpeladora as dores e humilhações das pessoas cujo clamor se
toma cada vez mais universal, mais forte e, por isso mesmo, mais insuportável.
Nesse contexto, causa-me impressão o fato de que a má consciência, ou, caso se
prefira, a nova sensibilidade, vai dar uma virada nessa situação em alguns anos.
Em qualquer caso, a ética de nosso tempo não pode permanecer indiferente, e
menos ainda ausente, a esse fenômeno emergente e esperançoso.
tem tanta força na vida, que acaba modificando até as convicções mais firmes
e, em geral, a maneira de pensar.
A sensibilidade não é o mesmo que a vontade. A vontade é decisão, enquanto
a sensibilidade é atração. Aqui está o segredo e a chave do comportamento hu
mano. Não que as decisões não influam na conduta das pessoas, toda decisão,
na medida em que exige esforço, é tomada uma que outra vez. A atração, ao
contrário, está presente em todas as horas, em cada ato, em cada momento, a
ponto de, frequentemente, não sermos capazes de resistir ao que nos atrai. Por
isso é correto dizer que somos sensíveis àquilo que nos atrai, que nos agrada, que
nos seduz e, acima de tudo, a tudo que nos tira de nós mesmos e, nesse sentido,
nos arrasta. Isso é bem conhecido dos homens de propaganda e de publicidade.
As mensagens publicitárias, que vemos constantemente em anúncios nos meios
de comunicação ou nos grandes outdoors nas ruas e nas estradas são imagens
e textos estudados em detalhe por pentos altamente qualificados, os grandes
profissionais da manipulação de massas. Os conteúdos dessas mensagens publi
citárias não são dirigidos às idéias das pessoas, mas à sua sensibilidade. Por isso,
os especialistas em publicidade são mestres consumados na utilização daquilo a
que qualquer ser humano é mais sensível, o êxito, o bem-estar, o poder e, sobre
tudo, a felicidade, o bem-estar e o prazer proporcionado pela sexualidade.
Não se pense que essas coisas são um invento recente. Trata-se de convic
ções muito antigas. Sem nos transportarmos a tempos mais remotos, já Tomás
de Aquino, no século de ouro da grande escolástica, fazia uma distinção sutil
entre o “amor” e a “dileção”, afirmando que o amor é mais divino, precisamente
porque é mais passivo. Para os teólogos escolásticos dos séculos XII e XIII, o
amor é uma “paixão”, a primeira e a mais importante de todas as paixões que
o ser humano possui e vive. “O amor”, afirma Tomás de Aquino, “é a primeira
das paixões do apetite concupiscível”1. E o próprio Tomás de Aquino conclui
daí, de maneira surpreendente: “o amor (ou seja, a paixão) é mais divino que a
dileção”. Por quê? Porque “o homem pode dirigir-se melhor a Deus pelo amor,
já que é atraído passivamente, de alguma forma, pelo próprio Deus”12. A razão
aduzida por santo Tomás para dizer isso vem a ser sem dúvida desconcertante
Sensibilidade e conduta
3. “Quia amor importat quandam passionem, praecipue secundum quod est ín appetitu sensiti
vo”. Op. cit. '
A ética de Cristo
As situações mais importantes que a vida nos apresenta não podem ser
administradas somente com base na lógica da razão. As situações mais im
portantes, principalmente quando se trata de sofrimento, de bem-estar ou
desfrute da vida, só podem ser administradas adequadamente com base na
sensibilidade. Nisso consistiu, certamente, uma das intuições mais profundas
da ética sabiamente formulada por Emmanuel Lévinas. Com efeito, para este
autor, hoje em dia, uma ética não pode ser elaborada pelo mero recurso à
ideia da razão, mas pondo em jogo a ideia da sensibilidade. A ética é uma nova
sensibilidade para com os outrosh Aquele que é sensível diante da dignidade,
dos direitos ou da dor de outra pessoa, se comportará de maneira correta com
quem estiver diante dele. Do mesmo modo aquele que é insensível diante das
situações humanas com as quais se depara na vida, por muitas que sejam as
idéias morais que tenha armazenado em sua cabeça, será um indigno, um
indiferente diante da dor alheia, definitivamente, um violento.
De acordo com o que acabo de dizer, o segredo e a chave da ética estão,
com certeza, no que acertadamente se disse quando foi estabelecido este prin
cípio, que já recordei antes, e nele insisto agora, porque me parece absolu
tamente fundamental. Trata-se do seguinte critério: o sofrimento da pessoa
em particular, de uma criança, por exemplo, não necessita de nenhuma inter
pretação ética posterior. Não necessita da ajuda do imperativo categórico, que
explica isso e exige racionalmente uma resposta. O imperativo categórico é
supérfluo no encontro com a criança que sofre. Necessitamos dos imperativos
categóricos, ou dos discursos, no caso do sofrimento, para decidir se tiramos
ou não de cima de nós a dor que nos oprime? Necessitamos da metafísica de
Lévinas em uma situação-limite de sofrimento?45 Por isso, precisamente por
isso, Lévinas tem toda a razão do mundo quando insiste em que a sensibili
dade, na abertura ao encontro com o outro (ou com os outros), é a chave da
ética. É a relação entre “rosto” e “sensibilidade”6, que expressa a profunda e
misteriosa relação entre “rosto” e “Infinito”: “O Outro permanece infinitamen
te transcendente, infinitamente estrangeiro, porém seu rosto, no qual se ma
nifesta sua epifania e que me chama, rompe com o mundo que nos pode ser
Á sensibilidade de Jesus
Com base em tudo o que se disse, a pergunta que se delineia é a questão cen
tral deste capítulo: o que sabemos sobre a sensibilidade de Jesus?
Sabemos muito. Certamente mais do que alguns imaginam. Os evan
gelhos falam desse assunto utilizando o verbo grego splagchnízomai, cujo sig
nificado se entende levando em conta que esse verbo se constrói a partir do
substantivo splagchnon, que, no plural, indica os órgãos internos, as entranhas
do homem e do animal9. Daí que, em sentido figurado, os splagchna são con
siderados como a sede dos sentimentos. Portanto, quando os evangelhos utili
zam esse verbo, para fazer referência às relações ou comportamentos de Jesus,
na realidade, o que falam é algo que diz respeito à sensibilidade de Jesus. Esse
fato, frequentemente, não aparece com clareza nas traduções do texto grego
original, porque não é raro que os tradutores, ao se depararem com esse verbo,
o traduzam por “ter misericórdia” ou “ter compaixão” e, por vezes, “ter pena”.
O fato é que tudo isso é verdade. Mas também é certo que, nessas expressões,
afirma-se algo que corre o risco de nos fazer pensar que, diante das desgraças
alheias, Jesus reagia como qualquer um (que não for desalmado) reage diante
de um mendigo que pede esmola ou um maltrapilho que anda pelas ruas.
Muitas pessoas, quando veem um mendigo assim, sentem “pena” ou expe
rimentam alguma “compaixão” e dão-lhe uma esmola, com ó que cumprem
7. ID., ibid., 2 0 8 .
8. MIROSLAV MÍLOVIC, op. cit., 1 2 2 -1 2 3 .
9. N. WALTER, Splagchnon, in H. BALZ, G. SCHNEIDER, Diccionario Exegétíco dei Nuevo Testa
mento, II, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 8 , 1 4 7 1 , com bibliografia selecionada.
■ A éLica de Cristo
CO filho recém-falecido (Lc 7,13). Sentiu a mesma compaixão ao ver dois cegos
que pediam esmola sentados à beira de um caminho (Mt 20,34; cf. 20,29).
É importante perceber que a sensibilidade de Jesus é mencionada nos
evangelhos somente quando se trata de situações de sofrimento dos outros.
Não se fala disso nem mesmo quando o que está em questão é o sofrimento do
próprio Jesus. E menos ainda para indicar o quanto Jesus sentia todas as vezes
que o ofendiam, o insultavam e tratavam com desprezo e desconfiança, quan
do se viu ameaçado, em perigo, incompreendido ou, sobretudo, injustamente
tratado na Paixão e na morte. Não se quer dizer que Jesus fosse um estranho,
insensível aos insultos e às ofensas, à própria dor e às humilhações que a vida
nos apresenta. Jesus foi um homem normal, a quem tudo isso doeu e ofendeu.
Todavia, o fato é que os evangelhos não fazem menção à sua sensibilidade a
não ser quando se trata do sofrimento dos outros. Isso é fundamental na ética
de Cristo. Somente assim é possível reorientar o comportamento ético de tan
tas pessoas desorientadas em sua vida e em suas condutas.
Indiferença e violência
11. O texto grego utiliza a palavra pylon, que significa, literalmente, a parte do edifício onde
está a porta que dá para a rua. Cf. M. ZERWICK, Analysís philological N.T. Graeci, Roma, Pont.
Inst. Bíbl., 1 9 6 0 , 184. Portanto, o mendigo estava dentro da casa.
“Tenho compaixao desta multidão”
Nem que tivesse alguma culpa de sua enfermidade. Diz-se simplesmente que
o deixou ali, de maneira que nem sequer o expulsou de sua casa, permitindo o
repugnante espetáculo daquele infeliz “coberto de úlceras” (Lc 16,20) e a pre
sença dos cães lambendo semelhante podridão (Lc 16,21). Por certo, quando
o rico está no tormento de sua perdição, é-lhe lembrado de “que recebeu sua
felicidade durante a vida, como Lázaro, a infelicidade” (Lc 16,25). Entretanto,
a verdade é que, se nos ativermos ao que é contado por essa história, o que
o Evangelho censura é a indiferença do rico. Essa indiferença foi sua violência.
Isso nos diz que a coisa pior que existe na vida é a violência dos indiferentes,
ou seja, a violência dos insensíveis diante da dor alheia. Aqui está a impor
tância decisiva da sensibilidade no problema da ética. E nisso está também a
gravidade mortal da insensibilidade que leva a nos desviar da “preocupação
moderna pelas vítimas”12. Porque o correto, na preocupação pelas vítimas, é
a insatisfação pelos lucros que se obtiveram nesse estado de coisas13. Aquele
que se sente satisfeito porque já fizemos muito pelos que sofrem carrega em
suas entranhas um germe de violência mais forte do que se imagina. E mais
violência existe naqueles que se sentem incomodados quando se invocam os
direitos humanos, a igualdade de todos ou as legítimas reivindicações das
mulheres ou dos imigrantes. Queixamo-nos de que nosso mundo é violento
mas são muitos os que não tomam conhecimento de que a maior violência
está naqueles que veem a si mesmos como os melhores porque não estão
lançando bombas nem dando tiros, no entanto, não movem sequer um dedo
para que este mundo seja mais solidário e menos desumano.
próprios e diante dos outros) por sua própria conduta. Segundo o critério de
Jesus, o perigo está naqueles que não veem em si mesmos nada censurável.
E é pior ainda quando se trata de pessoas que se consideram “observantes”,
“piedosas”, “irrepreensíveis”. Aí pode aninhar-se a violência mais perigosa
do mundo. É exatamente isso que a parábola descobre ao dizer que “um
sacerdote descia por esse caminho”, e ao ver o moribundo, deu uma volta “e
passou a boa distância” (Lc 10,31). Exatamente o mesmo que fez, em segui
da, um levita que também passou pelo mesmo lugar (Lc 10,32). Logicamen
te, se Jesus, ao contar essa história, apresentou como exemplos de indiferença
diante do sofrimento dois profissionais da religião, isso não pode ser circuns
tancial na parábola. Tampouco se pode dizer que Jesus falou dos profissionais
do que é religioso como poderia ter falado de outra profissão qualquer. Isso
significa que Jesus estava convencido de que os sacerdotes e os levitas são
pessoas piores que o restante dos mortais? Não se pode tirar essa conclusão.
Pelo menos a história não apresenta razões para isso. Compreende-se o que
Jesus quis deixar claro quando se leva em consideração o contraste assom
broso entre o que significava, naquela sociedade, um “sacerdote” e o que
representava um “samaritano”. O sacerdote era o “cumpridor” dos deveres
religiosos, ao passo que o samaritano era o “herege”, o inobservante em as
suntos de religião. Ora, nisso está o segredo da questão. Assim delineadas as
circunstâncias da história, o ponto mais forte e que prevalece é que os observantes
não tiveram sensibilidade diante do sofrimento, enquanto o inobservante foi quem
reagiu de tal maneira que, ao ver o moribundo, sentiu compaixão (Lc 10,34). Daí
se deduzem duas consequências tão claras que não se pode deixar de pensar
nelas. Em primeiro lugar, fica evidenciado que a chave do comportamento
ético não é a observância religiosa, mas sim a sensibilidade humana diante do
sofrimento. Essa sensibilidade é a chave que abre ou fecha as comportas de
toda a violência deste mundo. Em segundo lugar, também parece bastante
claro que, precisamente pelo que acabo de dizer, são as pessoas oficialmente
mais religiosas, piedosas e observantes as que oferecem maior perigo de sa
tisfazer sua sensibilidade com suas observâncías e piedades, o que acarreta uma
perversão tão inconsciente quanto perigosa: a perversão que consiste em que
a sensibilidade da pessoa se centra no próprio sujeito, em vez de orientar-se
para os demais, para a felicidade ou para a desgraça dos outros. Nesse caso,
como é evidente, a religiosidade e a boa conduta se convertem no mais refinado
egoísmo, do qual, ademais, o indivíduo não tem consciência.
“Tenho compaixao desta multidão”
14. Cf. X. PIKAZA, Hermanos de Jesús y síervos de los más pobres (Mt 25,31-46), Salamanca,
Sígueme, 1 9 8 4 , 1 4 -2 1 . >
A ética de Cristo
Como pode alguém ficar quieto, como pode alguém ficar calado, como
podemos continuar como se isso fosse normal, quando cada dia nos inteiramos
de novas vítimas deste sistema criminoso que nos impuseram, dizendo-nos,
ainda por cima, que é o melhor sistema que até agora foi inventado? E, em
se tratando de um sistema democrático, em que a doutrina oficial ensina que
votamos livremente em nossos representantes e, além disso, é um sistema no
“Tentio com paíxao desta multidão” L
qual gozamos dos direitos e liberdades ditados pela modernidade, de que va
mos nos queixar? O próprio sistema já se encarrega de desautorizar os que
protestam, apresentando-os como “os violentos”, porque não querem se tornar
cúmplices, com sua passividade e seu silêncio, dos crimes “legais”- cometidos
pelo próprio sistema. E se alguém disser o que eu estou dizendo, acusam-no de
“demagogo”, desautorizam-no, assegurando que é um apaixonado ou, até, um
desequilibrado, com o que os “prudentes” e “equilibrados”, que se deixam ficar
em silêncio, tem-se como resultado que fazem “o que tem de ser feito”. Cum
prem com seu “dever”, por mais que lhes importe uma insignificância a “neces
sidade” dos que passam o pior neste mundo “ideal” que nos impuseram.
15. E J. DE LA TORRE, Derribar lasfronteras. Ética mundialy diálogo interrelígioso, Bilbao, Desclée
De Brouwer, 2 0 0 4 , 17.
A ética de Cristo
que entra o que denominei uma ética leiga. A saber, uma ética que se centra e
se concentra em algo que é comum a todas as religiões porque é prévio a qualquer
ddmamento religioso. Nesse sentido, e referindo-se à tradição cristã, Paul E
Knitter escreveu o seguinte: “Se as atitudes cristãs evoluíram do eclesiocen-
trismo para o cristocentrismo, e deste ao teocentrismo, devem evoluir agora
para o que, em símbolos cristãos, poderia ser chamado ‘reinocentrismo’, ou
maisuniversalmente, ‘soteriocentrismo’”16. Isso quer dizer que no cristianismo
evoluiu-se desde ter como centro a Igreja a ter como centro Cristo, e daí a ter
como centro Deus. Porém, estamos ainda por dar um passo mais forte e mais
difícil: ter como centro o Reino de Deus, o que Jesus quis dizer quando nos
falou sobre seu projeto do Reino. E mais ainda, o passo decisivo será quando
nós, cristãos, nos arriscarmos a que o centro do cristianismo seja verdadeira
mente “a salvação”, oferecer e trazer saúde e salvação a todos neste mundo.
Por isso, o próprio P. E Knitter acrescenta: “Para os cristãos, o que consti
tui a base e a meta do diálogo inter-religioso, o que torna possível o entendi
mento e a cooperação mútua entre as religiões, o que une as religiões em um
discurso e práxis comum, não é o modo como se relacionam com a Igreja,
ou como se relacionam com Cristo (anonimamente [K. Rahner], ou normati
vamente [H. Küng], nem sequer como respondem ou concebem a Deus, mas,
antes, até onde estão promovendo Sotería (salvação)..., ou seja, até que ponto
estão promovendo o bem-estar humano e realizando a liberação e a favor dos
pobres e das não-pessoas”17. E, como afirma o mesmo Knitter, as doutrinas
“ortodoxas” que dão frutos não-éticos são, por assim dizer, muito suspeitas18.
