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Tradução
Alda da Anunciação Machado

Diunuie^d rd uftí vaz

20100617 Edições Loyola


A etica de Cristo
Título original:
La Ética de Cristo
© Editorial Desciée de Brouwer, S.A., Bilbao, 2006.
48009 Bilbao, Espana, Calle Henao 6-3° dcha
ISBN: 84-330-2027-7

Preparação: Sandra Garcia Custódio


Capa: Walter Nabas
O bom samaritano (1890), Vicente van Gogh
Diagramação: Flávia Dutra
Revisão: Cristina Peres

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20100617-9

Edições Loyola
Rua 1822, 341 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
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ISBN 978-85-15-02172-7
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2010
Sumário

Introdução................. ...9

1 Uma ética desconcertante....... ...................................15

2 A humanidade de Deus............................................... 25

3 “Jesus veio para a Galileia” (Mc 1 ,1 4 )................... 37

4 “Passou por toda parte como benfeitor”


(At 1 0 ,3 8 )................................................ .4 7

5 “Eles não têm vinho” (Jo 2 ,3 ) ......... 61

6 Em primeiro lugar a vida, e não a religião............ 75

7 “Tenho compaixão desta multidão” (Mc 8 ,2 ) ......89

8 “Os últimos serão os primeiros” (Mc 1 0 ,3 1 ).... 109

9 Ética de obrigações, ética da felicidade...............127

10 Jesus e o dinheiro.......................................................141

11 Jesus e o p od er............................................................171

12 Jesus e o puritanismo................................................191

Conclusão: Ética e mística.......................................211


Lucía, dedico-lhe este livro.
Quando for maior e o ler,
detenha-se principalmente no texto de
Jerem y Bentham, que transcrevi
na página 140. Eu o incluí,
pensando em você, porque o que mais
desejo é>que seja muito feliz.
A ética é um dos grandes temas do momento. Pode-se
até mesmo afirmar, com todo o respeito, que a ética
está na moda. Com seus matizes peculiares, por certo.
Todavia, o fato é que, na atualidade, a ética desperta, a
cada dia, o interesse de um maior número de pessoas.
Mais ainda, os temas relacionados com a ética estão
na ordem do dia e na boca de todos. Bioética, carida­
de midiática, ações humanitárias, proteção ao meio
ambiente, moralização dos negócios, da política e dos
meios de comunicação, debates sobre o aborto, sobre
o assédio sexual, correspondência amorosa e códi­
gos de linguagem “politicamente correta”, cruzadas
contra a droga e luta antitabagista... Como se expôs
muito bem, “a ética converteu-se no espaço privile­
giado no qual se decifra o novo espírito da época”1.1

1. G. LIPOVETSKY, El crepúsculo dei âeber. La ética índolora de los


nuevos tíempos democráticos, Barcelona, Anagrama, 2 0 0 5 , 9.
A ética de Cristo

Mais ainda, e sem exagero de qualquer espécie, pode-se assegurar que, neste
momento, a ética é vista como um assunto mais importante e mais urgente do
que a dogmática. E, sem dúvida, parece bastante claro que a ética tem hoje mais
ímpeto do que a espiritualidade e do que a mística.
Não se requer nenhum esforço mental para persuadir-se de que as coisas
estão assim. Um exemplo muito claro, que confirma o que acabo de dizer, é o
que está acontecendo na Espanha e nos países da União Européia em geral. Os
grandes temas que hoje apaixonam os homens da religião e da política, e que
transcendem em amplas dimensões a opinião pública, são quase sempre temas
que dizem respeito, de algum modo, aos comportamentos éticos, ou que estão
no âmbito da ética. São os temas que aparecem, de uma forma ou de outra, nas
manchetes dos jornais e dos telejornais. Os temas dos quais os bispos e polí­
ticos tratam todos os dias. Os temas que muitas pessoas debatem na rua e nos
encontros de todo tipo e de qualquer natureza. Refiro-me a questões como o
debate sobre as células-mãe, o aborto e a eutanásia, os problemas relacionados
com a moral do sexo e da família, o casamento gay, o uso do preservativo, a
fecundação in vítro, a liberdade religiosa, o ensino da religião na escola públi­
ca, o financiamento das diferentes confissões religiosas, a laicidade do Estado
e um longo et cetera que sempre termina ligado a problemas éticos.
O que vem nos dizer tudo isso? Trata-se de algo positivo ou negativo?
E alentador ou preocupante? Existem dois fatos que, em minha opinião, são
inegáveis. Em primeiro lugar, há pouco mais de cinquenta anos, os grandes
problemas teológicos, que eram vividos e discutidos apaixonadamente no
cristianismo, qualificavam-se, acima de tudo, como problemas dogmáticos: a
cristologia, a eclesiologia, a escatologia, a antropologia teológica, na qual foi
determinante o debate sobre o problema do “Sobrenatural”. Eloje, porém, em
contraste com o que acabo de dizer, os temas teológicos que agora se discu­
tem e apaixonam dizem respeito, principalmente, a problemas morais, ou seja,
aos temas relacionados com a ética, que acabo de assinalar de forma bastan­
te resumida. Em segundo lugar, faz aproximadamente cinquenta anos que no
cristianismo (tanto católico como protestante), havia uma geração de grandes
teólogos, cujos nomes perduram e permanecerão por muito tempo como os
homens geniais que tomaram possível a renovação da teologia cristã. Nos dias
de hoje, as grandes personalidades teológicas escasseiam e não parece exage­
rado dizer que a teologia se empobreceu de forma alarmante. Nomes como
Bultmann, Barth, Bonhoeffer ou Tillich, no protestantismo; ou como Rahner,
Introdução

Congar, De Lubac ou Von Balthasar, no catolicismo, já não se encontram. Não


existem sequer sinais de que serão encontrados a curto ou médio prazo. As­
sim dizendo, não pretendo insinuar que a dogmática tenha mais categoria que
a ética. Limito-me a constatar um fato que está à vista de todos.
Não pretendo, certamente analisar aqui por que sucedeu esse fato tão
prejudicial para a Igreja. Isso requereria não um, mas diversos estudos sérios
e volumosos. O que interessa a mim, ao escrever este livro, não é o fato de
haver um interesse crescente pelos problemas éticos. Isso é excelente. E o
ideal seria que esse interesse continuasse sempre crescente. O que preocupa,
logicamente, não é isso. O que preocupa está nos problemas éticos que são
delineados, que interessam e aos quais se quer dar uma resposta. Todavia, não é
somente isso. Torna-se preocupante principalmente o tipo de resposta que, com
frequência, se quer dar aos problemas delineados.
Explico-me. Este livro tem como título A ética de Cristo. É, portanto,
um livro dirigido a pessoas às quais Cristo diz algo. E confesso que a questão
que primeiramente me preocupa nessa matéria da ética é o fato de serem
hoje delineados como prementes alguns problemas e se buscarem algumas
soluções que, com muita frequência, pouco ou nada têm a ver com o que
Cristo fez, ou com o que disse. Porém, atenção! Minha preocupação não
parte de determinado interesse “confessional”. Absolutamente o contrário.
O que me deixa nervoso é o fato de pretendermos dar aos problemas morais,
que hoje se apresentam, soluções que Jesus nunca teria dado. Soluções que
mais se parecem com as receitas dos escribas e fariseus do que com o com ­
portamento desconcertantemente livre adotado por Jesus em seu povo e em
seu tempo. Isso, antes de tudo.
Existe algo, entretanto, que me parece fundamental. Como é lógico, hoje
são propostas questões muito sérias de índole moral, para as quais constitui­
ría falta de discernimento buscar uma resposta direta e imediata nos evange­
lhos. É evidente, por exemplo, que muitos dos problemas relacionados com a
bioética não podem ter solução lançando mão somente do que disse Jesus.
Isso qualquer um entende. Entretanto, se isso é certo, não é menos verdade
que também pode suceder que busquemos para a bioética soluções que, não
só nada têm a ver com o Evangelho, mas também que, às vezes, parece ser
soluções ditadas por uma pessoa cuja escala de valores está nos antípodas do
espírito e da letra da mensagem de Cristo. Nesse sentido, eu me pergunto: no
tocante aos problemas hoje delineados pela bioética, pretende-se responder
A ética de Cristo

a partir da defesa incondicional da vida , ou a partir da defesa incondicional das


normas ditadas pela religião sobre a vida? É evidente que se trata de duas coisas
diferentes. E, além disso, sabemos de sobra que, às vezes, uma entra em con­
tradição com a outra. Em determinadas ocasiões, as normas religiosas entram
em conflito com a vida. A pergunta feita por Jesus na sinagoga, quando curou
o homem da mão seca (Mc 3 ,4 par.), ia claramente nessa direção. Do mesmo
modo que hoje se pode (e se deve) indagar se as normas ditadas por algumas
religiões sobre o sexo ou a violência não merecem que perguntemos aos que
ditam semelhantes normas se estão realmente a favor ou contra a vida.
Tudo isso já é motivo para se preocupar. Contudo, não é o mais in-
quietante em todo esse assunto. O pior de tudo, assim me parece, é que a
ética vai demasiadas vezes a reboque de interesses que nada têm a ver com a ética.
Refiro-me concretamente a interesses políticos e econômicos, o que é expli­
cável, porque, com frequência, a política e a economia não são exatamente
exemplares. Assim sendo, tanto os homens da política como os da economia
têm que buscar legitimação em delineamentos éticos, para justificar o que
fazem ou deixam de fazer. E confesso que, segundo meu modo de ver, torna-
se compreensível que os detentores do poder ou do dinheiro tentem camu­
flar suas decisões, apresentando-as com o disfarce de certa justificação ética.
Mas também é certo que, por isso mesmo, os profissionais da ética teriam
que assumir, como tarefa primordial, o esforço por desmascarar as turvas
utilizações da ética, de que tantas vezes os políticos e capitalistas fazem uso,
os critérios e valores por eles inventados e que nos propõem como sendo os
valores supremos que é preciso salvaguardar a todo custo. Por exemplo, to­
dos sabemos que ultimamente a mentira vem sendo utilizada para legitimar a
violência. Os políticos fazem isso a cada dia com mais descaramento. E o fato
surpreendente está em que muitos moralistas de ofício não dizem nem meia
palavra sobre essas coisas tão escandalosas quanto perigosas para a vida.
Todavia, o mais chocante em tudo isso não está no fato de que os ho­
mens da política e os homens da economia manipulem os princípios éticos e
os apresentem de acordo com seus interesses. O mais insuportável é que os
homens da religião se dediquem, muitas vezes, à mesma tarefa, a ponto de, da
maneira como as coisas estão sendo apresentadas, tornar-se cada dia mais in­
compreensível o fato de que, efetivamente, a ética funcione a reboque de interes­
ses extraéticos. Por exemplo, os privilégios (econômicos, legais, sociais, educa­
tivos. ..) que as religiões pretendem obter à força do Estado são éticos ou não?
Introdução

Podem ser justificados do ponto de vista de uma ética que apela para Cristo ou
nada têm a ver com isso? Sem ir mais longe, na Espanha, os representantes da
Igreja afadigam-se em manter privilégios que inevitavelmente lesam a igual­
dade de direitos de todos os cidadãos, com o que também é lesadâ a imagem
pública da Igreja diante de grandes setores da opinião pública. Entretanto, é
significativo o fato de que, para justificar tais privilégios, aqueles que os bus­
cam e os defendem costumam lançar mão da filosofia, da história, do direito
internacional... Raramente apontam o exemplo de Jesus ou apelam para o
Evangelho. Não será porque não encontram no Evangelho justificação para
suas práticas? Realmente, não o sei. Porém, qualquer que seja o caso, é uma
pergunta que deve ser feita com honestidade e liberdade. Mais ainda, com a
mesma liberdade e a mesma honestidade, também é preciso perguntar-se por
que acontece, muitas vezes, que os delineamentos éticos que se impõem nos
ambientes eclesiásticos são precisamente os delineamentos que mais convêm à
direita política. Com o Evangelho nas mãos, justifica-se eticamente essa forma
de proceder e a orientação que, nesse sentido, foi dada à Igreja?
Ampliando mais o horizonte desta introdução, é preciso defrontar-se com
os problemas traçados pela orientação geral tomada pela ética nos últimos anos.
Resumindo ao máximo este complexo assunto, pode-se afirmar que o proces­
so de secularização da moral se acelerou até dissolver socialmente sua forma
religiosa: o próprio dever. Entramos, assim, no que se denominou “a época do
pós-dever” (G. Lipovetsky). Como afirma este mesmo autor, “nisto reside a ex­
cepcional novidade de nossa cultura ética”2. Nossa sociedade, longe de exaltar
as ordens superiores, as ordens do dever e da obrigação, torna-as ineficazes,
tira-lhes crédito e consistência, dissolve e desautoriza o valor da renúncia e do
sacrifício, dedicando-se a estimular os desejos imediatos, a felicidade intimista
e materialista, a pura diversão sem algo mais. Não parece exagerado afirmar
que nossas sociedades liquidaram os valores sacrificais, quer se trate de valores
ordenados à “outra vida” quer de valores com finalidades profanas. O que im­
porta às pessoas e as preocupa não é o dever, mas sim o bem-estar3.
Assim sendo, chegados a este ponto, atingimos â contribuição que, em
minha maneira de ver, este livro pode oferecer. Nele procura-se ajudar, a
quem o ler, a se dar conta de que a grande contribuição de Jesus e do cris­

2. El crepúsculo dei deber, 12.


3. Cf. op. cit., 12.
A écica de Cristo

tianismo primitivo esteve precisamente em superar a ética do “dever", para ir


indizivelmente mais longe, até a ética da “felicidade", a felicidade e o bem-estar
para todos e não somente para poucos privilegiados por um sistema criminal. Na
medida em que isso é verdade, já não estamos diante da ética da lei, porque,
se é certo que a lei produz a obrigação e gera o dever, o primeiro ponto defini-
q0 pelo modelo ético elaborado pelo cristianismo antigo consiste exatamente
na reínterpretação da lei a partir da vida, morte e ressurreição de Cristo4. E
essa reinterpretação da lei leva diretamente, como sabemos, à liberdade, que
é condido sine qua non, para que seja possível um verdadeiro amor. Com isso
nos situamos no próprio centro da ética de Cristo. As consequências que esse
delineamento encerra para nossa situação atual e nossos problemas de hoje,
eis aí a temática que pretende desenvolver o ensaio que aqui apresento.

4 E. FUCHS, LÉtíque chrãienne. Du Nouveau Testament aux déjíts contemporains, Genebra, Labor
et fides, 2003, 151.
1
Uma ética desconcertante

O processo de mudança

Vivemos em uma sociedade que está sempre em


processo de mudança. Uma mudança constante,
rápida, acelerada e profunda. Nossa sociedade está
mudando com uma velocidade que nos surpreende
a cada dia e com frequência nos desconcerta. E o
que chama mais atenção não é o fato de que a cada
dia nos inteiremos de novas descobertas e avanços
na ciência e na técnica, o mais desconcertante é
que nós mesmos estamos mudando. Afirmou-se,
com toda a razão, que “de todas as mudanças que
ocorrem no mundo, nenhuma supera em impor­
tância as que têm lugar em nossa vida privada”. E
isso quer dizer que “está em andamento uma revo­
lução mundial sobre como nós concebemos a nós
mesmos e como formamos laços e relações com os
outros”. Isso é certo até o ponto extremo em que
A ética de Cristo

“não podemos nos subtrair do torvelinho de mudanças que chegam até o


próprio coração de nossa vida em ocional”1.
Por outro lado, é importante saber que, se é certo que estas mudanças
estão ocorrendo em todo o mundo, nos países mais ricos e avançados as mu­
danças são produzidas com muito mais rapidez e, sobretudo, de uma forma
que alcançam níveis de profundidade que certamente não imaginamos. Esta é
a conclusão mais importante a que chegou o excelente estudo realizado pelo
professor Ronald Inglehart12, da Universidade de Michigan. Com uma parti­
cularidade que vale a pena salientar: dos 81 países analisados pelo estudo de
Inglehart, tem-se como resultado que a Espanha é o país que está vivendo a
mudança mais rápida e mais profunda de todo o mundo. Eis por que, com
tamanha frequência, levamos as mãos à cabeça pelas coisas que ouvimos e
vemos. As pessoas já não são como eram até há poucos anos. Trata-se de uma
mudança acelerada. Os jovens mudam mais rapidamente que os adultos. E
as crianças nos surpreendem todos os dias com coisas que antigamente não
se faziam ou não se perguntavam. O fato é que o que está mudando são as
crenças, os valores e as identidades. As pessoas já não acreditam naquilo
em que acreditavam antes. Nem se dá importância ao que antes se dava.
Definitivamente, somos diferentes. Ou seja, está emergindo um novo tipo de
homem, um novo tipo de pessoa.
Daí a enorme dificuldade com que as pessoas se deparam para conti­
nuar a agir de acordo com o modelo de bom comportamento antes assim
considerado. E os que mais enfrentam essa dificuldade, como é lógico, são
os pais ao educarem seus filhos, os educadores, ao ensinar como se devem
portar as crianças e os jovens, e os sacerdotes, quando pretendem doutrinar
os fiéis acerca do que se deve fazer ou do que se deve evitar. E o fato é que
aumenta a cada dia o número de pessoas que se sentem desoladas porque se
perdeu o senso de respeito que antes havia, as boas maneiras que nos foram
ensinadas por nossos antepassados e os costumes saudáveis que antigamente
regiam a boa conduta das pessoas mantenedoras da ordem.

1. A. G1DDENS, Un mundo desbocado. Los efectos de la globalización en nuestras vidas, Madri,


Taurus, 2 0 0 0 , 65.
2. R. INGLEHART, Human Values and Social Change: Fíndingsfrom the World Values Surveys, Ne-
therlands, E. J. Brill, 2 0 0 3 .
Uma ética desconcertante

Sendo esse o estado das coisas, a pergunta que muitos se fazem é esta:
Onde vai parar tudo isso? Não estamos nos precipitando por uma ladeira
que nos leva diretamente ao despenhadeiro, ao desastre, à desintegração da
sociedade em que vivemos?

O Evangelho e a mudança

A ética de Jesus foi uma ética de mudança. Com efeito, Jesus mudou muitas
coisas. Todavia, de tudo o que Jesus modificou, o que mais chama a atenção,
sem dúvida, é a mudança que introduziu nos valores que devem reger a vida
das pessoas e na conduta que têm de adotar aqueles que pretendem assumir
a forma de vida traçada pelo Evangelho.
As mudanças introduzidas por Jesus, mediante sua forma de entender
a ética, foram tão profundas que surpreenderam, desconcertaram e até es­
candalizaram muita gente. Nesse sentido, o que mais chama a atenção é o
fato de que Jesus desconcertou e escandalizou principalmente as pessoas
mais religiosas de seu tempo. Os pecadores, os publicanos, as prostitutas,
as mulheres de má fama, os excluídos da sociedade, toda essa espécie de
“chusm a” (com o dizem os “observantes”) estava encantada com Jesus e o
seguia entusiasmada. Isso quer dizer que aquelas pessoas infelizes se sen­
tiam bem com Jesus, sem dúvida, porque ele as compreendia, as acolhia,
nunca lhes jogava nada na cara, tratava-as com respeito e, por certo, aque­
las pessoas que, para os “respeitáveis”, eram uns desventurados, sempre
encontravam carinho em Jesus.
Lendo os evangelhos com atenção, percebe-se de imediato que Jesus
compreendeu que a religião então existente, em seu povo e em seu tempo,
não levava a lugar nenhum. E, menos ainda, a ética pregada por aquela reli­
gião. Era, certamente, uma religião solene, metódica, autoritária, com mui­
tos sacerdotes e levitas, com um templo imponente, que possuía centenas
de funcionários e normas para tudo e para todos. Porém, pelo visto, Jesus
compreendeu também rapidamente que, com tudo aquilo, não se conseguia
o que mais importa na vida, a saber: que todos sejamos pessoas melhores e
que todos vivamos mais felizes. Definitivamente, uma religião e uma ética que
não servem para isso servem para quê? Daí a correlação entre o Evangelho e
a mudança. Justamente do que necessitamos agora. i
A ética de Cristo

Mudança e desconcerto

Sem dúvida Jesus provocou de imediato uma forte impressão de mudan­


ça, porque com ele surgiu, em seu tempo, naquela sociedade e naquela
cultura, algo completamente novo. O Evangelho de Marcos afirma-o com
toda a clareza e desde o primeiro momento. Tão logo Jesus se havia posto
a pregar, sucedeu que em um sábado, “tendo entrado na sinagoga, Jesus
ensinava” (Mc 1,21). E, em continuação, diz o Evangelho: “Eles ficavam
impressionados com o seu ensinamento; pois ensinava como quem tem au­
toridade e não como os escribas” (Mc 1,22). Vale dizer, as pessoas notaram
imediatamente a diferença entre Jesus e os teólogos de então. A diferença
estava na “autoridade”, qualidade que, pelo visto, não existia naqueles teó­
logos. Sucedia que os doutos dedicavam-se à repetição do que lhes haviam
ensinado. Não possuíam liberdade. Portanto, nem criatividade. Jesus, não
obstante, foi um homem livre e criativo, que dizia não o que lhe haviam
ensinado, mas o que o povo necessitava ouvir. Esta é, sem dúvida, a razão
pela qual aquelas pessoas tinham a impressão de que estavam ouvindo
alguém que falava “com autoridade”.
Uma coisa é a “autoridade” e outra coisa é a “potestade”. Max Weber
soube distinguir sabiamente ambas as coisas. Potestade é a capacidade de
obrigar e submeter, ao passo que autoridade é a capacidade de convencer e
persuadir. Os doutos obrigavam e submetiam ou, pelo menos, isso é o que
pretendiam fazer. Jesus, ao contrário, convencia e persuadia. Por isso, Jesus
não ensinava com potestade, mas sim com autoridade. E foi isso que causou
pasmo nas pessoas. E tamanho foi o assombro que chegou ao desconcerto. O
relato de Marcos declara-o expressamente: “Todos ficaram tão espantados que
se perguntavam uns aos outros: ‘Que é isto? Eis um ensinamento novo, cheio
de autoridade!”’ (Mc 1,27). Que desconcerto! Um pregador que não diz o que
todos dizem e que não repete o que sempre se disse.
De fato, as mudanças, quando vão ao fundo das coisas, provocam des­
concerto. Nesse sentido, pode-se dizer que Jesus desconcertou todo o
mundo. Desconcertou as pessoas do povo e sua própria família, que não
conseguia explicar nem o que dizia nem o que fazia (Mc 6 ,1 -6 ), a ponto
de pensarem que havia- perdido o juízo e era preciso detê-lo (Mc 3,21).
Uma indicação do evangelho de Marcos, que não pretende apresentar Jesus
como um demente, mas indicar a incompreensão das pessoas e, concreta­
Uma ética desconcertante

mente, de sua própria família3. Todavia, o que mais chama a atenção é o


fato de que Jesus deixou desconcertado inclusive seu próprio precursor,
João Batista, a respeito do qual afirmou que “dentre os que nasceram de
mulher, não surgiu ninguém maior” (Mt 1 1 ,2 -1 8 ; Lc 7 ,1 8 -3 5 ). Porque João
esperava e acreditava ser necessário outro modelo de mudança naquele
povo e naquela sociedade. Um tipo de mudança que não ocorreu nem na
pessoa, nem no ensinamento, nem na conduta de Jesus. João Batista queria
uma mudança baseada no modelo de “ameaça” (Mt 3 ,7 -1 0 ; Lc 3 ,7 -9 ). Não
obstante, Jesus constatou que o que muda a pessoa é a mudança baseada
no modelo de “acolhida”, exatamente como disse o próprio Jesus aos m en­
sageiros enviados por João para perguntar a Jesus se era ele o que teria de
vir ou se haveriam de esperar outro (Mt l l , 2 - 5 ) 4. Por essa razão, Jesus não
ameaçou ninguém mais do que os que se empenhavam em ameaçar. Aos
demais, aos pecadores, aos publicanos, aos fracos, às mulheres de má vida,
aos excluídos da sociedade, a todas essas pessoas, dedicou-se a acolhê-las,
a sanar as feridas que nelas a vida ia deixando, a devolver-lhes a dignidade
perdida e a dar-lhes vida, alegria e esperança. Pois bem, isso era tão absolu­
tamente novo na história das idéias e das práticas religiosas que o próprio
Jesus apresentou esse projeto como o fim de uma etapa, na história da hu­
manidade, e o começo de outra (Lc 16,16). Como se disse muito bem, a fi­
gura de João e o tempo de seu ministério marcam um período de transição:
acaba o “tempo de Israel” e é inaugurada a nova etapa, o “tempo de Jesus”5.
Isso significa que, com o ameaçador João Batista, encerrou-se uma etapa na
história das idéias religiosas. E com Jesus teve início outra, tão desconcer­
tante e tão nova, que logo a seguir, com o passar do tempo, vieram os que
se encarregaram de voltar à etapa anterior, porque, pelo visto, o Evangelho
se tornava para eles (e continua sendo) insuportável. Trata-se dos “profetas
de desgraças”, dos quais sabiamente falou o papa João XXIII, justamente no
dia em que inaugurava o concilio Vaticano II.

3. J. GNILKA, El evangelio según san Marcos, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 6 , 169.


4. João, sem dúvida, ficou desconcertado diante do que se dizia de Jesus. Se o desconcerto o
levou a duvidar do messianismo de Jesus, ou melhor, a afirmar-se em tal convicção, é algo dis­
cutível. Cf. U. LUZ, El evangelio según san Mateo, II, Salamanca, Sígueme, 2 0 0 1 , 2 2 9 .
5. J. A. FITZMYER, El evangelio según Lucas, III, Madri, Cristiandad, '1987, 730.
A ética de Cristo

O enterro e as núpcias

A mudança que Jesus trouxe a esta terra, à nossa maneira de entender e praticar
a religião e a ética nesta vida, é tão forte que o próprio Jesus a comparou com as
duas coisas mais opostas que existem no mundo: a morte e a vida. Ou, dito com
mais propriedade, Jesus comparou todo esse assunto com os símbolos da morte
e da vida: o enterro e as núpcias. Porque nisso, nada menos que nisso, está a di­
ferença entre João Batista e Jesus. O relato encontra-se no evangelho de Mateus,
quando compara João Batista com Jesus, utilizando a pequena e singela história
de dois grupos de crianças que brincam na praça de um povoado. Um dos gru­
pos brincava representando um enterro, cantando lamentações, ao passo que o
outro brincava de representar umas núpcias, tocando uma flauta (Mt 11,16-17).
E Jesus explica o que quer dizer isto: “De fato, veio João; não come nem bebe, e
dizem: ‘Ele perdeu o juízo’. Veio o Filho do Homem, ele come e bebe, e dizem:
‘Eis um glutão e um beberrão, amigo dos coletores de impostos e dos pecado­
res!’” (Mt 11,18-19). Jesus compara João Batista com um enterro, enquanto com­
para a si mesmo com um casamento. João não comia nem bebia, ao passo que
Jesus fazia essas coisas até o extremo de haver quem o tomasse por um comilão e
um beberrão. João não desfrutava da vida, de sorte que sua vida era morte. Jesus,
ao contrário, desfrutava da vida, a ponto de ser tido por um vicioso.
A ética de Jesus é a ética da vida, do prazer e do desfrute da vida. Jesus não
foi um asceta do deserto. Nem foi um penitente que castigava seu corpo, como
o fazia o Batista. Jesus acreditava na vida. E queria (e quer) que todos vivamos
e gozemos da vida. O que acontece é que todo o mundo quer desfrutar, porém
desfrutar ele próprio, ele, acima de tudo. E a muitos, pouco importa que os
demais passem bem ou mal. A ética de Jesus é a ética do prazer de viver para
todos, do prazer compartilhado por todos, sem excluir ninguém. E isso é o que
mais custa assumir e aceitar como projeto de vida, porque a ascética mais dura
não é a da renúncia, mas sim a da doação. Nós, cristãos, vivemos durante vinte
séculos a ascética da renúncia. Está amanhecendo o dia luminoso da doação.