Porque não resta dúvida de que uma teologia, por mais “verdadeira” que pa
reça e por mais fiel que seja a seu próprio magistério e a sua própria tradição,
ou seja, por mais “ortodoxa” que venha a ser, se, na hora da verdade, o que
ocasiona são divisões entre as pessoas e entre os grupos humanos, submissão
humilhante de uns a outros, agressões aos que não pensarem como eu, ou
humilhações para os que são considerados adversários e, principalmente, o
que gera é indiferença diante de tanto sofrimento e tanta miséria como vemos
16. P E KNITTER, Un diálogo necesario: entre la teologia de la liberación y la teologia dei plu
ralismo, in ASOCIACIÓN ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS Y TEÓLOGAS DEL TERCER MUNDO, Por
los muchos caminos de Díos, Quito, Centro Bíblico Verbo Divino, 2 0 0 3 , 104.
17. E E KNITTER, op. cit., 104.
18. Op. cit., 99.
“Tenho compaixao desta multidão”
por todas as partes, semelhante teologia (com toda a sua “verdade” e sua “fi
delidade”) é apenas a expressão da mentira e do engano, o “erro” instalado na
mais estrita “ortodoxia” e, definitivamente, o caminho que leva diretamente
ao absurdo, ao ridículo e ao extravio total.
Vamos pensar em coisas concretas, nas coisas que vemos e vivemos na
vida cotidiana. Sabemos que as éticas religiosas dividem e até enfrentam as pes
soas, porque são vividas por aqueles que as seguem como normas divinas que
não admitem discussão e das quais depende a salvação ou a perdição definitiva.
Ademais, tais éticas impõem a seus fiéis obrigações não só diferentes, mas às
vezes (o que é pior) ordenam coisas que são estritamente contraditórias. E,
além disso, coisas muito graves. Por exemplo, como bem sabemos, existem
normas religiosas que ordenam a alguns que respeitem a vida, enquanto a ou
tros, obrigam-nos a matar ou, até, matar-se. E sem ir tão longe, todo o mundo
sabe que as normas religiosas complicam a vida das pessoas com proibições
sobre a vida sexual, sobre as relações pessoais, os alimentos, o trabalho, as
práticas rituais e mil outras coisas que seria interminável enumerar.
Estou inteiramente de acordo que as religiões, com suas normas éticas,
trouxeram sentido à vida das pessoas, normas e valores que foram decisivos para
humanizar as culturas e a convivência das pessoas. É este o ponto em que, com
toda a razão, Hans Küng insistiu nos últimos tempos. Sua contribuição nesse as
sunto foi de suma importância19. Porém, não é menos certo que o mesmo Küng,
e aqueles que recomendaram seus pontos de vista, advertiram que é necessário
insistir em uma ética mundial, uma ética comum, uma ética pelo menos “de mí
nimos”, a ética do indispensável, precisamente porque a ética religiosa, por si mesma
e por si só, nos levou com demasiada frequência à confrontação e à desumanização.
Essa a razão pela qual se insistiu tanto na famosa “regra de ouro” que se encontra
nas diferentes tradições religiosas. Trata-se da regra que é centrada no amor aos
outros, nas diversas formulações que podem ser dadas a tal princípio. Desde
Confúcio: “O que não desejas para ti não o faças aos outros seres humanos”, até o
princípio estabelecido por Jesus no sermão da montanha: “Tudo aquilo que que
reis que os homens façam a vós fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31)20.
19. H. KÜNG, Una ética mundial para la economiay la política, Madri, Trotta, 1999.
20. H. KÜNG, Ecum ene abrahãmica entre judios, cristianos y musulmanes. Fundamentación
teológica y consecuencias prácticas, in J. J. TAMAYO (ed.), Cristianismo y Líberación. Homenaje
a Casíano Floristãn, Madri, Trotta, 1 9 9 6 , 53.
A ética de Cristo
Nos tempos que correm, é frequente ouvir as pessoas de mais idade se quei
xarem da crise religiosa que se nota por toda parte. Além disso, os que se
lamentam da crise religiosa costumam acompanhar seus lamentos com duras
críticas ao relaxamento dos costumes, à imoralidade que se impõe por todas
as partes e que afeta todos os âmbitos da vida privada e pública. Tristitia rerum
et tempus lacrímarum, diziam os antigos: a tristeza das coisas e o tempo das
lágrimas e do pranto. É o pessimismo que invade não poucos ambientes. O
pessimismo que se vê estimulado pelos “profetas de desgraças” dos quais
falou, com seu acerto genial, o saudoso papa João XXIII. Tudo isso se diz e
se ouve com frequência. Mas nosso tempo é realmente tão mau como dizem?
Temos motivos para ser pessimistas, tão negativamente pessimistas como
muitos se mostram ultimamente?
Se pensarmos no que está acontecendo com os critérios que nos podem
ser oferecidos pela ética religiosa do cristianismo tradicional, certamente
existem dados de sobra para pensar que as coisas vão muito mal. Se olhar
mos as coisas do ponto de vista da ética que o discurso oficial da Igreja nos
ensina, não resta dúvida de que vamos de mal a pior. Todavia, o que deve
ser perguntado é se o discurso eclesiástico oficial é o critério objetivo e justo
quando se trata de avaliar a retidão ou o extravio de uma geração ou de uma
cultura. Como disse, com toda a razão, o conhecido antropólogo e historia
dor René Girard, “temos, de imediato, excelentes razões para nos sentirmos
'Tenho compaixão desta multidão”
culpados, porém, as que aduzimos não são nunca (nossas culpas)”21. Por que
nos equivocamos nisso; precisamente em algo tão fundamental e que tanto
nos diz respeito? Porque, se estou na direção certa, temos a tendência lógica
de julgar a conduta ética de hoje com os critérios da conduta éticá de ontem.
Com efeito, a conduta ética da cultura ocidental foi profundamente marcada
pelo princípio do dever religioso, enquanto assistimos agora à transformação
desse princípio, que está sendo substituído pela consciência leiga. Evidente
mente, aquele antigo princípio, quer nos agrade quer não, jã não é o critério
moral que rege a vida da sociedade. Não se trata de um problema de rela
xamento ético, mas de um fenômeno que consiste em uma mudança cultural.
Uma mudança rápida e profunda, que certamente nos tem desconcertado
em muitas coisas, mas que não quer dizer necessariamente que as pessoas
sejam piores, e sim que são diferentes.
Nosso mundo é, por certo, “um mundo desbocado” (A. Giddens). Mas
tão certo quanto isso é que “nunca uma sociedade se preocupou tanto com
as vítimas como a nossa. E mesmo que se trate apenas de um grande teatro,
o fenômeno não tem precedentes”. Isto é afirmado, sem hesitações, por um
dos melhores antropólogos e conhecedores da história da cultura, como é o
caso do já citado René Girard22. E este autor acrescenta: “Nenhum período
histórico, nenhuma das sociedades até agora conhecidas chegou a falar vez
alguma das vítimas como nós o fazemos. E embora as primícias desta atitude
contemporânea possam ser discernidas em um passado recente, a cada dia
que passa se bate um recorde nesse sentido. Somos todos tanto atores quanto
testemunhas de uma grande estreia antropológica”23.
O fato é evidente. Há trinta ou quarenta anos, um jovem ou uma jovem
que sentisse impulsos de generosidade encerrava-se em um convento, ingres
sava em um seminário ou ia para as missões. Hoje, os jovens que têm inquie-
tudes desse tipo dirigem-se a uma ONG, ou partem como voluntários para
países do Terceiro Mundo, ou se põem a restaurar as moradias inabitáveis das
pessoas mais desamparadas, que abundam em nossas grandes cidades. Vai-
se extinguindo a velha preocupação pela pureza e pela piedade de outrora,
ao mesmo tempo em que se potencializa uma nova sensibilidade. Nem mais
menos amda entra nos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos,
que são o eixo e o centro-da economia mundial. Por isso, o futuro dos últimos
é visto cada dia mais sombrio e pode-se garantir que, ao menos a curto e mé
dio prazo, é absolutamente desesperador. Assim estão as coisas. -r
Por outro lado — se é que consideramos este assunto com uma pers
pectiva mais ampla — , os últimos estão onde estão porque ninguém quer ser
o último. E por isso todo o mundo se esforça e luta para subir, para ficar por
cima dos outros, para escalar postos, para ter mais e ser mais importante. É
lei de vida. E, além disso, é uma coisa boa, ao menos em princípio, porque
isso motiva a pessoa e a estimula para o trabalho e a eficácia. Se não existisse
esse desejo de superação, a sociedade se paralisaria e tudo ficaria estacionado.
Se, na vida, fosse dado igualmente a todo mundo ter mais ou ter menos, estar
mais acima ou mais abaixo, ser mais ou ser menos, é evidente que ninguém
teria motivos para trabalhar, esforçar-se, superar-se, alcançar lucros legítimos
e nobres no trabalho, nos estudos, na profissão, no próprio ofício, no esporte
e até quando se trata de uma coisa tão simples como jogar cartas ou jogos
de tabuleiro. Uma vida na qual fosse a mesma coisa para todo mundo ser o
primeiro ou o último seria uma vida insuportável e, sobretudo, uma ruína
para todos, uma espécie de “autogenocídio” universal.
Tudo isso é perfeitamente lógico. Isso, porém, que é tão necessário e tão
óbvio, é a origem da competição e, com frequência, motivo de constantes e até
brutais situações de confrontação. Trata-se, como bem sabemos, da competi
ção que ataca e divide as pessoas e os grupos humanos. Mais ainda, tudo isso
desemboca muitas vezes na competitividade. Em consequência, isso leva a pes
soa, a cotoveladas, a abnr passagem na vida, deixando os outros (ou tentando
deixá-los) no meio do caminho, para subir, para ascender a postos importan
tes, para alcançar vantagens, definitivamente, para pôr-se como o primeiro e,
consequentemente, deixar de ser o segundo ou o terceiro e daí para baixo. E
não digamos o último. Além disso, não esqueçamos que, se tudo isso sempre
aconteceu, o sistema econômico de livre mercado, a saber, o sistema capita
lista puro e duro, produziu uma sociedade tão brutalmente competitiva que,
como todos sabemos, tende-se a privatizar tudo o que se pode converter em
bem privado e, portanto, em ganância do que tem sobre o que não tem, do
poderoso sobre o fraco. Assim, estamos assistindo ao pavoroso espetáculo de
continentes inteiros (como é o caso da África) submergirem na miséria e na
morte, ao mesmo tempo em que os países mais ricos do Norte esbanjam o
A ética de Cristo
Jesus foi direto ao ponto no que se refere a essa complexa problemática e tudo
o que se relaciona com ela. A prova está na afirmação, atestada repetidas vezes
nos evangelhos, segundo a qual “os últimos serão os primeiros” (Mc 9,35;
10,31; Mt 19,30; 20,16; Lc 13,30). Essa afirmação nos vem dizer, de imediato,
que o projeto de Jesus inclui que os mais necessitados e os que carecem de dig
nidade e de direitos, na medida em que esse projeto se impuser neste mundo,
deixarão de estar em semelhante situação. Mas não é só isso. A ideia de Jesus é
que a subversão seja total e, portanto, os primeiros, a saber, os que nadam na
abundância e gozam de todas as honras, esses precisamente irão para o último
lugar, na parte de trás do grande trem da história. Por isso, sem dúvida, Jesus
repreendeu repetidas vezes os que pretendem “colocar-se nos primeiros luga
res” (Mt 20,8; Lc 14,9.10; cf. Mc 10,35-45 par.; Lc 22,24-30 par.). O aspecto
mais significativo do Evangelho, neste ponto concreto, não está, provavel
mente, em haver criado essa contraposição entre os primeiros e os últimos,
já que conhecemos um dito semelhante de um teólogo coetâneo de Jesus, o
rabino Hillel, que dizia: “Minha humilhação é minha elevação, minha eleva
ção é minha humilhação”1. O que chama a atenção é a insistência de Jesus,
que repete esse princípio de maneira quase importuna. Sinal evidente de que
Jesus deu enorme importância a essa sentença. Por quê?
A partir das duas séries de textos que põem na boca de Jesus a contra
posição e a subversão dos primeiros e dos últimos, delineiam-se várias ques
tões que são não só inevitáveis, mas acima de tudo óbvias e, por certo, neces
sárias: o que quis Jesus dizer ao fazer tais afirmações? Referia-se apenas a
atitudes internas, na vida privada das pessoas, como seria, por exemplo, a
humildade ou a renúncia a qualquer forma ou manifestação de ambição? É
possível pensar que Jesus pretendeu mudar a sociedade, seus poderes e hie
1. Lev 105c. Cf. J. GNILKA, El evangelio segiln san Marcos, II, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 6 , 65,
nota 2 2 4 .
;Os últimos serão os primeiros”
e amigos tanto quanto com seus adversários. Refiro-me aos anseios de poder, de
ser mais que os outros e, definitivamente, de dominar os outros e de impor-se a eles.
Com toda a segurança, pode-se afirmar que isso é o que se tornou para Jesus
a coisa mais insuportável. Por isso Jesus, que foi tão respeitoso, permissivo e
tolerante com “pecadores” e “publicanos” (Mc 2 ,13-17 par.; Lc 15,1-2), com
“samaritanos” (Lc 10,33; 17,16; Jo 4,5-4 0 ), com as “mulheres” (Lc 8,2-3), in
clusive com as que eram consideradas pessoas de má reputação (Lc 7,36-50;
Jo 4 ,1 6 -1 8 ; 8 ,2 -1 1 ), e que até não hesitou em afirmar que as “prostitutas”
entram no Reino de Deus antes que os sumos sacerdotes (Mt 2 1 ,3 1 -3 2 ), con
tudo, não suportou as pretensões mostradas pelos discípulos, quando alguns
deles expressaram desejos de ocupar os primeiros lugares (Mc 10,35-45;
Mt 2 0 ,2 0 -2 8 ; Lc 2 2 ,2 4 -2 7 ) ou quando se punham a discutir entre si sobre
quem era o mais importante (Mc 9 ,3 3 -3 7 ; Mt 18,1-5; Lc 9,46-48). Em todos
esses casos, Jesus foi direto ao ponto e lhes disse sem rodeios: “Se alguém
quiser ser o primeiro, seja o último de todos e servo de todos” (Mc 9,35 par.).
Jesus foi bem taxativo nesse assunto porque ele sabia muito bem que aqueles
que passam pela vida tentando subir, elevar-se e pôr-se nos primeiros postos
ou, pelo menos, em cargos e cátedras de importância, ou seja, os que querem
pôr-se acima dos outros, o que pretendem, na realidade, é fazer exatamente o
mesmo que fazem os “chefes das nações” e os “grandes” deste mundo, e que
não é outra coisa senão “tiranizar” e “oprimir” (Mc 10,43 par.). Por essa razão,
porque Jesus não quer neste mundo nem tiranias nem opressões, exatamente
por isso, aos que pretendem pôr-se como primeiros, diz-lhes que se dirijam
ao último lugar e que se ponham a servir os outros.
Nisso Jesus foi taxativo, muito taxativo. Sem dúvida, é a única coisa em
que foi intransigente ao extremo, pois compreendeu, como ninguém, que a
ambição por subir e situar-se sobre os outros é a causa mais determinante da
violência e da opressão neste mundo. Daí que a ética de Jesus, na medida em
que é, antes de tudo, ética da solidariedade humana, nessa mesma medida é
também a ética dos últimos, a ética que se concretiza no elogio e na exempla-
ridade dos últimos, a ponto de apresentá-los como projeto. Jesus não deli
neou assim as coisas porque pensava ingenuamente que os “últimos” são os
“bons” e aqueles a quem se deve imitar. Nos últimos, há bons e maus, como
em todas as partes. Ocorre que os últimos carecem de poder. E por isso são
os mais necessitados deste mundo. Isso explica o fato de que, em uma ocasião
em que Jesus foi convidado a comer na casa de um dos fariseus mais impor
A ética de Cristo
desde o amanhecer e os que por isso protestaram, porque eles é que haviam
sido os “primeiros” e viram-se defraudados. Precisamente a esses, o dono
teve de recordar uma coisa que, em contrapartida, é absolutamente lógica:
“O teu olho é mau porque eu sou bom?” (Mt 20,1 5).