A mudança desconcertante

Hoje, estamos vivendo uma mudança desconcertante, porque toda mu­


dança desacomoda e possivelmente também desconcerta. Todavia, o descon­
Uma ética desconcertante

certo provém, acima de tudo, das mudanças que modificam nossas crenças e
nossos valores. É isso o que está ocorrendo. E isso trouxe como consequência,
entre outras coisas, que as duas grandes instituições transmissoras de crenças
e valores, a religião e a família, não só se veem submetidas a uma profunda
crise de deterioração, mas também (precisamente por isso) perderam capa­
cidade para transmitir as crenças e os valores que, durante séculos, deram
sentido à vida das pessoas em nossa cultura. Como se disse, com toda a razão,
“a família e a religião, enquanto instituições primordiais de um sistema de or­
ganização social baseado nelas, veem-se profundamente afetadas pela emer­
gência de outro sistema, que promove o desenvolvimento de organizações
racionais desenhadas intencionalmente para cada tipo particular de função”6.
Isso é, provavelmente, o que mais deslocou a todos nós. Por isso nos assusta
a decomposição da família a que estamos assistindo. Basta pensar na violência
familiar que, com relativa frequência, chega até o assassinato. Assustam-nos,
igualmente, os comportamentos das religiões que, por vezes, desencadeiam
tanta violência, a ponto de chegar-se à imolação dos terroristas suicidas ou às
agressões que, por motivos religiosos, são feitas aos que não compartilham
determinadas crenças ou certas normas de conduta.
Segundo parece, o fundo do problema está em que antigamente as pes­
soas buscavam o sentido da vida a partir das duas grandes instituições: a reli­
gião e a família Agora, no entanto, estamos vivendo uma mudança pela qual
a relação institucional está sendo substituída pela relação pessoal. O que dá
sentido à vida das pessoas não é a instituição a que cada qual está vinculada,
mas as pessoas com as quais se relaciona. Assim sendo, para buscar um senti­
do para a vida, o fator determinante é cada dia menos a relação institucional
(religiosa, fam iliar...). E é cada dia mais a relação baseada na “comunicação
emocional”, em que as recompensas derivadas dela são a base primordial para
que tal comunicação se mantenha7. Ao afirmar isso, estamos falando do que,
com razão, foi denominado “relação pura”, que se baseia na comunicação, de
tal forma que entender o ponto de vista da outra pessoa é o essencial8. Por isso,
o casamento está em crise e ter um parceiro está no auge. Porque o casamento

6. J. PÉREZ VILARINO, Formas complejas de vida religiosa, in J. PÉREZ VILARINO (ed.), Religíóny
soáedad en Espanay los Estados Unidos. Homenaje a Ríchard A. Schoenherr, Madri, CIS, 2 003, 128.
7. A. GIDDENS, op. cit., 74.
8. A. GIDDENS, op. cit., 75. '
A ética de Cristo

se baseia na relação institucional, enquanto ter um parceiro tem sua razão de


ser na relação pessoal, vale dizer, na comunicação emocional, ou, com outras
palavras, na relação pura. E, por isso mesmo, também a religião está em crise.
A pertença à religião foi vivida, pelo menos até agora, como pertença a uma
instituição, coisa que hoje muitas pessoas não aceitam e preferem viver suas
crenças religiosas “como livres”, à margem de toda instituição.
Pois bem, isso tudo é o que hoje desconcerta a todos nós. E é o mesmo
que desconcertou a sociedade da Galileia e da judeia no tempo de Jesus. O
fato desconcertante está em que Jesus foi muito crítico precisamente com as
duas mesmas instituições que hoje estão em crise. Jesus foi crítico com a re­
ligião. E teve, por isso, muitos conflitos com os dirigentes religiosos, a ponto
de, como bem sabemos, a religião acabar com Jesus e terminar condenando-o
à morte da pior maneira. É igualmente certo que Jesus adotou uma atitude
sumamente crítica com o modelo de família que configurava o tecido social
daquele tempo. Refiro-me à família “patriarcal”. Sabemos que Jesus disse:
“Não vos ponhais a imaginar que eu vim trazer a paz à terra; eu não vim tra­
zer a paz, e sim a espada. Sim, eu vim separar o homem do seu pai, afilha da
sua mãe, a nora da sua sogra; os inimigos de alguém serão as pessoas da própria
casa” (Mt 10,34-36). Esse texto é tão forte que houve quem se perguntasse
se Jesus não se contradisse por não ter podido “cumprir sua ética extrema”9.
Saliente-se que afirmações como esta se repetem nos evangelhos com força e
insistência (Lc 12,51-53; 14,26-27). Trata-se, definitivamente, do fato de que
a vinda de Jesus e sua mensagem sobre o Reino de Deus contrastam com os
laços familiares e sociais10. Por isso, quando um dia disseram a Jesus que sua
mãe e seus irmãos procuravam por ele, a resposta foi surpreendente: “‘Quem
são minha mãe e meus irmãos?’ E, percorrendo com o olhar os que estavam
sentados em círculo à sua volta, disse: ‘Eis minha mãe e meus irmãos. Todo
aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã, minha
mãe”’ (Mc 3,31-35; Mt 1 2,46-50; Lc 8 ,1 9 -2 1 ). É evidente, pois, que Jesus an­
tepôs as estruturas comunitárias (baseadas nas relações pessoais) às estruturas
de parentesco (baseadas nas relações institucionais).
No fundo, é mais fácil ser fiel a uma instituição do que a uma pessoa. A
relação com a instituição baseia-se no cumprimento das normas institucio­

9. J. KLAUSNER, Jesus von Nazareth, Jerusalén 1 9 5 2 , 548.


10. U. LUZ, El evangelio segim Mateo, II, 194.
Uma ética desconcertante

nais e nos deveres que elas trazem consigo. Todavia, a relação com a pessoa
baseia-se na relação pura, o que supõe e exige clareza, transparência, sinceri­
dade, doação de si mesmo, fidelidade sem condições e comunicação emocio­
nal, que se expressa em afeto, bondade e ternura.

Uma ética para a mudança

No momento que estamos vivendo, e tal como a vida se tomou, muitas pes­
soas estão pessimistas, sentem-se mal, porque são demasiadas as coisas que,
efetivamente, vão mal. E, como disse, as duas grandes instituições (religião e
família) que dão sentido para o comum dos mortais estão indo mal. Daí abun­
darem, quiçá em demasia, as críticas contra a religião e as censuras ou rejeições
à família Provavelmente, muitas das críticas contra a religião e contra a família
não carecem de razão, com o que estou afirmando que o criticável tem de ser
criticado. E o questionável tem de ser questionado. Por isso, a ética de que hoje
necessitamos tem de ser construída sobre a base de uma liberdade que seja ca­
paz de questionar e criticar tantas coisas que, se houvessem sido questionadas
e criticadas muito antes, talvez o mundo não estivesse como está. Pior que a
maldade é a indiferença, porque a “maldade” atormenta as consciências, en­
quanto a “indiferença” deixa a pessoa tranquila e pensando que a dor do mun­
do, principalmente a dor dos mais infelizes, não depende dela, nem será ela a
remediá-las. A ética da mudança tem que ser, portanto, uma ética crítica. E isso
antes de mais nada. Por isso, a ética de Jesus foi enormemente crítica quanto a
muitas coisas que funcionavam mal em seu povo e em seu tempo.
Mas não basta criticar. Criticar é censurar, denunciar, rechaçar, e só com
isso não vamos a lugar nenhum. Além de criticar, é preciso construir. Se des­
montarmos as instituições que dão sentido, e não fizermos mais do que isso,
ficaremos com o nada. A partir do nada, porém, só é possível o vazio, e não
a mudança. Jesus criticou o criticável. E, no lugar do que criticava, pôs outra
coisa, a saber, ofereceu os grandes valores do Evangelho.
É inevitável, é bom, é, inclusive, necessário o desconcerto em que vi­
vemos, porque somente assim será possível sermos sacudidos para despertar
desta espécie de torpor que é a indiferença. E assim poderemos nos somar às
muitas testemunhas atuais da mudança que anuncia um futuro melhor e um
mundo diferente. Porém, contanto que, ao mesmo tempo em que desmonta­
A ética de Cristo

mos, nos ponhamos a construir. Não se trata de nos tomarmos inventores de


improviso, que extraem receitas não se sabe de onde, receitas que depois não
servem para nada. Trata-se, antes, de somar-se ao clamor de milhões de seres
humanos que esperam, necessitam e buscam respeito, tolerância, humanidade,
sobretudo humanidade, de maneira que se torne insuportável para todos nós a
dor das vítimas, a humilhação dos que andam pela vida sem ramo e sem espe­
rança. Trata-se, definitivamente, de ser sensível ao que todos nós mais aspira­
mos: justiça, paz, esperança e a alegria de quem pode desfrutar de tudo o que é
belo, digno e formoso que Deus (segundo nossas crenças) pôs nesta terra.
2
Á humanidade de Deus

Uma ética que se fundamenta em Deus

Em seu excelente estudo sobre Habermas como filó­


sofo da religião, Juan A. Estrada analisa com preci­
são os limites que o próprio Habermas encontra na
filosofia, quando se trata de fundamentar uma ética
bem argumentada. Daí nossa insatisfação pelos li­
mites da razão, que deixa sempre um espaço aberto
à transcendência indemonstrável1. Trata-se de com­
preender que as experiências que nós, humanos,
temos neste mundo foram “até agora articuladas
adequadamente somente na linguagem religiosa”12.

1. JUAN A. ESTRADA, Por una ética sín teologia. Habermas como


filósofo de la relígión, Madri, Trotta, 2 0 0 4 , 2 1 9 .
2. J. HABERMAS, U n diálogo sobre lo divino y lo hum ano, in
Israel o Atenas. Ensayos sobre religíôn, teologia y racionalidad, Ma­
dri, Trotta, 2 0 0 1 , 2 0 3 .
A ética de Cristo

Habermas não vai além desta afirmação, o que é um exemplo (mais um, entre
tantos) da dificuldade que muitos experimentam na hora de fundamentar
uma ética a partir da religião ou, mais exatamente, a partir da teologia.
E tal dificuldade é compreensível, porque, para começar, há o fato in­
questionável de muitas pessoas de boa vontade, sem necessidade de lançar
mão de religião alguma, com portarem -se como pessoas idôneas e, certa­
mente, darem exemplo de integridade e honradez a quase todos os crentes
do mundo inteiro. Ademais, basta folhear qualquer bom manual de ética
fundamental para dar-se conta de que, efetivamente, existem sérias razões
para compreender que haja pessoas persuadidas de que se pode fundamen­
tar uma ética sem ter que recorrer a nenhum a crença religiosa. Mais ainda,
como acerta damente se afirmou, “a partir do Iluminismo, os modernos ti­
veram a ambição de assentar as bases de uma moral independente dos dog­
mas religiosos, que não recorre a nenhum a revelação, libertada dos medos
e recompensas do além: ofensiva antirreligiosa que estabeleceu a primeira
onda da ética moderna laica”h
Por certo, não é minha intenção analisar aqui a problemática que se
estabelece a partir do que acabo de apontar. O que quero deixar bem claro é
que a ética de Jesus foi, em todos os momentos, uma ética que se sustentava
; na fé em Deus e que, portanto, só se pode explicar com base em tal crença.
O problema suscitado para muitas pessoas quando se trata deste assunto é o
fato de que o Deus que lhes ensinaram é algo tão estranho e até tão difícil de
aceitar que, em lugar dele, preferem buscar outro sentido e outra orientação
para suas vidas, à margem de toda religião e de toda crença sobrenatural. Por
essa razão, se é que queremos compreender a fundo a ética de Jesus, a pri-
; meira coisa a ser feita é repensar a ideia que temos de Deus. E analisar a fundo
se esse nosso Deus coincide ou não com o Deus que Jesus anunciou. Aqui
está o primeiro problema que se delineia quando se trata de analisar a ética
de Cristo. Somente assim é possível entender a ética que ele nos deixou como
projeto de vida. Mais ainda, não parece arriscado garantir que, se a moderni­
dade (a partir do Iluminismo) abandonou qualquer delineamento ético que
tivesse como ponto de partida a ideia de Deus, isso ocorreu porque o “Deus”
que as pessoas tinham em mente naqueles tempos era um “Deus” tão abso­
lutamente insuportável que o que a cultura fez foi libertar-se de semelhante3

3. G. LIPOVETSKY, El crepúsculo dei deber. La ética indolora de los nuevos tiempos democráticos, 11.
A humanidade de Deus

carga. E isso se fez porque o que as pessoas queriam era simplesmente poder
viver sem medo, sem angústia, com paz e liberdade4.

Um Deus diferente

Quando, há anos, li o livro de Ch. Duquoc intitulado Deus diferente, não con­
segui compreender a profundidade do que se afirma ali. Com o passar do
tempo e a força das adversidades com que a vida atinge a nós todos, eu me
dei conta de que a maior parte de nossos problemas de fé e religião tem suas
raízes em uma ideia de Deus que, por pouco que se pense nela, torna-se difí­
cil de aceitar e, para muitas pessoas, é até possível que se torne insuportável,
porque Deus é relacionado com quase todas as desgraças que acontecem no
mundo, e é posto como censor e juiz de muitas e muitas coisas que nos pro­
porcionam felicidade e nos fazem desfrutar da vida. Compreende-se como,
com um Deus idealizado nesses moldes, haja cada dia menos pessoas que o
aguentem. E muitos dos que o aguentam, carregam-no como um fardo pe­
sado que é suportado por razões obscuras que ninguém consegue explicar.
Daí, em boa parte, os muitos problemas de caráter religioso suscitados com
tanta frequência aos crentes.
A questão está em que, desde crianças, nos ensinaram como coisa conhe­
cida o que, na realidade, não se pode conhecer. O evangelho de João nos diz
que “ninguém jamais viu a Deus” Qo 1,18). Uma frase vulgar e sabida, se pas­
sarmos por ela como gato sobre brasas. Uma vez que, por pouco que se pense
nesse texto evangélico, logo se compreende que, na realidade, o que o texto
de João quer dizer é que Deus não está a nosso alcance e que, portanto, não
podemos conhecê-lo tal como é. Por isso é o Transcendente, vale dizer, o que
está mais além de nossa capacidade de compreender, seja ele quem for.
O que acontece é que a curiosidade humana e, acima de tudo, a presun­
ção e até a petulância de alguns homens pretendeu saber o que não se pode
saber. Mais ainda, a partir dessa presunção, foi-nos ensinado que Deus é como
o pensaram os filósofos antigos. E como o sentiram os homens religiosos de
tempos remotos. O fato é que o Deus que nos ensinaram na tradição cristã é

4. Esta é uma das conclusões mais claras que se deduzem do volumoso estudo de J. DELUMEAU,
Le péché et la peur. La culpabílisation en Occídent. XIII-XVIII siècles, Paris, Fayard, 1 983.
A ética de Cristo

uma mescla de três representações distintas da divindade: o Yahvé da tradição


judaica, o Absoluto (Infinito, Onipotente e Eterno) da metafísica grega, e o
Pai do qual nos falou Jesus de Nazaré. Essas três representações fundiram-se
em um ser impossível que, em vez de resolver nossas dúvidas e dificuldades,
frequentemente as cria. Porque não conseguimos conciliar o irreconciliável,
já que o “Deus dos exércitos”, nacionalista, justiceiro e castigador, de quem se
fala em algumas das tradições do Antigo Testamento, não se pode harmonizar
com o Pai de quem nos fala Jesus, o Pai que é bom para com todos, que “faz
nascer o seu sol sobre os maus e os bons, e cair a chuva sobre os justos e os
injustos” (Mt 5,45). Do mesmo modo que o Absoluto da Teodiceia, quando
se pensa a fundo, se nos torna impossível, já que sua infinita bondade não é
compatível com seu infinito poder, em um mundo em que o mal e a maldade
acampam com inteira liberdade, causando desgraças e sofrimentos que não
podemos nem poderemos nunca explicar.
Sem dúvida, Deus tem que ser diferente. Tem que ser de outra maneira,
porque nisto não vale lançar mão do “mistério”, para compor o que nós mes­
mos não apenas descompusemos, mas o tornamos mais incompreensível
e difícil de aceitar do que ele é de per se. Deus é, por certo, um profundo e
insondável Mistério. Porém, o que é preciso saber é onde pomos o “Mistério”.
Se “mistério” é o oculto, o inalcançável, aquilo que não podemos abarcar com
nossa limitada capacidade de entender, é evidente que Deus é Mistério. Po­
rém, em que e onde está esse Mistério? Também o Deus que nos foi revelado
em Jesus é profundamente misterioso e desconcertante. Por que e como?

Deus encarnado

Quando nós, cristãos, falamos do mistério da encarnação, referimo-nos a


um profundo mistério que situamos no tratado teológico de Cristo, a cristo-
logia. E a um mistério que também é central no tratado teológico de Maria,
a mariologia. Porém, poucas vezes, talvez nunca, chegamos a pensar que,
antes de tudo, o mistério da encarnação é central, principalmente no tratado
de Deus e para o conhecimento de Deus. A partir desse mistério insondável,
Deus começa a ser diferente para nós, porque, na encarnação, Deus se funde
e se confunde com o humano, a ponto de já não ser possível nem entender,
nem ter acesso a Deus prescindindo do humano e, menos ainda, entrando
A humanidade de Deus

em conflito com o humano, com tudo o que é verdadeiramente humano e,


portanto, com tudo o que nos torna felizes, a nós, humanos, com tudo o que
nos realiza, nos aperfeiçoa e nos faz gozar e desfrutar da vida humana em
toda a sua amplitude e formosura. ?
Portanto, quando falamos do mistério da encarnação, não nos referimos
a um Deus que já era conhecido de nós desde antes e a respeito do qual já
sabíamos tudo. De tal modo que o que se realizou nesse mistério se reduz ao
fato de que um ser humano, o filho de Maria, Jesus, tenha sido divinizado,
quer dizer, chegado a ser de condição divina, ou seja, Deus, o Deus que nós
já sabíamos quem é e como é. Assim, segundo parece, é como muitas pessoas
imaginam que deva ser explicado o mistério da encarnação.
Ocorre, porém, que essa explicação esbarra numa dificuldade irremediá­
vel. Recordei anteriormente o texto do evangelho de João no qual se diz que
“ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1,18). Ou seja, Deus não está a nosso alcance.
Por isso, o texto acrescenta: “Deus Filho único, que está no seio do Pai, no-lo re­
velou”. Com isto, o evangelho quer nos dizer que o Deus que nós não podíamos
conhecer foi-nos dado a conhecer em Jesus, o “Filho único do Pai”. Em outras
palavras, Jesus é a revelação de Deus. Aquilo que nós não podíamos conhecer
nem alcançar nos foi revelado em um ser humano, no homem Jesus de .Nazaré.
É o mesmo que, com outras palavras, nos é dito no hino solene da carta aos co-
lossenses, na qual se afirma que Cristo é a “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15).
O fim mesmo da “imagem” é representar, dar a conhecer, revelar, pois isso, exa­
tamente isso, é o que se realizou na pessoa, na vida e nas palavras de Jesus.
Quero com isso dizer que a teologia se equivocou quando tomou como
ponto de partida uma ideia de Deus deduzida da filosofia. Essa ideia foi logo
aplicada a Jesus. E assim chegamos a pensar que sabíamos quem é Jesus, o que
significa que seria a filosofia a doutrina que nos daria a conhecer o conteúdo
mais profundo da teologia. Ou seja, seria Deus (o Deus da filosofia) quem nos
dá a conhecer Jesus. Ocorre, todavia, que é exatamente o inverso. É Jesus, o
homem Jesus de Nazaré, quem nos dá a conhecer Deus. Portanto, quando
afirmamos que Jesus é Deus, ou quando nos perguntamos se Jesus é Deus, no
fundo, o que estamos fazendo é partir da convicção de que nós já sabemos
quem e como é Deus. E, uma vez admitida essa hipótese, queremos saber se
isso, que já sabemos sobre Deus, se realiza em Jesus. Entretanto, quando pro­
cedemos dessa maneira, não percebemos que o que realmente não sabemos diz
respeito a Deus. E não levamos em conta que quem nos explica, o que se refere
A ética de Cristo

a Deus é Jesus Portanto, o correto seria dizer, de um modo melhor, que Deus
é Jesus Porque em toda oração predicativa, o desconhecido é o sujeito, de tal
forma que a função do predicado é dar a conhecer o sujeito e explicar o sujei­
to Exatamente a função e o papel que Jesus desempenha: revelar-nos Deus e
dizer como é esse Deus em quem cremos e a quem buscamos. Aí está o sentido
profundo da afirmação de Jesus: “Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho, e
aquele a quem o Filho quiser revelá-lo” (Mt 11,27). Somente Jesus nos pode
dar a conhecer o Pai-Deus. Ou, dito de maneira mais taxativa: somente em Jesus
conhecemos a Deus. Esta é a razão pela qual o próprio Jesus disse ao apóstolo
Filipe- “Aquele que me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Ver a Jesus é ver a Deus.
Por isso pode-se e deve-se dizer que em Jesus se concretizou o grande
acontecimento que marcou definitivamente a história das tradições religiosas da
humanidade No homem Jesus, o divino fundiu-se com o humano, de tal modo
que a partir de Cristo, ficou demonstrado que Deus é diferente do que se su­
põe Porque o distintivo mais profundo de Deus não é sua divindade (que nem
sabemos o que é nem podemos sabê-lo), mas sim sua humanidade. Sem dúvi­
da nisso está radicado o mistério profundo de Deus que, sem deixar de ser o
Transcendente é a realização mais plena e mais profunda da humanidade.

Deus se fez debilidade

No entanto ainda não dissemos o mais surpreendente. O mistério de Deus


em Cristo chama-se o mistério da “encarnação” porque, segundo o evangelho
de João “o Verbo”, que “é Deus” Qo 1,1), se fez “carne” (Jo 1,14). O que vem
a ser isso? A “carne”, segundo os escritos do Novo Testamento, é a parte mais
débil de nossa pobre condição de seres mortais. Por essa razão, Jesus pôde
dizer um dia' “O espírito está cheio de ardor, mas a carne é fraca” (Mt 26,41).
Daí se deduz que, se é certo, efetivamente, que “Deus se fez carne”, o que na
realidade ocorreu é que Deus se fez debilidade. Não considerou ser o bastante
o fato de fazer-se humano, simplesmente humano, mas chegou até o ponto
mais fraco da condição humana. O apóstolo São Paulo tem razão quando fala
da “loucura de Deus” e da “fraqueza de Deus” (IC or 1,25). Loucura e fraqueza
que se concretizaram exatamente na ignominiosa morte de Jesus crucificado.
São Paulo sabia muito bem por que esta maneira de falar parece “loucura”
e soa a “escândalo” (ICor 1,23). De fato, há muitas pessoas que não suportam
A humanidade de Deus

essa linguagem, porque essa maneira de falar de Deus é vista como uma falta
de respeito, sendo até possível que, para alguns, soe a blasfêmia. Por quê?
Sem dúvida, é muito forte entre os humanos a sedução pelo divino. E, em
contrapartida, para determinadas mentalidades, é muito forte também o des­
prezo pelo humano. E de fato é assim, por mais estranho que pareça. Nasceu das
religiões, em tempos remotos, essa maneira de pensar. E sabemos que os mitos
religiosos fomentaram essa mentalidade. No começo da Bíblia, no mito do
paraíso, afirma-se que a tentação satânica consistiu em seduzir com o desejo
de “ser como Deus” (Gn 3,5). Enquanto, totalmente ao contrário, o mistério da ;
encarnação nos diz que, para trazer salvação e esperança ao mundo, a primeira
coisa que Deus viu que tinha de fazer era “humanizar-se”, fazer-se homem, de
maneira que “não considerou como presa a agarrar o ser igual a Deus. Mas des-
pojou-se, tomando a condição de servo, tomando-se semelhante aos homens”
(Fl 2,6-7). Nesta altura, com toda a certeza, não se pensou suficientemente na
mudança assombrosa que isso representa. Refiro-me ao que já apontei antes:
nossa maneira de entender Deus e de nos relacionar com Ele. O Deus que se
nos revela em Jesus não é o Deus temido e temível que aparece em numerosos
textos e tradições do Antigo Testamento. Nem é o Deus Absoluto e distante, a
divindade “zelosa e perturbadora”, na qual criam os gregos (E. R. Dodds).
O Deus que se nos revelou em Jesus pulverizou e aniquilou nossa deso­
rientada sedução pelo divino, por tudo o que é grande e poderoso, pela força e
pela grandeza, pelo domínio e pelo saber sem limites. Tenha-se em conta que
essa pretendida “sedução pelo divino” não é nem significa atração pela “vida
sobrenatural”, da qual falam os teólogos. Nem tampouco é a sedução por nos
parecermos com o comportamento entranhavelmente bom do Pai, tal como
Jesus o apresenta no Evangelho. A “sedução pelo divino”, da qual nós, mor­
tais, padecemos é a atração perversa por tudo o que nós atribuímos a Deus:
a atração pelo poder e pela glória, pelo domínio e pela grandeza, pelo êxito e
pelo triunfo, pelo saber, por ter tudo o que imaginamos ser próprio do divino.
Coisa que se manifesta em nós até na linguagem de todos os dias. Quando
obtemos triunfos e êxitos, garantimos que as coisas estão acontecendo “divi­
namente”. Quando alcançamos um posto importante ou dominamos os ou­
tros, dizemos que isso é “divino”. Assim fazemos uma “divindade” na medida
de nossos desejos mais inconfessáveis.
Transformamos o “divino” no cabide no qual penduramos esses nossos
instintos que normalmente se traduzem em dor e humilhação para aqueles
A ética de Cristo

que não podem dizer que a vida lhes corre “divinamente”. Por isso, até nos
parece exemplar o amor divino, a “caridade” ( agape ), enquanto a pessoa
decente, a pessoa que pode andar pela rua com a cabeça bem erguida toma
distância do amor humano, da atração e do carinho que brota espontanea­
mente entre as pessoas. Que dirá então quando se trata de um autêntico
“apaixonamento” (eros). A “caridade” é praticada com boa consciência e até
com ostentação. O “amor”, se é que se vive, se tem ou se pratica, é coisa
que as pessoas “de boa família” mantêm em segredo ou, inclusive, ocultam
para não prejudicar a própria imagem entre as pessoas “de bem ”. Afinal de
contas, amar é uma “fraqueza” humana. E existe um número excessivo de
pessoas que não suportam fraqueza alguma. O problema está em que, por
aí, começa nossa perdição. Refiro-me à perdição dos “puritanos” de sempre,
de todos nós que passamos a vida com a convicção (inconsciente) de que o
“meio principal da salvação está na pureza, e não na ju stiça” (E. R. Dodds).
Daí nos causar má impressão ver duas pessoas se beijando com paixão na
rua, ao mesmo tempo em que sentimos admiração pelos desavergonhados
que subiram até os altos postos e os pedestais que esta sociedade sobrecar­
regada de mentiras e cinismos oferece.

A religião fez-se fortaleza

O lado obscuro das religiões está em que, com frequência, procedem desu­
manamente para com a pessoa, principalmente determinadas pessoas que,
por qualquer motivo, estão mais predispostas a integrar em suas vidas o
conservadorismo religioso, o fundamentalismo religioso e é até possível (em
determinados casos) o fanatismo religioso. Isto é certo até tal ponto que a
crise do cristianismo, nos últimos tempos, se explica porque, em boa parte,
o movimento que nasceu com o Jesus histórico, e foi reforçado com o Cristo
da fé, desumanizou-se. Porque nem os homens religiosos em geral, nem
nós, cristãos, de forma concreta, cremos verdadeiramente e levamos a sério
a humanidade de Deus. Assim sendo, estamos diante de uma das coisas mais
decisivas e mais urgentes neste momento histórico que estamos vivendo. Se
o enorme potencial das religiões se pusesse a serviço da humanização, em
vez de servir para desumanizar as pessoas, certamente a vida seria diferente
e este mundo seria mais habitável.
 humanidade de Deus

O que acontece com as religiões, inclusive com o cristianismo, é que, en­


quanto continuarem crendo em “deuses” que, de uma maneira ou de outra,
entram em conflito com o humano de que somos todos portadores e que se
encontra gravado em nossa necessidade e em nosso desejo de ser felizes e de go­
zar da formosura que Deus pôs nesta vida e neste mundo, continuarão também
desumanizando muitos de seus adeptos. Deus nos fez assim. E é evidente que
Dais não pode entrar em contradição consigo mesmo. Qualquer um pode pensar
que, se Deus é realmente Deus, não pode suscitar em nós desejos tão fortes que
ele próprio, depois, se encarrega de nos obrigar a renunciar a eles. Se isso assim
fosse, de que “deus” estaríamos falando? De um sádico? De um tirano? De um
monstro? E que ninguém me venha lançando mão, às pressas, das teorias sobre
o pecado original. Primeiramente, porque hoje toda essa questão do pecado
original está sendo submetida a uma profunda revisão teológica para ver se, de
uma vez por todas, nos inteiramos acerca do que é e em que consiste. Em se­
gundo lugar, porque, se tivermos de renunciar a nós mesmos porque nós é que
temos a culpa de ser como somos, quem me explica a lógica de semelhante ar­
gumento? Como posso eu ser culpável por ser como minha mãe me deu à luz?
O fato é que a experiência nos ensina que muitos homens religiosos, à for­
ça de observâncias e renúncias, tomam-se duros de coração. Porque se trata de
observâncias e renúncias que apontam para o mesmo alvo, a saber, o coração. E
em vez de torná-lo bondoso, o endurecem, secam-no ou o tornam indiferente
ao que acontece na vida. É exatamente o que, segundo parece, sucedeu ao sa­
cerdote e ao levita da parábola do bom samaritano (Lc 10,30-35). Como eram
muito religiosos e muito observantes, passaram longe da dor e da morte que
com tanta frequência se nos apresenta no caminho da vida. Certamente tinha
de ser assim. E hoje continua sendo assim. Porque a partir do momento em
que Deus é infinitamente mais que o homem, Deus é anteposto a todo o huma­
no, de tal forma que, pela causa de Deus, pode-se chegar a matar ou a matar-
se, a sacrificar ou a sacrificar-se, sem que disso advenha felicidade e vida,
mas, absolutamente o contrário, sofrimento e morte. Atenção! Ao dizer isto,
“estamos tocando o fundo”. O fundo insondável de tanta barbárie como a que
hoje nos açoita, quer seja quer não, com nome de religião. Afinal de contas, se
ousamos pôr acima do humano qualquer crença, qualquer filosofia, qualquer
interesse político ou de outra ordem, já teremos nos introduzido no precipí­
cio que nos conduz direto à barbárie. Isso mesmo, uma barbárie disfarçada e
maquiada do aspecto mais sublime e santo que se possa imaginar.
A ética de Cristo
■]