O que há no âmago dessa história? Em geral, aqueles que veem a st
mesmos como os “primeiros” e, portanto, como os que apresentam maior
rendimento, os mais eficazes e (nesse sentido) os melhores, não podem tole
rar que os “últimos” sejam tratados como eles, que veem a vida somente a
partir da eficácia, dos direitos, dos privilégios e do bom rendimento. Não
possuem outros critérios em sua cabeça e nem sequer em suas vidas há lugar
para outras categorias ou, quiçá, outros valores. Vale dizer, os que se situam
como “primeiros” costumam ver a si mesmos como os melhores, os mais
eficazes, talvez os que fazem mais pelos outros ou coisas do gênero. Ora,
as pessoas que assimilaram tais critérios são pessoas que não entendem as
razões do coração e, portanto, tais pessoas correm o perigo de não entender
de generosidade e (o que é pior), normalmente, não estão capacitadas para
compreender que a vida tem de se reger por uma bondade tão grande que supere
todas as obrigações do direito. Quer dizer, trata-se de uma pessoa que, por cer
to, cumpre com o dever estabelecido. Não se deixa, porém, ficar nisso, mas
vai muito mais além do direito e da justiça. Ao dizer isso, estamos tocando
na utopia do Reino anunciado por Jesus.
Por isso, a ética de Cristo nos desconcerta, nos confunde e não consegui
mos explicá-la. Falamos com frequência de amor e de solidariedade. Mas apli
camos isso somente à vida privada, às relações amorosas, à intimidade. E não
temos a coragem de afirmar que na vida inteira, tanto na vida privada quanto
na vida social e pública, se não é a bondade e o amor que se impõem, fazemos
desta vida uma selva, um campo de batalha, um inferno, no qual caem os mais
fracos e tiram proveito os que dominam os outros. Sabemos muito bem que
todo aquele que pretende situar-se na frente ou acima dos outros provoca di
visão, inveja, ressentimentos e, definitivamente, rompe a proximidade entre as
pessoas. Ao contrário, aquele que não mostra desejos, nem pretende postos de
honra e de importância, somente pelo fato de agir assim, produz uma corrente
de harmonia, de união, de humanidade, de proximidade entre as pessoas.
Assim somos nós, seres humanos, assim reagimos normalmente, assim nos re
lacionamos uns com os outros. E são essas coisas que tornam possível a união
de todos ou, ao contrário, transformam a vida em um inferno.
1 A ética de Cristo
Desigualdade e diferença
como tal e, portanto, no que é comum a todos os humanos, sejam de onde fo
rem e vivam como viverem. Somente se levarmos isso em conta poderemos
compreender onde reside e está radicada a razão de ser do direito. E, por
isso mesmo, a razão de ser da afirmação fundamental da declaração universal
dos direitos humanos: “Todos os seres humanos são iguais em dignidade e
direitos”. Isso é certo, por mais diferenças que existam entre uns e outros em
quase tudo o que concerne à vida concreta de cada qual.
Toda essa problemática, relativa à igualdade e à diferença, foi delineada
principalmente a partir da diferença de sexo, enquanto constitui um caso-
limite em que essa diferença se torna, a partir de muitos pontos de vista, sim
plesmente insuperável3. Com efeito, as mulheres são diferentes dos homens.
Entretanto, pode-se deduzir daí que, precisamente por serem “diferentes”,
têm que ser também “desiguais”? E o que se diz da diferença de sexo pode-se
dizer também da diferença de nascimento, de etnia, de fé religiosa, de língua,
de renda e de muitas outras coisas que marcam a vida das pessoas.
Pois bem, para tornar mais claro esse complicado assunto, o primeiro
fator que se deve ter presente é que a diferença é um fato (político, econômico,
social, cultural, religioso...), ao passo que a igualdade é um valor ou, talvez
mais exatamente, um direito. Por isso, a “diferença” é um termo descritivo, ao
passo que a “igualdade” é considerada um termo normativo4. Nesse sentido,
quando a Declaração de 1789 afirma, em seu artigo primeiro, que “les hom-
mes naissent et demurent libres et égoaux en droits” [“os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos”], na realidade, o que então se quis
dizer é que entre todos os seres humanos existe uma igualdade jurídica5. Isso
nos vem ensinar que, se quisermos ser verdadeiramente humanos e huma
nizar nossas diferenças, não temos outra saída a não ser esforçar-nos e lutar
por conseguir uma “igual avaliação jurídica dessas diferenças”. Trata-se de um
modelo de organização da convivência e da sociedade, baseado no princípio
normativo de igualdade e dos direitos fundamentais — políticos, civis e so
ciais — e ao mesmo tempo em um sistema de garantias capazes de assegurar
a efetividade dessa igualdade de direitos6.
3. Cf. L. FERRAJOLI, Derechosy garantias. La lei dei más débil, Madri, Trotta, 2 0 0 1 , 73.
4. ID., íbid., 79.
5. ID., ibid., 8 0 -8 1 .
6. ID., ibid., 75.
A ética de Cristo
8. ID .,ib id .,3 7 .
9. Os socialistas, afirma Leão XIII, díctitare non desinunt... omnes- homines esse inter se natura
eaquales, ideoque contendunt nec maíestati honorem ac reverentiam, nec legibus... obedientíam debe-
ri. Quod Apostolici. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 2 .
10. Inaequalitas tamen iuris et potestatis ab ipso naturae Auctore dimanat, ex quo omnís paternitas
in coelis et in terra nomínatur. Quod Apostolici. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 2 .
11. Ecclesia multo satius et utilius inaequalítatem inter homines... etiam in bonis possídendis agnoscít.
Quod Apostolici. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 4 .
A ética de Cristo
12. Ne ordinis tranquilítas magis magisque turbetur, neve societas maíus exinde âertímentum capiat.
Quod Apostolící. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 3 .
13. B. GROETHUYSEN, La jormación de la concíencia burguesa en Francía durante el siglo XVIII,
México, Fondo de Cultura Econômica, 1 9 8 1 , 2 3 8 -2 3 9 .
14. ID., ibid., 28 1 .
15. ID., ibid., 28 5 .
u0 s últimos serão os prim eiros”
fosse modificada. Jesus não poderia ter sido tão falto de inteligência para di
zer semelhante despropósito. O projeto ético de Jesus é que haja igualdade efe
tiva e real. Obviamente, porém, para conseguir uma utopia tão difícil (dado o
que oferece de si a condição humana), o caminho para chegar a issotem de se
basear na modificação das aspirações humanas, dos desejos que todos temos de
ser os primeiros. No dia em que tais desejos deixarem de motivar as pessoas
para ir pela vida afora escalando postos e conseguindo lugares privilegiados,
nesse dia começará a ser uma realidade a igualdade efetiva em direitos, por
mais fortes que sejam as diferenças de fato.
próprias e mais fortes da ética de Cristo. A partir dessa ética, se é que se leva a
sério e com todas as suas consequências, a vida é entendida de outra maneira.
De uma maneira a que certamente não estamos acostumados.
Nesse sentido e desse ponto de vista, pode-se assegurar que efetivamen
te Jesus delineou o modelo ideal do comportamento humano exatamente ao
inverso do que costuma ser habitual e até do que se considera como “normal”
nas pautas “sociais” de conduta “política” ou “religiosa” comumente admitidas
em nossa cultura. É evidente que, em toda sociedade humana, é necessário
que haja os que exercem cargos de poder e autoridade. Mais ainda, ninguém
duvida de que, se realmente queremos mudar a realidade , isso tem que ser feito
contando com a ação política e não à margem dela. Por isso, é uma verdade
muito grande que aqueles que dizem que “não se envolvem em política”, o
que na verdade estão dizendo é que se dão bem com os que mandam.
Ocorre, todavia, que, como já disse Max Weber, o poder e o exercício do
poder têm um nome forte. Nada menos que dominação. Além disso, para que
a dominação seja efetiva, necessita da devida “legitimação” diante dos “domi
nados”, ou seja, diante daqueles que adotam por si mesmos e como máxima
de seu operar o conteúdo do mandato (“obediência”) 16. Por outro lado, sabe-
se por experiência que o poder religioso costuma ser uma importante fonte de
“legitimação” do poder político. Daí a profunda vinculação que sempre existiu
(e continua existindo) entre ambos. Maquiavel tinha razão quando declarou
que “os que estão à cabeça de uma república ou de um reino devem manter as
bases da religião e, feito isto, lhes será fácil manter o país religioso e, portan
to, bom e unido. E devem favorecer e acrescentar todas as coisas que forem
benéficas para ela (a religião), mesmo que as julgarem falsas”17. Maquiavel
sabia muito bem que política e religião são inseparáveis (também nos tempos
atuais), por mais que haja quem se empenhe em afirmar o contrário. Por isso,
uma de suas “Máximas” dizia: “Jamais houve Estado algum ao qual não se
desse por fundamento a religião, e os mais prevenidos dos fundadores dos
impérios atribuíram-lhe a maior influência possível nas coisas da política”18.
Tudo isso explica que tanto na política quanto na religião há pessoas que
buscam os primeiros lugares porque uns e outros, políticos e religiosos, têm
16. M. WEBER, Economíay Sociedad, II, México, Fondo de Cultura Econômica, 1 969, 7 0 6 -7 0 7 .
17. N. MAQUIAVELO, Discursos sobre la primera década de Títo Lívio, 1 ,12, Madri, Aliança, 2003, 72.
18. El Príncipe, Máximas, II, Madri, Espasa, 2 0 0 1 , 2 3 0 .
“Os últimos serão os prim eiros”
Jesus e Moisés
2. Cf. J. M. CASTILLO, El Reino de Dios. Por la viday la âignidad de los seres humanos, Bilbao.
Desclée De Brouwer, 2 0 0 0 , 5 5 -6 1 .
3. As referências bibliográficas, em J. M. CASTILLO, El Reino de Dios, 5 9, nota 19.
Ética de obrigações, ética da felicidade
Paulo, de forma que, quando ele fala da libertação da Lei, refere-se, sobre
tudo, à Lei que foi revelada por Deus a Moisés no Sinai, quer dizer, refere-se
ao decãlogo (Rm 2 ,1 7 -2 3 ; 7,7; 1 3 ,8 -1 0 ; G1 5 ,1 4 ; 3 ,1 0 .1 7 .1 9 ; 4 ,2 1 -2 2 )7
Por isso, afirmou-se e demonstrou-se, com os mais sérios argumentos, que
o apóstolo Paulo anunciou a abolição da Lei. E também o cumprimento ou
plenitude da Lei, que, segundo a fé cristã, se realiza no amor ao próximo
(G1 5 ,1 4 ; IC or 7 -1 9 ; Rm 2,25ss; 3 ,3 1 ; 8,4; 1 3 ,8 -1 0 )7
Por isso quando, no relato da transfiguração (Mc 9,2-13 par.) aparecem
junto de Jesus Moisés e Elias, o que causa entusiasmo em Pedro, afirma-se
que, ao aparecer a nuvem (símbolo bíblico da presença divina), os discípulos
não viram ninguém mais a não ser Jesus sozinho (Mc 9,8 par.). E a voz do céu
disse: “Este é meu Filho bem-amado. Ouvi-o!” (Mc 9,7). Moisés desapareceu.
Fica somente Jesus. Quer dizer, desapareceu a Lei e permanece somente o
Evangelho. Do ponto de vista da mensagem ética de Cristo, que sentido tem
isso? Com esta pergunta, estamos tocando uma das questões mais fundamen
tais da mensagem moral de Jesus Cristo. É o que veremos a seguir.
belecer proibições, mas fazer propostas do que mais e melhor se harmoniza com
nossa condição humana,, com aquilo que mais desejamos. Definitivarnente,
trata-se de substituir os mandamentos que proíbem o mal por ofertas que atra
em para a felicidade. Jesus não diz: “Não faças isto porque, se o "fizeres, te
condenas”. Mas propõe: “Se viveres desta maneira, serás feliz”. Sem dúvida,
esta última proposição é mais atraente e mais eficaz que a anterior. Por isso,
em uma lógica saudável, deveria ser mais determinante em nossas vidas. No
entanto, como regra geral, não funciona assim. Por quê?
cada um. O que Jesus afirma é que a felicidade de cada um está necessaria
mente condicionada pela felicidade dos outros com quem cada um convive.
Nesse sentido, afirmou-se com toda a razão do mundo que “a felicidade da
comunidade é a soma das felicidades dos indivíduos que a compõem”11. E, ao
contrário, pode-se afirmar igualmente que a felicidade de cada indivíduo é o
resultado de um ambiente, de um clima social, em que o ar de família é a feli
cidade. É assim que Jesus entende a felicidade, a “bem-aventurança” de cada
um e de todos, pois Jesus não fala a indivíduos solitários, mas a pessoas que
vivem associadas e vinculadas socialmente em uma forma de convivência, em
um sistema que, para o bem ou para o mal, condiciona a todos.
Pois bem, a partir desse delineamento, compreende-se todo o restante.
Com efeito, Jesus começa falando de “pobres”, ou seja, para explicar seu proje
to de felicidade, a primeira coisa que estabelece é a relação com o dinheiro. A isso
se refere a primeira bem-aventurança, em sua formulação mais concisa e mais
original que, segundo os especialistas, é a do evangelho de Lucas: “Felizes, vós,
os pobres” (Lc 6,20), sem rodeios. Sabemos que Mateus acrescenta a referência
“de coração” (Mt 5,3), com o que tirou da bem-aventurança o “fio paradoxal”, tal
como Jesus a pronunciou1112. Mas também é certo que essa matização de Mateus
protegeu a promessa de Jesus da possível interpretação errônea segundo a qual a
mera carência de bens, por si só, proporciona a dita, a felicidade perfeita, o que
é falso, como a experiência de todo o mundo e de todos os dias o demonstra.
Isso posto, a pergunta que ocorre a qualquer um é a seguinte: Por que
Jesus, para expor seu projeto de felicidade, começa pelos “pobres”, ou seja,
pelos que carecem de dinheiro e de bens em geral? Isso supõe e suscita ou
tra questão, talvez mais pungente: Quer isto dizer que, para ser felizes, a
primeira coisa a fazer é ficar sem um centavo e viver pobres? Confesso que,
ao pensar nessas coisas, fico irritado quando leio alguns teólogos que vão
longe demais para explicar o que Jesus disse assegurando que quanto mais
nos privarmos dos bens deste mundo, mais felizes seremos. Todavia, dado
que esse delineamento não se ajusta, então aqueles que se dão conta de que
isso, dito assim sem mais nem menos, é um disparate, vão ainda mais longe
Riqueza e felicidade
mais ricas não são mais felizes que as sociedades mais pobres. Como se ex
plica isso? Por uma razão que é perfeitamente compreensível e que se pode
resumir dizendo que os salários que recebemos representam muito mais que um
meio para comprar coisas. Também utilizamos nossos salários, mediante sua com
paração com os dos outros, como uma medida de como somos avaliados16.Quer
dizer, uma pessoa se sente melhor quando tem um aumento de salário não
só porque, ao ganhar mais, vai poder comprar mais coisas e melhores, mas,
talvez, principalmente porque, ao ter um salário mais alto, ele próprio se sente
mais importante e se vê como uma pessoa de mais categoria do que os que
ganham menos que ele. Por isso, é certo que a única situação na qual estamos
dispostos a aceitar um corte em nosso salário é quando o dos outros também
é cortado. Daí que cada indivíduo, cada família costuma elaborar o que se
chama seu “grupo de referência”17, ou seja, o grupo humano com o qual, de
forma constante e inconsciente, estabelece comparações que lhe servem para
medir seu nível, sua categoria, sua importância. Por exemplo, quando a pes
soa compara seus salários, isso é feito geralmente com outros semelhantes aos
seus, não com os das estrelas de cinema ou com o ganho dos grandes banquei
ros. Do mesmo modo que a pessoa de classe média nunca se compara com o
que os mais desfavorecidos socialmente podem receber por dia.
De tudo isso se deduz um critério, mais ainda, um princípio que é bas
tante esclarecedor: A “percepção de nossas receitas relativas” demonstra ser
mais importante que nossas verdadeiras receitas. Fizeram-sê estudos sérios
que mostram evidências claras de que o incremento das receitas dos outros afeta
negativamente a nossa felicidade18. Isso demonstra claramente que o verdadeiro
motor de nossa felicidade não é o dinheiro, a riqueza e o que a riqueza pro
porciona diretamente, que é o poder de comprar coisas e acumular bens, mas
algo mais íntimo e inconfessável, algo de que quase ninguém fala, mas que
todo o mundo sente secretamente e que é simplesmente a obscura satisfação
de sentir-se superior e mais importante que outras pessoas com as quais constan
temente (e sem o percebermos) estamos nos comparando em todos os momentos.