Á ética da humanização

Está claro que, se o próprio Deus viu que para trazer salvação e vida a este
mundo teve de se humanizar, todo aquele que quiser trazer algo de luz e es­
perança a esta terra não tem outro caminho. Ou a ética é ética da humanízação
ou não é ética que mereça nossa atenção, nosso interesse e nosso respeito. Se
a questão for vista à luz trazida pelo cristianismo, o caminho de um compor­
tamento honrado e correto está claro e bem traçado.
O problema está em saber o que se deve considerar como humano e o
que se há de qualificar como desumano. Ou, em outras palavras, trata-se de
estabelecer (com a precisão que for possível) o que nos humaniza e o que nos
desumaniza. Isso não é fácil de se explicitar, porque, em boa parte, é a cultura,
cada cultura, que se encarrega de fixar os limites do humano e do desuma­
no. Não falamos de usos e costumes. Nem falamos de instituições religiosas,
políticas, culturais. Tudo isso, por muito importante que seja, estrutura-se e
organiza-se com critérios que são prévios: os critérios sub ministrados pela
cultura. E é neste ponto que está o problema. Há culturas nas quais se consi­
dera como “humano” que algumas pessoas tenham mais direitos que outras.
Ou que tenham mais dignidade que outras. E assim sucessivamente. Isso
equivale a dizer que existem culturas nas quais a igualdade de todos os seres
humanos não é um valor humano fundamental. Falo da igualdade em direi­
tos e deveres. E o que se diz acerca da igualdade, pode-se dizer de coisas mais
básicas ainda e, sobretudo, da própria vida.
Por essa razão, a proposta que se faz neste livro, em vista do que foi a
vida e o ensinamento de Jesus, é que a vida dos seres humanos implica neces­
sidades inteiramente primárias e básicas que são o critério determinante da ética
i delineada e oferecida por Jesus em seu Evangelho. A própria necessidade de
viver, a segurança da vida, a integridade da vida, a defesa da vida, a dignidade
de toda pessoa viva, a igualdade entre todos os humanos, o respeito que todos
merecemos, tudo isso é tão básico, tão primário, tão fundamental que, a partir
daí, poderemos começar a construir e definir uma ética que seja válida para
aqueles que, a partir da opção livre da fé, queiram organizar sua vida e sua
. convivência com os demais, qualquer que seja a cultura a que pertençam.
Em última instância, tudo isso é assim porque, de acordo com ojor o Deus
no qual se crê, assim será a ética a ser deduzida dessa crença. Se no século XVIII
as pessoas criam em um “Deus” tão insuportável, que de semelhante crença se
A humanidade de Deus
i

deduzia a moral do medo e do terror , é evidente que, enquanto não modificar­


mos nossa ideia de Deus, não poderemos organizar nossos comportamentos
de acordo com uma moral que se mostre razoável. Por outro lado, se alguém
pensar lentamente sobre esse assunto, rapidamente se dará conta-de que, a
esse propósito, temos todos uma tarefa urgente. Não vou rne ocupar em dis­
cutir aqui se é possível ou não organizar uma ética sem teologia e sem religião
(Habermas). O que me limito a perguntar é o seguinte: se outra pessoa me
ofende ou prejudica meus interesses, em virtude de que princípio teria eu de
ser bom para com essa pessoa e não lançar mão da vingança? Se em minha
intimidade mais secreta existe alguma forma de crença, que é o que dá sentido
à minha vida, seguramente terei um recurso a que me apegar e que poderá
mobilizar minhas decisões para acabar sendo bom para com quem foi mau
comigo. Entretanto, se eu não tiver crença alguma, definitiva e última, por
que teria eu de perdoar aquele que me ofendeu ou me prejudicou? Porém,
se não somos capazes de perdoar e de ser bons para com quem nos causou
dano, não terminaremos, então, convertendo nossa sociedade em uma selva,
na qual acabará se impondo a lei do mais forte?
O problema está em que, com bastante frequência, as crenças definiti­
vas e últimas se voltam contra nós e acabam destruindo as consciências e a
convivência, porque bem sabemos que tais crenças se erguem em princípios
absolutos que se antepõem ao bem e à própria vida dos seres humanos. A his­
tória está repleta de exemplos eloquentes nesse sentido. É por isso que neces­
sitamos, com tamanha urgência, ter muito clara a questão da humanização de
Deus. Uma ética construída a partir do Deus humanizado e vivida de acordo
com esse Deus é a única ética que hoje pode ser aceita e que pode humanizar este
mundo tão desumano.
3
“Jesus veio para a Galileia”
(Mc 1,14)

A primeira decisão de Jesus

O evangelho de Marcos diz que “depois que Joãó


(Batista) fora entregue, Jesus veio para a Galileia”
(Mc 1,14). Foi a primeira decisão tomada por Jesus
quando começou a pôr em prática a tarefa ou, me­
lhor dizendo, a missão que ele acreditava que tinha
de realizar neste mundo. Uma decisão que foi es­
sencial em sua vida, porque, segundo os três evan­
gelhos sinópticos, Jesus permaneceu na Galileia até
pouco antes de sua morte. Quer dizer, Jesus viu
claramente que o melhor lugar em que ele podia
e devia comunicar sua mensagem era precisamente
a Galileia. Assim sendo, é evidente que o lugar de
onde alguém fala condiciona o que essa pessoa diz.
Não é a mesma coisa falar de uma cátedra universi­
tária importante que da janela de uma casa perdida
em um povoado perdido qualquer.
A ética de Cristo

Isso, obviamente, significa que Jesus adotou critérios pouco comuns no


que se refere à transmissão de sua mensagem. Quando um professor, um ora­
dor, um comunicador quer difundir uma doutrina ou fazer propaganda de um
produto, a primeira coisa que escolhe cuidadosamente é onde vai falar ou pu­
blicar sua mensagem. Disso depende decisivamente a difusão do que pretende
dizer. Bem sabemos que atualmente isso é muito bem observado. Pagam-se até
quantias enormes de dinheiro para ter um bom meio de difusão, uma boa plata­
forma da qual se possa obter a melhor ressonância possível. Os profissionais da
propaganda e da publicidade sabem muito sobre isso. E assim chegou-se, como
é bem sabido, às técnicas mais refinadas e sofisticadas que se possa imaginar.
Ora, está visto que Jesus tinha critérios muito peculiares sobre esse as­
sunto capital na tarefa de qualquer orador ou pregador. O fato é que Jesus,
para realizar sua missão docente, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à
importante província da Judeia. Absolutamente o contrário. Logo após sua
decisão, Jesus dirigiu-se para uma região distante, habitada por humildes
camponeses e pescadores pobres, pessoas que, além disso, eram suspeitas,
como explicarei em seguida. Tudo isso significa, por ora, que a primeira deci­
são importante que Jesus tomou foi ir viver e desenvolver sua atividade, pre­
gar sua mensagem na região dos pobres e das pessoas que, naquele tempo,
eram consideradas uma população que carecia de influência, que não vivia
na abundância e que, ainda por cima, tinha mã fama. Nos dias de hoje, não
ocorreria a nenhum difusor de ensinamentos, teorias ou propagandas proce­
der desse modo. Também nisso, os critérios de Jesus iam por caminhos muito
diferentes dos que constituem nossos caminhos. Vamos ver, a seguir, o que
isso representava então e o que isso nos ensina hoje, precisamente, acerca do
que significa a peculiar e desconcertante ética de Cristo.

Para compreender com certa profundidade o que significou aquela decisão de


Jesus, a primeira condição é ter uma ideia, ao menos elementar, do que repre­
sentava naquele tempo a região da Galileia. Os “galileus” do tempo de Jesus não
gozavam de especial estima. Ao contrário, as pessoas daquela província tinham
má reputação. Diziam a Nicodemos seus colegas fariseus: “Serias também tu
da Galileia? Procura, e verás que da Galileia não surge profeta” (Jo 7,52). E no
“Jesus veio para a Galileia”

relato da Paixão, lançam' ao rosto de Pedro: “Tu também estavas com Jesus, o
galileu!” (Mt 2 6,69). Parece, pois, que, se chamassem a alguém de “galileu”,
não era precisamente um elogio. Certamente por isso, ao relatar o julgamento
político que se fez a Jesus, o evangelho de Lucas conta que “a esSas palavras
(‘Ele subleva o povo [...] desde a Galileia até aqui’), Pilatos perguntou se o
homem era galileu” (Lc 23,6). E, em consequência, o procurador romano ten­
tou livrar-se dele, enviando-o ao rei da Galileia, Herodes, que naqueles dias
se achava em Jerusalém. Mais tarde, precisamente no dia de Pentecostes, em
meio à confusão que se criou, motivada pelo ruído, pelo vento e pelas línguas,
o livro dos Atos diz que a multidão, sem dúvida algo perplexa por aquele
barulho, perguntava-se: “Todos esses que falam não são galileus?” (At 2,7). É
possível que se dissesse isso dos discípulos de Jesus em tom depreciativo. Em
qualquer caso, é certo que os galileus eram tão malvistos que a expressão “ga­
lileu estúpido” era, segundo parece, uma forma habitual de insultar alguém,
como consta nos escritos dos rabinos daquele tempo1. Ademais, sabe-se que
os judeus riam dos galileus e faziam piadas de sua forma de falar12. E havia
aqueles que diziam que os galileus eram ignorantes impuros com os quais não
se devia manter relação alguma3. Tudo isso é certo a ponto de se haver tom a­
do famosa a queixa de Yojanán ben Aakkai, desesperado pelo fracasso de sua
missão na Galileia: “Galileia, Galileia, tu odeias a Torah!”4.
Evidencia-se, portanto, que Jesus, quando pensou onde podia pôr em
prática seu projeto e difundir sua mensagem, a primeira coisa que fez foi diri-
gir-se à região dos pobres, ao país das pessoas sem importância e, além disso,
uma província cujos habitantes não eram bem-vistos e, para muitos, eram
pessoas desprezíveis ou que davam margem ao riso e à piada fácil, inclusive,
possivelmente, às expressões mais grosseiras. Além do mais, não esqueçamos
que Jesus era da Galileia, exatamente de Nazaré. De fato, Jesus era chamado
“o galileu” (Mt 2 6 ,6 9 ; cf. Mt 2 1,11). Um apelativo que continha certamente
uma carga de evidente desprezo. Mais ainda, sabemos que, segundo parece, o
primeiro nome que, provavelmente, se deu aos cristãos foi a “seita dos naza­

1. Talmud de Babilônia, Erabín, 53b. Citado por M. PÉREZ FERNÁNDEZ, Jesús de Galilea, in
M. SOTOMAYOR e J. FERNÁNDEZ UBINA, Historia dei Cristianismo, I, El Mundo Antiguo, Madri,
Trotta, 2 0 0 3 , 96.
2. Talmud de Babilônia, Meguilla 24b. Cf. M. PÉREZ FERNÁNDEZ, op. cit.., 96.
3. Talmud de Babilônia, Pesahim 49b . Cf. M. PÉREZ FERNÁNDEZ, op. cit., 96.
4. Talmud de Jerusalén, Sabbat 15d. Cf. M. PÉREZ FERNÁNDEZ, op. eit., 96.
A ética de Cristo

renos”, uma expressão que, tal como apresentada por Lucas nos Atos dos
Apóstolos (24,5), tem uma carga de caráter político, inclusive com matizes de
cunho subversivo5, ao menos no que se referia ao comportamento de Paulo. E
evidente, pois, que Jesus não cuidou de sua imagem pública. Nem se afanou
por conquistar para si os notáveis ou as classes influentes da sociedade de seu
povo e de seu tempo. Isso leva a pensar que aquele “nazareno”, da desprezada
Galileia, tinha alguns critérios que não se ajustavam com o que normalmente
pensamos quando se trata de organizar e pôr em andamento uma obra, uma
instituição ou simplesmente uma campanha informativa que pretende influir
na opinião pública. Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comu­
nicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou para isso nem
as plataformas de maior esplendor, nem os postos de privilégio, nem o favor
dos mais influentes, nem, por certo, os que detinham o poder e o dinheiro.
Decididamente, Jesus adotava alguns critérios apostólicos ou pastorais que,
em questões muito fundamentais, não se ajustavam aos nossos.
Mais do que isso, há um detalhe que não pode passar despercebido.
O texto do evangelho de Marcos diz que Jesus foi para a Galileia quando foi
informado de que João Batista havia sido encarcerado (Mc 1,14). Com efeito,
João acabou sendo detido, lançado no cárcere e decapitado pela tirania de um
rei corrupto, Herodes (Mc 6 ,1 7 -2 9 par.). Como é lógico, Jesus tinha de saber
o que estava em jogo: o escândalo público do rei e a liberdade profética de
João, o que lhe custou a perda da liberdade e, posteriormente, a vida. Por­
tanto, quando Jesus tomou a decisão de ir pregar na Galileia, o que na rea­
lidade fez foi dirigir-se a um país governado por um tirano sem escrúpulos e
que, segundo parece, não estava disposto a admitir “denúncias proféticas” de
ninguém. Portanto, Jesus foi para a Galileia ciente de que estava se introdu­
zindo na boca do lobo. Daí, nada haver de estranho que o rei Herodes tivesse
seus receios (Mc 6 ,1 6 par.), que expressavam a convicção de que Jesus era
“o profeta” esperado pelo povo6, o que tornava mais perigosa sua estada na
Galileia. Herodes, portanto, tinha suas razões para abrigar o desejo de matar
Jesus (Lc 13,31). Não obstante, nada disso freou Jesus em seu projeto de ir

5. Cf. R. PESCH, Die Apostelgeschichte (Apg 1 3 -2 8 ), in EKK, V /2, Zürich-Kòln, Benzinger,


1 9 8 6 , 2 5 6 ; A.-WEISER, Die Apostelgeschichte. Kapitel 1 3 -2 8 , in Okumenischer Tãschenbuch-
Kommentar zum Neuen Testament, 5 /2 , Gütersloh, Echter, 1 9 8 5 , 628.
6. J. GNILKA, El evangelío según san Marcos, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 6 , 2 9 0 .
“Jesus veio para a Galileia”

em busca dos pobres, nem o fez duvidar ou tomar precauções, para falar com
“discrição” em semelhante situação. De fato, quando disseram a Jesus que
Herodes o procurava para matá-lo, sua resposta foi surpreendente e segura­
mente provocativa: “Ide dizer a essa raposa: Eis que eu expulso demônios e
realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia chego ao termo. Mas é neces­
sário que eu prossiga o meu caminho hoje, amanhã e no dia seguinte, pois
não é possível que um profeta pereça fora de Jerusalém” (Lc 13,32-33). Esse
dado é reconhecido como histórico pelos melhores comentaristas dos evan­
gelhos sinõpticos7. E é claro que qualificar Herodes como “raposa”, como se
fosse um “zé-ninguém”, era o mesmo que dizer ao rei: “Não tens poder algum
sobre mim, nem vais modificar minhas idéias ou meus projetos”. Jesus tinha
a clara convicção de que era um profeta. E que seu final era a morte. Isso,
porém, não seria decidido por um personagem sinistro como Herodes, muito
embora não faltem estudiosos com a opinião de que talvez essa ameaça do
rei tenha impelido Jesus a seguir seu caminho rumo à capital8. Seja como for,
esse detalhe é secundário. O ponto forte é a liberdade profética de Jesus.

Os princípios éticos de Jesus

Um critério importante para saber que princípios éticos orientaram a conduta


de Jesus é conhecer o lugar onde quis viver e exercer sua missão, as pessoas
com quem preferiu conviver e como se desenvolveu ante os poderes públicos
e os poderes fáticos daquele país e daquela sociedade. Como já disse, o lugar
de onde se fala é uma das coisas que mais influem naquilo que se quer trans­
mitir. Não há dúvida de que, de uma cátedra solene e prestigiosa, é coerente
transmitir uma mensagem em que se comunicam valores relacionados com
o poder, o prestígio, a categoria social, a importância e, em geral, todas essas
coisas que soem apetecer ao comum dos mortais e pelas quais tantas pessoas
se afanam, se apaixonam, lutam e até não duvidam em dominar e humilhar
a quem se fizer necessário, contanto que consigam tal posto, tal cargo, tal
situação privilegiada etc. etc. Assim sendo, pensando demoradamente em
tudo isso, muito rápido a pessoa se dará conta de que se torna simplesmente

7. J. A. FITZMYER, El evangelio según Lucas, III, 5 6 3 -5 6 4 .


8. J. A. FITZMYER, op. cit., 5 6 6 . '
A ética de Cristo

ridículo pôr-se a pregar os valores que mais se destacaram na vida de Jesus


falando de um púlpito solene e com a majestade sagrada com que, por vezes, se
apresenta a oratória eclesiástica. Como é possível que, de um lugar assim, um
indivíduo, revestido como de grande personagem, se ponha a falar de humil­
dade, pobreza e simplicidade, e as pessoas que a ele assistem, seus ouvintes,
não reajam com uma franca gargalhada?
Ao dizer essas coisas, o que quero salientar é que Jesus demonstrou, ao
longo de sua vida, que tinha uma convicção muito clara e muito firme. Jesus
estava convencido de que não pode haver dissociação, e menos ainda contra-
dição, entre o que se diz e o que se f a z . Essa convicção, levada fielmente à
prática, foi uma das chaves da ética de Cristo. Assim sendo, não resta dúvida
de que Jesus tinha ciência de que, para transmitir um projeto de vida que in­
cluía a humildade, a simplicidade, a humanidade para com os mais pobres e
a proximidade com os que sofrem, tudo isso pode ser ensinado unicamente se
for vivido pela própria pessoa. Somente quando aquilo que se diz é explicação
do que se vive, a palavra é eficaz e convincente. Se assim não for, o pregador
não passa de mero charlatão ou, no máximo, um personagem de teatro, do
grande teatro do mundo. A ética não se ensina só com palavras. Ensina-se,
acima de tudo, com a vida.

Sociologia e hermenêutica

Se Jesus viveu em um lugar humilde e pobre, e se, além disso, conviveu com
gente humilde e pobre e, consequentemente, seus amigos e acompanhantes
foram pessoas de condição ínfima, inclusive indivíduos que não eram preci­
samente sujeitos exemplares, tudo isso não pôde acontecer por casualidade.
Nem cabe afirmar que Jesus não mediu bem as consequências da Ada pouco
“edificante” de tais indivíduos, como diria hoje uma pessoa “de ordem” ou
“de boa família”. Aqui tocamos um ponto delicado e, para alguns, a origem
do escândalo, com o qual todos nós, antes ou depois, acabamos nos chocan­
do, porque não existe maneira de digeri-lo. A que me refiro?
A decisão de Jesus ao ir para a Galileia a fim de lá viver com os últimos
é a constatação de um fato que está mais do que demonstrado em sociologia:
as mudanças profundas e duradouras na sociedade não vêm de cima, mas de baixo.
A sociedade não muda por decretos ditados pelas autoridades, mas porque as
“Jesus veio para a Galilesa”

pessoas evoluem em sua forma de pensar, em sua avaliação das coisas e das
pessoas, em suas convicções e crenças. E o que se afirma acerca da sociedade
em geral vale igualmente para as instituições políticas, culturais ou religiosas.
Logicamente, em cada situação histórica produzem-se circunstâncias diferen­
tes e atuam diferentes agentes de transformação. Porém, o que jamais varia
é o princípio que acabo de assinalar: a sociedade muda quando mudam os que
estão embaixo. À primeira vista, esse princípio pode parecer uma simplifica­
ção ingênua da realidade social. Não obstante, os fatos estão aí. E os fatos
demonstram tenazmente, e até obstinadamente, que só quando muda a men­
talidade do povo, das pessoas em geral, é que a sociedade muda. Para citar
um exemplo, a crise do “antigo regime”, deflagrada na Espanha entre 1808 e
1814, foi possível a partir daquela noite em que o Príncipe de Astúrias depen-
durou uma candeia em sua janela para dar o sinal de que começara uma alga-
ra, ou seja, uma investida contra seu pai, o que foi o começo de um processo
que havería de conduzir, através da monarquia constitucional, à república
democrática9. De um ponto de vista mais genérico, sabemos que ordinaria­
mente as revoluções modernas foram realizadas, de acordo com seus líderes,
em nome das forças populares, contra o despotismo, a corrupção e a ordem
política e social desgastada, e sob as bandeiras do progresso, da liberdade
e da justiça social10. Quer dizer, sejam quais forem os líderes da mudança,
essa mudança nunca chegou a ser efetuada sem a ocorrência de uma ampla
e profunda implicação popular. E, como diziam os antigos, “contra fatos não
há argumentos”. Isso posto, o fato é que Jesus foi o ponto de partida de uma
profunda mudança revolucionária na história da humanidade. Ocorre que
essa mudança só se torna efetiva na medida em que se realizar tal como se
iniciou, a partir de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida
com os últimos deste mundo.
Ao que foi dito, é preciso acrescentar outro critério que é igualmente
chave na ética de Jesus. Trata-se do critério hermenêutico segundo o qual
somente a partir de baixo é que se vê a realidade nua e crua da dor do mundo. Sem
dúvida, nesse critério, a relação entre “conhecimento” e “interesse” é deter­
minante. Embora J. Habermas, ao falar dessa questão, fizesse referência aos
“interesses que regem o conhecimento”, não resta dúvida de que a sintonia

9. RAYMOND CARR, Espana 1808-1939, Barcelona, Ariel, 1 9 7 0 , 90.


10. W LAQUEUR, Revolución, in Enciclopédia de las Ciências Socialès, v. 9, 338.
A ética de Cristo

autêntica com a dor e a desgraça é possível na medida em que se compartilha


com essa dor e essa desgraça. Por isso, quando ocorre uma desgraça coleti­
va, uma catástrofe, quem verdadeiramente fica inteirado do que ocorreu são
aqueles que viveram o fato ou os que vão compartilhar com as vítimas do que
lá se está sofrendo. É fácil teorizar sobre a fome e a miséria dos pobres. Po­
rém, a sintonia proveniente de sua situação desesperada é a experiência dos
que compartilham com eles a mesma desgraça.

A ética de Cristo é forte e dura, porque forte e dura é a resistência da ordem


estabelecida para modificar sua visão da vida e, sobretudo, os interesses que a
fazem perpetuar sua dominação criminal sobre os “ninguéns” e os “excluídos”
desta terra. As palavras do Evangelho falam-nos com frequência de pobres,
enfermos, pecadores, desamparados e miseráveis. É a espécie de pessoas que
povoa o planeta. As pessoas sem esperança e que, na sociedade moderna
do consumo e do bem-estar, desceram até o fundo da degradação, porque
já não têm nem capacidade para protestar e nem sequer gana de protestar.
Resta-lhes somente a humana e infeliz aspiração à sobrevivência. Seguramente,
nisso está radicado o triunfo mais esmagador e mais doloroso deste sistema
econômico-político que denominamos capitalismo neoliberal. O capitalismo
avançado, o dos maiores “lucros” econômicos, E o responsável pelo fato de
que exatamente agora, segundo o Banco Mundial, existam 1.800 milhões
de pobres, isto é, pessoas que vivem com menos de dois euros por dia, en­
quanto, segundo o The Financial Times (1 4 -1 1 -0 4 ), existem no mundo 600
“milionários”, ou seja, pessoas com um patrimônio de mais de 1.000 milhões
de dólares11. Com o que isso supõe em matéria de desigualdades, sofrimen­
tos, humilhações e morte prematura e injusta. Nesse contexto, resta-nos a
esperança e a convicção de que a ética de Jesus tem a força de produzir vida
nas mentes dos que têm boa vontade, a transformação que tanto necessita
este mundo desbocado que “organizamos” entre todos nós, de acordo com
nossos interesses mais turvos. Jesus começou com o êxito do arrasto sobre as
massas dos infelizes, porém acabou no desastre da cruz. É a eterna história1

11. L. DE SEBASTIÁN, Problemas de laglobalización, Barcelona, Cristianisme ijusticia, 2005,, 2.


“Jesus veio para a Galileia”

que carrega consigo a força do mais entranhadamente humano, quando levado


a sério. Mas disso falaremos nos capítulos seguintes.
Não posso concluir este capítulo sem transcrever um testemunho pessoal
que li há pouco tempo e que me chamou a atenção. O Nobel de Economia,
Joseph E. Stigliytz, assim escreveu: “Quando eu não era mais que um rapaz de
catorze anos que crescia na cidade siderúrgica de Gary (Indiana), à margem
meridional do lago Michigan, já havia decidido que, quando maior, queria me
dedicar à docência e ao mesmo tempo engenhar-me para combinar esta voca­
ção com alguma forma de serviço público. Alguns anos mais tarde, já aluno do
Amherst College e apaixonado pela ciência econômica, fui perfilando aquelas
ambições prematuras: o que eu queria era desentranhar as causas da pobreza,
do desemprego e da discriminação, tão familiares no lugar onde me criei, e
contribuir para erradicar tão angustiantes marcas. Na melhor das hipóteses,
terei conseguido pôr meu grãozinho de areia nesse sentido, mas será outra ge­
ração que continuará batalhando. O idealismo, o entusiasmo e o compromisso
que percebo em meus alunos enchem-me de esperança”12. É estimulante e
motivador que um homem que triunfou no mundo da docência e da política
econômica diga essas coisas. Esse alento ético, que vem de baixo, das bases que
se debatem por imprimir um movimento novo à história, nele está a semente
na qual Jesus viu o germe de uma vida diferente, nova e mais promissora.

12. J. E. STIGLITZ, Losfelices 90. La semílla de la destrucción, Madri, Taurus, 2 0 0 3 , 2 4 -2 5 .


“Passou por toda parte
como benfeitor”
(A t 1 0 ,3 8 )

O que define uma pessoa

O livro dos Atos dos Apóstolos conta que, quando o


apóstolo Pedro visitou um militar romano chamado
Cornélio, para explicar-lhe em que consiste a fé dos
cristãos, resumiu o que havia sido a vida de Jesus di­
zendo que foi um homem que “passou por toda par­
te como benfeitor” (At 10,38). As palavras de Pedro
condensam, sem dúvida, a lembrança que o apósto­
lo tinha de quem foi Jesus de Nazaré e do que Jesus
representava então para os cristãos. E do que tem
de representar também agora para nós que cremos
nele. Segundo Pedro, que conheceu bem Jesus,
tudo podia ser resumido em uma fórmula breve e
simples (à primeira vista), que expressa uma forma
de viver e um modo de se comportar: “passar pela
vida como benfeitor”. Como sabemos, esta é a me­
lhor coisa que se pode dizer de uma pessoa quando
A ética de Cristo

parte deste mundo: foi um “homem de bem”, foi uma “boa mulher”. Ao dizer
isso, afirmamos que foi uma “boa pessoa”. Nem mais nem menos, trata-se de
uma pessoa que passou pela vida “como benfeitor”.
Há pessoas que, quando se vão deste mundo, são lembradas pela car­
reira que fizeram, pelos cargos que ocuparam, por suas riquezas, seus títulos,
seus dotes como autoridade, a importância ou o prestígio de que gozaram.
Ou por outras coisas, talvez mais estranhas e até mais extravagantes: seus
costumes, sua maneira de falar, seu modo de vestir-se, ou seja lá o que for. O
problema está em que quando, a respeito de alguém, o que temos de recordar
é seu poder, seus títulos ou seus êxitos, isso quer dizer que provavelmente
passou pela vida buscando seu próprio bem, satisfazendo seus desejos, sendo
ele próprio o centro de sua vida. Nesse caso, a herança que deixa neste mun­
do consiste lamentavelmente em perpetuar o amor a si mesmo que todos nós
carregamos em nosso âmago e, portanto, a ambição ou o orgulho que tanto
dano causa a nós todos.
O que define uma pessoa no final da vida é uma questão capital. Na
verdade, o que importa saber é se foi uma pessoa voltada para st mesma ou se
foi uma pessoa voltada para os demais. Aqui está o nó do problema.

O que é “fazer o bem”?

Não é fácil responder a esta pergunta, porque a experiência nos ensina que
existiram (e continuam existindo) pessoas que, por “fazer o bem ”, causam
muito mal e ocasionam dano, provocando indiziveis sofrimentos. Sem ir
mais longe, é razoável pensar que os terroristas suicidas, que se imolam
matando criaturas inocentes, provavelmente façam isso por acreditarem que
dessa maneira realizam o maior bem que podem fazer. Não se tira a própria
vida por qualquer coisa. Aquele que tira sua própria vida, sem dúvida, é
porque está convencido de que pratica o ato mais heroico, porque vai con­
seguir o bem maior. Se a vida é o bem supremo para qualquer ser humano,
tirar a própria vida é algo que se faz ou como ato de desespero e loucura,
ou porque se tem a convicção ou não sei que estranha segurança de que,
mediante esse tipo de morte, se alcança um bem que supera o humanamente
insuperável. Isso quer dizer que, para um terrorista suicida, o bem consiste
em matar, destruindo a própria vida e a dos demais. Inclusive no caso da­
“Passou por toda parte como benfeitor"

queles que tiram sua vida porque pensam que dessa maneira vão conseguir
“outra vida” mais feliz e-na qual, por conseguinte, vão desfrutar muito mais;
também neste caso, o que está em jogo e se torna um ponto decisivo é uma
determinada forma de entender “o bem ”. Trata-se, supostamente, do bem
“para a própria pessoa”. Porém, com um matiz que é essencial: trata-se do
bem que “Deus quer” e que Deus promete e concede a seus heróis ou seus
mártires. Por tudo isso, ficou demonstrado que não se torna fácil determinar o
que é “fazer o bem ”. Existem muitas pessoas que estão convencidas de que se
passa a vida “fazendo o bem ”. No entanto, seria necessário perguntar àqueles
que convivem com semelhantes pessoas se eles se sentem “beneficiados” com
o bem que os outros lhes proporcionam. Ou se, ao contrário, maldizem a hora
em que conheceram tal indivíduo ou tal outro, um “benfeitor” que na realida­
de é uma desgraça, para não dizer que é uma autêntica maldição.
E não se pense que, ao afirmar essas coisas, estamos falando de lou­
cos ou de pessoas perturbadas. Nada disso. Apenas para citar um exemplo,
são Bernardo de Claraval, o grande mestre de espiritualidade do século XII,
quando pregava as cruzadas, escreveu um livro para convencer os cavaleiros
que iam à guerra de que matar os infiéis não era pecado algum, ou seja, não
era uma coisa moralmente má ou eticamente perversa. Porque, na opinião
daquele santo tão eminente em seu tempo, “aquele que mata o malfeitor
não se comporta como um homicida, mas como um (passe a expressão)
malicida”1. Ou seja, o que Deus quer é que se acabe com o mal, ainda que
para isso se veja como necessário acabar também com a vida do que comete
o mal12. Isso significa que, neste caso, antepõe-se o “bem” à vida, que é, pro­
vavelmente, a tese mista propugnada por todos os terroristas que existiram
no mundo. A começar pelos inquisidores da santa madre Igreja que, para
defender a verdade “sagrada” e o bem “divino”, torturavam e queimavam
vivas as pessoas, até chegar aos terroristas de agora, quer sejam os da ETA
(Euskadi Ta Askatasuna), quer se trate de Bin Laden e seus fanáticos segui­
dores ou do presidente Bush que, ao dar início ao lançamento de bombas
no Iraque, disse com toda a tranquilidade e com a maior firmeza que fazia
isso para estabelecer “o eixo do bem ”. Sem falar dos confessores e diretores
espirituais que, para fazer o “bem ” às almas, humilham homossexuais, di­

1. Líber ad milítes templi, III, 4. PL 182, 9 2 4 B.


2. Cf. J. M. CASTILLO, Dios y nuestra felicídad, Bilbao, Desclée De Bfouwer, 2 0 0 1 , 193.
A ética de Cristo

vorciados e mães solteiras ou qualquer pessoa que não se portar segundo os


padrões de conduta ditados pela autoridade competente para isso. Enquanto,
curiosamente e ao mesmo tempo, aqueles que impõem semelhantes critérios
de moralidade não se inquietam, nem pouco nem muito, pelas injustiças e
agressões à dignidade de pessoas indefesas ou inocentes. Trata-se da moral
que põe o critério do bem e do mal principalmente no puritanismo de ori­
gem grega, concretamente o puritanismo que tem sua origem na Escola de
Pitágoras e cuja expressão suprema é manifestada, quiçá, em Empédocles.
Para esses autores do velho helenismo, “a pureza, e não a justiça, converteu-
se no meio cardeal da salvação”3. Entretanto, voltarei a falar sobre tudo isso,
explicando-o detidamente no capítulo final deste livro.
Por uma questão de lógica, a pergunta aqui suscitada é a seguinte: de-
finitivamente, o que é fazer o bem? Ou, com outras palavras, por que tais ou
tais coisas se consideram como boas ou más, ao passo que outras, que são
mais determinantes na vida das pessoas, passam por nós inadvertidamente,
sem que nem sequer nos demos conta do mal que fazemos ou do bem que
deixamos de fazer?

O “bem” e o “mal”

Quando Nietzsche, em La genealogia de la moral, põe-se a determinar por


que existem atos humanos nos quais pomos a etiqueta de “bons”, enquanto
outros nós os consideramos como “maus”, ou até mesmo “perversos”, a
primeira coisa que adverte é que o conceito “bom ” não procede daqueles a
quem se dispensa a “bondade”. Ou seja, não são os receptores da “bondade”
os que têm o direito ou o privilégio de decidir o que é “bom ”, mas isso é de­
terminado pelos que têm poder para definir “isto é bom ” e lhes convém; ou,
pelo contrário, “isto é mau” e os prejudica. Nietzsche o diz com seu estilo
cortante e mordaz: “O conceito de ‘bom ’ não procede daqueles a quem se
dispensa bondade’! Ou melhor, foram ‘os próprios bons’, a saber, os nobres,
os poderosos, os homens de posição superior e de sentimentos elevados os
que se sentiram e valorizaram a si mesmos e a seu operar como bons, ou
seja, como algo de primeira categoria, em contraposição a tudo que-é baixo,

3. E. R. DODDS, Los griegos y lo irracional, Madn, Alianza, 2 0 0 1 , 150.


“Passou por toda parte como benfeitor”

abjeto, vulgar e plebeu”4. Trata-se, portanto, de algo que, além do mais, está
bastante comprovado pela experiência: as leis são ditadas pelos que têm poder
para ditá-las. E isso significa que a relação entre o poder e a ética é muito
mais forte do que imaginamos. São os poderosos que decidem sobre o que
convém e o que não convém, sobre o que é bom e o que é nocivo. Isso sem ­
pre foi assim. E continua sendo hoje.
Sendo assim, isso acarreta uma consequência simplesmente aterrorizante.
Trata-se, como é lógico, do fato de que o “bem ” e o “mal” são determinados,
fixados e impostos de acordo com as conveniências e os interesses dos que
manejam e acumulam o poder. É “bom ” o que convém aos interesses do
poderoso. E é “mau” o que prejudica esses mesmos interesses. O direito,
a moral e os costumes sempre foram organizados desse modo. Daí resulta
que os fracos, os que estão embaixo, os que carecem de poder têm de se
convencer de que é “bom ” e lhes convém precisamente o que beneficia os
interesses daquele que todos os dias lhes põe a bota sobre o pescoço. Ou seja,
é “bom ” o que interessa ao explorador e ao causador dos sofrimentos e da
desgraça dos que não podem sair de sua triste e miserável condição. Por isso,
Nietzsche tem razão quando acrescenta: “É a partir deste pathos da distinção
que (os poderosos e os nobres) se arrogaram o direito de criar valores, de
cunhar nomes de valores: o que importava para eles a utilidade!? O ponto de
vista da utilidade redunda o mais estranho e inadequado de todos, precisa­
mente quando se trata desse ardente manancial de conceitos supremos de
valor, ordenadores da classe, que põem em destaque a categoria”5. Por isso,
como adverte o mesmo Nietzsche, “o pathos da nobreza e da distância..., o
sentimento global e radical duradouro e dominante de uma espécie superior
dominadora em sua relação com uma espécie inferior, com alguém que está
‘abaixo’ — esta é a origem da antítese ‘bom ’ e ‘mau’”6.
Qualquer pessoa entende, sem muito esforço, o perigo que tudo isso
encerra, se é que efetivamente o bem e o mal se configuram dessa forma e têm
essa origem. E não resta dúvida de que algo disso é verdade. Ou até muito
disso. Parece-me que um exemplo recente evidencia isso. Há pouco tempo,
um conhecido professor de ciências morais assim escrevia: “A civilização do

4. La genealogia de la moral, I, 2, Madri, Alianza, 2 0 0 0 , 37.


5. Op. c i t , I, 2, p. 3 7 -3 8 .
6. Op. cit., 1, 2, p. 38.
A ética de Cristo

bem-estar consumista foi a grande sepultadora histórica da ideologia gloriosa


do dever. No decurso da segunda metade do século (XX), a lógica do consu­
mo de massas dissolveu o universo das homilias moralizadoras, erradicou os
imperativos rigoristas e engendrou uma cultura na qual a felicidade predo­
mina sobre o mandato moral, os prazeres, sobre a proibição, a sedução, sobre
a obrigação. Por meio da publicidade, do crédito, da inflação dos objetos e
dos ócios, o capitalismo das necessidades renunciou à santificação dos ideais
em benefício dos prazeres renovados e dos sonhos da felicidade particular.
Edificou-se uma nova civilização que já não se dedica a vencer o desejo,
mas a exacerbá-lo e isentá-lo de culpa: os prazeres do momento presente, o
templo do eu, do corpo e da comodidade converteram-se na nova Jerusalém
dos tempos pós-moralistas”7. Trata-se, como qualquer um percebe, de um
julgamento muito sombrio sobre o que estamos vivendo em nosso tempo.
Um julgamento sobre o qual será necessário matizar alguns pontos de vista.
Porém, seja como for, é evidente que, na medida em que uma grande parte
disso é o que está acontecendo, nessa mesma medida podemos comprovar
que quem dita o que está bem e o que está mal, o bem e o mal, já não é a ética
de sempre, mas outro novo elemento é o que dita, e o que dita é, de fato, o
capitalismo neoliberal, com seus enormes e desmedidos interesses de consu­
mo, e de sujeição ao consumo, por parte da grande massa de uma população
indefesa diante de tanta oferta, de tanta publicidade e tanta promessa de
uma vida melhor, que cada dia é, na realidade, uma vida mais servil e mais a
serviço dos que hoje decidem e mandam.
Podemos, realmente, estar de acordo com esse modo de pensar? Pode-
se aceitar, sem mais, que a bondade e a maldade de nossas condutas sejam
determinadas pelos interesses dos que têm poder para decidir uma coisa tão
séria e de tão graves consequências?

A “validade” moral do ato humano

Quando podemos assegurar que realizamos um ato “bom ”? Afirmou-se, pro­


vavelmente com toda a razão, que a irreversível contribuição da modernidade,
no que se refere à ética, foi a proposta da “validade” ( Gültigkeit) moral do ato

7. G. LIPOVETSKY, El crepúsculo dei deber, 50.


“Passou por toda parte como benfeitor”

humano8. Mas, então, a questão que se propõe está logicamente em saber o


que vem a ser a “validade”. A isso os estudiosos do tema respondem dizendo
que a condição de possibilidade da “validade” de uma ação consiste na “acei­
tabilidade” dos demais membros da comunidade. “Válida” é a ação que pôde
ser racional e simetricamente decidida — em iguais condições e direitos — in
actu por todos, e não pelo mero fato de que alguém “se pôs no lugar” dos
outros — como sugeria Kant9. Ou seja, se eu estiver certo, trata-se do fato de
que aqueles que forem “afetados” por aquilo que se decide sintam e experi­
mentem que os efeitos da decisão trazem algo positivo para suas vidas ou, ao
contrário, causam dano a essas Adas. Não se trata, pois, de que quern decide
o que é bom “se ponha no lugar dos outros” (como pensava Kant), mas a
questão está em que os que “sofrem” os efeitos da decisão sintam (em sua pró­
pria Ada) que essa decisão lhes aliAa o sofrimento, tornando-os até felizes;
ou, ao contrário, tal decisão os converte em autênticos infelizes.
A questão está, portanto, em que cada um proceda de maneira que fique
com a consciência tranquila, ou que deixe seu cargo (se é que o deixa) dizen­
do que vai embora com as mãos limpas. Isso foi dito por muitos canalhas e
por indiAduos que causaram estragos indizíveis. O mais importante, quando
falamos de “boas pessoas”, é que cada um se comporte de maneira que sejam
os outros que se sintam tranquilos. E não só tranquilos, mas, acima de tudo,
felizes. O espelho do comportamento ético não é a própria consciência, mas o
semblante dos que Avem comigo. Quando esse rosto expressa paz, esperan­
ça, alegria e felicidade, porque é minha conduta que gera tudo isso, então é
eAdente que meu comportamento é eticamente correto.
Em última instância, tudo isso quer dizer que são as “Atimas” deste
mundo as pessoas que, com base em sua própria experiência, se constituem
em únicos juizes capacitados para distinguir, com autoridade moral crível e
até indefectível, o “bom ” e o “mau”. E são juizes indefectíveis pela “felicidade”
que recebem ou pelo “sofrimento” que têm de suportar por causa de minhas
decisões ou, com muita frequência, também porque minha única decisão é
não tomar decisão alguma. Isso significa exatamente situar-me na passiAdade
e na impossível neutralidade diante da dor das Atimas do sistema Agente em
nossa sociedade. O critério para saber se o presidente no governo, o papa ou

8. E. DUSSEL, Hacia una filosofia política crítica, Bilbao, Desclée, 2 0 0 1 , 66.


9. E. DUSSEL, op. cit., 67. '
A ética de Cristo

o bispo são boas pessoas não é o que o presidente, o papa ou o bispo dizem
de si mesmos, mas o que os outros deles dizem.
Por tudo isso, compreende-se a razão profunda que levou o apósto­
lo Pedro a dizer que Jesus “passou por toda parte como benfeitor”. Aquele
homem viu com seus próprios olhos e ouviu com seus próprios ouvidos a
alegria dos enfermos curados por Jesus, a alegria dos pecadores acolhidos e
perdoados pelo mesmo Jesus e o entusiasmo das pessoas que comeram até se
saciar quando se encontraram sozinhas no desamparo dos pobres desta terra.
Jesus passou fazendo o “bem ” porque os que se aproximaram dele se senti­
ram “bem”. A ética de Jesus ficou descrita e delimitada pelos beneficiários do
bem-fazer de Jesus. Foi dito de Jesus que foi boa pessoa e passou por toda
parte como benfeitor, não porque ele o proclamou, mas porque os outros
o viram e o sentiram. Jesus nunca disse a seus discípulos, nem aos pobres,
nem aos pecadores: “Eu os amo muito”. O que ocorreu é que todos os que se
aproximavam de Jesus encontravam nele acolhida, tolerância, compreensão,
bondade, um olhar de profunda humanidade e, certamente, um interesse in­
questionável por seus problemas. Por isso, e não por outra razão, Pedro disse
que “passou por toda parte como benfeitor”. Não passou dizendo que fazia o
bem, mas fazendo-o. Nem mais nem menos que isso.

Ética “deontológica” e ética “consequencialista”

Existem duas escolas ou, se preferirmos, dois pontos de vista na hora de julgar
as condutas. Por um lado, está a escola chamada deontológica, que se funda­
menta sobre as normas ou as regras que é preciso cumprir e os deveres que
daí procedem. O protótipo desta escola de moralidade é a ética de Kant. Por
outro lado, está a escola consequencialista, assim chamada porque adota como
critério, para distinguir o bem do mal, as consequências, a saber, os resultados
ou os benefícios que se seguem de determinado comportamento. O protótipo
desta teoria pode ser, ao menos em parte, o “utilitarismo”: uma ação é boa ou
má de acordo com a utilidade boa ou má que dela decorre.
Estabelecida essa distinção, a primeira coisa que se deve dizer é que as
duas formas de entender a ética não podem se excluir, porque a ética, que se
baseia nos deveres, tem que estar atenta às consequências que se seguem do
cumprimento de tais deveres. E, em contrapartida, a ética, que visa às con­
“Passou por toda parte como benfeitor 1

sequências, não pode se esquecer nunca dos deveres mais fundamentais de


qualquer ser humano. E 'a verdade é que quando esses dois pontos de vista
se harmonizam, só por isso e por isso mesmo, resolvem-se problemas que
a muitas pessoas parecem insolúveis. Sem ir mais longe, entre pessoas de
convicções católicas, foi suscitado ultimamente o problema da moralidade ou
imoralidade do uso do preservativo nas relações sexuais. Prescindindo de ou­
tras considerações, é evidente que o uso do preservativo evita o contágio da
Aids. Isso quer dizer que, seja qual for a norma existente a esse respeito (ética
“deontológica”), é preciso levar em consideração as consequências que se
seguem do cumprimento dessa norma (ética “consequencialista”). E, eviden­
temente, se isso fosse sempre levado em conta, muitas pessoas tirariam um
peso de si. Por isso, aceitemos resolutamente, e de uma vez por todas, que,
às vezes, não há outro remédio senão permitir ou tolerar coisas que são proi­
bidas pelas normas, pelos costumes ou leis, precisamente porque da violação
da norma irá seguir-se um bem maior ou simplesmente um bem que alguém
necessita para que sua vida se sinta segura, ou seja uma vida plena e feliz. Isso
é exatamente o que, segundo narram os evangelhos, Jesus fez muitas vezes,
por exemplo, quando curava os enfermos em dia de sábado. Podia curá-los
em outro dia qualquer. Curava-os, porém, no sábado (o que era proibido pela
lei religiosa) para que ficasse claro que, antes do cumprimento da norma, está
a saúde do enfermo. Mas, sobre este assunto, falaremos mais adiante.

O “filtro” institucional da ética

É um fato que a tendência dominante, talvez durante séculos, para formar a


consciência das pessoas foi a assinalada pela escola “deontológica”: é preciso
fazer as coisas porque é assim que se diz. Ou seja, foi imposta a “norma”
sem prestar a devida atenção às “consequências” que se seguem do cumpri­
mento da norma. E sabemos que, com excessiva frequência, foram manti­
das e impostas normas que, ao serem cumpridas fielmente, desencadearam
consequências bastante negativas e, às vezes, desastrosas. Aí está o exemplo,
já citado, do uso do preservativo. A norma eclesiástica o proíbe, mesmo cien­
te de que isso pode ser causa da propagação de uma enfermidade tão cruel
como a Aids. E, como este, tantos outros exemplos, que poderiam ser lem­
brados aqui, de mandatos e proibições da moral católicâ que se impõem ou
A ética de Cristo

se mantêm porque assim o dispôs tal concilio ou tal papa, assim se deduz de
uma argumentação especulativa baseada em um conceito de “natureza” que
hoje já pouca gente aceita. E tudo isso se mantém, caia quem cair, e por mais
que de todo esse discurso advenham consequências desastrosas para a paz,
para a convivência e para o bem-estar das pessoas, das famílias e dos povos.
Mais ainda, a partir do momento em que a verdade divina e a vontade
divina estão muito acima de todas as verdades humanas e das vontades hu­
manas, pode-se chegar, e de fato se chegou, a situações e atos da mais brutal
barbárie. Não resisto à oportunidade de recordar aqui um fato simplesmente
surpreendente. No ano de 1209, durante o pontificado de Inocêncio III, na
cruzada contra os cãtaros, quando os exércitos cristãos, mandados por Simão
de Montfort e pelo Duque de Borgonha, tomaram de assalto a cidade de
Béziers matando mais de 60 mil habitantes, sabe-se que o abade Arnoldo,
quando os soldados lhe perguntaram como poderiam distinguir os católicos
dos hereges, para respeitar os que se mantinham na verdade da Igreja, re­
plicou sem restrições: “Matai, matai-os todos, que Deus os distinguirá depois no
céu”101. É o efeito inevitável de uma ética da “norma” que se antepõe a qual­
quer tipo de ética de “consequências”.
Todavia, o problema que se estabelece, quando se trata deste assunto, é
mais profundo do que parece à primeira vista. Quando falamos do compor­
tamento moral das pessoas, deveriamos ter presente que a moral ou a ética,
na estimativa que uma pessoa comum faz dessas coisas, costumam referir-se a
formas de conduta interpretadas por meio âe filtro imposto pela instituição, quer
se trate da instituição política, jurídica ou religiosa. E então, o que ocorre é
que já não se trata somente do mal que objetivamente se faz, mas do mal
interpretado política, jurídica ou religiosamente. Como sabemos, no caso da
interpretação “religiosa”, deparamo-nos com o “pecado”, que não é simples­
mente o mal, mas “a qualificação religiosa negativa de um comportamento
humano”11. Com isso nos deparamos com o fato de que o humano se julga com
base em critérios não-humanos ou, mais exatamente, com base em critérios

10. Uma boa análise das circunstâncias e da crueldade desta cruzada contra os cãtaros encon-
tra-se em BERNARD HAMILTON, The Albigensians Crusade and Heresy, in The New Cambridge
Medieval History, V, Cambridge University Press, 1 9 9 9 , 1 6 4 -1 8 1 .
11. D, SITZER-OSING, Sünde, in Theologische Realenzyklopãdie, 3 2 , Berlim, Walter de Gruyter,
2001, 360.
‘Passou por toda parte como benfeitor”

sobre-humanos. Ou seja, quando falamos do mal assim interpretado, estamos


lidando com critérios cuja verificação depende de elementos que fogem a toda
verificação propriamente humana. Daí os obscuros sentimentos de “mancha”
e “culpa” que muitas pessoas experimentam na intimidade de sua consciência,
sem que saibam justificar racionalmente por que experimentam semelhantes
sensações. É evidente que, nesses casos, atuam nas consciências elementos
não-humanos ou sobre-humanos, que fogem a qualquer verificação empírica,
e que, por isso mesmo, podem atormentar a pessoa ou, ao contrário, podem
deixar com a consciência tranquila o canalha mais descarado deste mundo.
Além disso, não esqueçamos de que, se falamos do filtro “institucional”,
estamos nos referindo a um filtro manipulado pelo “poder” que é próprio
da instituição. E bem sabemos que os interesses do poder são, com bastante
frequência, interesses obscuros e inconfessáveis. Por isso não é estranho que,
a partir de tais interesses, seja imposto como bom o que interessa à institui­
ção e não precisamente o que interessa ao bem das pessoas; ou que se proíba
como mau o que prejudica os interesses institucionais e não o que causa dor
e sofrimento ao povo.

A ética de Cristo, ética “do humano”

A dificuldade que aqui pode surgir está em que, definitivamente, se fala­


mos da “ética de Cristo”, na realidade estamos falando de uma ética b a­
seada em um critério que é também “sobre-hum ano”, porque seria uma
ética baseada nos imperativos ou mandatos de Cristo. Tal dificuldade é
compreensível. Todavia, tudo depende de como entendamos o Evange­
lho de Jesus. Para os cristãos, o Evangelho é, certamente, uma mensagem
revelada por Deus. Nessa suposição, como é lógico, para nós, crentes em
Cristo, o Evangelho fornece critérios “sobre-humanos”. Mas também é certo
que o Evangelho pode ser lido como uma mensagem que sai do mais profun­
do da vida e que tem como finalidade apresentar a qualquer pessoa o mais
humano que existe em nós, os mortais. Não esqueçamos nunca que, segundo
os relatos do Evangelho, Jesus foi morto pela religião e por seus represen­
tantes oficiais. E o mataram precisamente porque Jesus antepôs a vida,
ou seja, o humano e a dignidade dos seres humanos a não poucos deveres
impostos pela religião, a saber, o sobre-humano. A partir do momento em
A ética de Cristo

que as coisas são vistas assim, o Evangelho, antes de ser uma mensagem re­
ligiosa, é, sem dúvida, uma mensagem para a vida. Não porque o conteúdo
do Evangelho venha a prescindir de Deus, mas porque o critério central do
Evangelho de Jesus consiste em que a mediação essencial entre o ser humano
e Deus é a vida, a humanização da vida.
Sendo assim, se a ética de Cristo deve ser entendida a partir deste deli-
neamento, a consequência que daí decorre é que a ética de Jesus é, antes
de tudo, uma ética “consequencialista”. Certamente Jesus levou em conta
as “normas” que Deus ditou à humanidade, porém, a partir de uma con­
dição prévia, que é básica: contanto que tais normas, que se consideram
“sagradas”, “divinas” ou “reveladas”, não tragam como consequência de
seu cumprimento mais sofrimentos, mais desgraças e mais desastres para a
humanidade. Absolutamente ao contrário, uma norma qualquer, por mais
divina que se considere, se não nos tornar mais sensíveis à dor do mun­
do e à felicidade das pessoas, é uma norma que certamente não vem do
Deus que Jesus anunciou. Em qualquer caso, a ética de Cristo tem que ser
uma ética para a felicidade, para fazer com que nos sintamos felizes por ter
nascido, e para tornar mais felizes os que estão a nossa volta. Isso supõe
tornar-nos mais sensíveis a tudo o que gera ventura ou desgraça, bem-estar
ou sofrimento. Nesse sentido, só podemos estar inteiramente de acordo
com Richard Rorty quando afirma que a felicidade humana só é possível
fomentando o que ele denomina “educação sentimental”: tornando viável
a maior sensibilidade dos homens diante da dor e do sofrimento dos que
são estranhos a nós. Contribuir para o bem-estar dos outros, erradicando a
dor desnecessária, é possível desde que nos esqueçamos de ideologias, me­
tafísicas, religiões e teologias que, conforme pensa Rorty, influíram mais no
crescimento do horror do que na melhora das condições de vida12. Quando
nosso comportamento é tal que dele decorrem essas consequências, temos
o critério seguro e reto para saber que nosso comportamento é eticamente
correto. Por isso, com toda a razão, pode-se insistir em que a ética de Cristo
foi, antes de tudo, uma ética “consequencialista”.

12. Cf. E. BONETE, Éticas en esbozo. De política, felicidad y muerte, Bilbao, Desclée De Brouwer,
2 0 0 3 , 150. R. RORTY desenvolveu estas idéias sobretudo em duas obras fundamentais: Espe-
ranza o conocimiento? Una introducción al pragmatismo, Buenos Aires, E E .C , 1 9 9 7 ; Consecuencias
dei pragmatismo, Madri, Tecnos, 1996.
“Passou por toda parte tom o benfeitor” l

Passar do “dever” à “necessidade”

O pensamento da Modernidade foi tomado de obsessão pelo problema da


“identidade”, que é o problema da autoconsciência, o problema der eu. Trata-
se da pergunta que, com matizes diversos, tem seu ponto de partida em Des­
cartes, passa por Kant e termina com Hegel13. Acontece, no entanto, que esta
pergunta, por importante que seja, termina por fechar o sujeito em sí mesmo,
bloqueando-o na bolha do próprio eu. Daí a necessidade de passar a outro
delineamento: da pergunta pela “identidade” à pergunta pela “diferença”. Daí,
em autores como Lévinas e Derrida, a ideia da diferença é pensada come­
çando pelo Outro e não por ele Mesmo, de maneira que o Outro “é o novo
centro de atenção na filosofia e na ética”14. Produz-se assim a grande virada
que necessitamos neste momento para sair de nós mesmos e dedicar a devida
atenção aos mil problemas que afetam o outro, os outros.
Com base nessa suposição, considera-se inteiramente válido e lúcido o
que, com toda a razão, o professor Miroslac Milovic escreveu: “O sofrimento
da pessoa em particular, de uma criança, por exemplo, não necessita de ne­
nhuma interpretação ética posterior. Não necessita da ajuda do imperativo
categórico cujo tema é definido como fim em si mesmo. O imperativo categó­
rico é supérfluo neste encontro com a criança que sofre. Para decidir, necessi­
tamos dos imperativos categóricos, ou dos discursos, no caso do sofrimento?
Necessitamos da metafísica de Lévinas? A invocação dessa criança que sofre
é finita, frágil, e não já infinita ou absoluta. Nossa obrigação já não é ética,
mas poética, sem os modelos. Assim, a ética se transforma em uma obrigação
poética. A obrigação sem a ética já foi anunciada por Abraham, pensada de
novo por Kierkegaard e Derrida. Nessa poética, e não já na ética, talvez seja
possível pensar no futuro da política”15.
Ocorre, porém, que quando falamos de “obrigação poética”, na realidade
já não estamos falando de obrigação, mas de necessidade. A poesia não é um
“dever”, e, menos ainda, um imperativo categórico. A poesia é a expressão

13. Cf. MIROSLAC MILOVIC, Comunidad de la diferencia, Granada, Edit, Universidad de Gra­
nada, 2 0 0 4 , 11-1 3 .
14. MIROSLAC MILOVIC, op. cit., 125.
15. MIROSLAC MILOVIC, op. cit., 1 2 5 -1 2 6 . Cf. J. CAPUTO, Against Ethics, Bloomington, 1 9 9 3 ,
3 8 e 8 5 . Citado por M. MILOVIC, op. cit.
A ética de Cristo

mais profunda de nossa necessidade de canalizar a experiência estética, que


brota das fibras mais sensíveis de nossa humanidade. Por isso, o amor se
expressa mediante a criatividade dos símbolos e das metáforas vivas, que são
as únicas vias por meio das quais é possível que nós, seres humanos, comu­
niquemos o que realmente sentimos para com aqueles a quem amamos ver­
dadeiramente. Mediante símbolos e metáforas nós, seres humanos, dizemos
mutuamente que entre nós existe algo que vai mais além da mera educação ou
da simples simpatia. Com isso não fazemos outra coisa senão manifestar a ne­
cessidade mais especificamente humana que todos nós levamos, fundida no pró­
prio sangue de nossa vida: a necessidade de dar e receber bondade, tolerância,
respeito, compreensão, delicadeza e, sobretudo, carinho e ternura. Assim — e
somente assim — nos situamos no coração mesmo da ética de Cristo. Isso,
definitivamente, vem dizer que apenas assim poderemos passar por esta vida
“como benfeitores”. Exatamente como ficou escrito a respeito de Jesus.
Visto assim o problema da moral, tal como nos é delineado neste mo­
mento, eu não consideraria inconveniente admitir como válida a afirmação
segundo a qual “o processo de secularização da moral é algo mais que a afir­
mação da ‘moral independente’; significa a preponderância das obrigações
éticas sobre as religiosas”16. Na realidade, Jesus foi mais moderno que os mo­
dernos que viveram a partir do Iluminismo. Com o Evangelho, foi já impul­
sionado o processo de renovação da moral. Essa renovação consiste em que,
antes das obrigações “religiosas”, estão as obrigações “éticas”, desde que, por
“obrigação ética”, entendamos a plena realização do humano, o verdadei­
ramente humano que há em nós. Justamente na realização do humano é que
podemos encontrar o Deus que se humanizou no homem Jesus de Nazaré.

16. G. LIPOVETSKY, Ei crepúsculo dei deber, 32.


e:

Ética, fé e vida

Encontramos frequentemente pessoas que se quei­


xam da falta de credibilidade da religião, da Igreja,
da pregação eclesiástica. E o fato é que os que se
queixam disso têm razão para fazê-lo. Talvez, nunca
como agora, as instituições religiosas se viram tão
carentes de credibilidade por parte de grandes seto­
res da população. Mais concretamente, o que chama
a atenção neste momento é que, enquanto a crença
em Deus e o desejo de espiritualidade se mantêm
na maior parte das pessoas, a fé na Igreja e o senti­
mento de pertencer a ela diminuem dia a dia. Ca­
minhamos diretamente, a uma grande velocidade,
para uma “espiritualidade sem Igreja”1. Não se trata,

1. MILLÁN ARROYO MENÉNDEZ, Hacia una espiritualidad sin


Iglesia, in J. E TEZANOS, Tendências en identidades, valores y
creencias, Madri, Sistema, 2 0 0 4 , 4 0 9 -4 3 6 .
A ética de Cristo

neste capítulo, de analisar por que ocorre isso hoje. Se faço menção a este
assunto, é porque ele dá ensejo a que se compreenda um dos aspectos mais
desconcertantes da ética de Cristo. Vou explicá-lo analisando o primeiro dos
“sinais” que Jesus realizou em sua vida pública.
Antes de tudo, é preciso dizer algo sobre os “sinais”. O evangelho de
João termina seu relato com estas palavras: “Jesus operou ante os olhos de
seus discípulos muitos sinais que não estão consignados neste livro. Estes
foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para
que, crendo, tenhais vida em seu nom e” (Jo 2 0 ,3 0 -3 1 ). Assim resume o
último evangelho o que foi a atividade de Jesus. De acordo com o que aqui
se afirma, tal atividade consistiu em uma série de “sinais”, que ficaram por
escrito porque tais smais produzem “fé” e essa fé dá “vida”. Temos, por­
tanto, três palavras-chave: “sinais”, “fé” e “vida”. Jesus realizava coisas que
tinham um significado. Por isso, tais coisas são denominadas “sinais”, smais
que produzem uma profunda experiência que é a fé. E com tudo isso, o
que Jesus queria, defimtivamente, era dar vida. Que a pessoa tivesse uma
vida plena, digna, segura, feliz. Por isso curou os enfermos, deu de comer
aos famintos, acolheu os estrangeiros e excluídos sociais, tratou com res­
peito e delicadeza as mulheres e as crianças, conviveu com os pecadores
e as pessoas malvistas na sociedade de seu tempo. Mas não somente isso.
Porque a vida, inclusive a mais segura e a mais digna, afinal de contas,
chega a um momento em que se vê limitada, enferma e termina na morte.
Daí que Jesus disse muitas vezes que a vida, que ele prometia, é a vida
“eterna” (Mt 2 5 ,4 6 ; Mc 1 0 ,3 0 ; Lc 18,3 0 ; Jo 3 ,1 5 .1 6 .3 6 ; 4 ,1 4 .3 6 ; 5 ,2 4 .3 9 ;
6 ,2 7 .4 0 .5 4 .6 8 ; 1 2 ,2 5 .5 0 ; 1 7 ,2 .3 ), a saber, uma vida sem limitação alguma,
uma vida plena, que não acabará nem com a morte, mas que, mediante a
morte, ver-se-á transformada e chegará à sua plenitude total.
Assim sendo, o que gera esta maravilha de projeto, que satisfaz toda
aspiração humana, são os “sinais” que Jesus fazia. O que quer dizer o evange­
lho de João quando fala desses “sinais”? O texto grego do Evangelho utiliza
a palavra semeton, a qual indica um ato que é um sinal ou um distintivo que
garante, constata e confirma algo2. Diferentemente dos milagres, como atos de
poder, os “sinais” são atuações que confirmam a presença de um profeta en­

2. O. HOFIUS, Signo, in L. COENEN, E. BEYREUTHER, H. BIETENHARD, Diccíonario Exegétíco


delNuevo Testamento, III, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 3 , 89.
“Eles não têm vinho”

viado por Deus e que suscita a fé (cf. Ex 4 ,l- 9 ) 3. Na realidade, trata-se de atos
de Jesus que produziam, naqueles que os viam e viviam, um efeito concreto
e profundo: davam fé (Jo 2 ,1 1 .2 3 ; 4 ,5 3 -5 4 ; 6,30; 11,48; 12,37; 20,30-31). E,
mediante a fé, potencializavam e enriqueciam a vida das pessoas que tinham
a felicidade e a sorte de estabelecer contato com tais “sinais”.
É importante recordar essas coisas porque são a resposta adequada aos
que se lamentam da pouca credibilidade de que- goza hoje a Igreja, especial­
mente seus dirigentes, seus hierarcas. Que “sinais” apresentam esses hierarcas
diante de tantas pessoas que hoje não se sentem atraídas a crer na mensagem
transmitida pela Igreja? São tais dirigentes religiosos “profetas” que suscitam a
fé na pessoa, ou são “funcionários” que velam pela ortodoxia e pelo prestígio
da instituição clerical? Aqui está o ponto de partida de quanto é possível dizer
sobre a ética de Jesus.