O desejo e a “mímese”
A genialidade de Jesus
À vista do que acabo de explicar, compreende-se o que pode muito bem ser
qualificado como autêntica “genialidade” nos ensinamentos de Jesus. Segun
do o programa que o Evangelho apresenta nas bem-aventuranças, Jesus não
Para terminar, que ninguém me diga que esta forma de apresentar a moral só
pode levar ao hedonismo, ao laxismo e à imoralidade. E, se não se chegar a
tanto, não faltará quem diga que, no mínimo, este “invento” da ética da feli
cidade poderá servir unicamente para legitimar a própria comodidade, o que
se nos torna mais fácil e exige menos esforço. Definitivamente, uma forma
barata e sem inteligência de disfarçar o próprio egoísmo e a boa vida.
Não sei se ocorreu a alguém pensar e dizer tudo isso. Seja como for, o que
(a meu ver) não admite dúvida é que todo mandamento e toda proibição tem
certos limites, aos quais alguém se ajusta e assunto encerrado. Enquanto a bus
ca e o alcance da felicidade contém em si e exige uma busca sem limites. Assim
sendo, quando temos de andar às voltas com mandamentos e proibições, logo
aparecem os especialistas em cânones, leis e preceitos, os legisladores de plan
tão, os encarregados de delimitar até onde nos haveremos de privar de tal coisa
ou até quando terá de ser cumprida tal outra. Necessita-se “delimitar” o man
damento, para cumprir o que se há de cumprir e nada mais que isso. A história
da moral católica está abarrotada de casos e circunstâncias que hoje nos fazem
rir com ironia. Ao contrário, em se tratando de conseguir que o mundo e a
vida sejam de outra maneira, para que até mesmo os mais infelizes se sintam
ditosos, que é o que Jesus nos diz nas bem-aventuranças, então, meus amigos,
trabalho não nos falta. E é aí que se constata até onde chega a generosidade de
uma pessoa, a fé e a entrega de alguém a uma causa que se leva a sério.
Sejamos sinceros. Se não aceitamos esta forma de entender a ética, é
porque nos causa medo assumi-la como projeto de vida. Porque, se é que isso
é levado a sério, nos defrontamos com a sábia advertência de Marcei Gauchet:
“Passamos brutalmente a uma configuração em que a moral se volta central
A ética de Cristo
“Cria toda a felicidade que puderes, suprime toda a infelicidade que pu
deres. Cada dia te dará oportunidade de acrescentar algo ao bem-estar
dos demais ou de mitigar em algo suas dores. E cada grão de felicidade
que semeares no peito alheio germinará em teu próprio peito, ao passo
que cada dor que arrancares dos pensamentos e dos sentimentos de teus
semelhantes ficará substituído pela paz e pela alegria mais formosas no
santuário de tua alma”26.
Trata-se, sem dúvida, de um projeto de vida que, uma vez levado a sério,
exige uma generosidade crescente, sem limite algum, mas que é, ao mesmo
tempo, uma fonte inesgotável de felicidade, desfrute e esperança.
Condenação do dinheiro
e do apego ao dinheiro
capital, costumam ter fama, segundo as más línguas, de ser pessoas que, não
raras vezes, ao verem dinheiro, parecer que veem um parente. Daí os ditos
populares: “Fulano é mais interesseiro do que um padre”; ou também, quan
do se é muito pedinchão, há quem diga com indolência: “Este pede mais do
que um frade”. Pelo menos antigamente, diziam-se coisas desse tipo. Agora
que a vida mudou tanto, criticam-se os bispos por seus acordos com o Esta
do, às vezes, por assuntos pouco claros (ou abertamente obscuros) em ques
tões de bens e finanças de uma Igreja que, em seguida, denuncia as riquezas
e o afã pelo dinheiro. Nesse assunto, logicamente, qualquer pessoa observa
mais de uma contradição. Como se explica que quem condena o dinheiro seja
tão afeiçoado a ele? Isto não indica, mais que uma contradição moral, uma
confissão moral em um assunto que é dos mais sérios que existem nesta vida
para o comum dos mortais?
O “dinheiro” e o “capital”
A acumulação e o feitiço
Relativamente ao que foi dito até aqui, nada haveria a objetar. O problema
é suscitado quando nos damos conta dos fatos que são ocasionados quando
temos de nos defrontar com o capital e o capitalismo.
Em primeiro lugar, a atividade empresarial e, portanto, a atividade capi
talista nos demonstrou em sua já longa história que, por suas próprias leis e por
sua própria dinâmica, conduz direta e inevitavelmente a um processo de acumu
lação do capital que, a cada dia, se concentra mais e mais em menos pessoas.
Daí resulta que capitalismo e desigualdade são dois resultados praticamente inse
paráveis. Onde houver capitalismo, haverá desigualdades econômicas, sociais
e culturais que clamam ao céu. E sabemos que isso, pelo menos até agora, não
pôde ser evitado. Absolutamente ao contrário, na medida em que o capitalismo
3. ANT. DE FLORENCIA, Summa moralis, Florença, 1 7 4 1 , II, 1 , 6 , 16. Citado por W SOMBART,
El burguês, Madri, Alianza, 1 977, 2 5 7 .
4. Sermo XXXIV, c. III. Citado por W SOMBART, op. cit., 2 5 7 -2 5 8 .
5. Cf. W SOMBART, op. cit., 2 5 9 -2 6 0 .
A ética de Cristo
6. K. MARX, El Capital, I, 1, IV
7. ID , ibid.
Jesus e o dinheiro
o início do capitalismo coincide com uma época na qual toda a vida social
estava sujeita às regras da Igreja, vale dizer, na qual toda manifestação vital
equivalia a uma tomada de posição diante das leis eclesiásticas, diante das
concepções éticas da religião”8. E esta é a questão surpreendente: em uma
sociedade tão fortemente dominada pela Igreja nasceu e começou a florescer
o capitalismo. E Sombart conclui: “Se quisermos determinar a importância da
religião católica no desenvolvimento do espírito capitalista, devemos ter pre
sente que esta ideia fundamental da racionalização contribuía já por si para
fomentar consideravelmente a mentalidade capitalista, que, como sabemos,
é nitidamente racional e ordenada a um fim”9. Esse fim, como é bem sabido,
não é outro senão o ganho e, portanto, a acumulação de capital. Ou seja, a
mesma Igreja que, com o Evangelho nas mãos, prega os perigos e as maldades
do dinheiro e do capital, na realidade foi, por intermédio de seus moralistas
e pregadores, uma fonte fundamental de inspiração para o nascimento e o
amadurecimento inicial do espírito capitalista e burguês.
No entanto, a contradição ou, melhor dizendo, a confusão que a Igreja
sofreu com o tema do dinheiro e do capital fica ainda mais patente se levar
mos em conta que os pregadores e moralistas católicos que, no princípio,
justificaram a aparição do capitalismo, foram também um freio para seu de
senvolvimento. E eles o foram, já nos séculos XV e XVI, nos países em que
a Igreja teve uma presença mais forte e decisiva. Nesse sentido, o caso mais
claro é o da Espanha. Sombart escreve a esse respeito: “Não se pode negar
que o catolicismo pôs um obstáculo para o desenvolvimento do espírito ca
pitalista no caso da Espanha, onde o interesse pela religião é tão marcante
que acaba por anular todos os outros”10. Isso era certo, pelo menos, até um
século atrás, quando, em 1913, Werner Sombart publicou a primeira edição
de Der Bourgeois. Quanto ao resto, sabemos que, efetivamente, enquanto nos
países dominados pela Igreja católica o capitalismo encontrou sérias dificul
dades para seu desenvolvimento, a ética protestante e, concretamente, a ideia
calvinista da predestinação, estimulou os primeiros empresários capitalistas
a trabalhar sem trégua, o que fomentou o crescimento econômico e a acu
mulação de capitais nos países nos quais o protestantismo exerceu sua maior
8. Op. cit., 23 5 .
9. Op. cit., 2 4 7 .
10. Op. cit., 2 4 3
A ética de Cristo
influência. É a conhecida tese defendida por Max Weber e que foi objeto de
abundantes e documentados estudos11.
11. Relativamente a todo este assunto, limito-me a rem eter ao estudo de J. MATTHES, Intro-
ducciún a la sociologia de la religión, v. I, Madri, Alianza, 1 9 7 1 , 65.
Jesus e o dinheiro
No sermão da montanha, de acordo com a redação que nos foi deixada pelo
evangelho de Mateus Je su s expressa (pelo menos à primeira vista) um repúdio
taxativo ao dinheiro, pois, segundo parece, quem serve ao dinheiro não pode
servir a Deus. Isso causa a impressão lógica de que Deus e o dinheiro são
incompatíveis. Ou seja, aquele que quiser aproximar-se verdadeiramente de
Deus tem que renunciar à posse de bens. E, ao contrário, aquele que prefe
rir reter o dinheiro (e os bens que o dinheiro proporciona) não tem outro
remédio senão renunciar a entender-se com Deus. Isso é realmente assim?
Pode-se garantir tranquilamente que Deus e o dinheiro são absolutamente
irreconciliáveis? Porém, então, se isso é efetivamente assim, não teríamos que
concluir, em uma lógica saudável, que Deus é contra o bem-estar e o progres
so, posto que, se quisermos bem-estar e progresso, isso só pode ser alcançado
mediante o dinheiro e sua utilização em forma de capital?
Ao propor essas questões, estamos bem cientes de que não se trata de
perguntas inúteis ou de requintes estéreis. Absolutamente o contrário. São hoje
muitas as pessoas que vivem melhor do que há trinta anos. São abundantes,
além disso, as pessoas e famílias que lidam com quantias importantes de di
nheiro. Seja como for, nos países avançados, a sociedade do bem-estar alcança
grandes setores da população. Nesse contexto, o problema está em que muitas
dessas pessoas têm crenças religiosas e é grande o número dos que aspiram a ser
bons cristãos. Por isso, as pessoas que se encontram em tal situação perguntam-
se, em uma lógica saudável e com a consequente preocupação: é possível estar
perto de Deus, tendo ao mesmo tempo um bom nível de vida? Pode um cristão
considerar-se seguidor de Jesus se possuir uma conta corrente (incluindo “visa
ouro”), receber um bom salário e dispuser de alguns bens, dentro do que, em
um determinado contexto social, pode ser considerado um cidadão que goza de
uma segurança econômica “razoável”? Definitivamente, o que quis Jesus dizer
quando afirmou que “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24)?
Não vem ao caso relembrar aqui as numerosas e, por vezes, contraditórias
explicações que teólogos e religiosos tentaram buscar para as palavras de Jesus
sobre a compatibilidade ou incompatibilidade de Deus e do dinheiro12. No mo-
12. U m resumo condensado das explicações mais salientadas encontra-se em U. LUZ, El evan-
gelio según san Mateo, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 3 , 5 0 0 -5 0 2 .
A ética de Cristo
mento, convém levar em consideração que Jesus começa dizendo: “Não acumu
leis para vós tesouros na terra, onde as traças e os vermes arruinam tudo, onde
os ladrões arrombam as paredes para roubar” (Mt 6,19). O mais razoável parece
pensar que Jesus se refere aqui a riquezas improdutivas, a saber, dinheiro ou bens
que se acumulam e se retêm de maneira que não são utilizados para nada. E
por isso estão expostos a que o pó e o caruncho acabem com o que se mantém
zelosamente oculto e bem guardado. Em outras palavras, parece que Jesus fala
dos que acumulam quantias de dinheiro, de tal maneira que se centram nisso,
sem pensar em outra finalidade ou em outra utilidade que se possa dar a ele. É
o dinheiro como “tesouro” no qual se centra e fica preso o “coração”, como diz
o próprio Jesus quando afirma: “Pois onde estiver o teu tesouro, ali também
estará o teu coração” (Mt 6,21). Leve-se em conta que a palavra “coração” (kar-
día) expressa o centro do ser humano. O “tesouro”, por sua vez, indica onde
se encontra o “centro” de uma pessoa e o que mais lhe importa na vida13. Daí
que Jesus termina dizendo: “Não podeis servir a Deus e a Mamon” (Mt 6,24).
O Evangelho utiliza esta palavra estranha, Mammon, que se refere não só ao
dinheiro, mas também a “qualquer bela figura na terra”14. Definitivamente, o
que Jesus pretende dizer aqui é que o dinheiro exerce uma força totalizadora e,
por isso, tem tal poder de sedução que acaba por ser, de fato, o adversário de
Deus. Desse modo, o que as pessoas que se empenham em conciliar a fé em
Deus com a acumulação de dinheiro (improdutivo para qualquer causa nobre)
põem constantemente em jogo é uma destas duas coisas: o verdadeiro serviço
e o culto a Deus ou, ao contrário, o falso culto e, portanto, a idolatria do dinheiro.
Estamos, pois, diante de um problema mais profundo do que parece à primeira
vista na vida de qualquer pessoa. De que se trata?
Deus e o dinheiro
Declarou-se, certamente com bastante razão, que “o dinheiro, como meio ab
soluto e ao mesmo tempo ponto de união de incontáveis âm bitos... tem re-
As parábolas desconcertantes
Pode-se afirmar, com toda a segurança, que o sacerdote e o levita que apare
cem na parábola do bom samaritano (Lc 10,31-32) seriam, sem dúvida, ho
mens que diziam “Deus”. E o diriam muitas vezes. E é certo — se é que
acreditamos no que se relata nessa parábola — que, efetivamente, para aquele
sacerdote e para aquele levita, dizer “Deus” os expunha a que o sofrimento do
outro pudesse (e fez) subverter todas as suas idéias religiosas. O mais provável
é que, se esse sacerdote e esse levita existiram alguma vez, ambos seguiram seu
caminho despreocupados, muito fervorosos, para chegar puros e pontuais ao
templo. Mas o juízo da história (e não sabemos se também o de Deus) pesou
sobre eles, para condená-los, de geração em geração, como o protótipo dos
19. Citado por J. I. GONZÁLEZ FAUS, Del otro al OTRO, na obra em colaboração Aldea global,
justíciaparcial, Barcelona, Cristianisme ijusticia, 2 0 0 3 , 95.
A ética de Cristo
a insensatez está em que o dinheiro dá o que pode dar, mas nada mais. O
dinheiro proporciona abundância e bem-estar. E isso é importante. Porém,
ainda mais importante que isso é a segurança daquele que sabe que pode
desfrutar de tudo sem perigo algum. Ora, o dinheiro não pode dar essa
segurança. Por isso é insensato aquele que pensa que o dinheiro é tudo. A
sensatez de Jesus segue por outro caminho. Vai pelo caminho que conduz
direto à felicidade compartilhada. Esta, sim, está a nosso alcance. Dar ao que
não tem, compartilhar com o que necessita do indispensável, proporcionar
alguma alegria àquele que somente saboreou a miséria e a tristeza. Defini
tivamente, pôr em prática o programa das bem-aventuranças. Isso é o que,
de fato, traz ventura, felicidade e dá sentido à vida. Por outro lado, e de
maneira lógica, se todos os ricos do mundo pensassem assim, certamente
haveria menos sofrimento e mais esperança., principalmente entre os que
enfrentam piores situações na vida. Assim é a ética de Cristo.
Jesus e os ricos
Chegamos, então, à conclusão de que os ricos não têm solução possível aos
olhos de Deus? Pode-se garantir, com tranquilidade, que Jesus rejeita de for
ma implacável todo aquele que tem dinheiro e bens e aquele que, por isso
mesmo, vive de maneira confortável nesta vida?
Sinceramente, não é fácil responder a essas perguntas, pois, se é verda
de que Jesus disse: “Infelizes, vós, os ricos: já tendes a vossa consolação”
(Lc 6 ,24), não é menos certo que o próprio Jesus, que ameaçou os ricos, teve
amigos entre pessoas de dinheiro e se deixou convidar a mesas bem fartas,
como, por exemplo, as refeições organizadas pelos publicanos (Mc 2 ,15-16
par.; Lc 19,1-10; 15,1-2), que eram pessoas que não passavam exatamente
fome e cujo dinheiro, além disso, era de origem obscura e bastante duvidosa.
E em duas ocasiões, de nosso conhecimento, assistiu a banquetes em que,
segundo os costumes orientais, Jesus foi perfumado, com ricos e caros perfu
mes, por mulheres que davam o que falar (Lc 7 ,3 7 -3 8 ; Jo 12,3). Além disso,
sabemos também que Jesus andava acompanhado de senhoras a quem hoje
qualificaríamos como “da sociedade”, que, além disso, “os ajudavam com os
seus bens” (Lc 8,2-3). Por isso, é preciso perguntar novamente: Na realidade,
a que conclusão chegamos? Jesus aceitava ou repudiava os ricos?
A ética de Cristo
Como resposta, duas coisas devem ser ditas: 1) Jesus rejeita os “camelos"',
2) Jesus acolhe os que “compartilham".
Quando falo do repúdio aos “camelos”, refiro-me à sentença utilizada
por Jesus quando disse a um rico: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mc 10,25 par.).
No tempo de Jesus, utilizava-se também a expressão do elefante e do olho
da agulha. E, segundo parece, na linguagem popular empregava-se por vezes
a contraposição da formiga e do camelo20. Portanto, a questão não admite
dúvida, a não ser que se pretenda forçar o sentido do texto até fazê-lo dizer o
contrário do que expressa seu significado mais óbvio. E não vale lançar mão
da variante que faz do camelo um cabo de amarra (kámelos ), porque isso des
faz precisamente o caráter paradoxal que a sentença de Jesus encerra. Uma
sentença que afirma com vigor nada mais nada menos que isto: uma pessoa
que retém seus bens para si só e, portanto, se interessa apenas por seu próprio
bem-estar, sem tornar seu dinheiro produtivo e, por certo, negando-se a com
partilhar o que é seu com o,s que passam necessidades e sofrem com isso, é
impossível que entre no Reino de Deus. Ou seja, é impossível que uma pessoa
que vive nessas condições, e com semelhante projeto de vida, aceite e viva
o projeto de Jesus. Além do mais, parece razoável pensar que Jesus não se
refere aqui à possibilidade de que os ricos possam ou não possam se salvar na
outra vida, porque o Reino de Deus não se refere apenas a essa “outra vida”.
O Reino de Deus, na boca de Jesus, é uma questão, antes de mais nada, “desta
vida”. Por isso, o que parece certo é que um rico (no sentido indicado) poderá
ser muito “religioso” e até muito “católico”. Todavia, não há dúvida de que
uma pessoa que retém seus bens sem se dar conta dos que carecem de traba
lho e meios de vida; e, pior ainda, se a carência se referir ao indispensável
para viver com dignidade, semelhante pessoa nem crê em Jesus nem aceita o
Evangelho. Esse é o primeiro ponto que Jesus apresenta aos ricos.
Quanto ao que diz respeito àqueles que “compartilham”, a mentalida
de de Jesus é distinta. Já citei antes algumas passagens evangélicas nas quais
se vê claramente que Jesus manteve boas relações com pessoas que possuí
am bens, o que permite pensar que Jesus não repelia, por princípio, pessoas
com dinheiro. Nada disso. Sabemos que Jesus manteve excelentes relações com
pessoas que gozavam de uma boa situação econômica. Por exemplo, segundo
20. J. GNILKA, EI evangelio segCin san Marcos, v. II, Salamanca, Sígueme, 1 986, 102.
Jesus e o dinheiro
21. As condições de marginalização e até exclusão em que vivia a mulher na sociedade judia do
século I foram amplamente estudadas. Sobre este assunto, cf. J. JEREMIAS, Jerusalén en tiempos
dejesús, Madri, Cristiandad, 1 9 7 7 , 3 7 1 -3 8 7 .
A ética de Cristo
imperial, já que eram eles que cobravam os impostos para os romanos. Ora,
sabemos que Jesus mantinha boas relações de amizade com essa classe de indi
víduos (Mc 2,15-16 par.; Lc 15,1-2) e os punha como exemplos de boa condu
ta diante de Deus, em contraste com os “observantes” fariseus (Lc 18,9-14). E
a prova mais clara da sintonia mantida por Jesus com esses homens é o que fez
ao passar por Jerico: foi direto para a casa de Zaqueu, o chefe dos publicanos
da região. E lá, na casa de um homem da pior fama, deixou-se convidar para
uma boa ceia e hospedou-se naquela casa enquanto permaneceu no povoado
(Lc 19,1-5), o que provocou as críticas de toda a vizinhança (Lc 19,7).
É evidente, pois, que Jesus não teve inconvenientes em manter relações
com pessoas de dinheiro. Saliente-se, contudo, que o fez somente quando
se tratava de pessoas que não se apegavam a seus bens, mas estavam dis
postas a dar o que tinham. Isso foi o que aconteceu com as mulheres que
ajudavam Jesus com seus bens (Lc 8 ,3 ), com Maria, quando perfumou Jesus
com um perfume que custou um dinheirão (Jo 12,3; Mc 14,3) e, acima de
tudo, com Zaqueu quando se comprometeu, diante de Jesus e diante das
pessoas, a devolver tudo o que havia roubado e a dar aos pobres a metade
de seus bens (Lc 19,8). Sem dúvida, para Jesus, o importante não era se uma
pessoa tinha ou não dinheiro. O que interessava a Jesus era se uma pessoa,
possuísse o que possuísse, estava disposta a desapegar-se do que tinha, ou
fazer seus bens terem uma produtividade a serviço dos outros. Daí elogiou
a pobre viúva que dava tudo o que tinha para viver, ao mesmo tempo em
que censurava os que davam do que lhes sobrava (Lc 2 1 ,1 -4 ). Por isso
Jesus censura severamente o “rico néscio”, aquele indivíduo que teve uma
colheita fabulosa e a única coisa que lhe ocorreu foi como armazenar tudo
o que havia colhido, para viver tranquilo o resto de seus dias (Lc 12,13-21).
Aquele homem mereceu o qualificativo de “insensato” (Lc 12,20), porque
pensava somente em si. Ao passo que o Evangelho elogia o rei que foi capaz
de perdoar uma dívida enorme (Mt 18,27) a um sujeito que demonstrou ser
um desavergonhado (Mt 1 8 ,2 8 -3 0 ).
A atitude de Jesus para com as pessoas que têm dinheiro e bens é, por
tanto, bastante clara: se se trata de pessoas que só pensam em reter o que é
delas para elas, tais pessoas não podem pretender, enquanto se mantiverem
nessa posição, crer ao mesmo tempo em Jesus e em seu Evangelho. Se, ao
contrário, se trata de pessoas que estão dispostas a desapegar-se de algo do
que têm (e que não seja meramente o que lhes sobra), para que isso redunde
Jesus e o dinheiro
Ética e Economia
cada dia mais difíceis de resolver. Basta pensar nos numerosos problemas
propostos hoje pelo capital comercial em sua forma dominante: o comércio
global. Sobretudo os problemas (concretamente de caráter ético) que provêm
da Organização Mundial do Comércio (OMC) e as consequências que daí se
seguem, principalmente para os países mais pobres do planeta24. Entretanto,
sem dúvida, a dificuldade maior está na globalização da economia. Para citar
um exemplo muito simples: uma camisa que uma pessoa compra em uma
loja de roupas certamente foi fabricada em um país onde as pessoas vivem
de forma miserável; e nessa camisa trabalharam mãos de meninos e meninas
submetidos a uma autêntica escravidão. Ou seja, o mais certo é dizer que
você está vestindo uma camisa fabricada por escravos. E dá no mesmo se
a camisa é cara ou barata, se é de marca25 ou não. Neste momento, tudo o
que diz respeito a manufatura de roupas, calçados ou mil outras coisas, que
usamos ou comemos todos os dias, quer compremos em grandes lojas ou em.
uma loja de R$ 1,99 ou em um camelô”, o mais provável é que esses artigos
tenham sido produzidos duramente, em noites estafantes e intermináveis,
por mulheres e crianças que certamente não ganham sequer um dólar ao dia.
Precisamente nossas compras acabam sendo frequentemente bastante ba
ratas (pensemos nas “liquidações”), porque a produtividade é escandalosa
mente barata, à custa da saúde e da miséria de milhões de criaturas famintas.
Como é lógico, essa situação estabelece para todos nós problemas éticos de
uma envergadura simplesmente aterrorizante.
Todavia, não é isso o que mais preocupa. O mais grave de tudo isso é o
que o conhecido sociólogo Anthony Giddens soube explicar de forma mui
to simples: “Na nova economia global, gestores de fundos, bancos, empresas,
assim como milhões de investidores individuais, podem transferir quantias
enormes de capital de um lado do mundo para o outro pressionando apenas
um botão, em um instante. Ao fazê-lo, podem desestabilizar o que podería pa
recer economias sólidas e à prova de bomba, como ocorreu há alguns anos na
Ásia . Aqui estamos falando não do capital produtivo (o que tem por função
24. Cf. SUSAN GEORGE, Remettre VOMC à saplace, Paris, Editions Mille et une Nuits, 2 0 1 .
25. Sobre os problemas éticos suscitados hoje pelas marcas, seu comércio e sua publicidade,
recomendo o já clássico estudo de NAOMI KLEIN, No logo. El poder de las marcas, Barcelona,
Paidós, 2 0 0 1 . 26
26. A. GIDDENS, Um mundo desbocado. Los efectos de la globalización en m estras vidas, Madri,
Taurus, 2 0 0 0 , 22.
Jesus e o dinheiro
quando diz que “os mercados são amorais: permitem que as pessoas ajam se
gundo seus interesses... Esta é uma das razões pelas quais são tão eficientes”31.
Ocorre, porém, que essa eficácia econômica acarreta, inevitavelmente, um cus
to muito alto, o qual consiste em que, “com bastante frequência, as empresas
encontrem melhores expectativas de benefícios por meio de simples opera
ções financeiras do que mediante inversões que ampliem suas capacidades
produtivas”32. Isso equivale a dizer que os mercados financeiros concentram
quantias assombrosas de capital cujo destino fundamental não é a produção ou
a distribuição de bens para que a pessoa viva, mas sim a acumulação de riqueza
para o proveito daqueles privilegiados que podem investir na especulação e
viver dela. Ou, em outras palavras, os mercados financeiros concentram quan
tias assombrosas de capital cujo destino fundamental é o lucro, a concentra
ção desse capital em poucas mãos, em detrimento inevitável da produtividade.
Torna-se impossível calcular o dano que a eficácia (para os ricos) deste sistema
econômico está acarretando precisamente às pessoas mais pobres da terra.
De qualquer maneira, e além das diferentes teorias econômicas, é indu-
bitável que “abundam os argumentos que permitem explicar como uma gran
de parte dos capitais financeiros, cujos fluxos internacionais alcançam cifras
certamente colossais e uma surpreendente velocidade de transação, não fazem
mais que girar virtualmente sobre si mesmos (divisas, créditos, títulos, deriva
dos) e apenas uma parte reduzida deles supera esse universo panfinanceiro
e se relaciona com o mundo dos bens e serviços reais”33. Ou seja, trata-se de
assombrosas quantias de dinheiro que, em grande medida, não produz bens
e serviços para ninguém e sua função é somente acumular lucros para aqueles
que podem empregar seus capitais nesse negócio tão característico do sistema
capitalista. Ademais, nunca deveriamos esquecer que, “em se tratando de
operações financeiras de alcance transnacional, os agentes que nela intervém
situam-se à margem de qualquer legislação nacional, escapando assim do
controle e da fiscalização dos governos”34. E, logicamente, se escapam dos
controles fiscais dos governos, com maior facilidade escapam do julgamen
to ético das doutrinas morais que podem ser ditadas pelas religiões. Isso dá
motivo para pensar que os mercados amorais, dos quais fala G. Soros, são,
na realidade, mercados imorais. Desse juízo, por certo, a grande maioria da
população não compartilha, sobretudo os milhares de cidadãos que investem
na bolsa com a consciência tranquila. São muitos os moralistas dás diferen
tes confissões religiosas (incluindo a católica) que não veem problema ético
nenhum nas inversões financeiras. Terão suas razões para pensar assim. Mas
também pode ser que, nesse complicado assunto, seja muito difícil libertar-se
da mentalidade submissa que o sistema estabelecido conseguiu que todos assi
milemos, até fazer nosso o que outros pensaram para sua utilidade própria e
em detrimento (como sempre acontece) dos mais débeis. É provável que esse
aspecto obscuro e talvez pouco edificante das especulações financeiras seja o
que explica o zeloso silêncio em que esse assunto está envolvido, principal
mente quando os investidores são pessoas ou instituições religiosas.
Há ainda uma observação que me parece fundamental em todo esse
complicado assunto. Há investidores da bolsa que, para tranquilizar
a consciência, apelam para o argumento de que seus investimentos são
pensados e gerenciados de maneira a só investir em “fundos éticos, eco
lógicos e solidários”, uma fórmula que se propagou a partir da “Escola de
Finanças Aplicadas”35. Não sou economista e, portanto, não vou discutir
as razões que se dão, a partir dessa escola, para justificar os investimentos
financeiros. Só quero deixar claro uma coisa: um economista especializado
em finanças, T. M. Rybczynski, destacou, no tocante ao exercício e à distri
buição dos direitos de propriedade, a forma como os sistemas financeiros
passam por três fases diferentes. A primeira é a do capitalismo de proprietá
rios, quando estes atuam também como gerentes; a segunda corresponde
ao capitalismo dos gerentes profissionais, na qual os proprietários delegam o
direito a utilizar os ativos e decidir sobre a distribuição dos recursos gera
dos; a terceira seria a do capitalismo profissional, delegando os proprietários
aos gestores de carteiras o poder de controlar os resultados dos gerentes
empresariais contratados, de impor a eles a disciplina e de receber os re
cursos distribuídos pelas empresas36. Isso posto, não é necessário ser um
Além do utilitarismo
outras que são muito fundamentais na vida. É evidente que, nos países ricos,
houve melhora no nível de vida. Isso, porém, não quer dizer que tenhamos
melhorado igualmente em qualidade de vida.
Tudo isso explica que, nos últimos anos, tenham se levantado vozes
autorizadas que exigem uma mudança fundamental nos delmeamentos da
economia mundial, sobretudo no que diz respeito às relações entre economia
e ética. Isso é o que, entre outros, o professor Amartya Sen, prêmio Nobel
de Economia em 1998, destacou38. A contribuição principal desse destaca
do economista consiste, certamente, em ter enfrentado os peritos em ciências
econômicas com a seguinte pergunta: A riqueza e o êxito da gestão econômica
limitam-se ao problema do dinheiro e à renda per capita? Vale dizer, trata-se
de saber se, além do dinheiro, para explicitar se a economia funciona bem ou
mal, não se faz necessário levar em conta outros indicadores que são decisi
vos na vida das pessoas e dos povos? Concretamente, Amartya Sen insistiu
nos valores éticos, que são determinantes para que a qualidade de vida de um
povo, de uma sociedade, de um indivíduo se torne aceitável.
Falando ainda mais concretamente, entre os valores éticos, Amartya Sen
destaca, sobretudo, a liberdade. Uma economia que obtém grandes lucros, porém
à custa de transformar as pessoas em escravas de seu trabalho, do consumo, da
manutenção de certo nível de vida ou simplesmente da compra de uma moradia
(como acontece concretamente agora aos jovens na Espanha), é uma econo
mia radicalmente mal traçada. Como foi dito muito bem, “o novo enfoque de
Sen incide em um aspecto crucial para o desenvolvimento da economia, em
uma questão vital: supõe-se ou não que a economia se interessa pelas pessoas
reais? Porque realmente afeta as pessoas reais o alcance da pergunta: como se
deve viver?39. Pois bem, ao fazer essa pergunta, estamos tocando a questão
central da ética, o que equivale a dizer que uma economia orientada somente
a conseguir o máximo de utilidade, ou seja, uma economia gerenciada so
mente em função do utilitarismo é uma economia sem ética. Entretanto, uma
economia assim enfocada é uma economia desorientada e que, precisamente
3 8 . Entre suas publicações, cumpre salientar: Sobre ética y economia, Madri, Alianza, 1989;
Nuevo examen de la desigualdad, Madri, Alianza, 1 9 9 5 ; Bienestar, juslicia y mercado, Barcelona,
Paidós, 1 9 9 7 ; Desarrollo como libertad, Barcelona, Planeta, 2 0 0 0 . Cf. T. CONILL SANCHO on.
cit., 145.
3 9 . J. CONILL SANCHO, op, cit., 148.
Jesus e o dinheiro
por isso, pode nos arrastar a todos a catástrofes sem precedentes. Mais ainda,
tal como estão as coisas neste momento, não é- que essas possíveis catástrofes
possam acontecer, mas já estão causando estragos assombrosos em grandes
setores da população mundial. Segundo os informes oficiais dos organismos
internacionais (ONU, FAO, OMS), morrem de fome e desnutrição, a cada
dia, não menos de 30 mil crianças e, certamente, outros tantos adultos. Isso
é dolorosamente compreensível. E a fome não espera. A fome mata. E mata
imediatamente. Sabemos, porém, que existem atualmente no mundo mais de
oitocentas milhões de criaturas que se alimentam abaixo da tabela mínima de
calorias diárias que um ser humano necessita para continuar vivendo. E o mais
absurdo dessa situação é que a causa de semelhante genocídio não é a falta de
alimentos. Absolutamente o contrário. Um dos problemas mais sérios enfren
tados pelos países ricos é o excesso de produção alimentar. Porém, as “leis” da
economia, tal como se encontram elaboradas atualmente, dizem que é preciso
pagar aos agricultores (ricos) para frearem a produção, em vez de alimentar os
que morrem de fome. Pode haver uma imoralidade maior? Mais ainda, pode
haver uma situação mais irracional e mais absurda?