A chave: acabou-se a velha ordem religiosa

Não é o caso de explicar aqui, passo a passo, o relato das bodas de Caná
(Jo 2 ,1 -1 1 ), a respeito do qual o evangelho de João diz que foi o primeiro
“sinal” feito por Jesus (Jo 2 ,1 1 ). O que importa é responder a esta pergunta:
em que consistiu aquele “sinal”? Como é bem sabido, o que lá aconteceu
foi que, quando no meio da festa ficaram sem bebida para continuar a cele­
bração e o divertimento, Jesus converteu a água em vinho (Jo 2,9). Dizendo
isso, porém, não tocamos o fundo do assunto ou, se preferirmos, não ati­
namos com a chave do problema. Chegaremos à compreensão dessa chave
quando nos dermos conta de que a água que Jesus converteu em vinho não
era água para os usos domésticos ou, mais propriamente, para usos “profa­
nos”, ou seja, não era água para a vida (beber, preparar alimentos, lavar-se,
regar...), mas era água para a religião. O Evangelho diz isso expressamente:
“Havia lá seis talhas de pedra destinadas às purificações dos judeus; elas
continham cada uma duas ou três medidas” 0 ° 2,6). Portanto, seiscentos
litros de água, envasilhadas em pedra. Expressa-se assim, em linguagem m e­
tafórica, a enormidade e o pesadume da religião que, como é frequente nas

3. O. BETZ, Semeíon, in H. BALZ, G. SCHNEIDER, Diccionario Exegétíco dei N.T., II, Salamanca,
Stgueme, 1 9 9 8 , 1391.
A ética de Cristo

tradições religiosas da humanidade, expressa desta maneira o que já recor­


dei antes, citando um texto certeiro do professor Dodds, a saber: que “a pu­
reza, mais do que a justiça, converteu-se no meio cardeal da salvação”4. Essa
convicção, que tão profundamente marcou a cultura do Ocidente, fazia-se
notar com veemência na religiosidade judaica do tempo de Jesus, como
consta no capítulo sete do evangelho de Marcos56. Nesse contexto, Jesus foi
direto ao ponto desde o primeiro momento de sua atividade pública. Por
isso, na primeira oportunidade que teve (segundo o critério de João), su­
primiu a água da religião e converteu-a em vinho, no generoso vinho da vida,
sinal da abundância de vida e do prazer de viver, como o haviam anunciado
os antigos profetas (Am 9 ,1 3 ; Os 2 ,2 4 ; Jl 4 ,1 8 ; Is 2 9 ,1 7 ; Jr 31 ,5 )4
A questão está em compreender o que realmente fez Jesus mediante
este gesto simbólico e profético. O estudo clássico de Charles Harold Dodd
explica-o com clareza meridiana: “O que é, pois, a água que é substituída por
este vinho de Deus? O evangelista nos deu uma dica ao dizer que as talhas de
pedra que lá estavam eram “destinadas às purificações dos judeus”. Represen­
tam todo o sistema da observância ritual judaica, e implicitamente a religião a
esse nível, seja onde for que se encontre, enquanto distinta da religião ao ní­
vel da “verdade” (cf. Jo 4 ,2 3 -2 4 ). Portanto, o primeiro dos sinais simboliza já
a doutrina segundo a qual “a lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade vie­
ram por Jesus Cristo” (Jo 1,17). E a isso o mesmo Dodd acrescenta: “É desse
modo que se manifesta a glória de Cristo: mediante um sinal que proclama a
verdade de que com sua vinda a velha ordem religiosa é substituída por uma
ordem nova”7. Na opinião dos mais autorizados comentaristas do evangelho
de João, esta interpretação é a que tem melhor respaldo no texto. E vem a ser
a expressão da “superação da Antiga Aliança pela Nova”8.
Definitivamente, o que Jesus quis dizer, mediante o primeiro dos “sinais”
que realizou em sua vida, foi que a velha ordem religiosa havia terminado. A partir
de então, Deus manifesta sua “glória” (doxa) (Jo 2,11) de outra maneira. Jesus
traça e marca uma ordem nova: Deus deixou de impor e exigir rituais religiosos

4. E. R. DODDS, Los griegos y lo irracional, Madri, Alianza, 2 0 0 1 , 150.


5. Cf. R, SCHNACKENBURG, El evangelio según san Juan, I, Barcelona, Herder, 1 9 8 0 , 373.
6. R. SCHNACKENBURG, op. cit. , 3 7 8 .
7. CH. H. DODD, Interpretación dei cuarto evangelio, Madri, Cristandade, 2 0 0 4 , 348.
8. R. SCHNACKENBURG, op. cit., 3 7 9 .
“Eles nao têm vinho”

e purificações sagradas. Em vez disso, Deus se comunica na vida, no prazer da


vida, na alegria e no desfrute de viver, em tudo o que, de maneira espontânea,
evoca o melhor vinho que nós, humanos, podemos beber neste mundo.

Só o amor é digno de fé

Ainda não tocamos o fundo. O fundo desse relato surpreendente. Não nos
esqueçamos de que tudo isso aconteceu em uma festa de casamento. E é fato
sabido que, na cultura judaica, o vinho evocava, entre outras coisas, o sím­
bolo do amor prazeroso e apaixonado que flui entre o esposo e a esposa, o
amor que os leva a se entregarem mutuamente na intimidade. O Cântico dos
Cânticos, obra que expressa o auge da literatura amorosa na Bíblia, começa
falando de beijos, precisamente os beijos que se comparam com o vinho:

“Que d e me beije com boca ardorosa!


Pois tuas carícias são melhores que o vinho,
Melhores que afragrãncia de teus perfumes.
Teu nome é um perfume refinado.
Por isso as adolescentes se enamoram de ti.
Arrasta-me após ti, corramos.
O rei m efaz entrar no seu aposento:
‘Sejamos felizes e alegres graças a ti’.
Celebremos tuas carícias, mais que o vinho.
É com razão que se enamoram de ti” (Ct 1,2-4).

É o vinho, o mel e o favo de mel que o amante encontra no jardim da


amada (Ct 5,1). “Teu paladar, como um vinho de qualidade... indo direto
para meu querido, colando nos lábios dos que vão dormir” (Ct 7,10). Mais
ainda, como diz a esposa apaixonada: “Poderia encontrar-te lá fora, te beija­
ria, sem que as pessoas me desprezassem. Conduzir-te-ia, te faria entrar na
casa de minha mãe. Tu me iniciarias; eu te deixaria beber do vinho aromati-
zado, do meu suco de romã” (Ct 8,1-2).
A presença de Jesus nas bodas de Caná foi relacionada, na pregação
popular, com o sacramento do matrimônio, o que é inteiramente impensável,
A ética de Cristo

uma vez que em todo o Novo Testamento não consta em parte alguma que
existisse uma relação direta entre Jesus e esse sacramento. Tampouco a pre­
sença e a intervenção de Maria, a mãe de Jesus, constitui o centro do relato.
Nem mesmo a referência do próprio Jesus a que não havia chegado ainda
“sua hora” (Jo 2,4). Esses dados não serviram para outra coisa além de distrair
a atenção daquilo que é a chave de compreensão do relato. E essa chave está
em um fato que é inegável e que, na religiosidade judia daquele tempo, era
fundamental, a saber: Jesus não produziu o vinho do nada, mas tudo consis­
tiu em que converteu a água em vinho. Não, porém, uma água qualquer, mas
precisamente a água da religião. A água daquelas purificações rituais, às quais,
segundo o evangelho de Marcos, os judeus se aferravam, enxaguando taças,
jarras e panelas (Mc 7,3-4).
Pois bem, nessa situação e nesse contexto de idéias e sentimentos sagra­
dos, Jesus suprimiu a água da religião, convertendo-a em vinho de festa. Con­
siderando-se que a relação simbólica do vinho com o amor apaixonado dos
enamorados não deve ser entendida como uma explicação rebuscada e fora de
contexto. Sabemos que o relato de Caná foi explicado a partir da chave ofe­
recida pela lenda de Dionísio9. Um ponto de vista reforçado por R. Bultmann
em seu comentário ao quarto evangelho: “Na realidade, o motivo da história,
a conversão da água em vinho, é típico da lenda dionisíaca”10. Por mais ina­
ceitável que seja para alguns a ideia proposta por W Bousset, segundo a qual
o relato de Caná deve ser interpretado em relação com a lenda do deus Díoní-
sio, que durante a noite, no santuário de Elis, enchia de um vinho excelente
três vasilhas vazias (R. Schnackenburg), é certo que a abundância e o prazer
proporcionados pelo vinho têm muito a ver com o que, em qualquer cultura
(judaica, helenista, cristã), representa o prazer e o desfrute do amor conjugal,
tal como se expressa no simbolismo amoroso do Cântico dos Cânticos.
O ensinamento de fundo que a pessoa encontra neste relato é genial:
“Não ponhas tua fé na eficácia mágica que possam ter os rituais religiosos, por
mais que sejam rituais de pureza imaculada; nem ponhas tua fé na presumida
e dissimulada salvação que brota do puritanismo dos irrepreensíveis; nem

9. Cí. J. GRILL, Untersuchungen über die Entslehung des 4 Evang. II, Tübingen, 1 9 2 3 , 1 0 7 -1 2 0 ;
J. E. CARPENTER, The Johannine Wrítíngs, Londres, 1 9 2 7 , 379ss; W BOUSSET, Kyrios Christos,
Gôttmgen, 1 9 3 5 , 2 7 0 -2 7 4 .
10. R. BULTMANN, Das Evangelium des Johannes, Gôttmgen, Vandenhoed & Ruprecht, 1957, 83.
“Eles nao têm vinho”

nos conselhos que te são dados pelos que te querem ver indo pela vida como
pessoa incensurável; põe. tua fé somente no amor, no qual a alegria inefável
do carinho compartilhado é palpável e se faz visível, no qual os amantes se
fundem em um mesmo projeto e com uma única ilusão, a ilusão apaixonada
e apaixonante de dar e receber a entrega livre de quem te quer sem interesse,
porque és tu, tal como és, e nada mais”.

É difícil converter-se ao Evangelho

A enorme dificuldade apresentada pela ética de Cristo não está no fato de


impor exigências que contradizem nossos desejos mais profundos e mais
humanos. Absolutamente o contrário. A ética de Jesus torna-se tão difícil
de ser assumida por nós precísamente em virtude de sua desconcertante
humanidade. O relato das bodas de Caná termina dizendo que este foi o
primeiro sinal realizado por Jesus, que assim se manifestou sua “glória”
(doxa ) e seus discípulos creram mais nele (Jo 2 ,1 1 ). Assim, e tal como soa,
isso não entra em nossa cabeça. A “glória” de Deus expressa sua grandeza
e sua majestade. E isso, segundo as crenças religiosas dos antigos, manifes-
tava-se sobretudo no templo, no clamor dos anjos e por entre a fumaça
branca da solenidade litúrgica (Is 6 ,1 -5 ). Pouco mais ou pouco menos, é
o que muitas pessoas sentem quando assistem emocionadas à grandiosa
liturgia de nossas catedrais ou de nossas abadias monacais. E, não obs­
tante, o Evangelho de Jesus, sua Boa Nova, nos diz outra coisa. Segundo
o evangelho de João, a “glória” de Deus se manifesta, a partir de Jesus, no
gozo da festa e na alegria dos amantes que compartilham o melhor vinho.
Isso é muito humano! E exatamente por isso é tão divino.
Essa é a razão pela qual é tão difícil converter-se ao Evangelho. De uma
forma ou de outra, todos nós ouvimos, a todos nós chegou a mensagem das
religiões que, desde tempos remotos, vêm pregando a ética do dever e da
renúncia, da moral do sacrifício e da mortificação, da superação, da tolerân­
cia e da paciência, da privação de todo o bem e, acima de tudo, a negação
do prazer proporcionado pelo amor entre os seres humanos. Nossa cultura
e nossa religião nos educaram nessa mentalidade. E não nos explicaram que o
verdadeiramente difícil é amar buscando sempre a felicidade da outra pessoa, seu
êxito, seu prazer, sua alegria, sua liberdade, sem pretender jamais dominá-la,
A ética de Cristo

nem fazê-la à nossa imagem e semelhança, sem desejar que lhe agrade o que
agrada a mim, sem querer de modo algum o meu triunfo mais do que o do
amigo ou da amiga, do amado ou da amada, sem censurá-la em nada, sem
jamais pedir algo em troca. Amar assim, com tal transparência de sentimentos
e de intenções, isso é pureza, isso é a coisa mais difícil da vida. Por essa razão,
aí nos deparamos todos com o grande obstáculo para nos deixarmos deslum­
brar pela “glória” do Senhor. E o afirmo novamente: não nos educaram para
isto, nesta ascética do amor prazeroso e da felicidade compartilhada. O co­
nhecido historiador Jean Delumeau, em seu excelente estudo sobre “o pecado
e o medo”, estudou até que ponto a pregação eclesiástica rechaçou, durante
séculos, tudo o que representa ou produz diversão, alegria e prazer. Desde
São Jerônimo até São Bernardino de Siena, repetiu-se constantemente a paté­
tica afirmação que hoje nos causa espanto: “Rir e regozijar-se com este mundo
não é próprio de uma pessoa sensata, mas de um frenético”11. E Grignion de
Montfort fazia com que as jovens que iam ingressar no convento cantassem:
“Beber, comer, dormir, rir, tudo isso deve ser para nós um grande martírio”1112.
Assim sendo, a ideia que se pregava antigamente é que, se Jesus assistiu as
bodas de Caná, “é porque sabia que os convidados se comportariam dentro
dos limites da mais estrita decência”13. Segundo a pregação religiosa ocidental
de todos os tempos, isso é o que importa e é o que se há de buscar antes de
qualquer outra coisa. Daí que, para muitas pessoas religiosas de nossos dias,
isso continua tendo o valor que sempre teve.
O fundo do problema está no fato de que a obrigação religiosa não ape­
nas se dissociou da necessidade humana, mas (o que é pior) ambas as coisas
se defrontaram até o extremo de, com frequência, tornar-se incompatíveis
entre si. Por essa razão, pode-se afirmar, sem medo de exagero algum, que
a grande revolução trazida por Jesus, na história das tradições religiosas
e da humanidade, consistiu em apresentar um caminho para encontrar
o divino que não só não supõe entrar em conflito com o humano, mas de­
monstra que precisamente a divinização do homem consiste em sua mais
profunda e radical humanização.

11. J. DELUMEAU, Le péché etla p eu r, Paris, Fayard, 1 9 8 3 , 510.


12. Op. cit., 5 1 1 .
13. Op., cit., 50 9 .
“Eles não têm vinho”

Por uma ética leiga

Falo de ética leiga não pelo que concerne aos motivos do comportamento hu­
mano, mas por tudo o que afeta os conteúdos da conduta. E falo deste assunto
porque, se Jesus acabou, naquelas bodas, com a água da religião e a substituiu
pelo vinho da festa, de tal modo que assim, dessa maneira tão surpreendente,
manifestou a “glória” de Deus, até o ponto que, por esse procedimento, “au­
mentou a fé de seus discípulos” (Jo 2 ,1 1 ), pode-se, e até mesmo deve-se pen­
sar que lá aconteceu algo muito mais forte e sério do que se pode imaginar
à primeira vista. Para dizê-lo em poucas palavras: Jesus substituiu a religião
sagrada por uma religião leiga.
Ao dizer isso, faço chegar à compreensão que não falo de religião civil,
mas sim de religião leiga. Por certo, falo de “religião”, porque Jesus foi um
homem profundamente religioso, que falou constantemente de Deus, o Pai
do céu. E que passava as noites em oração diante desse Pai bom, com quem
ele se identificava. Se da vida de Jesus de Nazaré extirparmos sua relação com
Deus, Jesus deixaria de ser o Senhor, a quem os cristãos recordaram durante
tantos séculos como o exemplo vivo do que deve ser a vida e a conduta de um
crente que aspirar a ter esperança.
Todavia, tão claro e tão patente como isso é o fato de que Jesus entendeu
e viveu a religião “de outra maneira”. Quero dizer, Jesus entendeu a religião de
um modo que sua forma de praticá-la não se ajustou ao modelo estabelecido
até então. Jesus foi um leigo, que não fundou nenhum templo, nem levantou
altares, nem organizou um estamento sacerdotal, nem impôs jejuns e privações
ascéticas, nem dispôs cerimônias rituais ou purificações sagradas. De nada dis­
so falam os evangelhos. Totalmente ao contrário, os relatos evangélicos ates­
tam muitas vezes que Jesus teve sérios conflitos com a religião sagrada de seu
tempo, a ponto de os sacerdotes daquela religião verem em Jesus um perigo,
uma ameaça. O perigo e a ameaça que os “sinais” (semeia ) representavam para
o “lugar santo” (o templo) e sua religião em geral (cf. Jo 11,48). Simplesmente
por isso, nem mais nem menos, decidiram acabar com ele (Jo 11,50-53).
Seria um despropósito sem fundamento deduzir disso tudo que o cristia­
nismo deve ser uma religião “civil”. Não existe, nem nos escritos do Novo Tes­
tamento, nem na tradição cristã dos séculos seguintes, fundamento algum para
chegar a semelhante conclusão. Seguramente, o primeiro autor que se referiu
a uma espécie de “religião civil” foi Maquiavel, que interpretou a religião cívica
A ética de Cristo

romana como uma religião geradora de solidariedade cidadã e altruísmo14. Isso


se concretiza mais ainda em Hobbes, que insistiu na ideia de uma religião que
oferece o apoio necessário para impor a lei no que diz respeito ao que deve ser
comum a todos os cidadãos15. Entretanto, foi sem dúvida J. j. Rousseau quem
elaborou a noção explicita de “religião civil”. É a ideia por ele desenvolvida no
Contrato Social, concretamente no capítulo VIII do livro IV Trata-se de uma ideia
que Rousseau resume com clareza e exatidão. A “religião civil” é “uma profissão
de fé puramente civil, cujos artigos de fé devem ser fixados pelo soberano, não
precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilida­
de sem. os quais é impossível ser bom cidadão nem súdito fiel”16.
Como se pode observar sem dificuldade, a religião delineada por esses
autores não é uma religião “sobrenatural”, quer dizer, uma religião vinculada
ao divino e transcendente, ou seja, a Deus. Pode-se dizer que é uma “religião
ateia”, uma vez que se trata simplesmente da firme decisão de manter “a uni­
dade da vida social”, visando a que o homem não entre em contradição con­
sigo mesmo17. Em 1967, Robert Bellah publicou seu ensaio sobre La religión
civil en América, que veio repropor as idéias divulgadas dois séculos antes por
Rousseau, ignorando, porém, a corrente de pensamento que havia precedido
o autor do Contrato social18. Além do mais, não é minha intenção analisar aqui
os elementos que compõem esta forma de religião, em parte “civil”, em parte
“política”, que continua caracterizando tão fortemente as práticas religiosas
de não poucos norte-americanos.
O que, certamente, me parece importante destacar é que os autores cita­
dos, que falam de uma “religião civil”, referem-se a isso não por motivações
dogmáticas, e sim éticas. Quer dizer, o que preocupa esses autores não são as
crenças, mas as condutas. Eles eram homens com um senso eminentemente
prático, que se deram conta da contradição que se mostra com tanta frequên­

14. Cf. S. GINER, Carismay razôn. La estructura moral de la sociedad moderna, Madri, Alianza,
2 0 0 3 , 76.
15. Op. cit., 77.
16. J. J. ROUSSEAU, Contrato Social, 1. IV, c. VIII, ed. Espasa-Calpe, 1 9 8 0 , 166.
17. J. J. ROUSSEAU, op. cit., 1. iy c. VIII, p. 162. Cf. J. R VILLAIME, La religión civile à lajran-
çaise et ses meta.morpb.oses: Social Compass 4 0 (1 9 9 3 ), 5 7 1 -5 8 0 ; H. LÜBBE, Religión nach der
Aujklãrung, Viena, Styria, 1 9 8 6 ; G. E. RUSCONI, Possíamo fare a meno di una relígíone civile?,
Bari, Laterza, 1 9 9 9 ; S. GINER, op. cit., 6 7 -1 1 3 .
18. Cf. S. GINER, op. cit., 80.
“Eles não têm vinho”

cia em não poucas pessoas de fortes crenças, cujos comportamentos como cida­
dãos deixam muito a desejar. Trata-se de pessoas que, com muita j é em Deus,
mantêm ao mesmo tempo uma conduta que faz delas simplesmente más
pessoas como cidadãos de determinado país. São indivíduos que/ao mesmo
tempo em que se preocupam obsessivamente em cumprir normas litúrgicas
ou ritos religiosos, cito por acaso, são pessoas autoritárias e dominadoras,
teimosas, orgulhosas e, o que é pior, que provocam com frequência divisões
e confrontos. Ou algo que é muito mais frequente: estamos cansados de ver
homens e mulheres que são profundamente cnstãos e piedosos, que não têm
consciência de fazer mal a ninguém, mas que, ao mesmo tempo, deixam-se
ficar indiferentes perante a dor do mundo e diante da humilhação dos mais
fracos desta terra. Sendo assim, não nos esqueçamos nunca de que o pior de
tudo, e o que causa mais dano nesta vida, não é a maldade, mas sim a indife­
rença. A parábola do bom samaritano não condena os bandidos que rouba­
ram e espancaram o caminhante. A parábola condena o sacerdote e o levita
que não fizeram nenhum mal ao infeliz que estava estendido na valeta da
estrada, porque eram homens cuja consciência não lhes permitia fazer o mal.
Mas o fato é que passaram sem se deter, isto é, ficaram indiferentes diante de
um moribundo. Aí está um exemplo típico de ética religiosa que não cumpre
com os postulados mais elementares de uma boa ética leiga.
Por que acontece isso? Já Maquiavel se deu conta do problema. E diz isso
com toda a clareza: “Os que estão à frente de uma república ou de um reino
devem, pois, manter as bases de sua religião e, feito isto, ser-lhes-á fácil manter
o país religioso e, portanto, bom e unido. E devem favorecer e acrescentar to­
das as coisas que forem proveitosas para ela (a religião), mesmo que as julguem
falsas”19. O que interessa a Maquiavel e o preocupa não são as crenças, por mais
“falsas” que sejam consideradas. O que interessa a Maquiavel é que o povo se
mantenha “bom e unido”. Essa é a razão pela qual este autor critica tão dura­
mente a Igreja Romana. Não porque ele fosse anticlerical, mas porque via o
dano que a corte papal causava na Itália. Ele diz isso com toda a clareza: “Pelos
maus exemplos daquela corte, a Itália perdeu toda devoção e toda a religião,
o que tem infinitos inconvenientes e provoca muitas desordens; porque assim
como onde há religião se pressupõe todo bem, onde ela falta, ocorre absoluta­

19. N. MAQUIAVELO, Discursos sobre la primera década de Tito Lívio, L. I, c. 12, Madri, Alianza,
2 0 0 3 , 72.
A ética de Cristo

mente o contrário. Nós, italianos, temos, pois, com a Igreja e com os curas esta
primeira dívida: o haver-nos tomado irreligiosos e perversos; temos, porém,
uma ainda maior, que é a segunda causa de nossa mina: que a Igreja manteve
nosso país sempre dividido”20. Isso, na opinião de Maquiavel, significa que o
dano provocado pela Igreja não está em que falhe em sua fé, mas no fato de
semear divisão. O que preocupa a Maquiavel não é o dogma, e sim a ética.
O problema estava proposto: como se explica que pessoas profundamen­
te religiosas, crentes e espirituais, sejam ao mesmo tempo pessoas que não
se interessam pelo que se passa no mundo, pelos males que a sociedade pa­
dece e pela dor do povo? Rousseau encontra a resposta na forma como é
compreendido e vivido o cristianismo. O equívoco de Rousseau consistiu
no fato de pensar que isso era devido à própria “natureza” do cristianismo e
não à sua “deformação” histórica. Seu ponto de vista nesse sentido não deixa
lugar a dúvidas: “O cristianismo é uma religião completamente espiritual,
que se ocupa unicamente das coisas do céu; a pátria do cristianismo não é
deste mundo. Cumpre, por certo, com seu dever; cumpre-o, porém, com
uma profunda indiferença para com o bom ou o mau êxito. Contanto que
não haja nada a censurar, em nada lhe importa que as coisas vão bem ou mal
aqui embaixo”21. Confesso que poucas vezes li um parecer tão correto do que
ocorre nos ambientes mais profundamente marcados pela religiosidade cristã,
quando essa religiosidade é mal entendida e vivida pior ainda. De semelhante
religiosidade saem pessoas “totalmente espirituais”, como diz Rousseau, às
quais, no entanto, o que importa é “que não haja nada que reprovar nelas”.
O restante, “o bem ou o mal aqui de baixo”, é coisa que costuma deixá-las
indiferentes. Pelo menos, assim o foi durante séculos.
O erro em tudo isso está em Rousseau, ao falar dessa maneira, estar
refletindo o cristianismo que ele conheceu no século XVIII. O cristianismo
formado na França pelos educadores da consciência burguesa, aqueles pre­
gadores que, seguindo as idéias do bispo Tronson, em sua obra tão reeditada
e lida, Examcns particuliers sur divers sujets propres aux Ecclésiastiques, pergun­
tavam aos cristãos: “Sentimos também contra o mundo todo o ódio e toda a
aversão que pede Nosso Senhor e que seu exemplo deve nos infundir?”. Mais
ainda, que a pátria do cristianismo não é este mundo, como dizia Rousseau,

20. N. MAQUIAVELO, op. cit., L. II, c. 12, p. 73.


21. J. J. ROUSSEAU, Contrato Social, L. i y c. VIII, ed. Madri, Espasa, 1 9 8 0 , 1 6 3 -1 6 4 .
!
“Eles não têm vinho” j

fica patente no livro programático do bispo Tronson: “Temos, por conseguin­


te, desprezado o que o mundo aprecia e apreciado o que o mundo despreza?
Temos amado o que ele odeia e odiado o que ele ama?”22. Como é lógico,
essa maneira de pensar levava diretamente à espantosa afirmação segundo
a qual a seguinte sentença choca-se com as próprias bases do cristianismo: as
ações “são boas em sentido moral tão rapidamente como são realizadas para
um fim honrado, mesmo que nelas Deus não seja tomado por fim último”23.
Ou seja, se alguém é boa pessoa, mas o é sem ter a Deus por fim último,
por isso mesmo deixa de ser boa pessoa. Compreende-se perfeitamente que
Rousseau lançasse mão de sua “religião civil” para levar adiante os critérios
mais elementares do sentido comum. O mal está em que, até há pouco, houve
pregadores eclesiásticos que repetiram, de uma forma ou de outra, as mes­
mas idéias do velho bispo Tronson. E receio muito que ainda haja pessoas de
Igreja que continuam ensinando estas coisas. Logicamente, em se tratando de
pessoas que pensam assim, não pode caber em sua cabeça a leitura que aqui
se fez do milagre de Caná.
Vejo cada dia mais claramente que, sem deixar lugar a dúvidas, Jesus foi
um homem profundamente religioso, mas que entendeu sua religiosidade de
modo que, assim como não teve dificuldade em infringir as normas religio­
sas quando isso foi necessário para fazer o bem às pessoas, nunca soubemos
que tivesse sido um transgressor de normas cívicas, por exemplo no fato de
pagar os impostos que, como bom cidadão, tinha que pagar (Mt 17,24-27).
E se se reflete um pouco mais, de imediato se percebe que, por exemplo, a
ética do sermão da montanha se detém apenas em preceitos “religiosos” ou
em normas “rituais”. O que lá se propõe é o ideal de uma pessoa profunda­
mente boa, honesta, respeitosa, que sempre retribui o mal com o bem e que
é capaz de ser honrada com todos. Daí a diatribe de Jesus contra os fariseus,
que antepunham os deveres religiosos às obrigações mais elementares do bom
comportamento com os outros, concretamente com os pais anciãos (Mc 7,9-
13). E certamente também por isso se explica que, nos relatos evangélicos da
Paixão, o governador romano, Pôncio Pilatos, afirmou não encontrar motivo

22. Estudo de todo este assunto, com abundante documentação e notas bibliográficas, é o que
se encontra em B. GROETHUYSEN, Laformación àe la concíenda burguesa en branda durante d
siglo XVIII, M éxico, Fondo de Cultura Econômica, 1 9 8 1 , 2 0 4 -2 0 5 .
2 3 . B. GROETHUYSEN, op. cit., 2 1 2 -2 1 3 .
A ética de Cristo

de condenação para executar Jesus (Jo 19,4.6; cf. Mt 27,24; Lc 23,4.14-16).