O mais preocupante, em todo esse assunto, é que o poder (real e efetivo)
dos governantes para modificar essa situação é muito mais limitado do que
muitas pessoas imaginam, por uma razão que se compreende de imediato.
Segundo dizem os especialistas em economia, uma das características essen
ciais do contexto financeiro internacional é o predomínio das instituições pri
vadas no financiamento internacional40. Desde 1985, ou seja, há vinte anos,
vem se produzindo um crescimento espetacular dos investimentos interna
cionais nos mercados de finanças41. Pois bem, os novos protagonistas de tal
crescimento já não são os Estados ou os Governos, mas “as instituições de
investimento coletivo”, nas quais entram, sobretudo, os fundos de investi
mento, os fundos de pensões e as companhias de seguros, ou seja, as institui
ções privadas que podem competir na hora de oferecer uma rentabilidade
imediata, o grande argumento para captar novos recursos e, portanto, mais
clientes42. Daí, a tendência crescente a privatizar os serviços públicos, que foi
ganhando terreno nas últimas duas décadas.
O que nos diz isso tudo? O sistema econômico vigente tem suas leis de
eficácia e rendimento utilitário. E o sistema não pode ser infiel a suas leis,
porque nisso está sua vida. Isso significa que o sistema se rege e continuará
sendo regido pelo pnncípio da eficácia e não por princípios éticos. Contudo,
nunca deveriamos esquecer que a aplicação do princípio da eficácia depende
de instituições financeiras privadas, ao passo que os princípios éticos depen
dem das decisões livres das pessoas. Isso quer dizer que a batalha decisiva,
para o bem ou para a desgraça da humanidade, vai ocorrer não no terreno da
política e das decisões que nos são impostas de cima, mas no campo da ética e
das opções que assumimos; somos nós que, de baixo, podemos humanizar a
orientação tomada pelo gasto público e privado, pelo comércio e pela divisão
da riqueza mundial. Ou seja, a palavra decisiva, para a felicidade ou para a
desgraça de milhões de criaturas, não será dada pela política, mas pela ética.
4 3 . Analisei detidamente esse aspecto central do Reino de Deus em meu livro: El Reino de Dios.
Por la víday la dígnidad de los seres humanos, Bilbao, Desclée De Brouwer, 1 9 9 9 , concretamente
às pp. 6 3 -7 7 .
A ética de Cristo
tais, bens avultados, dinheiro'e riquezas de toda índole. Porque tudo isso es
tava “razoavelmente” justificado. Para fazer o bem, para fazer apostolado, para
ajudar os outros, para fomentar a honra e o culto divino, para toda espécie
de iniciativas culturais, científicas, educativas, caritativas etc. etc. E quem vai
fazer objeções a tudo isso? Isso está certo. Mas tão certo quanto isso é o fato
de que, com base em toda essa argumentação, nós, pessoas de Igreja, incor
remos com frequência em situações autenticamente escandalosas. Trata-se de
um tema excessivamente explorado para que se insista nele mais uma vez.
Outra questão é se todo esse complicado problema é visto a partir dos
argumentos oferecidos pela experiência mística que, para um cristão, é a expe
riência de Jesus. Então, tudo muda. E as coisas são vistas de forma distinta
e com uma lógica distinta. É a lógica de Jesus, quando disse a alguém que
queria segui-lo: “As raposas têm tocas e os pássaros do céu, ninhos; o Filho
do Homem, porém, não tem onde recostar a cabeça” (Mt 8 ,20 par.). É a lógica
de Antônio, o chamado “pai dos monges”, de quem nos informa santo Ataná-
sio que foi justamente a leitura do Evangelho o que moveu aquele homem a
vender a boa herança que havia recebido de seus pais e, depois de dar ti)do
aos pobres, tomar a decisão de retirar-se ao deserto, onde viveu desde sua
juventude até passar dos cem anos47. É a lógica de Francisco de Assis que,
ao escutar precisamente o texto de Mt 10,9-10, tirou os sapatos que calçava,
deixou-se ficar pobre em extremo despojamento e assim viveu até o fim de
seus dias, deixando esse critério como norma na primeira regra franciscana48.
E é a lógica de muitos homens e mulheres que, ao longo dos séculos e por sua
fé em Cristo, optaram por viver sem meios, sem recursos humanos, em extre
ma pobreza, com a convicção de que esse, e não outro, é o caminho que têm
de seguir os que se propõem a levar a sério e firmemente o projeto do Reino
de Deus, o projeto de Jesus, que é o projeto da bondade sem limites, do amor
sem limites, da humanização que supera todas as nossas desumanizações.
Esse projeto pode conseguir que neste mundo haja menos divisões, mais res
peito, mais proximidade entre todos, mais bondade, mais amor, porque isso,
e não o dinheiro nem os meios proporcionados pelo dinheiro, é o que pode
mudar a revolução descontrolada que conduz nosso mundo.
que busca é outra coisa, que vai muito mais além do que o dinheiro pode pro
porcionar. Ou seja, deve-se perguntar se o desejo mais poderoso, na vida de
qualquer ser humano, é o desejo de dinheiro ou o desejo de poder. O poder
que, entre outras coisas, pode proporcionar (e proporciona) a acumulação de
um capital fabuloso, quiçá inigualável.
O segundo fato é de uma ordem completamente distinta. Refiro-me con
cretamente a um fato que qualquer pessoa percebe quando se põe a ler aten
tamente os evangelhos. Como se sabe muito bem, Jesus de Nazaré reuniu um
grupo de discípulos que, em seu círculo mais reduzido, costuma ser repre
sentado nos “Doze” apóstolos. Pois bem, na convivência com esse grupo de
homens, Jesus foi paciente e tolerante até extremos que chamam a atenção.
Concretamente, Jesus nunca (que saibamos) jogou na cara deles ambição
econômica de nenhum tipo. Nem os repreendeu por assuntos de dinheiro.
No grupo, havia bolsa comum (jo 13,29), segundo parece, mal administrada
(jo 12,6). Porém, o evangelho de João, que é o que nos informa sobre esses
detalhes, não faz a menor alusão a que Jesus ou os outros do grupo dessem
importância a esse assunto. Naquele grupo, sem dúvida, o tema econômico
não parece ter constituído problema algum. É certo, ao menos, que as comu
nidades cristãs, nas quais foram elaborados e redigidos os relatos evangélicos,
consideraram não haver nada significativo a destacar e relatar a esse respeito.
Não obstante, quando surge o tema do poder, da prepotência, da prioridade
sobre os demais, o simples fato de dar-se importância ou, ao contrário, o
desagradável assunto dos fracassos e frustrações acarretados pela vida, em
tais situações, Jesus é taxativo e até intransigente, de tal modo que, como já
afirmei antes e vamos ver agora mais detidamente, em tais ocasiões, o próprio
Jesus vai direto ao ponto e não tem papas na língua, chamando as coisas por
seu nome e chegando, em alguns casos, até a repreensões que soam simples
mente a insultos. Vamos ter oportunidade de analisar a abundante e variada
informação que os evangelhos nos proporcionam a esse respeito.
Mas desde já é preciso tirar uma conclusão que parece bastante óbvia.
A ética de Cristo está assentada sobre uma base fundamental: Jesus viu clara
mente que o perigo mais grave que ameaça os seres humanos é a tentação do poder.
Não há dúvida de que isso é o que causa o maior prejuízo a todos, o que
mais nos desumaniza, o que mais nos divide e o que, por isso mesmo, torna
praticamente impossível a convivência em paz, sem agressões e sem violência.
Por essa razão Jesus não tolerou, de maneira alguma, as pequenas ou grandes
A ética de Cristo
ambições das quais os apóstolos deram sinais evidentes. E não é que aqueles
homens (segundo parece) fossem mais ambiciosos que o restante dos mortais.
Sem dúvida, nisso, eram como são todos os outros. Nem mais, nem menos.
No entanto, Jesus viu que tinha de cortar pela raiz inclusive brotos à primeira
vista insignificantes de rivalidade e, sobretudo, as pretensões de poder de uns
sobre outros, por mais que tais pretensões aparecessem camufladas com as
melhores intenções, como direi no momento oportuno. Jesus quis deixar bem
estabelecido um princípio que, uma vez aplicado sem concessões, tornaria a
história dos seres humanos no planeta terra completamente diferente. Em vez
da história dos “salvadores” imperialistas que, um após outro, foram impondo
sua hegemonia à custa de horrores inenarráveis, teríamos a história de uma
humanidade em paz, em convivência harmoniosa e em progresso crescente de
humanização. Mas não foi assim. E o sabemos de sobra. E o sofremos até ex
tremos incríveis. Pois bem, a constante que determinou e marcou as grandes
e as pequenas confrontações diárias foi sempre, invariavelmente, a ambição
pelo poder, a exaustiva e insaciável lei do mais forte, com o rastro de sangue,
humilhação e morte que continua implacável seu curso, até o dia de hoje.
Há um agravante que se nos apresenta neste momento. Se levarmos em
consideração que o poder conta, nos tempos em que vivemos, com meios cuja
força de destruição jamais haviam atuado em igual medida, não parece exage
rado afirmar que hoje nos vemos presos a uma alternativa que não deveriamos
enfrentar com frivolidade e, menos ainda, tirando-lhe a importância. Trata-
se da alternativa entre hegemonia ou sobrevivência. Noam Chomsky, no final
de seu estudo sobre esse dramático dilema, soube delinear a situação com
realismo: “Na história atual”, diz Chomsky, “podemos discernir duas tendên
cias: uma orientada para a hegemonia, que age racionalmente num contexto
doutrinai lunático, ao mesmo tempo em que ameaça a sobrevivência; a outra,
dedicada à crença de que ‘é possível outro mundo’, nas palavras que animam
o Fórum Social Mundial, que desafia o sistema ideológico reinante e pretende
originar alternativas criativas de pensamento, ação e instituições. Ninguém
pode predizer que tendência predominará. É um modelo familiar ao longo da
história, muito embora a diferença capital seja que hoje os riscos são muito
maiores”1. E Chomsky conclui com um texto sombrio de Bertrand Russell:
Mas então, se esta previsão se cumprir, esta nossa terra já não terá a
paz da vida, mas a frieza da morte. Assim forte e assim perigosa é a paixão
pelo poder. Jesus de Nazaré tinha suas razões para repreender, pelo menos
dentro de seu grupo e do movimento que originou, o desejo de poder dos
primeiros apóstolos.
2. Op. cit., 3 4 4 , que remete a JUDY COTH, Bertrand Russell Socíety Quarterly (fevereiro de
2 0 0 3 ).
A ética de Cristo
Obediência ou seguimento?
6. Em um a so cied ad e machista, como era a sociedade judaica do século I, as filhas deviam lavar
os pés do pai. J . JEREMIAS Jeru sa lén en tiempos deJesús, 3 7 5 .
Jesu s e o poder
7. Mt 4 ,2 0 .2 2 ; 8 ,2 2 .2 3 ; 9 ,9 ; 1 0 ,3 8 ; 1 6 ,2 4 ; 1 9 ,2 7 .2 8 ; 2 6 ,5 8 ; Mc 1 ,1 8 ; 2 ,1 4 ; 6 ,1 ; 1 0 ,2 8 ; 1 4 ,5 4 ;
Lc 5 ,1 1 .2 7 .2 8 ; 1 8 ,2 8 ; 2 2 ,3 9 .5 4 ; Jo 1 ,3 7 .3 8 .4 0 .4 3 ; 1 3 ,3 6 .3 7 ; 1 8 ,1 5 ; 2 1 ,1 9 .2 0 .2 2 . Cf. J. M.
CASTILLO, EI Reino de Dios. .., 214.
8. Mt 4 ,2 5 ; 8 ,1 .1 0 .1 9 ; 9 ,2 7 ; 1 2 ,1 5 ; 1 4 ,1 3 ; 1 9 ,2 .2 1 ; 2 0 ,2 9 .3 4 ; 2 1 ,9 ; 2 7 ,5 5 ; Mc 2 ,1 5 ; 3 ,7 ;
5 ,2 4 ; 8 ,3 4 ; 1 0 ,2 1 .3 2 .5 2 ; 1 1 ,9 ; 1 4 ,5 1 ; 1 5 ,4 1 ; Lc 7 ,9 ; 9 ,1 1 .2 3 .5 7 .5 9 .6 1 ; 1 8 ,2 2 ,4 3 ; 2 3 ,2 7 .4 9 ;
Jo 6 ,2 ; 8 ,1 2 ; 1 0 ,2 7 ; 1 2 ,2 6 . Cf. J. M. CASTILLO, op. cit., 2 1 5 .
Jesus e o poder
Poder e autoridade
quando o enfermo ou as pessoas a quem se dirigia Jesus não tinham fé. Daí
o próprio Jesus atribuir as curas à fé dos próprios enfermos, aos quais Jesus
costumava dizer: “A tua fé te salvou” (por exemplo, Mc 5,3 4 par.). Além disso,
se os atos prodigiosos de Jesus são interpretados como manifestações de sua
chamada “onipotência”, é preciso perguntar-se por que Jesus não curou todos
os enfermos que havia na Palestina quando ele andava pelo mundo, ou por
que não acabou com a grande fome que aquele povo sofria etc.
Verdade é que a “autoridade” ( exousía), quando precedida pela preposi
ção kata, significa “dominação” ou até “tirania”. Nesse sentido, os evangelhos
a aplicam aos chefes das nações, aos homens que gerem o poder político, ao
menos tal como esse poder era exercido nas monarquias absolutas antigas.
Nesse sentido, são muito convincentes e claros os textos de Marcos 10,42 e
Mateus 20,2 5 . Mas nunca deveriamos esquecer que é justamente esse tipo
de comportamento que Jesus proíbe terminantemente a seus discípulos (Mc
10,43; Mt 20,26). Ou seja, pode-se afirmar com toda a segurança que o Evan
gelho proíbe severamente que na Igreja seja instaurada, mantida e justificada
qualquer forma de exercer o poder que se pareça ao que eram antigamente as
monarquias absolutas, não só pelo que aquelas monarquias costumavam ter
de tirania e despotismo, mas por algo mais próximo de nós e mais universal.
Refiro-me ao fato evidente de que, em uma monarquia absoluta, o que se
impõe é a vontade e o poder do soberano, e não os direitos dos cidadãos. Ou
seja, em uma monarquia absoluta, ninguém tem seus direitos garantidos. E,
menos ainda, se pode falar de “direitos humanos”. Além disso, uma situação
assim e um semelhante estado de coisas não pode ser justificado apelando-
se para a natureza própria do poder religioso, porque, no caso de falarmos a
partir do Evangelho, semelhante forma de exercer o poder está estritamente
proibida pelo Senhor. Daí, para muitas pessoas, ser surpreendente e até es
candaloso o fato de o Vaticano ser a última monarquia absoluta que resta na
Europa. Sem dúvida, a partir da Revelação cristã, não se pode justificar nem
esse Estado nem sua forma de organização política nos tempos atuais.
Não é um exagero o que acabo de dizer. Outra coisa é termos medo de
dizê-lo. Creio, porém, que, se quisermos ser fiéis à nossa fé no Senhor, não
podemos continuar calados a respeito de coisas tão evidentes. Nos assun
tos de poder, estamos todos especialmente ameaçados de “cair em tentação”.
Jesus sabia disso muito bem. Por isso disse a seus apóstolos que eles tinham
de se comportar exatamente ao contrário de como se comportam os homens
A ética de Cristo
da política. A ideia de Jesus é que seus apóstolos tinham que seguir sua vida
como “serventes” (diakonoí) e “escravos” (cloúloi) (Mc 10,44-45 par.). E é pre
cisamente nesse contexto que Jesus afirma que está no mundo, “não para ser
servido, mas para servir” (Mc 10,45 par.). Está claro, portanto, quejesus, nem
se entendia com base no poder, nem tolerava que seus representantes nesta
terra dessem a impressão de homens que pretendem ser vistos como seres
superiores, dotados de um poder que os outros não podem ter. Isso é válido
até quando esse poder se apresenta como poder “sagrado”, como poder dado
por Deus para o bem sobrenatural dos homens. Nesse caso, o assunto é mais
delicado e até se pode afirmar que também é mais perigoso. Estamos, então,
diante de um poder intocável, que pode pretender estar acima de todos os
outros poderes, o que pode chegar até a intimidade das consciências, lá onde
cada ser humano vê a si mesmo como uma boa pessoa ou, ao contrário, como
um degenerado, um perdido, um rejeitado por Deus.