A critério das autoridades civis, Jesus foi um cidadão que não merecia castigo,
nem condenação. Nesse sentido, não parece exagerado afirmar que Jesus foi
um homem pouco exemplar religiosamente, porém irrepreensível civicamente.
Outro fato consiste em que a conduta geral de Jesus, enquanto defendia uma
ordem social (e política) radicalmente distinta da tolerada pelo direito roma­
no, fora considerada como seditío e, portanto, causa de condenação24.
A consequência, que razoavelmente se depreende do que foi dito, está
em perfeita harmonia com as exigências de nossa cultura atual. O que sur­
preende é que as exigências de nossa cultura, uma vez examinadas sem pre­
conceitos nem paixões doutrinárias, apresentam como resultado a coincidên­
cia com os ensinamentos mais básicos do Evangelho. Desse ponto de vista,
parece-me sumamente acertado o conceito de José Maria Mardones: “O desa­
fio fundamental estará em conseguir relações abertas em que a razão profana,
leiga, respeite sinceramente e sem contemplações as tradições e sabedorias
religiosas, e onde estas colaborem criticamente, sem complexos nem superio-
ridades, na construção de uma sociedade mais livre, justa e humana e de seres
humanos mais igualmente livres e pessoas”25.

24. Cf. X. ALEGRE, Los responsables de la muerte de Jesús. Revista Latínoamericana de Teologia
XIV (1 9 9 7 ), 1 6 8 -1 7 0 .
2 5 . J. M. MARDONES, Los valores religiosos y los valores laicos en la sociedad actual, in J. E
TEZANOS (ed.), Tendências en identidades, valoresy creencias, Madri, Sistema, 2 0 0 4 , 406.
.V

6
Em primeiro lugar a vida,
e não a religião

A observância que leva à agressão

Os três evangelhos sinópticos narram que Jesus


curou um hom em com a mão paralisada no dia
(um sábado) em que as leis religiosas do ju d aís­
mo proibiam fazer esse tipo de cura (Mc 3 ,1 -6 ;
Mt 12,9-14; Lc 6,6-11). O evangelho de Marcos si­
tua esse episódio em um momento particularmente
conflituoso. No segundo capítulo desse evangelho,
são relatadas as primeiras confrontações de Je ­
sus com os dirigentes religiosos de Israel. Narra-se
aí que primeiro Jesus foi acusado da pior coisa de
que se podia acusar um judeu: o pecado de blasfê­
mia (Mc 2,7)'. Um pecado que, além de ofensa a
Deus, era um delito e, portanto, de acordo com
Nm 15,30s e Lv 2 4 ,l l s s , era punido nada menos
A ética cie Cristo

que com a pena de m orte1. Assim, pois, na acusação de blasfêmia feita contra
Jesus, estava sendo feita a denúncia mais grave que se faz contra ele em toda
a seção de enfrentamentos, que vai desde o começo do capítulo segundo do
evangelho de Marcos até o relato da cura do homem com a mão paralisada
que, como veremos, termina precisamente com o complô para matar Jesus.
Depois desse incidente, sem dúvida muito grave na mentalidade de en­
tão, o evangelho de Marcos narra que os escribas e os fariseus jogam-lhe na
cara que andava com más companhias, pecadores e publicanos (Mc 2,15-16).
Nas linhas seguintes, explica-se como e por que Jesus e seus discípulos não se
submetiam à lei do jejum nos dias em que isso estava prescrito (Mc 2,18-22).
E — a questão mais delicada entre todas — este capítulo de Marcos termina
com a primeira desobediência (consciente e manifesta) dos discípulos de Jesus
ao descanso obrigatório do sábado (Mc 2,23-24). Todavia, no final do relato
consta que Jesus, de maneira surpreendente para um bom israelita de então,
em vez de repreender os discípulos por sua desobediência às normas religiosas
estabelecidas, defende o comportamento de seus seguidores. E termina com a
afirmação lapidar: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sá­
bado” (Mc 2,27). Para Jesus, a “meta suprema”12 é o amor aos outros, no cum­
primento do preceito religioso. Uma afirmação que, levada verdadeiramente
a sério, antepõe o humano (amar) ao religioso (cumprir observâncias sagradas).
Isso significa que estamos diante de uma autêntica subversão da “ordem sa­
grada” que as religiões estabeleceram neste mundo e em virtude da qual, com
bastante frequência, introduziram um princípio de desordem radical na con­
vivência humana, a ponto de degenerar, não raras vezes e como bem sabemos,
em formas brutais de violência. A experiência que estamos vivendo na atuali­
dade, sobretudo a partir d o l l S e d o l l M , é eloquente a esse respeito.
Tudo isso suposto e, como é óbvio, segundo os dados que acabo de apontar,
no evangelho de Marcos ficam evidenciadas quatro coisas: 1) que os discípulos
de Jesus não cumpriam determinados e importantes deveres da religião oficial-
mente estabelecida naquela sociedade; 2) que Jesus estava de acordo com seme­
lhante conduta; 3) que, além disso, apresentava argumentos para justificar aquele
comportamento; 4) que, para o cúmulo, o próprio Jesus fazia e dizia tudo aquilo,
porque estava convencido de que o ponto central para Deus não é a religião (re­

1. Cf. J. GNILKA, El evangelio según san Marcos, I, Salamanca, Slgueme, 1 9 8 6 , 17.


2. J. GNILKA, op. cit., 144.
Em primeiro lugar a vida, e não a religião

presentada na observância do descanso do sábado), mas o ser humano, especial­


mente quando se vê oprimido por uma necessidade de comer quando tem fome,
que é o que fizeram os discípulos ao recolher e comer espigas de um terreno
semeado no dia de descanso religioso obrigatóno, exatamente no sábado.
Assim sendo, o relato da cura do homem com a mão paralisada na si­
nagoga narra que, ao entrar Jesus no local onde as pessoas se encontravam
reunidas, havia ali indivíduos que “observavam Jesus para ver se o curava no
dia de sábado, com o intento de acusá-lo” (Mc 3,2). Quem eram esses indiví­
duos, esses espiões da fiel observância das normas? O mais razoável é pensar
que eram fariseus, já que no final do relato afirma-se que foram precisamente
os fariseus que saíram imediatamente em busca dos que eram do partido de
Herodes, para ver como poderíam acabar com Jesus (Mc 3,6), ou seja, como
poderíam matá-lo. Estes dados, trazidos pelo relato da cura do homem com a
mão paralisada, dão o que pensar. Com efeito, sabe-se que os fariseus eram ca­
racterizados por serem os mais fiéis observantes das normas. Quer dizer, eram
os homens do dever, ou seja, os homens para os quais o cumprimento da lei
religiosa era não só uma meta-limite ideal, mas, além disso, um programa efe­
tivo de vida prática3. Ora, o que aqui faz pensar é como se explica que alguns
homens, cujo programa de conduta era o cumprimento da lei divina, passaram
pela vida espreitando os outros para surpreender aquele que se porta mal, para
chamar-lhe a atenção, para averiguar se é preciso denunciá-lo ou, inclusive, se
a questão for séria, eliminá-lo de seu meio? Ou, dito de maneira mais direta,
qual é a explicação para que a observância acabe provocando suspeita, denúncia
e assassinato? Não estamos diante de uma pergunta retórica, nem diante de
uma questão curiosa ou infundada. A vida cotidiana oferece, com frequência,
exemplos desse tipo. Isso nos leva inevitavelmente a uma questão muito mais
consistente: como é possível que o mais exato cumprimento da ética leve os ob­
servantes à mais brutal violação do próprio centro do comportamento ético, o
respeito à dignidade, à liberdade, aos direitos e à vida das pessoas?
Paul Ricoeur intuiu acertadamente a resposta. Com efeito, esse autor
entende que, para aqueles que centralizam sua vida na observância legal do
dever, isso é precisamente o que os leva à convicção de que “Deus é ética”, e
o laço que une o homem com seu Deus é “a obediência às suas indicações 4.

3. P. RICOEUR, Finitudy culpabilidad, Madri, Tauras, 1 9 6 9 , 4 0 4 .


4. Op. cit., 4 0 2 .
J Á ética de Cristo

Assim sendo, a partir do momento em que uma pessoa vê assim o próprio


ser de Deus, podem ocorrer os maiores despropósitos e podem desabar sobre
nós os perigos mais ameaçadores. Ademais, pode fazer tudo isso como a coisa
mais natural do mundo, porque, definitivamente, se Deus é Deus e o homem
é homem, a atitude lógica é que o homem se sujeite a Deus em tudo, inclusive
na imolação de sua vida, contanto que os preceitos de Deus sejam cumpridos,
inclusive os mais ínfimos, custe o que custar. Eis aí o fariseu em estado puro. E,
daí, o fundamentalista, o integrista, o fanático. E pode até acontecer que, de
semelhantes princípios, se alimente a “mística perversa” do terrorista.
Aqui está a explicação de um fato surpreendente, a saber: que a mais
fiel observância da ética desemboca inevitavelmente na mais infiel destruição
do comportamento ético. As frequentes denúncias de Jesus contra os fariseus
têm nesse princípio sua explicação, coisa que, além do mais, o sentido co­
mum põe em evidência. Já os antigos romanos, peritos em leis e em condutas,
formularam isso na conhecida sentença: summum ius, summa iniuría5, o direi­
to mais estritamente cumprido leva à máxima violação do direito.
Por tudo o que estou dizendo, não me entusiasma muito o ensaio de
Gilles Lipovetsky sobre O crepúsculo do dever. Embora tenha citado várias
vezes este autor e farei mais alguma referência a ele, não me agrada essa espé­
cie de nostalgia (mal dissimulada) dos tempos em que o “dever” era deter­
minante no comportamento humano. O dever é determinantemente bom, se
o que se deve fazer for bom e se for feito com o discernimento e a discrição
necessários para não antepor nunca o meu dever à necessidade do outro
ou dos outros. Digo isso porque já estamos cansados, cansados demais, dos
“místicos do dever” que, se levarem sua mística até as últimas consequências,
podem acabar sendo “místicos do terror”— ou simplesmente “místicos de
uma convivência insuportável”.

O que é determinante para Jesus

Supõe-se que Jesus tinha consciência do que estava acontecendo na sinagoga


quando ele entrou naquele ambiente. O que ali se respirava era uma situação
sumamente tensa, porque, segundo o direito judaico daquele tempo, a vio­

5. SÊNECA, Dial. 4, 3 0 , 1; TÁCITO, Ann. 14, 18, 1. Cf. Thesaurus Linguae Latinae, VII, 1 671, 80.
Em primeiro lugar a Tida, e mão a religião

lação repetida do sábado era castigada com a pena de morte. Além disso,
segundo o mesmo direito, um crime só chegava a ser objeto de julgamento
depois que o autor houvesse sido advertido notoriamente diante de testemu­
nhas e assim ficasse assegurado de antemão que o suposto infrator havia
agido deliberadamente6. já no segundo capítulo do evangelho de Marcos
nos é informado que chamaram a atenção de Jesus pela violação do sábado,
quando seus discípulos iam arrancando espigas no dia de descanso (Mc 2,24;
cf. jo 5,10). Ademais, naquela ocasião, Jesus chegou a afirmar que estava
violando o sábado por convicção (Mc 2 ,2 5 -2 8 ). Portanto, a infração seguinte
da lei do descanso sabãtico (se nos ativermos aos preceitos legais da religião)
poria em perigo a vida de Jesus7— o que efetivamente aconteceu, como ve­
remos em seguida. Por isso, compreende-se o dramatismo da passagem que
relata a cura do homem com a mão paralisada.
Tudo isso nos faz entender a força que tem esse episódio na hora de com­
preender o que era (e continua sendo) verdadeiramente central na ética de
Jesus. Em uma situação como aquela, Jesus poderia perfeitamente deixar a
cura do homem com a mão paralisada que havia na sinagoga (Mc 3,1) para o
dia seguinte, e nada teria acontecido. Um homem que, afinal de contas, estaria
certamente havia muito tempo com aquela limitação, poderia ter esperado
algumas horas sem problema nenhum. Ou também, poderia curar o enfermo
parcialmente inválido “discretamente” e sem chamar a atenção. Mas Jesus
não fez nada disso. Ou, melhor dizendo, fez tudo ao contrário, de maneira
pública e até provocadora. Segundo o relato de Marcos, Jesus disse ao h o­
mem que se pusesse de pé (Mc 3,3), ali, no meio da sala, onde era visto por
todos. E assim, com o homem sob os olhares de todos os que estavam ali,
Jesus ousou fazer uma pergunta surpreendente: “O que é permitido no dia
de sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou matá-la?” (Mc 3,4).
Com toda a clareza, dizer semelhante coisa ali, naquele ambiente tão carregado
e tenso, era uma autêntica provocação, porque, pelo menos à primeira vista,
naquele momento, parece evidente que ninguém pretendia matar o homem
com a mão paralisada. E, não obstante, a pergunta tinha sua razão de ser. Mais
ainda, tratava-se de uma pergunta que propunha o problema fundamental. Em

6. J. JEREMIAS, Teologia dei Nuevo Testamento, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 7 4 , 3 2 3 , que oferece


abundante documentação das fontes legais do tempo.
7. J. JEREMIAS, op. cit., 3 2 3 .
A ética de Cristo

última instância, o que Jesus estava perguntando era isto: o que está em primei­
ro lugar para a religião: o cumprimento do dever (a observância das normas) ou
a necessidade que tem qualquer ser humano de gozar sua vida em plenitude?
Não estamos acostumados a que nos façam essa pergunta. As religiões
sempre tiveram como critério determinante o cumprimento do dever, ou seja,
ser fiéis às obrigações de cada um. Daí os fiéis, nas diferentes religiões, se­
rem educados para cumprir deveres e terem a consciência de que esse é o
caminho que nos aproxima de Deus. Não obstante, da satisfação de nossas
necessidades, nem as religiões nem seus dirigentes costumam falar e, em qual­
quer caso, não é esse um assunto que, em geral, resulte em tema central de
qualquer discurso religioso. E se as necessidades humanas ocupam pouco
espaço na ética das religiões, menor importância ainda tem a satisfação de
tais necessidades, com tudo o que isso tem de prazer e desfrute. O prazer, a
alegria e o desfrute de viver em plenitude. Com toda a certeza, nessa maneira
de pensar está oculta a convicção de que a relação do homem com Deus é como
uma espécie de cópia da relação do súdito com o Senhor. Assim sendo, o que
é próprio do Senhor é o mandar. E é próprio do súdito obedecer e cumprir
com seus deveres. Eíá aí um modelo antropológico que configurou o modelo
sobrenatural de relação entre o homem e Deus.
Assim, as religiões converteram os deuses em senhores autoritários e
fizeram da experiência religiosa um produto, não só ingrato e duro, mas que,
além disso, pôs em primeiro plano do religioso o ponto mais desagradável da
vida. Enquanto, ao contrário, o lúdico, o festivo, tudo o que há na existência
de prazer, de alegria e de felicidade deixou-se ficar, não só à margem da rela­
ção com Deus, mas também nos foi apresentado como algo que se deve vigiar,
controlar, reprimir e, se necessário, sancionar. Daí o puritanismo que marcou
tão profundamente a cultura do Ocidente a partir de autores que são bem
conhecidos. Refiro-me a Pitágoras e Empédocles8. “O prazer — diz o velho
catecismo pitagórico — é mau em todas as circunstâncias, porque viemos
aqui para ser castigados, e deveriamos ser castigados.”9 Esses autores, segun­
do a explicação mais aceita, tomaram essas idéias das práticas e teorias dos
velhos xamãs das religiões primitivas das tribos do norte da Europa e da Ásia.

8. Sobre este assunto, cf. o excelente e clássico estudo de E. R. DODDS, Los griegosy lo irracio­
nal, Madri, Alianza, 2 0 0 1 , 1 3 3 -1 6 9 .
9. IAMB., Vita Pyth. 85. Vorsokr., 5 8 C 4. Citado por E. R. DODDS, op. cit., 149; 165.
Em primeiro lugar a vida, e nao a religião

Nada menos do que das extravagantes teorias daqueles velhos xamãs chegou
até nós, como se fosse algo querido por Deus, a convicção de que o que im ­
porta, o que verdadeiramente interessa, para que este mundo ande bem, é a
pureza, porque o prazer suja e contamina. E é, portanto, o mais importante
a ser evitado na vida — a não ser que se desfrute de acordo com o mandado
p o r... Deus? Não existem traços disso na Bíblia. Assim o dispuseram os ve­
lhos xamãs de religiões ancestrais cuja origem ninguém conhece com ciência
certa. Isso quer dizer que é dos xamãs, e não da Bíblia (e menos ainda do
Evangelho), que vem o ideal, que muitas pessoas tão bem assimilaram, do
homem que é “irrepreensível” porque sempre manteve as devidas distâncias
em assuntos amorosos, porém que, ao mesmo tempo, soube “triunfar” na vida
porque escalou postos de poder e porque foi rápido na hora de ganhar muito
dinheiro. Essa maneira de pensar é a expressão mais patente do puritanismo
que o Ocidente herdou dos velhos xamãs por intermédio dos gregos.
Oculta-se, no fundo dessas tendências puritanas, o afã de dominação
e de poder que se costuma observar nos dirigentes religiosos, desde os pri­
mitivos líderes das antigas religiões até os últimos inventores de seitas inte-
gristas cuja ordem suprema de santidade é a submissão e a obediência? Seja
qual for a resposta a esta questão, o fato é que as religiões se fizeram odiosas
para grandes setores da opinião pública. Isso levou muitos movimentos re­
ligiosos a se precipitarem em uma profunda crise da qual não sabemos se
algum dia poderão ressurgir. E é um fato que uma das manifestações mais
fortes dessa crise está em que o povo continua crendo em Deus, porém, é
cada dia maior o número de pessoas que vivem suas crenças à margem de
qualquer instituição. É a “espiritualidade sem Igreja”10, da qual tanto se fala
agora e cuja expressão popular é a conhecida fórmula “eu creio em Deus,
mas não creio nos padres”. O problema não está em que os sacerdotes sejam,
como todos os humanos, frágeis e pecadores. O problema reside no fato de
que há um número excessivo de religiosos que têm acentuada tendência a
comportar-se como os velhos xamãs no que concerne ao exercício do poder
e à consequente imposição autoritária sobre os fiéis: Não necessariamente
porque sejam mandões, mas porque estão convencidos de que suas decisões
são a expressão mais autorizada da vontade de Deus.

10. Cf. MILLÁN ARROYO, Hacia una espiritualidad sin Iglesia, in J. E TEZANOS, Tendências en
identidades, valoresy creencias, Madri, Sistema, 2 0 0 4 , 4 0 9 -4 3 6 .
A ética de Cristo

Contudo, a experiência histórica nos ensina até à saciedade que, em nome


de Deus, foram impostos às pessoas muitos disparates. Dai, como se disse muito
bem, “a rejeição generalizada de uma autoridade que não aceita, em seu exercí­
cio, participação de subordinados nas decisões que lhes dizem respeito”11.

Á Religião como possível “armadilha”

Pelo que acabo de explicar, é estimulante saber que Jesus se comportou de tal
maneira que para ele foi mais decisivo satisfazer as necessidades dos outros do
que cumprir seus próprios deveres, inclusive o dever de obedecer em condi­
ções nas quais ele via que não devia submeter-se a mandatos que se antepu­
nham à vida, à integridade e à felicidade das pessoas. Isso é o que explica que
Jesus tenha feito aquela pergunta na sinagoga, quando colocou o homem de
mão paralisada de pé, no meio de todos. E isso é também o que explica que
Jesus, naquela ocasião como em tantas outras, faltasse com seu “dever” de
observar o descanso sabático e, em lugar disso, curasse o homem, ou seja, sa­
tisfizesse a “necessidade” que aquele homem tinha de recuperar a integridade
de sua saúde corporal — sem esquecer que Jesus o fez ciente do perigo em
que punha sua própria vida. O fato é que, segundo conta o relato, ao sair da
sinagoga, os fariseus foram direto em busca dos partidários de Herodes, o rei
que mandava então na Galileia, para ver como liquidariam aquele personagem
inquietante, que não hesitava em violar as leis mais sagradas, desde que curas­
se um homem que, afinal de contas, poderia ter sido curado no dia seguinte.
Esse é o fato. Mas o que há por trás desse fato? Ou, em outras palavras,
por que Jesus agia dessa maneira? Respondo com poucas palavras: aquele que
anda obcecado por cumprir com seus próprios deveres, na realidade é uma
pessoa obcecada por sua própria conduta, ao passo que aquele que, em todas as
horas, anda preocupado com as necessidades dos outros é uma pessoa que põe
o bem e a felicidade dos outros acima de tudo (inclusive de si própria). Trata-se
de dois dinamismos contrapostos. O primeiro é um dinamismo centripeto, isto
é, o sujeito centrado em si mesmo. O segundo é um dinamismo centrifugo, ou
seja, o sujeito centrado nos outros. Não se trata, no segundo caso, de um sujei-1

11. H. HOLSTEIN, Autoridad y poder en la Iglesia, na obra de G. DÉFOIS, C. LANGLOIS e


H. HOLSTEIN, El Poder en la Iglesia, Madri, Marova, 1 9 7 4 , 2 0 6 .
Em primeiro lugar a vida, e nao a religião

to “des-centrado”. O “homem-para-os-outros” é uma pessoa centrada, porém,


não centrada somente em si mesma, mas centrada em uma realidade mais am­
pla, mais total e, por isso mesmo, mais rica e mais enriquecedora.
As religiões pregam frequentemente a própria santidade, o ideal da pró­
pria perfeição e, por certo, a premente necessidade de fugir da própria con­
denação e alcançar a própria salvação. Afinal de contas, sempre o próprio. Aí
está o perigo ou a possível “armadilha” na qual, sem percebermos, podemos
ser apanhados na qualidade de pessoas que frequentam as práticas religiosas e
têm convicções de fé. É a contradição sutil em que muitas vezes incorre a ética
que se fundamenta na religião. Assim sendo, não é estranho encontrar pessoas
muito religiosas e, ao mesmo tempo, profundamente egoístas e centradas em
si mesmas. Com um agravante: como tudo é feito pelo motivo mais nobre
do mundo, isto é, por Deus, o sujeito fica incapacitado para se dar conta da
contradição em que vive. Isso explica, entre outras coisas, o quanto é difícil
“converter” as “pessoas de Igreja”, não porque sejam duras de coração, mas
porque se sentem seguras e, portanto, alheias a qualquer forma de suspeita.

A vida está em primeiro lugar

A necessidade básica e primeira é a vida. A integridade da vida, a segurança


de viver, a dignidade e os direitos da vida, a felicidade de viver. Uma ética,
cristãmente entendida, tem que pôr este critério acima de todos os outros,
não só no começo da vida (problema do aborto ou das pesquisas com células-
mãe) e no final da vida (problema da eutanásia), mas também ao longo de
toda a vida. É surpreendente, e possivelmente até escandaloso, que os movi­
mentos religiosos fundamentalistas não se interessem em lutar contra a pena
de morte ou contra as chamadas guerras “preventivas” da mesma forma que
lutam contra o aborto ou a eutanásia.
No entanto, existe algo que é muito mais grave: o sistema econômico
mundial atualmente vigente (o capitalismo neoliberal) organizou as coisas de
tal maneira que, enquanto a riqueza mundial se concentra progressivamente
em menos pessoas, morrem a cada dia cerca de 70 mil seres humanos por
falta de alimento e pelas consequências da má nutrição. Se levarmos a sério
uma ética que situe no centro de suas preocupações e projetos a defesa da
vida, a primeira coisa a ser feita pelos que abraçarem essa ética é lutar contra
A ética de Cristo

este sistema genocida e criminal. A conduta de Jesus, ao curar o homem com


a mão paralisada na sinagoga, nos impele diretamente a essa conclusão.
Quando se pensa nesse assunto, o que chama a atenção é o fato de que
as pessoas profundamente identificadas com as instituições religiosas, se in­
terrogadas sobre o que está em primeiro lugar, em seus princípios éticos, cos­
tumam responder sem vacilar que em primeiro lugar está a vida, a defesa da
vida. Daí sua luta apaixonada contra o aborto, contra as pesquisas científicas
que podem pôr em perigo a integridade da vida humana, a condenação de
toda prática sexual que não desemboque em uma sexualidade “aberta à vida”,
e agora a condenação da eutanásia ativa. Tudo isso, como é fácil compreen­
der, passa a fazer parte de uma lógica em prol da vida que, pelo menos em
princípio, pode ser perfeitamente aceitável. O que já não se entende é que
aqueles que defendem tudo isso tão apaixonadamente, ao mesmo tempo não
se inquietem muito com outros problemas que neste momento são suscitados
no mundo e que afetam a defesa da vida de maneira simplesmente aterrori-
zante. Ao dizer isso, penso na pena de morte, na fabricação e no comércio de
armamentos bélicos, especialmente os armamentos atômicos, nas centenas
de milhares de crianças que se veem obrigadas a trabalhar como autênticos
escravos, nas mulheres e crianças com as quais se exerce o tráfico para re­
des de prostituição ou comércio de órgãos... Penso em tantas e tão brutais
agressões contra a vida no tocante às quais aqueles que condenam o aborto
ou certas práticas sexuais não dizem nem meia palavra. Como se explica
tanto radicalismo em algumas coisas e tanta passividade em outras? Como se
explica que aperfeiçoem tanto suas análises científicas e filosóficas sobre os
embriões e o primeiro começo do início da vida humana, ao mesmo tempo
em que nem se interessam pelos desastres econômicos ocorridos na década
de 1990 e que trouxeram como consequência o aumento do desemprego e da
inflação, com danos irreparáveis para os serviços sociais?12
Explica-se por duas razões que, por pouco que se pense nelas, imedia­
tamente após, são vistas como coincidentes. Em primeiro lugar, o fundamen-
talismo religioso e, em segundo lugar, a cumplicidade do religioso com o político. E
digo que ambos os motivos são profundamente coincidentes porque, como se
sabe muito bem, o fundamentalismo religioso tem múltiplas conexões com a

12. Quanto a este problema, recom endo a leitura do excelente estudo de J. E. STIGLITZ, Los
felíces 90. La semilla de la destruccíón, Madri, Tauras, 2 0 0 3 .
Em primeiro lugar a vida, e nao a religião

direita política, tanto na América quanto na Europa. De fato, o “fundamenta-


lismo” nasceu, com esta denominação e como movimento religioso, em inícios
do século XX, entre os protestantes evangélicos dos Estados Unidos. Trata-se
de uma história bem conhecida e suficientemente analisada13. Conto se sabe
muito bem, os fundamentalistas desempenharam um papel importante duran­
te a década de 1980, na esfera política dos Estados Unidos, concretamente em
defesa dos interesses dos candidatos republicanos mais conservadores, como é
o caso de Ronald Reagan e George Bush sênior, com a criação da corrente The
Moral Majonty S.A., do pastor batista e pregador televisivo Jerry Falwell, ju n ­
tamente com a Christian Coalitíon, do tele-evangelista Pat Robertson14. Sabe-se
que a Maioria Moral defendia os valores tradicionais do modo de vida america­
no, como a integridade da família e a condenação da pornografia, que apoiou o
programa do “escudo estelar” de Ronald Reagan, mostrou seu apoio aos “con-
tras” da Nicarágua e criou um lobby favorável ao governo racista da África do
Sul, com a anuência e a visita do própno Jerry Falwell15. Como qualquer pessoa
entende facilmente, estas vmculações patentes entre o fundamentalismo reli­
gioso e a direita política não podiam ocorrer por mera coincidência, sobretudo
se levarmos em conta que os temas nos quais se vem centrando o fundamen­
talismo americano de estilo conservador são os mesmos que defendem com
veemência outros grupos religiosos de marcada tendência igualmente funda-
mentalista, como é o caso de não poucos bispos católicos. Refiro-me a temas
como a condenação do aborto e da eutanásia sem paliativos, a rejeição dos
matrimônios homossexuais, a exigência do ensino da religião confessional na
escola pública e a incansável pregação contra a permissividade sexual em todos
os âmbitos da vida privada e pública16.
A explicação dessas profundas conexões entre fundamentalismo religioso
e conservadorismo político é facilmente encontrada. Qualquer ética religiosa,
por mais frouxa que seja, tem de adotar uma postura clara em defesa da vida.
Daí a condenação do aborto e da eutanásia, para citar dois exemplos bem
conhecidos. Porém, ao mesmo tempo, se essa ética religiosa mantém cone­

13. Cf. J. J. TAMAYO, Fundamentalismosy diálogo entre religiones, Madri, Trotta, 2 0 0 4 , 7 5 -8 0 ; K.


ARMSTRONG, Los orígenes dei fundamentalismo en el judaísmo, el cristianismo y el islam, Barcelo­
na, Tusquets, 2 0 0 4 , 2 2 1 -2 5 7 ; J. FALWELL, Listen, America!, Nova York, Doubleday, 1980.
14. J. J. TAMAYO, op. cit., 78.
15. J. J. TAMAYO, op. cit., 79.
16. K. ARMSTRONG, op. cit.
A ética de Cristo

xões ideológicas e de interesses econômicos com partidos políticos que têm


profundas ligações com os grupos de poder econômico mais vinculados à in­
dústria de armamentos e à enorme maquinaria das guerras, então se torna ló­
gico o parentesco da ideologia religiosa da direita política com a mentalidade
moral das correntes mais conservadoras e mtegnstas. Pois bem, sabemos que
os partidos da direita de sempre costumam ser rigorosos na defesa da família
tradicional e da religião conservadora, ao mesmo tempo em que são toleran­
tes em assuntos como a pena de morte ou a violência que as guerras acarre­
tam. Daí resulta algo que está à vista de todos. Refiro-me ao tipo de pregação
religiosa que faz coincidirem os ideais da direita com os ideais da religião.
Ideais religiosos estes que, certamente, defendem a vida quando se trata do
tema do aborto, porém não a defendem igualmente quando está em jogo o
tema da guerra, o da pena de morte, ou, mais amplamente, quando se trata
dos direitos humanos em toda a sua amplitude, por exemplo, a igualdade de
direitos (em todos os âmbitos da vida) das mulheres com os dos homens.
E evidente, seja qual for a maneira como se vê, que, neste modelo de
projeto ético, põe-se em evidência uma contradição patente. Reporto-me à
contradição que todos os movimentos religiosos implicados em interesses
políticos, aos quais convém a permissividade em assuntos como a guerra,
têm de defender. Torna-se sintomática, nesse sentido, a cumplicidade dos
governos da direita americana com a violência mais brutal em meio mundo. E
mais sintomática ainda é a postura de aceitação (mais ou menos dissimulada)
de amplos setores da Igreja com semelhantes governos. A políticos desta ten­
dência, não lhes incomoda em nada a intransigência eclesiástica em assuntos
como a condenação indiscriminada do aborto ou a censura em assuntos de
sexo. Enquanto a Igreja não levantar a voz condenando as armas atômicas ou
os gastos militares (com cifras sobre a mesa), os políticos desses governos se
sentirão totalmente livres. E a Igreja também, porque existem interesses mú­
tuos, interesses de uns e outros que, com o silêncio, veem-se favorecidos. No
caso concreto dos Estados Unidos, o silêncio da Conferência Episcopal sobre
a condenação das armas atômicas dá votos ao presidente que ocupa a Casa
Branca. Ao mesmo tempo esse silêncio permite à Igreja católica beneficiar-se
de um importante corte nos impostos fiscais, sem o qual as instituições ecle­
siásticas ver-se-iam seriamente prejudicadas. Saliente-se que, ao dizer isso,
não estou inventando nada. Isso foi o que me disse um dos bispos auxiliares
de Nova York, enquanto almoçávamos tranquilamente em uma paróquia da­
Em primeiro lugar a vida, £ não a religião 1

quela imensa diocese, precisamente em 1983, quando acabava de sair às mas


um amplo documento, publicado então pela Conferência Episcopal dos EUA
sobre a paz e o desarmamento.