Nos evangelhos, a “autoridade” ( exousía) de Jesus nunca é entendida
como ação de domínio ou de imposição que violenta as pessoas sobre as
quais é exercida tal autoridade. Absolutamente o contrário. A exousía de Jesus
é autoridade para perdoar (Mt 9,6; Lc 5,24). É também autoridade para curar
os que se viam dominados por poderes satânicos (Lc 4,36). E é também au
toridade para ensinar (Mc 1,22; Lc 4 ,3 2 ). Aqui, porém, é importante recordar
que, segundo o relato evangélico, Jesus ensinava de maneira que as pessoas
ficavam “impressionadas” (Mc 1,22) e se davam conta de que aquele ensi
namento não era como a imposição doutrinai e normativa dos letrados, que
oprimiam as pessoas com cargas religiosas insuportáveis. Por isso, quando
Jesus expulsa os vendedores do templo (Mc 1 1,15-19 par.), logo depois os
sumos sacerdotes lhe perguntam com que “autoridade” faz aquilo (Mc 11,28
par.). Não lhe perguntam pela autoridade com que ensinava, e menos ain
da por uma suposta autoridade para impor verdades, preceitos ou normas
Perguntam-lhe qual é a autoridade que tem para “fazer” (poiêís) o que fez lã,
no templo. Ou seja, o que estava em questão era a liberdade de atuação que
Jesus possuía e manifestava. Isso é o que aqueles “sacerdotes” que mantinham
o poder sobre o povo não toleravam.
O contraste é evidente. Os dirigentes religiosos judeus tinham “poder”,
mas não tinham “autoridade” diante das pessoas. No caso de Jesus, a situação
era exatamente o inverso: não tinha “poder” sobre o povo, mas gozava de
uma enorme “autoridade”, que seduzia, atraía e entusiasmava as pessoas. Essa
Jesus e o poder 1
A autoridade evangélica
viver e sua relação com uns e com outros, com os “justos” e com os “pecado
res”, com os ricos e com os pobres, com os sãos e com os enfermos, com os
poderosos e com os impotentes, com os grandes e com os pequenos e, mais
que qualquer outra coisa, sua sensibilidade diante do sofrimento dos mais in
felizes foi de tal qualidade humana, que as multidões se puseram a “segui-lo”
(Mt 4,25; 8,1) a ponto de não lhe deixar nem tempo para comer (Mc 3,20)
e até dar a impressão de que era um indivíduo que havia “perdido o juízo”
(Mc 3,21). Por isso Jesus nunca foi visto como “sacerdote” ou como “letrado”,
ou seja, como homem do poder cultuai ou doutrinai, mas sempre foi tido
como um “profeta” (Mt 16,14 par.), o homem que, por sua forma de viver,
convencia e era escutado, pondo cada um diante da decisão de segui-lo ou
rejeitá-lo. Nisso consiste a estrutura fundamental da autoridade evangélica.
Logicamente, não é este o espaço para analisar a estrutura hierárquica da
Igreja, tampouco a natureza dos poderes sacramentais que a teologia vem ex
plicando desde a Idade Média. O que de fato interessa deixar claro é que tanto
essa estrutura quanto esses poderes, tudo o que constitui poder na Igreja tem que
ser entendido e praticado d luz da autoridade evangélica, porque é evidente que
não pode haver na Igreja poderes que sejam exercidos à margem do que é
ensinado pelo Evangelho, e, menos ainda, de forma contrária ao que Jesus fez
e disse. Na Igreja, não pode haver poder para ja z er o contrário do que o Senhor da
Igrejafe z e disse, de tal maneira que, se necessário for, em determinados pontos,
terá que ser repensada a teologia da “sagrada potestade” que, com frequência,
é utilizada nos livros de teologia para justificar, por vezes, comportamentos ou
decisões que pouco ou nada têm a ver com o Evangelho.
Um poder ineficaz?
Jesus fazia e dizia. Nesses' casos, a saída mais frequente é culpar os bispos e
sacerdotes em geral de ambição e desejo de poder. E pode ser que haja, não
resta dúvida. Entretanto, o mais certo é que a hierarquia eclesiástica assim
procede, o mais das vezes, por motivos de eficácia pastoral ou apostólica.
Simplesmente porque se pensa que dessa maneira se conseguem coisas que,
mediante a exemplaridade evangélica e sendo “realistas”, não se conseguem.
Daí, por exemplo, que a Igreja católica, a partir de sua organização central
como Estado independente, o Estado da Cidade do Vaticano, mantém relações
diplomáticas internacionais com todos os demais Estados do mundo com os
quais pode fazê-lo, para conseguir, dessa maneira e por esse meio, “direitos”
de caráter legal que, de outra maneira, não conseguiría. Isso, evidentemente,
confere à Igreja um poder adicional, um poder que não está nem na revelação
cristã, nem no Evangelho, nem, com certeza, na vida de Jesus. Porém, o fato
é que isso produz seus resultados em não poucos assuntos que equivalem a
problemas resolvidos em coisas de importância notável: benefícios econômi
cos e fiscais, privilégios legais, direitos que beneficiam os cristãos sobre os
adeptos a outras confissões etc. etc.
Logicamente, a primeira coisa que acorre ao pensamento de qualquer
pessoa é que a Igreja, ao agir dessa forma e lançar mão desses procedimentos,
manifesta em primeiro lugar que não está provida o bastante da força da Pala
vra de Deus e da força do Evangelho. E por esse motivo recorre a outras forças,
a força da política e do direito, a força da diplomacia e dos pactos internacio
nais, a força dos privilégios e do dinheiro, mesmo que, ao fazer essas coisas,
tenha de se comportar como Jesus jamais se comportou, e por mais que sua
presença neste mundo se pareça muito pouco com o que de fato foi a presença
de Jesus na sociedade de seu tempo. Isso faz com que se pense que existem na
Igreja pessoas importantes que, a partir de um “realismo” muito compreensí
vel, porém pouco evangélico, causam a impressão de que acreditam mais na
eficácia do poder político do que na força da exemplaridade evangélica.
Jesus, o Senhor da Igreja, tinha outros critérios, pensava de outra ma
neira. Antes de tudo, é impensável imaginar Jesus estabelecendo negociações
com Herodes e com Pilatos para conseguir privilégios legais ou econômicos
para seus apóstolos e discípulos e assim poder anunciar o Evangelho sem a
desagradável oposição dos letrados, senadores e sumos sacerdotes. Quando
Jesus diz a seus apóstolos que os envia “como ovelhas para o meio de lobos”
(Mt 10,16), não lhes diz que denunciem os lobos, mas que vençam o medo
A ética de Cristo
rebelavam contra Roma14. Além disso, Jesus foi crucificado, não entre dois
ladrões, mas entre dois lestaí (Mc 15,27 par.), uma palavra que o historiador
Flávio Josefo, entre outros, utiliza para designar os rebeldes políticos15. Deve-
se acrescentar a isso que a pretensão messiânica de Jesus, tal como ficou escri
ta no título da cruz, “rei dos judeus” (Mc 15,26), pôde ser tomada como um
verdadeiro perigo para a estabilidade da dominação romana. Seja como for, é
preciso afirmar com segurança que o responsável último pela execução cruel
de Jesus foi Pilatos, o representante do poder imperial na Palestina. Verdade é
que os relatos da paixão carregam a mão sobre a responsabilidade dos sumos
sacerdotes e autoridades religiosas ao pressionarem o governador para que
ditasse a sentença de morte na cruz. Porém, prescindindo das considerações
históricas e teológicas que podem ser feitas sobre esse importante matiz da
história final de Jesus, fica em aberto uma pergunta-chave: Por que os pode
res políticos mataram Jesus se ele jamais atacou diretamente tais poderes?
Existem duas formas de se enfrentar um poder político injusto e opres
sor. Uma é a confrontação direta, utilizando as mesmas armas utilizadas pelo
poder: a diplomacia, as leis, a pressão sobre a opinião pública e, eventual
mente, até a violência. Outra forma é a confrontação indireta, não recorren
do às armas do sistema, mas precisamente àquilo em que os poderes deste
mundo costumam falhar, que é a coerência ética e a liberdade profética. Ju s
tamente o que Jesus fez. Não disse sequer meia palavra contra os romanos,
mas viveu e ensinou a viver com tal retidão moral e com uma liberdade diante
dos assuntos que verdadeiramente interessam e importam às pessoas, que os
poderes deste mundo, tanto políticos como religiosos, se sentiram seriamente
ameaçados. Não suportando semelhante ameaça, viram que a solução mais
eficiente era liquidar com aquele profeta incômodo e até perigoso.
Ainda mais concretamente: as armas mais perigosas utilizadas pelo po
der político não são os armamentos bélicos, mas a manipulação das consciên
cias mediante a hábil manipulação do desejo. De modo concreto, o desejo de
poder e o desejo de dinheiro. Os Estados Unidos não venceram no Vietnã com
bombas e mísseis. Venceram com Coca-Cola e dólares. E o que está aconte
cendo na China é mais clamoroso ainda. Assim se ganham nas urnas segui
dores incondicionais e votos. Pois bem, como já vimos pouco a pouco, foi
precisamente nesses dois “desejos” que Jesus delineou sua confrontação com
o sistema. Os poderes deste mundo não temem as pessoas que saem à rua
com cartazes e megafones. Se essas pessoas tiverem apego ao poder e ao di
nheiro, o sistema rí com desdém dos manifestantes mais entusiastas, porque,
certamente, sem que o saibam, no fundo são tão defensores do sistema como
aqueles a quem denunciam, vagueando com seus inocentes gritos. O poder
político tem seus inimigos mais perigosos nos profetas que abrem os olhos
das pessoas, que libertam as consciências da sedução de subir e possuir. Um
povo que não se deixa domesticar pelos mecanismos do sistema é um povo
que não é “governável” com os meios utilizados pelos poderes deste mundo.
E isso que, verdadeiramente, qualquer governante teme.
i
12
Jesus e o puritanismo
Que estranho mecanismo de conduta existe por trás de tudo isso? Quero
dizer, como se explica que, não obstante todas as liberdades sexuais que nos
escandalizam, continua se mostrando mais escandaloso o padre que sai do
armário que o afã de determinados hierarcas eclesiásticos para tirar do Estado
todo o dinheiro que podem?
As origens do puritanismo
Há pessoas de pouca cultura que, ainda hoje, dizem que a religião cristã é a
responsável pela repressão sexual que, durante séculos, a cultura do Ocidente
teve de suportar. É verdade que os autores cristãos, desde os primeiros séculos
e ao longo da Idade Média, recriminaram com'veemência os pecados nos quais
o apetite sexual intervinha, qualquer que fosse sua forma. Também é fato que a
espiritualidade cristã, fortemente influenciada pelos monges, carregou na mão
sobre esse assunto8. Além disso, é verdade que, entre o início da Era Cristã e o
final da Idade Média, as atitudes dos europeus para com uma quantidade de
grupos minoritários experimentaram profundas transformações9. Também é
certo que um dos grupos que mais tiveram de suportar a intolerância foi preci
samente o dos gays10. Isso é um indicador eloquente para aqueles que afirmam
que a repressão sexual é um produto típico do cristianismo.
No entanto, essa questão é muito mais complicada e, por certo, mais antiga
que Cristo. Se os Padres da Igreja e o monacato ensinaram ou exigiram condu
tas estranhas, intransigentes e até extravagantes, a origem de tais ensinamentos
não está precisamente em Cristo, suas raízes são muito mais antigas. Um dos
estudiosos que melhor conhecem essa questão, o professor E. R. Dodds, da
universidade de Oxford, afirmou, há anos, que foi no século V a.C. que teve
início, na Grécia, a profunda transformação que deu origem ao puritanismo
que marcou, até hoje, a cultura do Ocidente. Foi naqueles tempos remotos
que os gregos começaram a ver não só uma distinção e separação entre a
8. Cf. J. M. CASTILLO, El futuro de la Vida Religiosa. De los orígenes a la crisis actual, Madri, Trotta,
2 0 0 3 , 1 3 5 -1 5 7 .
9. J. BOSWELL, Cristianismo, tolerância social y homosexualidad. Los gays en Europa Occidental
desde el comienzo de la Era Cristiana hasta el siglo XIV, Barcelona, Muchnik Ed., 1 9 9 3 , 25.
10. J. BOSWELL, op. cit., 27.
i A ética de Cristo
12. A. BERNABE, Orfismo y Pitagorismo, in C. GARCÍA GUAL (ed.), Historia de la filosofia anti-
gua, Madri, Trotta, 1 9 9 7 , 83.
13. E. R. DODDS, op. cit., 141.
14. E. R. DODDS, op.cit., 144.
15. Iamb. Vita Pith. 85.
Jesus e o puritanismo
radicalismo sem limites: “Maldito o prazer por todos estes motivos!”21. Mais
ainda, para Fílon, “o prazer é absolutamente sacrílego”22.
Por outro lado, como se sabe muito bem, o puritanismo é coisa que sem
pre foi inventada e fomentada pelos homens, muito embora suas vítimas mais
infelizes tenham sido as mulheres. Fílon foi um puritano rigorista. Daí seu
desprezo pela mulher. Com efeito, para esse autor, “as mulheres engendram
os desejos que, pelos olhos, nos levam às formas e às cores, aos sons e aos
desejos do ventre e do baixo-ventre”23. Por isso, no conceito de Fílon, “a mu
lher amada é o prazer, enquanto a mulher odiada é a prudência (phrónesís)24.
Dai esse autor chegar a dizer que “a descendência feminina da alma é o vício
e a paixão, ao passo que a descendência masculina é a virtude”25. As bases do
puritanismo mais rigoroso estavam solidamente estabelecidas.
Nada há de surpreendente no fato de que a moral e a espiritualidade
cristãs, que assimilaram estas idéias, se tenham ocupado essencialmente da
rejeição de todo prazer, principalmente do prazer sexual, fazendo disso uma das
tarefas apostólicas mais exigentes a que a moral cristã se dedicou (e continua
se dedicando). A rejeição do prazer tornou-se uma das chaves de sua doutri
na. Esse prazer, como ensinam os moralistas cristãos ortodoxos de todos os
tempos, é permitido somente dentro do casamento e em condições que dele
se possa seguir a procriação. Essa foi, e continua sendo, a doutrina oficial
da Igreja, na qual, ademais, os pregadores insistiram e os confessores foram
especialmente exigentes, como se sabe muito bem. Em última instância, tudo
isso foi apenas uma das mais destacadas expressões do puritanismo que tão
profundamente marcou a cultura do Ocidente.
Uma das coisas que mais chamam a atenção, ao ler os evangelhos, é que
alguns escritos nos quais ocupam um lugar tão central e determinante as
2 6 . Por exemplo, os costumes que havia naquela sociedade, em relaçao aos direitos e deveres
da mulher, indicam fortemente a importância que os judeus de então davam ao tema do sexo,
sempre em detrimento das mulheres. Cf. J. JEREMIAS, Jerusalén en tiempos de Jesus, 3 7 1 -3 8 7 ,
com extensa bibliografia.
A ética de Cristo
razão por que se proíbe o adultério, como também é proibido roubar ou ficar
com o alheio (Ex 20,15). Essa raiz e essa razão é o “desejo”. Não esqueçamos
que a última proibição do Decálogo é a chave de todo o resto e que vai ao
âmago de qualquer problema. Trata-se precisamente da proibição do dese
jo ”, que no texto do livro do Êxodo assim se expressa: “Não cobiçarás a casa
de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu servo,
sua serva, seu boi ou seu jum ento, nada do que pertença a teu próximo (Ex
20,17). Obviamente, o problema aqui não são os desejos “impuros , mas o
“desejo” (e nada mais) de tudo o que pertence a outro. Por isso, no texto do
sermão da montanha (Mt 5 ,2 8 ), Jesus proíbe “desejar” uma mulher “casada”
(gyné), ainda que essa palavra, caso o contexto o indique, possa designar uma
“noiva” (Mt 1,20.24). Porém, é evidente que em Mt 5,28 se refere à proibição
de desejar aquela que é “esposa” de outro (lG or 7,2ss)2'.