Ética do “dever”, ética da “necessidade”

Compreende-se agora a profundidade e, ao mesmo tempo, a atualidade que


encerra a pergunta feita por Jesus, em plena sinagoga, quando propôs a questão
aos fariseus: se está em primeiro lugar observar as normas da religião ou, antes,
satisfazer as necessídades-chave da vida. Assim formulada a pergunta, é quase
certo que nos sentimos mal na hora de ter que responder, porque, certamente,
vemos nesse dilema um perigo, o perigo de destruir a ética, para convertê-la
na justificativa do hedonismo, de todos os egoísmos e dos mil caprichos que
podem vir à nossa imaginação. Isso sem falar das falsas “necessidades” que nos
são criadas pela publicidade. E tudo isso é verdade. No entanto, é preciso ter
a lucidez e a coragem de defrontar-se com essa pergunta, por uma razão tão
forte quanto simples, a saber: porque a fidelidade às obrigações religiosas costuma
servir de falsa justificativa para legitimar nosso desinteresse diante das necessidades,
com frequência prementes, dos que nos cercam. Assim, a ética do dever bem cum­
prido nos deixa com a consciência tranquila, ao passo que (curiosamente) a
ética da necessidade vital satisfeita costuma deixar uma espécie de sedimento
de mã consciência, sem saber exatamente por quê.
Provavelmente, quando isso nos acontece, não percebemos que, se as coisas
forem levadas a sério, a pura verdade é que a ética da necessidade (do outro) é
muito mais exigente e dura de cumprir que a ética do próprio dever. O próprio
dever tem alguns contornos delimitados e algumas arestas claras, ao passo que
as necessidades do outro podem nos comprometer até onde nem imaginamos.
E isso é o que nos causa medo, o qual desencadeia resistências inconfessáveis,
que logo maquiamos com os “bons argumentos” que nos são proporcionados
pelo puritanismo ocidental, pela fidelidade a Deus e à consciência, e outras
coisas assim. O resultado é o esplendor da religião e, de quebra, o atropelo da
vida, principalmente todo o atropelo da dignidade da vida de tantas pessoas
que não contam com os meios necessários para se defender.
Hoje, muitos se lamentam de que a ética do dever anda destruída. Mas
são poucos os que se alegram pelo fato de que a ética da necessidade desperte
A ética de Cristo

em alta a cada manhã. René Girard, o grande estudioso das misteriosas relações
entre religião e violência, escreveu páginas iluminadas sobre a mudança tão
profunda que estamos vivendo, enquanto se refere à “crescente preocupação
pelas vítimas”. Será certo, sem dúvida, que a cada dia somos menos sensíveis ao
“dever”. Porém, tão certo quanto isso é que a cada dia somos mais sensíveis às
“necessidades” das vítimas deste mundo. Há anos, por volta da década de 1960,
estava na moda a violência revolucionária: “revolução”, “liberação”, “igualdade”
eram as palavras-chave do momento. Hoje, tudo aquilo nos soa como velha
cantilena. E, contudo, é verdade que “o poder de transformação mais eficaz não
é a violência revolucionária, mas a moderna preocupação com as vítimas”17.
Essa preocupação está aumentando e transcendeu as fronteiras, até transformar-
se em um fenômeno de âmbito mundial. Girard insiste nisto: “Nosso mun­
do não inventou a compaixão, mas a universalizou. Nas culturas arcaicas, a
compaixão era praticada apenas no seio de grupos extremamente reduzidos. A
fronteira ficava sempre assinalada pelas vítimas. Os mamíferos marcam seu ter­
ritório com seus próprios excrementos, algo que durante muito tempo vieram
fazendo também os homens com essa forma especial de excremento que para
eles representam os bodes expiatórios”18. Bem, pois isso terminou, ou está em
vias de extinção, pela simples razão de que, progressivamente, as fronteiras vão
desaparecendo. As vítimas já não são “nossas”, mas de “todos”. E emergem as­
sim com força interpeladora as dores e humilhações das pessoas cujo clamor se
toma cada vez mais universal, mais forte e, por isso mesmo, mais insuportável.
Nesse contexto, causa-me impressão o fato de que a má consciência, ou, caso se
prefira, a nova sensibilidade, vai dar uma virada nessa situação em alguns anos.
Em qualquer caso, a ética de nosso tempo não pode permanecer indiferente, e
menos ainda ausente, a esse fenômeno emergente e esperançoso.

17. R. GIRARD, Veo a Satán caer como d relâmpago, Barcelona, Anagrama, 2 0 0 2 , 2 1 7 -2 1 8 .


18. Op. c i t, 2 1 9 .
“Tenho compaixão desta
multidão”
(Mc 8,2)

Grandeza e força da sensibilidade

Falamos aqui não das convicções de Jesus, mas


de sua sensibilidade, porque, quando se trata de ju l­
gar o comportamento ético de uma pessoa, é mais
determinante a sensibilidade do que as convicções.
Infelizmente, é muito frequente a dissociação e o
desacordo existentes entre as idéias e os fatos. Há
pessoas que têm determinadas idéias, algumas
convicções (certamente firmes), mas, na hora da
verdade, fazem absolutamente o contrário do que
pensam e do que falam, porque se trata de pessoas
que têm suas idéias em coisas e projetos nos quais
não puseram sua sensibilidade. Cada pessoa é o que
é sua sensibilidade. E cada qual faz o que lhe dita
sua sensibilidade. Fazemos aquelas coisas às quais
somos sensíveis. E deixamos de fazer tudo aquilo a
que somos insensíveis. Mais ainda, a sensibilidade
A ética de Cristo

tem tanta força na vida, que acaba modificando até as convicções mais firmes
e, em geral, a maneira de pensar.
A sensibilidade não é o mesmo que a vontade. A vontade é decisão, enquanto
a sensibilidade é atração. Aqui está o segredo e a chave do comportamento hu­
mano. Não que as decisões não influam na conduta das pessoas, toda decisão,
na medida em que exige esforço, é tomada uma que outra vez. A atração, ao
contrário, está presente em todas as horas, em cada ato, em cada momento, a
ponto de, frequentemente, não sermos capazes de resistir ao que nos atrai. Por
isso é correto dizer que somos sensíveis àquilo que nos atrai, que nos agrada, que
nos seduz e, acima de tudo, a tudo que nos tira de nós mesmos e, nesse sentido,
nos arrasta. Isso é bem conhecido dos homens de propaganda e de publicidade.
As mensagens publicitárias, que vemos constantemente em anúncios nos meios
de comunicação ou nos grandes outdoors nas ruas e nas estradas são imagens
e textos estudados em detalhe por pentos altamente qualificados, os grandes
profissionais da manipulação de massas. Os conteúdos dessas mensagens publi­
citárias não são dirigidos às idéias das pessoas, mas à sua sensibilidade. Por isso,
os especialistas em publicidade são mestres consumados na utilização daquilo a
que qualquer ser humano é mais sensível, o êxito, o bem-estar, o poder e, sobre­
tudo, a felicidade, o bem-estar e o prazer proporcionado pela sexualidade.
Não se pense que essas coisas são um invento recente. Trata-se de convic­
ções muito antigas. Sem nos transportarmos a tempos mais remotos, já Tomás
de Aquino, no século de ouro da grande escolástica, fazia uma distinção sutil
entre o “amor” e a “dileção”, afirmando que o amor é mais divino, precisamente
porque é mais passivo. Para os teólogos escolásticos dos séculos XII e XIII, o
amor é uma “paixão”, a primeira e a mais importante de todas as paixões que
o ser humano possui e vive. “O amor”, afirma Tomás de Aquino, “é a primeira
das paixões do apetite concupiscível”1. E o próprio Tomás de Aquino conclui
daí, de maneira surpreendente: “o amor (ou seja, a paixão) é mais divino que a
dileção”. Por quê? Porque “o homem pode dirigir-se melhor a Deus pelo amor,
já que é atraído passivamente, de alguma forma, pelo próprio Deus”12. A razão
aduzida por santo Tomás para dizer isso vem a ser sem dúvida desconcertante

1. "Amor ergo est prima passionum concupíscíbílis”. Sum. Theol., I-II, q. 2 5 , a. 2.


2. “Divinius est amor quam dilectio... per amorem passive quodammodo ab ipso Deo attractus’’.
Summ. Theol. I-II, q. 2 6 , a. 3 acl 4. Cf. A. G. VELLA, Love is acceptance. A psychological and theolo-
gícal investigation of the mind of St. Thomas Aquínas, Malta, M.U.P., Mesida, 1 9 6 9 , 1 1 8 -1 2 3 .
“Tenho compaixao desta multidão”

para algumas mentalidades: o amor merece esse elogio precisamente porque é


“paixão”, ou seja, implica a força que o passional imprime na conduta: “por­
que o amor comporta certa paixão, principalmente enquanto reside no apetite
sensitivo”3. É mais divino sentir-se seduzido e deixar-se seduzir do qüe, à força
de punhos e de esforço voluntarioso, tentar aproximar-se de Deus e pretender,
assim, ser boa pessoa. E isso é mais divino porque, no fundo, é o mais humano
que existe na vida. Trata-se da “lei da encarnação” levada a sério e levada até
as últimas consequências. Se Deus, na Encarnação, fundiu-se e confundiu-se
com o humano, isso quer dizer que Deus se ajusta e se acomoda às leis do que
nossa humanidade contém. E a experiência nos ensina que, segundo as leis do
humano, o que mais funde as pessoas entre si é exatamente o amor (insepará­
vel da paixão) que faz de nós um só ser, ou seja, somos fundidos na unidade.
Quanto ao mais, essa força da sensibilidade na vida é o que os grandes
mestres da sedução e do engano, os profissionais da publicidade manipulam
perfeitamente. Nisso está o segredo de sua eficácia. O segredo consiste em as­
sociar, no inconsciente da pessoa, a suposta excelência da qualidade de uma
marca de perfume ou de álcool com o atrativo sedutor do olhar ou da figura
de uma linda mulher. Sem sombra de dúvida, aquele que se sentir assim se­
duzido e arrastado (pelo que quer que seja ou por quem for) faz aquilo que o
seduz e arrasta. Nisso está a chave da força e do poder de decisão que repre­
senta a sensibilidade em nossas vidas e em nosso comportamento.

Sensibilidade e conduta

Pelo que acabo de explicar, compreende-se a força da sensibilidade na hora


de entender e pôr em prática uma conduta ética correta. A ética não pode
ser construída somente a partir da especulação abstrata ou da lógica do dis­
curso racional que pretende demonstrar com argumentos o que se deve ou
não fazer. Uma ética que se detiver somente nisso não passa de uma teoria a
mais, no melhor dos casos, talvez uma boa teoria, mas uma teoria que nunca
terá mais força para determinar as condutas que a atração que as mensagens
dirigidas à sensibilidade das pessoas têm.

3. “Quia amor importat quandam passionem, praecipue secundum quod est ín appetitu sensiti­
vo”. Op. cit. '
A ética de Cristo

As situações mais importantes que a vida nos apresenta não podem ser
administradas somente com base na lógica da razão. As situações mais im­
portantes, principalmente quando se trata de sofrimento, de bem-estar ou
desfrute da vida, só podem ser administradas adequadamente com base na
sensibilidade. Nisso consistiu, certamente, uma das intuições mais profundas
da ética sabiamente formulada por Emmanuel Lévinas. Com efeito, para este
autor, hoje em dia, uma ética não pode ser elaborada pelo mero recurso à
ideia da razão, mas pondo em jogo a ideia da sensibilidade. A ética é uma nova
sensibilidade para com os outrosh Aquele que é sensível diante da dignidade,
dos direitos ou da dor de outra pessoa, se comportará de maneira correta com
quem estiver diante dele. Do mesmo modo aquele que é insensível diante das
situações humanas com as quais se depara na vida, por muitas que sejam as
idéias morais que tenha armazenado em sua cabeça, será um indigno, um
indiferente diante da dor alheia, definitivamente, um violento.
De acordo com o que acabo de dizer, o segredo e a chave da ética estão,
com certeza, no que acertadamente se disse quando foi estabelecido este prin­
cípio, que já recordei antes, e nele insisto agora, porque me parece absolu­
tamente fundamental. Trata-se do seguinte critério: o sofrimento da pessoa
em particular, de uma criança, por exemplo, não necessita de nenhuma inter­
pretação ética posterior. Não necessita da ajuda do imperativo categórico, que
explica isso e exige racionalmente uma resposta. O imperativo categórico é
supérfluo no encontro com a criança que sofre. Necessitamos dos imperativos
categóricos, ou dos discursos, no caso do sofrimento, para decidir se tiramos
ou não de cima de nós a dor que nos oprime? Necessitamos da metafísica de
Lévinas em uma situação-limite de sofrimento?45 Por isso, precisamente por
isso, Lévinas tem toda a razão do mundo quando insiste em que a sensibili­
dade, na abertura ao encontro com o outro (ou com os outros), é a chave da
ética. É a relação entre “rosto” e “sensibilidade”6, que expressa a profunda e
misteriosa relação entre “rosto” e “Infinito”: “O Outro permanece infinitamen­
te transcendente, infinitamente estrangeiro, porém seu rosto, no qual se ma­
nifesta sua epifania e que me chama, rompe com o mundo que nos pode ser

4. E. LÉVINAS, Autremente qu’étre ou Âu-delá de Vésence, La Haye, 1 9 7 4 , 31.


5. MIROSLAV MÍLOVIC, Comunidad de la diferencia, Granada, Universidad de Granada, 2 0 0 4 ,
1 2 5 -1 2 6 .
6. E. LÉVINAS, Totalidad e Infinito. Ensayo sobre la exterioridad, Salamanca, Sígueme, 1 999, 201.
“Tenho compaixao desta multidão”

comum”7. E precisamentè aí, no encontro com o “outro”, no “rosto do outro”,


que é sempre encontro marcado pela sensibilidade, encontramos o “Outro”.
Deus está onde o Outro é afirmado. Deus está nos lugares em que se supera
a identidade e se encontra a diferença8. Porém, superar a “identidade” e en­
contrar precisamente a “diferença” é, logicamente, algo que só pode se tornar
realidade porque a sensibilidade (e não meramente a razão) é o motor da vida
e da conduta — definitivamente, porque a relação com o Absoluto brota, não
só nem principalmente das convicções, mas sobretudo da sensibilidade.

Á sensibilidade de Jesus

Com base em tudo o que se disse, a pergunta que se delineia é a questão cen­
tral deste capítulo: o que sabemos sobre a sensibilidade de Jesus?
Sabemos muito. Certamente mais do que alguns imaginam. Os evan­
gelhos falam desse assunto utilizando o verbo grego splagchnízomai, cujo sig­
nificado se entende levando em conta que esse verbo se constrói a partir do
substantivo splagchnon, que, no plural, indica os órgãos internos, as entranhas
do homem e do animal9. Daí que, em sentido figurado, os splagchna são con­
siderados como a sede dos sentimentos. Portanto, quando os evangelhos utili­
zam esse verbo, para fazer referência às relações ou comportamentos de Jesus,
na realidade, o que falam é algo que diz respeito à sensibilidade de Jesus. Esse
fato, frequentemente, não aparece com clareza nas traduções do texto grego
original, porque não é raro que os tradutores, ao se depararem com esse verbo,
o traduzam por “ter misericórdia” ou “ter compaixão” e, por vezes, “ter pena”.
O fato é que tudo isso é verdade. Mas também é certo que, nessas expressões,
afirma-se algo que corre o risco de nos fazer pensar que, diante das desgraças
alheias, Jesus reagia como qualquer um (que não for desalmado) reage diante
de um mendigo que pede esmola ou um maltrapilho que anda pelas ruas.
Muitas pessoas, quando veem um mendigo assim, sentem “pena” ou expe­
rimentam alguma “compaixão” e dão-lhe uma esmola, com ó que cumprem

7. ID., ibid., 2 0 8 .
8. MIROSLAV MÍLOVIC, op. cit., 1 2 2 -1 2 3 .
9. N. WALTER, Splagchnon, in H. BALZ, G. SCHNEIDER, Diccionario Exegétíco dei Nuevo Testa­
mento, II, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 8 , 1 4 7 1 , com bibliografia selecionada.
■ A éLica de Cristo

uma “obra de misericórdia”. E a coisa não passa disso. Evidentemente, tudo


isso é bom. No entanto, nada disso explica o que Jesus fazia e vivia. Embora
à custa de me tornar maçante, é necessário insistir em que o verbo splagch-
nizomaí significa literalmente “sentir uma comoção das próprias entranhas”.
Expressa, portanto, uma reação visceral, a sensação mais íntima e humana que
uma pessoa pode experimentar.
Assim se encontra documentado nos evangelhos. Por isso, os relatos
evangélicos lançam mão desse verbo grego quando se referem a situações
humanas de emoção extrema que nós, humanos, experimentamos em deter­
minados casos. É o que sentiu o pai do filho pródigo quando o viu voltar
para casa (Lc 15,20). Ou o que viveu aquele samaritano exemplar quando
encontrou o infeliz a quem alguns bandidos haviam roubado e espancado,
deixando-o quase morto na valeta de uma estrada (Lc 10,33-34).
Por essa razão, não parece exato o que um conhecido estudioso do
Novo Testamento, N. Walter, escreveu: “O cristianismo primitivo, quando
aplica este verbo a Cristo, faz com que ele — como Filho que é — atue como
Salvador escatológico desempenhando o papel de Deus”10. Por certo, isso é
verdade. Ocorre, todavia, que, com essa maneira de falar, o que se faz é, na
verdade, des-humanizar o sentido do verbo splagchnizomai, porque a ele é
atribuído um significado tão divino que (tal como funciona a experiência coti­
diana das pessoas) deixa de ser um sentimento humano. Acontece que sempre
tropeçamos na mesma pedra. Não chegamos a absorver por completo que o
Deus de nossa fé se revelou na humanidade de um ser humano e que, precisa­
mente por isso, o mais profundamente humano, o mais íntimo do humano é,
ao mesmo tempo, o mais sublimemente divino.
Assim sendo, a partir do significado íntimo desse verbo, compreende-se
melhor a orientação dada por Jesus a seu comportamento ético, isto é, à sua
vida inteira. Jesus reagia visceralmente diante daquele pobre povo que desfa­
lecia de fome (Mc 6,34; 8,2 par.). Vale dizer, Jesus não suportava ver pessoas
passando necessidade, não aguentava a dor dos outros, era algo superior a suas
forças. Sua sensibilidade não tolerava isso. O mesmo ocorreu no dia em que
Jesus encontrou um leproso, o ser mais desprezível naquela cultura, a ponto
de ser obrigado a viver em lugar descampado (Mc 1,41). E outro tanto ocorreu
quando Jesus viu a patética cena de uma mulher viúva que ia enterrar seu úni-

10. N. WALTER, op. cit., 1470.


“Tenho compaixao desta multidão”

CO filho recém-falecido (Lc 7,13). Sentiu a mesma compaixão ao ver dois cegos
que pediam esmola sentados à beira de um caminho (Mt 20,34; cf. 20,29).
É importante perceber que a sensibilidade de Jesus é mencionada nos
evangelhos somente quando se trata de situações de sofrimento dos outros.
Não se fala disso nem mesmo quando o que está em questão é o sofrimento do
próprio Jesus. E menos ainda para indicar o quanto Jesus sentia todas as vezes
que o ofendiam, o insultavam e tratavam com desprezo e desconfiança, quan­
do se viu ameaçado, em perigo, incompreendido ou, sobretudo, injustamente
tratado na Paixão e na morte. Não se quer dizer que Jesus fosse um estranho,
insensível aos insultos e às ofensas, à própria dor e às humilhações que a vida
nos apresenta. Jesus foi um homem normal, a quem tudo isso doeu e ofendeu.
Todavia, o fato é que os evangelhos não fazem menção à sua sensibilidade a
não ser quando se trata do sofrimento dos outros. Isso é fundamental na ética
de Cristo. Somente assim é possível reorientar o comportamento ético de tan­
tas pessoas desorientadas em sua vida e em suas condutas.

Indiferença e violência

Existe uma equivalência clara entre insensibilidade e indiferença. Quando alguém


é insensível diante de determinada situação, dizemos que permanece indiferente
ao que ali acontece. A sensibilidade não se mantém quieta diante da dor e da des­
graça. A indiferença deixa-se ficar com os braços cruzados, trata das coisas que
lhe dizem respeito, segue seu caminho, aconteça o que acontecer a seu redor.
Bem. No entanto, parece mentira que seja necessário recordar aqui coisas
tão triviais, tão sabidas por todos, tão cotidianas na rotina de cada dia. E, con­
tudo, não é apenas necessário, mas acima de tudo urgente recordar tudo isso,
tê-lo sempre muito presente. Por uma razão que, mesmo quando se pensa nela
de maneira superficial, deixa nosso sangue gelado. Trata-se de compreender
que a indiferença é pior que a violência. Quero dizer, a indiferença diante do
sofrimento provoca mais dano que a violência que causa o sofrimento. Já é
importante, por certo, na conduta humana, não ocasionar dano, ou seja, não
praticar o mal, não matar, não roubar, não ofender ninguém e jamais faltar com
o respeito a qualquer pessoa, seja quem for e faça o que fizer. Tudo isso é verda­
deiramente importante. Todavia, quase nunca pensamos que mais importante
ainda é estar sempre atento ao sofrimento, de tal modo que jamais nos deixe­
A ética cie Cristo

mos ficar indiferentes diante da dor, da solidão, da indignidade e da vergonha


sofrida pelos outros. Aquele que está atento ao sofrimento, à felicidade ou à
desgraça dos outros, é que organiza sua conduta na satisfação da necessidade
daquele que passa mal ou daquele que se sente feliz porque passa bem, mais
do que no cumprimento do próprio dever.
É evidente que a violência, em todas as suas formas, é uma desgraça es­
pantosa que, com razão, nos deixa a todos aterrorizados. Com a razão suprema
da sobrevivência, com a força do instinto de segurança que todos temos escrito
nas fibras mais sensíveis do ser. Vivemos assustados, cada dia mais assustados e,
por vezes, autenticamente angustiados, porque fizemos um mundo tão violento
que já se nos toma insuportável. Sobre isso já se escreveu tanto e foi analisado
sob tantos pontos de vista, que a esta altura temos a impressão de que pouco ou
nada resta a dizer sobre essa matéria. E, no entanto, resta dizer que por mais da­
nosa que seja a violência, pior e mais daninha é a indiferença dos indiferentes. Dá-nos
medo pensar que possa chegar o dia em que todos os habitantes da África digam
que irão para a Europa, para invadi-la, que já basta de fome, genocídios e epide­
mias. O que aconteceria no dia em que todos os habitantes da Europa, dissessem
que já chega de dor e sofrimento na África? Na hipotética invasão dos africanos,
veriamos o começo da violência. Na suposta decisão dos europeus, iria produzir-se
o final da indiferença. Tudo isso, logicamente, são apenas fantasias que nunca se
tomarão realidade. Contudo, o que é, de fato, uma realidade esmagadora é que
a indiferença da Europa é que toma possível o sofrimento da África prosseguir
em seu avanço incessante de violência, dor, humilhação e morte.
Sem dúvida, quem melhor se deu conta da gravidade violenta da indife­
rença foi Jesus de Nazaré. Disso os evangelhos dão bom testemunho. Vou
recordar três relatos que são bastante eloquentes nesse sentido.

O primeiro relato é a parábola do rico epulão e do pobre Lázaro (Lc 16,19-


31). Não pretendo explicar a parábola detalhadamente. O que me interessa
é mostrar que, segundo o relato, aquele ricaço, propriamente falando, não
causou nenhum mal ao mendigo que estava em seu pórtico (Lc 16 ,2 0 )u . Na
história não se diz que o rico tivesse sido o responsável pela miséria do pobre.1

11. O texto grego utiliza a palavra pylon, que significa, literalmente, a parte do edifício onde
está a porta que dá para a rua. Cf. M. ZERWICK, Analysís philological N.T. Graeci, Roma, Pont.
Inst. Bíbl., 1 9 6 0 , 184. Portanto, o mendigo estava dentro da casa.
“Tenho compaixao desta multidão”

Nem que tivesse alguma culpa de sua enfermidade. Diz-se simplesmente que
o deixou ali, de maneira que nem sequer o expulsou de sua casa, permitindo o
repugnante espetáculo daquele infeliz “coberto de úlceras” (Lc 16,20) e a pre­
sença dos cães lambendo semelhante podridão (Lc 16,21). Por certo, quando
o rico está no tormento de sua perdição, é-lhe lembrado de “que recebeu sua
felicidade durante a vida, como Lázaro, a infelicidade” (Lc 16,25). Entretanto,
a verdade é que, se nos ativermos ao que é contado por essa história, o que
o Evangelho censura é a indiferença do rico. Essa indiferença foi sua violência.
Isso nos diz que a coisa pior que existe na vida é a violência dos indiferentes,
ou seja, a violência dos insensíveis diante da dor alheia. Aqui está a impor­
tância decisiva da sensibilidade no problema da ética. E nisso está também a
gravidade mortal da insensibilidade que leva a nos desviar da “preocupação
moderna pelas vítimas”12. Porque o correto, na preocupação pelas vítimas, é
a insatisfação pelos lucros que se obtiveram nesse estado de coisas13. Aquele
que se sente satisfeito porque já fizemos muito pelos que sofrem carrega em
suas entranhas um germe de violência mais forte do que se imagina. E mais
violência existe naqueles que se sentem incomodados quando se invocam os
direitos humanos, a igualdade de todos ou as legítimas reivindicações das
mulheres ou dos imigrantes. Queixamo-nos de que nosso mundo é violento
mas são muitos os que não tomam conhecimento de que a maior violência
está naqueles que veem a si mesmos como os melhores porque não estão
lançando bombas nem dando tiros, no entanto, não movem sequer um dedo
para que este mundo seja mais solidário e menos desumano.