A importância dessa proibição divina é muito mais forte do que mui
tas pessoas imaginam, porque, como evidenciaram as excelentes análises de
René Girard, o que está em jogo em todo este assunto não é a castidade, mas a
violência. O “desejo” é a consequência inevitável da mímesis (“imitação”), que
normalmente costuma ser mímesis aquisitiva, cujo passo seguinte é a Mímesis
de Rivalidade, que desencadeia a violência em todas as suas formas2728. Por uma
razão que qualquer um entende. O desejo mimético nem sempre é conflitan
te, porém costuma sê-lo, e isso por razões que o décimo mandamento torna
evidentes. O objeto que desejo, seguindo o modelo de meu próximo, este
quer conservá-lo, reservá-lo para seu próprio uso, o que significa que não o
deixará arrebatar sem luta. Já temos a violência, porque, como insiste Girard,
“dado o mimetismo de nossos desejos, estes se assemelham e se reúnem em
pertinazes, estéreis e contagiosos sistemas de oposição”29. Daí o escândalo, a
confrontação e a luta de todos contra todos. O problema mais profundo da
convivência humana. O lamentável, porém, é que um problema tão sério e de
tão graves consequências tenha sido banalizado nos catecismos católicos adul
Jesus e as mulheres
Pode-se afirmar, com toda a segurança, que um dos indicadores mais claros
para averiguar se um homem é puritano ou não, e também para avaliar a for
ça que o puritanismo exerce na vida dessa pessoa, é o que consiste na relação
que o indivíduo costuma manter com as mulheres. Um homem que sistematica
mente se mantém à distância das mulheres e, sobretudo, se vir nelas um peri
go (justifique como justificar esse perigo), é evidente que está infectado pelo
vírus ético do puritanismo. Além disso, se levarmos em consideração que o
puritanismo é um fenômeno, não só de ordem ética, mas igualmente de índo
le social, quando falamos de puritanismo, deparamo-nos com um fenômeno
no qual a liberdade exerce um papel decisivo: a liberdade de consciência e a
liberdade diante da sociedade. Em uma sociedade puritana e em uma cultu
ra marcada por uma religião repressiva e fundamentalista, faz-se necessária
uma personalidade dotada de uma notável independência, com uma grande
liberdade interior e exterior, para podermos dizer que estamos diante de um
homem que não se deixou dominar pelo puritanismo.
Isso posto, uma das coisas que mais chamam a atenção, lendo os evan
gelhos, é a presença e a importância que as mulheres tiveram na vida de Jesus.
Começando pelo mais elementar, o primeiro ponto que se deve ter presente é
que Jesus jamais teve problema algum com mulher alguma. E menos ainda teve
conflito de qualquer espécie com as mulheres coletivamente ou com alguma
em particular. Os evangelhos, pelo menos, não fazem menção de incidentes
nesse sentido. Isso, no caso concreto de Jesus, é bastante surpreendente por
que, como se sabe muito bem, Jesus foi um homem conflituoso, ou seja, um
homem que, por sua forma de viver e de falar, teve problemas muito sérios e
confrontos graves (que o levaram à morte) com as autoridades religiosas e polí
ticas de seu tempo. Mas não é só isso. Jesus teve conflitos com os dois partidos
políticos que havia em Israel: os saduceus (Mc 12,18-27) e, sobretudo, com
A ética de Cristo
os fariseus, fato que consta em quase todas as páginas dos evangelhos. Teve
problemas também com sua família (Mc 3,21; 6,4; Jo 7,5) e com as pessoas de
seu povo (Mc 6,1-6), que se enfureceram com ele a ponto de querer matá-lo
(Lc 4,28-30). Mais ainda, sabemos que, em determinados momentos, Jesus
enfrentou até seus próprios discípulos e seguidores, sem excetuar o próprio
Pedro, a quem não hesitou em chamar de “Satanás” (Mt 16,23). Pois bem, esse
homem, que teve problemas com tanta gente, jamais teve problema com algu
ma mulher. E isso que as mulheres com as quais Jesus teve de tratar não foram
sempre mulheres precisamente exemplares ou edificantes. Sabe-se que, na vida
de Jesus, cruzaram mulheres “endemoninhadas” ou possuídas de “maus espí
ritos” (Lc 8,2), contaminadas por enfermidades impuras (Mc 5,25-34 par.),
“ligadas por Satanás” (Lc 13,16), “adúlteras” (Jo 8,3-4), “prostitutas” (Lc 7,37),
“infiéis a seus maridos” (Jo 4 ,1 7 -1 8 ) e, além disso, algumas delas de origem e
crenças alheias à religião de Israel (Jo 4,7; Mc 7,24-30). E ele soube tratar todas
essas mulheres de maneira que se sentiram acolhidas, compreendidas, perdoa
das, aliviadas em seus sofrimentos e até profundamente estimadas.
Há, no entanto, algo muito mais eloquente. Refiro-me à quantidade de
mulheres que sempre estiveram perto de Jesus, sinal evidente de que Jesus exercia
uma atração especial sobre elas. Logicamente, as mulheres não se aproximam
de um homem por quem se sentem rejeitadas ou menosprezadas, de qualquer
maneira que seja. O evangelho de Lucas diz que Jesus era acompanhado não
só pelos “discípulos” e “apóstolos”, mas por “muitas mulheres” (Lc 8,2-3). E
Marcos fala das mulheres que andavam com Jesus “quando ele estava na Gali-
leia” e, além delas, “várias outras, que tinham subido com ele para Jerusalém”
(Mc 15,41). Se levarmos em conta que, naquela sociedade, as mulheres não
podiam entreter-se com homens fora de sua casa, de modo que uma mulher
que falasse na rua podia ser repudiada sem receber o pagamento estipulado
no contrato matrimonial31, é evidente que tinha de parecer como algo suspei
to, no mínimo, aquele grupo de homens e mulheres, todos juntos, que iam
com Jesus “através de cidades e aldeias” (Lc 8,1). Hoje, isso chamaria a aten
ção. É preciso imaginar que daria o que falar aquela quantidade de pessoas
rodeando Jesus em todas as horas, sem se afastar dele.
E nada do que foi dito é o mais chocante. Porque o comportamento de
Jesus, em uma matéria (para muitas pessoas) tão melindrosa e delicada, não
nham as duas irmãs: se Jesus tivesse estado na casa, o irmão não teria morrido
(Jo 11,21 e 32). Isso expressa, antes que uma fé religiosa, a firme convicção de
um relacionamento que não se rompe. Aquelas duas mulheres queriam bem
a Jesus, sentiam-se queridas por ele e não duvidavam de sua fidelidade. E a
tudo isso é preciso acrescentar o detalhe final da ceia que ofereceram a Jesus
(Jo 12,1-7). Segundo Marcos e Mateus, essa ceia foi servida na casa de um tal
Simão, o leproso (Mc 14,3-9; Mt 2 6,6-13). De qualquer maneira, não parece
que este relato seja o mesmo (com algumas variantes) que o da pecadora que
já comentei (Lc 7 ,3 6 -5 0 )34. Todavia, o que não admite dúvida é o fato de se
tratar de uma mulher que faz algo que normalmente não era permitido às
mulheres naquela sociedade. Maria, como a pecadora do capítulo sete de
Lucas, lança-se aos pés de Jesus e o perfuma. Ademais, a qualidade e o preço
do perfume (Mc 14,3), e o fato de quebrar o frasco, de tal maneira que não
reservou nada para si, tudo isso denota uma humanidade, uma proximidade,
uma admiração e um carinho muito fortes. Isso foi motivo de críticas, escân
dalo e indignação (Mc 14,4 par.). O fato, porém, é que Jesus, como o fez com
a prostituta, defende essa mulher e justifica sua atitude.
Não se pode demonstrar que essa Maria, irmã de Marta e Lázaro, fosse
Maria de Mágdala. Não existem dados para isso. Porém, seja como for, há
traços comuns que se repetem: a mulher sempre aos pés de Jesus em sinal
de proximidade; sempre esbanjando generosidade e delicadeza, mediante o
perfume, os beijos, as carícias; sempre malvista pelos assistentes; Jesus tam
bém sempre malvisto por permitir semelhantes intimidades; e Jesus sempre
defendendo a mulher, por mais que os acusadores fizessem suas denúncias
em nome da decência (caso da prostituta), em nome dos pobres (caso da un-
ção de Betânia) ou em nome do serviço que havia de ser prestado ao próprio
Jesus (caso de Marta).
No grande relato da Paixão, as mulheres voltam a aparecer. Primeiro,
quando Jesus é conduzido ao Calvário. “Mulheres que batiam no peito e se
lamentavam por causa dele” (Lc 2 3,27). E a seguir, quando Jesus agoniza na
cruz. “Havia também mulheres que olhavam, à distância, e entre elas Maria
de Mágdala, Maria, mãe de Tiago, o Menor e de José, e Salomé, que o seguiam
e serviam quando ele estava na Galileia, e várias outras, que tinham subido
com ele para Jerusalém” (Mc 15,40-41). Segundo o relato de João, sabemos
34. J. GNILKA, El evangelio según san Marcos, II, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 6 , 259.
Jesus e o puritanismo
que junto à cruz estava sua mãe, a irmã de sua mãe e Maria de Mágdala, e
com elas João (Jo 19,25). Porém, pelo que dizem os evangelhos sinópticos,
no momento da morte de Jesus, não estavam lá seus discípulos, que haviam
fugido e o haviam deixado sozinho. Lá estavam somente as mulheres, as ami
gas fiéis, que nunca o deixaram. É evidente que a relação de Jesus com essas
pessoas deve ter sido profunda e muito firme.
Por último, não custa recordar que, seja qual for a interpretação teo
lógica dada às aparições do Ressuscitado, é um fato que, nos relatos dessas
aparições, as mulheres ocupam o primeiro lugar. É a elas que Cristo, o Senhor
Ressuscitado (Mc 16,1-10; Mt 2 8 ,1 -8 ; Lc 2 4 ,1 -1 2 ; Jo 2 0,1-10) aparece pri
meiro. Dizer que elas foram as primeiras a vê-lo, não se trata de uma ordem
de precedência cronológica, porque a ressurreição não acontece nem no es
paço nem no tempo, já que é uma realidade “meta-histórica” que, portanto,
transcende o histórico e não está sujeita às coordenadas áe nossa história. No
entanto, a ordem das aparições que os relatos evangélicos estabeleceram, o
que de fato fizeram, é para nós um indicador valioso. Em um sentido concre
to: isso quer dizer que as comunidades cristãs, nas quais foram redigidos os
relatos das aparições, tinham a convicção de que, no que diz respeito ao inte
resse por Jesus e ao encontro com o Ressuscitado (o “Cristo da Fé”), as primeiras
foram as mulheres. Isso obviamente reafirma a relação singular que o homem
Jesus de Nazaré teve com as mulheres.
Para concluir este tópico, quero fazer com que se leve em conta algo que
me parece importante. Em tudo o que recordei sobre o comportamento de Jesus
com as mulheres, não se trata de que Jesus tenha se rebaixado ao tratar com mu
lheres indignas e ao deixar-se amar por elas. Isso seria enaltecer Jesus à custa das
mulheres, mais uma vez. Não se trata disso, em absoluto. O que os evangelhos
deixam muito claro é que as mulheres, que a sociedade considera como indig
nas, possuem tal dignidade (sejam elas quem forem e se portem como se porta
rem), que Jesus, para deixar isso claro de uma vez para sempre, não hesitou em
pôr em jogo seu bom nome e chegou até a escandalizar os mais piedosos.
Os “demônios” do puritanismo
O puritanismo é uma atitude diante da vida que põe a pureza acima das
relações humanas. Ou seja, o puritanismo supõe uma escâla de valores na qual
A ética de Cristo
pertence à morte (Rm 7,21 24). Essa mentalidade não aparece nos evangelhos,
mas inspirou amplamente a moral e a espiritualidade cristãs durante séculos.
Pois bem, a partir desses pressupostos, a primeira consequência que inevi
tavelmente deles se segue está em que o indivíduo se centra em si mesmo, em sua
luta interior, em seu constante anelo de purificação e de libertação do cárcere
do corpo em que se sente aprisionado. Porque sua luta interior assim o exige. E
sua consciência vive inquieta enquanto não consegue a paz que é proporcionada
pela pureza imaculada da alma que não se deixa contaminar pelo sensual.
Por isso, a segunda consequência consiste em que o puritano autêntico
põe a pureza acima das relações com os outros. Assim, se, para assegurar e garantir
a fiel observância dos costumes puros é preciso afastar-se de um semelhante,
falar com ele o menos possível, marginalizá-lo ou denunciá-lo, o bom puritano
não hesitará em fazer tudo isso. O que interessa, antes de tudo, é assegurar a
saúde da alma mediante o exemplar domínio do corpo, dos sentidos e de tudo
o que possa ter relação com a sensualidade. E também proteger a boa imagem
que há de ter, diante da opinião pública, um puritano “como Deus manda”.
A terceira consequência consiste em que o puritanísmo desenvolve enor
memente tudo o pue se relaciona com a castidade, ao mesmo tempo em pue inibe a
sensibilidade pela justiça e pelo sofrimento no mundo. Sem dúvida, esta é a mais
destrutiva de todas as consequências desencadeadas pelo puritanismo. Nesse
ponto, ocorre um fenômeno estranho. Todo bom puritano dirá, se lhe for
perguntado, que o mais importante na vida é a caridade fraterna, a defesa dos
que sofrem, a ajuda aos necessitados e a prática do bem. Tudo isso é muito
bem estabelecido em teoria. Todavia, não sei o que acontece com o purita
nismo que, ao chegar aos fatos concretos e às questões imediatas, o puritano
se lança à rua para protestar contra os casamentos de gays e lésbicas, porém,
jamais irá a uma manifestação para defender os direitos das mulheres, das
crianças, dos trabalhadores, ou para clamar contra a fome no mundo. Ocorre
que, no fundo, o puritanismo costuma viver bem ao lado da direita política,
ao passo que, com as pessoas de esquerda, se sente mal. Ainda que possa
parecer simplista, a direita política se sente justificada defendendo a pureza,
enquanto o ideal da esquerda foi sempre a luta pela justiça. Nisso, natural
mente, como em muitas outras coisas, há exceções. E, por certo, sabemos de
sobra que tanto na direita quanto na esquerda há pessoas impuras e pessoas
injustas. Todavia, não parece exagerado afirmar que as tendências políticas
vão na direção que acabo de indicar.
Jesus e o puritanismo
E com isso chegamos ao cerne da questão. Jesus nao foi puritano por
que o fator decisivo na vida é a “relação pura”, isto é, a relação de amor, que é
amor e não outra coisa, nem outro interesse, mas sim “comunicação emocional” e
transparência na relação — com o dispêndio de generosidade que é preciso ter
para compreender sempre o ponto de vista do outro38. Pois bem, o puritano
de pura estirpe não está disposto a aceitar e viver isso, por mais que afirme o
contrário. E não está disposto a viver isso porque, diante desse projeto, sente
medo — o medo que brota da falta de liberdade. Refiro-me à liberdade para
pôr em jogo o próprio nome, o próprio prestígio, a própria respeitabilidade,
quando a vida nos põe em circunstâncias que exigem de nós que mantenha
mos uma relação pura, sem usar nem abusar de ninguém, nem de tal pessoa, nem
dos outros em geral. Se Jesus nos ensinou algo grandioso, foi isso. Ocorre,
porém, que não somos educados para vivê-lo. Nossa cultura não caminha
nessa direção.
Mais ainda, um indivíduo que, por seu puritanismo, é incapaz de viver
verdadeiramente o que denominei a “relação pura”, sem medos, sem tabus, sem
repressões, e com o mais delicado respeito pelos outros (sejam eles quem fo
rem, vivam como viverem e pensem como pensarem), decisivamente, é incapaz
de ser uma “boa pessoa”. Essa é a consequência mais grave do puritanismo. E,
por isso mesmo, o conteúdo mais genial que se encontra no Evangelho consiste
em que, sem dizê-lo, nos dá as chaves para sermos “boas pessoas”. Sendo as
sim, o meio primordial da salvação é precisamente a bondade, porque somente
onde há bondade, sem restrição alguma, o amor é possível. E sabemos pela fé que é
no amor (e não na pureza) que se funde o divino com o humano.
É o místico que nunca está satisfeito consigo mesmo. E que jamais pode
imaginar que é uma boa pessoa. É o místico que sofre com os que sofrem.
Porém, acima de tudo, é o místico que não suporta a desigualdade. Vale dizer,
não suporta o fato deste mundo estar “organizado” de tal maneira que uns
tenham mais direitos que outros. E que alguns se imponham sobre todos os
outros. O que acontece é que, em se tratando de um místico assim, ninguém
o verá como um místico. Dir-se-á a respeito dele que é um tipo raro, quiçá
pouco equilibrado, possivelmente, até pouco edificante. Tudo isso foi pensa
do e dito de Jesus, o Senhor.
Por isso, pergunto: é real ou irreal a existência de uma pessoa assim? De
acordo com a resposta que cada um der a essa pergunta, assim será o julga
mento que emitirá sobre a possibilidade ou impossibilidade de fazer chegar à
prática o que, de maneira tosca, quis dizer neste livro.