O segundo relato é a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37). Aqui,


tampouco, é o caso de explicar a parábola ponto por ponto. O que importa,
ao ler esta história, é dar-se conta de que a parábola não pretende censurar
os bandidos que roubaram e espancaram o caminhante desconhecido. Dá-se
por certo que semelhantes indivíduos eram criminosos. É evidente, porém,
que Jesus não contou essa parábola para denunciar a violência dos bandidos que
se ocupam em roubar e matar os caminhantes indefesos deste mundo. Nem
sequer a violência daqueles que nós qualificamos como “os violentos”. Os
que andam pela vida roubando e matando já estão condenados (diante de si

12. R. GIRARD, Veo a Satán caer como d relâmpago, Barcelona, Anagrama, 2 0 0 2 , 2 0 9 -2 1 9 .


13. ID., ibid., 2 1 4 .
A ética de Cristo

próprios e diante dos outros) por sua própria conduta. Segundo o critério de
Jesus, o perigo está naqueles que não veem em si mesmos nada censurável.
E é pior ainda quando se trata de pessoas que se consideram “observantes”,
“piedosas”, “irrepreensíveis”. Aí pode aninhar-se a violência mais perigosa
do mundo. É exatamente isso que a parábola descobre ao dizer que “um
sacerdote descia por esse caminho”, e ao ver o moribundo, deu uma volta “e
passou a boa distância” (Lc 10,31). Exatamente o mesmo que fez, em segui­
da, um levita que também passou pelo mesmo lugar (Lc 10,32). Logicamen­
te, se Jesus, ao contar essa história, apresentou como exemplos de indiferença
diante do sofrimento dois profissionais da religião, isso não pode ser circuns­
tancial na parábola. Tampouco se pode dizer que Jesus falou dos profissionais
do que é religioso como poderia ter falado de outra profissão qualquer. Isso
significa que Jesus estava convencido de que os sacerdotes e os levitas são
pessoas piores que o restante dos mortais? Não se pode tirar essa conclusão.
Pelo menos a história não apresenta razões para isso. Compreende-se o que
Jesus quis deixar claro quando se leva em consideração o contraste assom­
broso entre o que significava, naquela sociedade, um “sacerdote” e o que
representava um “samaritano”. O sacerdote era o “cumpridor” dos deveres
religiosos, ao passo que o samaritano era o “herege”, o inobservante em as­
suntos de religião. Ora, nisso está o segredo da questão. Assim delineadas as
circunstâncias da história, o ponto mais forte e que prevalece é que os observantes
não tiveram sensibilidade diante do sofrimento, enquanto o inobservante foi quem
reagiu de tal maneira que, ao ver o moribundo, sentiu compaixão (Lc 10,34). Daí
se deduzem duas consequências tão claras que não se pode deixar de pensar
nelas. Em primeiro lugar, fica evidenciado que a chave do comportamento
ético não é a observância religiosa, mas sim a sensibilidade humana diante do
sofrimento. Essa sensibilidade é a chave que abre ou fecha as comportas de
toda a violência deste mundo. Em segundo lugar, também parece bastante
claro que, precisamente pelo que acabo de dizer, são as pessoas oficialmente
mais religiosas, piedosas e observantes as que oferecem maior perigo de sa­
tisfazer sua sensibilidade com suas observâncías e piedades, o que acarreta uma
perversão tão inconsciente quanto perigosa: a perversão que consiste em que
a sensibilidade da pessoa se centra no próprio sujeito, em vez de orientar-se
para os demais, para a felicidade ou para a desgraça dos outros. Nesse caso,
como é evidente, a religiosidade e a boa conduta se convertem no mais refinado
egoísmo, do qual, ademais, o indivíduo não tem consciência.
“Tenho compaixao desta multidão”

O terceiro relato é o 'conhecido texto intitulado “juízo final” ou, como


outros preferem denominar, o “julgamento das nações” (Mt 2 5 ,31-46). Trata-
se de um texto profundamente misterioso, que se costuma entender como
uma “narração profética” do julgamento que Deus faz da humanidade inteira,
da história dos seres humanos. Uma narração profética que certamente tem
sua origem em uma parábola anterior. A parábola de um pastor que separa
as ovelhas das cabras, uma metáfora que, na cultura rural daquele tempo,
expressa o juízo definitivo de Deus e, por isso mesmo, o ganho ou o fracasso
de cada ser humano. Não vou entrar nas questões relativas à estrutura e ao
gênero literário desse relato, o que até agora não está resolvido de modo al­
gum14. Qualquer que seja o caso, e sejam quais forem as questões relativas à
origem do relato e à sua estrutura literária, o que está fora de dúvida é o ensi­
namento religioso ou, dito com mais propriedade, a mensagem ética que esse
texto genial nos deixou. Ora, a chave de tal mensagem está em que, aju izo
de Cristo, o Senhor, o critério determinante, na hora de avaliar o que é a vida e
a conduta de cada ser humano, não é primordialmente a violência que fez dano
ou causou sofrimento aos outros, mas sim a indiferença, que ignorou a dor
de uns, a solidão e o desamparo de outros e, definitivamente, o abandono de
todos os que se veem maltratados pela vida, pelo mundo, pela sociedade. A
indiferença diante do sofrimento é o que o juízo de Deus leva em conta. Pelo
menos, é disso, unicamente, que se faz menção.
Sobre esse delineamento fundamental, é de se notar que, de acordo com
esse relato, enquanto o bem se julga pelo que cada um fez, o mal, ao contrário,
é avaliado em função do que cada um deixou de fazer. Ou seja, quando se trata
de julgar o bem e o mal, o critério utilizado para um não serve para o outro.
O bem não se mede apenas nem principalmente pelo critério de não causar dano.
Portanto, não vale dizer “eu sou bom porque não roubo nem mato”. Um
indivíduo pode passar a vida sem matar uma mosca e, na hora da verdade,
pode constar que tenha sido uma má pessoa. O mal não se mede apenas nem
principalmente pelo critério de causar dano. Portanto, não vale dizer “eu sou
mau porque roubo e mato”. Um indivíduo que nem rouba nêm mata pode
ser sumamente perigoso neste mundo, porque, segundo o critério evangéli­
co, o mal que fazemos consiste no bem que deixamos de fazer a um número

14. Cf. X. PIKAZA, Hermanos de Jesús y síervos de los más pobres (Mt 25,31-46), Salamanca,
Sígueme, 1 9 8 4 , 1 4 -2 1 . >
A ética de Cristo

grande de pessoas que neste mundo se veem sozinhas, desamparadas, igno­


radas, sem dignidade e liberdade, carentes do mais elementar, como pode ser
o pão de cada dia ou a água que todos precisam para não morrer de sede.
Por pouco que se pense em toda essa questão, qualquer um imediata­
mente se dá conta de que o mais importante, segundo o Evangelho, não está
em cumprir os deveres que nos são impostos pelos mandamentos (divinos e
humanos), mas em satisfazer as necessidades (humanas) experimentadas por
qualquer pessoa, seja qual for a causa pela qual se vê envolvida em tais ne­
cessidades, inclusive quando se trata de pessoas, como é o caso dos presos
(Mt 2 5 ,3 6 .4 3 ), que costumam estar nas cadeias por suas próprias culpas e de­
litos; ou o que acontece agora com muitos estrangeiros (Mt 2 5 ,36.43) que vão
de um país a outro, provavelmente fugindo do mal que fizeram em sua terra
ou, certamente, porque desejam buscar o bem-estar na vida que outros têm.

Conclusão: nascemos em uma cultura e nos educaram em instituições


que nos formaram para cumprir com nossos deveres, mas não para viver aten­
tos às necessidades das pessoas. Por isso, os melhores dentre nós o mais que
conseguem é ser bons cumpridores. Porém, é muito raro encontrar pessoas ver-
dadeiramente sensíveis ao desamparo e à necessidade de estima, respeito e ca­
rinho que qualquer um sente, seja quem for. Por isso nos causa tanto horror a
violência, o terrorismo, a maldade das pessoas. Mas nos parece absolutamente
normal que haja pessoas “irrepreensíveis” que passam pela vida deixando a
seu lado enchentes de dor e desamparo. Sempre me impressionou o que disse
o grande defensor dos negros dos Estados Unidos, Martin Luther King:

“Quando refletirmos sobre nosso século XX,


não nos parecerão ser mais graves as malfeitorias
dos perversos, mas sim o escandaloso silêncio
das boas pessoas”.

Como pode alguém ficar quieto, como pode alguém ficar calado, como
podemos continuar como se isso fosse normal, quando cada dia nos inteiramos
de novas vítimas deste sistema criminoso que nos impuseram, dizendo-nos,
ainda por cima, que é o melhor sistema que até agora foi inventado? E, em
se tratando de um sistema democrático, em que a doutrina oficial ensina que
votamos livremente em nossos representantes e, além disso, é um sistema no
“Tentio com paíxao desta multidão” L

qual gozamos dos direitos e liberdades ditados pela modernidade, de que va­
mos nos queixar? O próprio sistema já se encarrega de desautorizar os que
protestam, apresentando-os como “os violentos”, porque não querem se tornar
cúmplices, com sua passividade e seu silêncio, dos crimes “legais”- cometidos
pelo próprio sistema. E se alguém disser o que eu estou dizendo, acusam-no de
“demagogo”, desautorizam-no, assegurando que é um apaixonado ou, até, um
desequilibrado, com o que os “prudentes” e “equilibrados”, que se deixam ficar
em silêncio, tem-se como resultado que fazem “o que tem de ser feito”. Cum­
prem com seu “dever”, por mais que lhes importe uma insignificância a “neces­
sidade” dos que passam o pior neste mundo “ideal” que nos impuseram.

Por uma ética leiga

Se, efetivamente, estamos convencidos de que a chave da ética é a sensibilidade,


isto é, aquilo a que somos sensíveis ou insensíveis, daí se deduz inevitavelmente
que nossas vidas têm de assumir como critério de conduta o que bem podemos
chamar de uma ética leiga, pela simples razão de que a sensibilidade humana
diante do sofrimento ou a felicidade das pessoas não é um critério que se baseia em
um princípio religioso. A sensibilidade, portanto, não tem como fundamento ne­
nhum dogma sagrado, nenhuma norma revelada nem lei sobrenatural alguma.
A sensibilidade diante da felicidade ou da desgraça humanas é um fato, uma
experiência, uma realidade que se deixa ficar à margem de todos os paradigmas
religiosos. E, por isso, se pode dizer que se trata de um princípio ético univer­
sal, que transcende todas as culturas e suas respectivas religiões, de maneira
que, precisamente por isso, está presente onde há humanidade, sejam quais
forem as crenças de cada qual ou as normas que lhes houverem ensinado.
Isso suposto, estamos inteiramente de acordo quanto à importância e
à urgência do diálogo inter-religioso para, assim, tornar possível uma ética
mundial. De maneira que, como se disse com toda a razão, “o diálogo in­
ter-religioso converte-se, assim, em um aspecto essencial para a convivência
comum”15. Todavia, dizer isso não basta. O problema está em saber onde e em
que, exatamente, devemos situar o diálogo inter-religioso. Pois bem, aqui é

15. E J. DE LA TORRE, Derribar lasfronteras. Ética mundialy diálogo interrelígioso, Bilbao, Desclée
De Brouwer, 2 0 0 4 , 17.
A ética de Cristo

que entra o que denominei uma ética leiga. A saber, uma ética que se centra e
se concentra em algo que é comum a todas as religiões porque é prévio a qualquer
ddmamento religioso. Nesse sentido, e referindo-se à tradição cristã, Paul E
Knitter escreveu o seguinte: “Se as atitudes cristãs evoluíram do eclesiocen-
trismo para o cristocentrismo, e deste ao teocentrismo, devem evoluir agora
para o que, em símbolos cristãos, poderia ser chamado ‘reinocentrismo’, ou
maisuniversalmente, ‘soteriocentrismo’”16. Isso quer dizer que no cristianismo
evoluiu-se desde ter como centro a Igreja a ter como centro Cristo, e daí a ter
como centro Deus. Porém, estamos ainda por dar um passo mais forte e mais
difícil: ter como centro o Reino de Deus, o que Jesus quis dizer quando nos
falou sobre seu projeto do Reino. E mais ainda, o passo decisivo será quando
nós, cristãos, nos arriscarmos a que o centro do cristianismo seja verdadeira­
mente “a salvação”, oferecer e trazer saúde e salvação a todos neste mundo.
Por isso, o próprio P. E Knitter acrescenta: “Para os cristãos, o que consti­
tui a base e a meta do diálogo inter-religioso, o que torna possível o entendi­
mento e a cooperação mútua entre as religiões, o que une as religiões em um
discurso e práxis comum, não é o modo como se relacionam com a Igreja,
ou como se relacionam com Cristo (anonimamente [K. Rahner], ou normati­
vamente [H. Küng], nem sequer como respondem ou concebem a Deus, mas,
antes, até onde estão promovendo Sotería (salvação)..., ou seja, até que ponto
estão promovendo o bem-estar humano e realizando a liberação e a favor dos
pobres e das não-pessoas”17. E, como afirma o mesmo Knitter, as doutrinas
“ortodoxas” que dão frutos não-éticos são, por assim dizer, muito suspeitas18.
Porque não resta dúvida de que uma teologia, por mais “verdadeira” que pa­
reça e por mais fiel que seja a seu próprio magistério e a sua própria tradição,
ou seja, por mais “ortodoxa” que venha a ser, se, na hora da verdade, o que
ocasiona são divisões entre as pessoas e entre os grupos humanos, submissão
humilhante de uns a outros, agressões aos que não pensarem como eu, ou
humilhações para os que são considerados adversários e, principalmente, o
que gera é indiferença diante de tanto sofrimento e tanta miséria como vemos

16. P E KNITTER, Un diálogo necesario: entre la teologia de la liberación y la teologia dei plu­
ralismo, in ASOCIACIÓN ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS Y TEÓLOGAS DEL TERCER MUNDO, Por
los muchos caminos de Díos, Quito, Centro Bíblico Verbo Divino, 2 0 0 3 , 104.
17. E E KNITTER, op. cit., 104.
18. Op. cit., 99.
“Tenho compaixao desta multidão”

por todas as partes, semelhante teologia (com toda a sua “verdade” e sua “fi­
delidade”) é apenas a expressão da mentira e do engano, o “erro” instalado na
mais estrita “ortodoxia” e, definitivamente, o caminho que leva diretamente
ao absurdo, ao ridículo e ao extravio total.
Vamos pensar em coisas concretas, nas coisas que vemos e vivemos na
vida cotidiana. Sabemos que as éticas religiosas dividem e até enfrentam as pes­
soas, porque são vividas por aqueles que as seguem como normas divinas que
não admitem discussão e das quais depende a salvação ou a perdição definitiva.
Ademais, tais éticas impõem a seus fiéis obrigações não só diferentes, mas às
vezes (o que é pior) ordenam coisas que são estritamente contraditórias. E,
além disso, coisas muito graves. Por exemplo, como bem sabemos, existem
normas religiosas que ordenam a alguns que respeitem a vida, enquanto a ou­
tros, obrigam-nos a matar ou, até, matar-se. E sem ir tão longe, todo o mundo
sabe que as normas religiosas complicam a vida das pessoas com proibições
sobre a vida sexual, sobre as relações pessoais, os alimentos, o trabalho, as
práticas rituais e mil outras coisas que seria interminável enumerar.
Estou inteiramente de acordo que as religiões, com suas normas éticas,
trouxeram sentido à vida das pessoas, normas e valores que foram decisivos para
humanizar as culturas e a convivência das pessoas. É este o ponto em que, com
toda a razão, Hans Küng insistiu nos últimos tempos. Sua contribuição nesse as­
sunto foi de suma importância19. Porém, não é menos certo que o mesmo Küng,
e aqueles que recomendaram seus pontos de vista, advertiram que é necessário
insistir em uma ética mundial, uma ética comum, uma ética pelo menos “de mí­
nimos”, a ética do indispensável, precisamente porque a ética religiosa, por si mesma
e por si só, nos levou com demasiada frequência à confrontação e à desumanização.
Essa a razão pela qual se insistiu tanto na famosa “regra de ouro” que se encontra
nas diferentes tradições religiosas. Trata-se da regra que é centrada no amor aos
outros, nas diversas formulações que podem ser dadas a tal princípio. Desde
Confúcio: “O que não desejas para ti não o faças aos outros seres humanos”, até o
princípio estabelecido por Jesus no sermão da montanha: “Tudo aquilo que que­
reis que os homens façam a vós fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31)20.

19. H. KÜNG, Una ética mundial para la economiay la política, Madri, Trotta, 1999.
20. H. KÜNG, Ecum ene abrahãmica entre judios, cristianos y musulmanes. Fundamentación
teológica y consecuencias prácticas, in J. J. TAMAYO (ed.), Cristianismo y Líberación. Homenaje
a Casíano Floristãn, Madri, Trotta, 1 9 9 6 , 53.
A ética de Cristo

Pois bem, o princípio do amor aos outros é um princípio leigo, precísa-


mente porque é um princípio que brota de algo que é prévio a toda religião
e a toda cultura. O amor é uma exigência humana. E, nesse sentido, é uma
exigência leiga, não especificamente religiosa. As religiões fizeram bem em
impor o mandamento do amor. Porém, ao fazer isso, o que na realidade
nos disseram é que temos de ser profundamente humanos. Vale dizer, as
religiões que destacaram a regra de ouro do amor aos outros, o que fizeram
foi destacar a importância que tem a vida na convivência da laicidade, o que
é comum a todos nós que pertencemos ao Laos, quer dizer, ao povo. Nem
mais nem menos do que isso.

Uma ética para nosso tempo

Nos tempos que correm, é frequente ouvir as pessoas de mais idade se quei­
xarem da crise religiosa que se nota por toda parte. Além disso, os que se
lamentam da crise religiosa costumam acompanhar seus lamentos com duras
críticas ao relaxamento dos costumes, à imoralidade que se impõe por todas
as partes e que afeta todos os âmbitos da vida privada e pública. Tristitia rerum
et tempus lacrímarum, diziam os antigos: a tristeza das coisas e o tempo das
lágrimas e do pranto. É o pessimismo que invade não poucos ambientes. O
pessimismo que se vê estimulado pelos “profetas de desgraças” dos quais
falou, com seu acerto genial, o saudoso papa João XXIII. Tudo isso se diz e
se ouve com frequência. Mas nosso tempo é realmente tão mau como dizem?
Temos motivos para ser pessimistas, tão negativamente pessimistas como
muitos se mostram ultimamente?
Se pensarmos no que está acontecendo com os critérios que nos podem
ser oferecidos pela ética religiosa do cristianismo tradicional, certamente
existem dados de sobra para pensar que as coisas vão muito mal. Se olhar­
mos as coisas do ponto de vista da ética que o discurso oficial da Igreja nos
ensina, não resta dúvida de que vamos de mal a pior. Todavia, o que deve
ser perguntado é se o discurso eclesiástico oficial é o critério objetivo e justo
quando se trata de avaliar a retidão ou o extravio de uma geração ou de uma
cultura. Como disse, com toda a razão, o conhecido antropólogo e historia­
dor René Girard, “temos, de imediato, excelentes razões para nos sentirmos
'Tenho compaixão desta multidão”

culpados, porém, as que aduzimos não são nunca (nossas culpas)”21. Por que
nos equivocamos nisso; precisamente em algo tão fundamental e que tanto
nos diz respeito? Porque, se estou na direção certa, temos a tendência lógica
de julgar a conduta ética de hoje com os critérios da conduta éticá de ontem.
Com efeito, a conduta ética da cultura ocidental foi profundamente marcada
pelo princípio do dever religioso, enquanto assistimos agora à transformação
desse princípio, que está sendo substituído pela consciência leiga. Evidente­
mente, aquele antigo princípio, quer nos agrade quer não, jã não é o critério
moral que rege a vida da sociedade. Não se trata de um problema de rela­
xamento ético, mas de um fenômeno que consiste em uma mudança cultural.
Uma mudança rápida e profunda, que certamente nos tem desconcertado
em muitas coisas, mas que não quer dizer necessariamente que as pessoas
sejam piores, e sim que são diferentes.
Nosso mundo é, por certo, “um mundo desbocado” (A. Giddens). Mas
tão certo quanto isso é que “nunca uma sociedade se preocupou tanto com
as vítimas como a nossa. E mesmo que se trate apenas de um grande teatro,
o fenômeno não tem precedentes”. Isto é afirmado, sem hesitações, por um
dos melhores antropólogos e conhecedores da história da cultura, como é o
caso do já citado René Girard22. E este autor acrescenta: “Nenhum período
histórico, nenhuma das sociedades até agora conhecidas chegou a falar vez
alguma das vítimas como nós o fazemos. E embora as primícias desta atitude
contemporânea possam ser discernidas em um passado recente, a cada dia
que passa se bate um recorde nesse sentido. Somos todos tanto atores quanto
testemunhas de uma grande estreia antropológica”23.
O fato é evidente. Há trinta ou quarenta anos, um jovem ou uma jovem
que sentisse impulsos de generosidade encerrava-se em um convento, ingres­
sava em um seminário ou ia para as missões. Hoje, os jovens que têm inquie-
tudes desse tipo dirigem-se a uma ONG, ou partem como voluntários para
países do Terceiro Mundo, ou se põem a restaurar as moradias inabitáveis das
pessoas mais desamparadas, que abundam em nossas grandes cidades. Vai-
se extinguindo a velha preocupação pela pureza e pela piedade de outrora,
ao mesmo tempo em que se potencializa uma nova sensibilidade. Nem mais

21. R. GIRARD, Veo a Satán caer como d relâmpago, Barcelona, Anagrama, 2 0 0 2 , 2 1 1 .


22. Op. cit., 2 0 9 .
23. Op. cit.
A ética de Cristo

nem menos que a mesma sensibilidade que teve, segundo os evangelhos,


Jesus, o Nazareno. A sensibilidade pelas vitimas deste mundo.
Verdade é que, infelizmente, muitas vezes se faz mau uso de tal sensi­
bilidade. Estamos presenciando isso diariamente. “Embora haja vitimas em
geral, as mais interessantes são sempre as que nos permitem condenar nossos
vizinhos, os quais, por sua vez, agem do mesmo modo conosco e se recordam,
principalmente, daquelas vítimas pelas quais nos declaram responsáveis”24.
Ou seja, estamos tão desumanizados que utilizamos até o sofrimento das víti­
mas para tirar vantagem daqueles que consideramos adversários. O doloroso
espetáculo dado por alguns políticos nesse sentido é algo que dá vergonha e
é até difícil de suportar.
E, ainda que se leve em conta todas as desumanizações que possamos re­
cordar, é inquestionável que a moderna preocupação com as vítimas constitui
não só a grande estreia antropológica de nosso tempo, mas também é o grande
motor que, sem percebermos o que realmente está acontecendo, nos aproxima
cada dia mais e mais do espírito e da letra do Evangelho. Nesse sentido, conti­
nuo citando Girard: “Posto que considerar as vítimas está na moda, joguemos
esse jogo sem nos enganar. Analisemos primeiro o prato da balança em que
estão nossos lucros: a partir da Alta Idade Média, do direito público e privado,
da legislação penal, da prática judicial, da condição civil das pessoas, todas
as instituições evoluem no mesmo sentido. E mesmo que a princípio tudo se
modifique muito lentamente, o ritmo de mudança vai se acelerando e, vista de
cima, a evolução, com efeito, vai sempre na mesma direção: a da amenização
das penas, a de uma proteção cada vez maior das vítimas em potencial. Nossa
sociedade aboliu primeiro a escravidão e depois a servidão. Em continua­
ção, chegou à proteção da infância, das mulheres, dos estrangeiros de fora e
dos estrangeiros de dentro, a luta contra a miséria e o subdesenvolvimento.
E, mais recentemente, inclusive a universalização dos cuidados médicos, a
proteção dos incapacitados25. E assim sucessivamente. Apraz-me citar aqui
o que recentemente escreveu o professor Antonio Beristain: “Em oposição à
tese de Elobbes, com Rojas Marcos e outros especialistas, constatamos que o
homem geralmente não é lobo para o homem, mas colaborador solidário do
contínuo e incessante — embora não constante — crescimento e progresso

24. Op. cit., 213.


25. Op. cit., 215 -2 1 6 .
“Tenho compaixao desta multidão”

humano. Segundo as estatísticas, a cada ano há mais pobreza, cometem-se


mais fraudes, violações e assassinatos, porém, não obstante, paradoxalmente,
as pessoas buscam e conseguem, cada dia mais, ser felizes e fazer os outros
felizes”26. Daí que Beristain conclui: “A nova Ética do terceiro milênio, como
ciência e prática do bem e do mal, deve iluminar aos cidadãos qual é o cami­
nho para respeitar e desenvolver os direitos humanos da primeira, da segunda
e da terceira geração. Seu respeito e desenvolvimento aponta para a criação da
paz e para a experiência da satisfação e alegria pessoal e comunitária”27.
Situamo-nos assim no próprio coração da ética de nosso tempo — a
ética que brota do centro do Evangelho de Jesus. A teologia cristã prestou
um péssimo serviço à causa de Jesus quando o apresentou como o bode
expiatório” que Deus necessitava para aplacar sua ira contra os pecados dos
homens. Expliquei amplamente esse ponto em meu estudo sobre as “vítimas
do pecado”28. O importante, o verdadeiramente decisivo neste momento, é
que as modernas sociedades tendem, cada dia com mais convicção, a elimi­
nar definitivamente os bodes expiatórios, as vítimas sacrificais, as teorias e as
práticas religiosas que, em vez de humanizarem as pessoas, o que fazem é de­
sencadear mais sofrimento e menos esperança. Já está na hora de as religiões
levarem a sério, como teoria e prática de suas orientações éticas, uma coisa
fundamental: tornar as pessoas felizes.

26. A. BERISTAIN, Protagonismo de las víctimas de h o y y d e manana (Evolución en el campo jurídico


penal, prisionaly ético), Valência, Torant lo Blanch, 2 0 0 4 , 77.
27. ID., ibid., 77.
28. J. M. CASTILLO, Víctimas dei pecado, Madri, Trotta, 2 0 0 4 . '
“Os últimos serão os primeiros”
(Mc 1 0 , 3 1 )

A desesperada condição dos últimos

Tal como funcionam as coisas neste mundo, o ló­


gico e o normal é que os últimos costumam ser os
que têm mais necessidades. Por isso, quando falamos
“dos últimos deste mundo”, nos referimos aos que
carecem de recursos econômicos, de direitos, de
cultura, de uma proteção social considerável e, cer­
tamente, de qualquer classe, título ou categoria que
mereçam reconhecimento, estima, prestígio, fama e
em geral tudo o que se relacione com a “imagem pú­
blica” e com o “bom nome”, que nós mortais tanto
queremos. Daí, com toda a razão, se possa assegurar
que os “últimos” são não só os “necessitados”, mas,
acima de tudo, os mais necessitados. Necessitados
não só na ordem econômica, mas também em tudo
o que se refere a direitos, cultura, dignidade social e,
muitas vezes, o mais importante que existe na vida:
A élica de Cristo

o afeto, a proximidade humana, o amor e o carinho. Tudo o que normalmente


qualquer pessoa normal deseja ter.
Mas há mais. A condição dos “últimos” deste mundo, no momento so-
ciopolítico que estamos vivendo, é, sobretudo, uma condição “desesperada”.
Basta pensar que, segundo os informes dos organismos internacionais mais
autorizados (ONU, hAO, OMS, UNESCO), existem neste momento 800 m i­
lhões de pessoas que vivem abaixo do limite mínimo da alimentação básica
indispensável para continuar vivendo. Ou seja, agora mesmo há 800 milhões
de seres humanos à beira da morte. A fome não espera. A fome mata. E mata
rápido. Ou deixa as criaturas defasadas de maneira definitiva e destinadas a
uma morte prematura e cruel. Logicamente, viver assim é o mesmo que viver
em uma situação desesperadora. Isso é revoltante, exaspera a sensibilidade de
qualquer pessoa honrada e deixa a todos com consciência pesada, porque,
se existem tantos milhões de criaturas em semelhante situação, isso não se
deve a que faltem alimentos no mundo. O que falta é vontade política de
remediar esse estado de coisas. Sabe-se com segurança que, neste momento,
são produzidos cerca de 10% a mais dos alimentos que a população mundial
necessita para abastecer-se muito. Assim sendo, um dos problemas sérios
que dizem respeito aos países mais desenvolvidos (como é o caso dos países
membros da União Européia) consiste nas medidas que têm de adotar para
controlar a produção de alimentos. Não se sabe o que fazer com os exceden­
tes de alimentos nem onde armazená-los. Daí as importantes ajudas que a
União tem que dar aos agricultores para que controlem a produção de leite,
carne, azeite, vinho, cereais etc. É possível pensar em uma situação mais ab­
surda e contraditória? Com toda a certeza, nunca os últimos deste mundo se
viram tão degradados como se veem agora.
Afirmei antes que não existe vontade política para melhorar a situação
desesperada dos últimos, os que estão destinados a uma morte irremediável
em poucos anos. Ao falar de “vontade política”, não quero dizer que os gran­
des gestores da política mundial sejam, neste momento, necessariamente pes­
soas más. A solução do problema não depende da bondade ou da maldade de
determinados homens. O problema é que o sistema econômico mundial não
permite outra coisa. É evidente que, se interessasse à política mundial uma
solução a favor dos mais infelizes da terra, sem dúvida essa solução seria pos­
ta em andamento imediatamente. Porém, está visto que esse tipo de solução
não entra nas contas nem nos cálculos do Fundo Monetário Internacional. E
“Os últimos serão os prim eiros”

menos amda entra nos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos,
que são o eixo e o centro-da economia mundial. Por isso, o futuro dos últimos
é visto cada dia mais sombrio e pode-se garantir que, ao menos a curto e mé­
dio prazo, é absolutamente desesperador. Assim estão as coisas. -r
Por outro lado — se é que consideramos este assunto com uma pers­
pectiva mais ampla — , os últimos estão onde estão porque ninguém quer ser
o último. E por isso todo o mundo se esforça e luta para subir, para ficar por
cima dos outros, para escalar postos, para ter mais e ser mais importante. É
lei de vida. E, além disso, é uma coisa boa, ao menos em princípio, porque
isso motiva a pessoa e a estimula para o trabalho e a eficácia. Se não existisse
esse desejo de superação, a sociedade se paralisaria e tudo ficaria estacionado.
Se, na vida, fosse dado igualmente a todo mundo ter mais ou ter menos, estar
mais acima ou mais abaixo, ser mais ou ser menos, é evidente que ninguém
teria motivos para trabalhar, esforçar-se, superar-se, alcançar lucros legítimos
e nobres no trabalho, nos estudos, na profissão, no próprio ofício, no esporte
e até quando se trata de uma coisa tão simples como jogar cartas ou jogos
de tabuleiro. Uma vida na qual fosse a mesma coisa para todo mundo ser o
primeiro ou o último seria uma vida insuportável e, sobretudo, uma ruína
para todos, uma espécie de “autogenocídio” universal.
Tudo isso é perfeitamente lógico. Isso, porém, que é tão necessário e tão
óbvio, é a origem da competição e, com frequência, motivo de constantes e até
brutais situações de confrontação. Trata-se, como bem sabemos, da competi­
ção que ataca e divide as pessoas e os grupos humanos. Mais ainda, tudo isso
desemboca muitas vezes na competitividade. Em consequência, isso leva a pes­
soa, a cotoveladas, a abnr passagem na vida, deixando os outros (ou tentando
deixá-los) no meio do caminho, para subir, para ascender a postos importan­
tes, para alcançar vantagens, definitivamente, para pôr-se como o primeiro e,
consequentemente, deixar de ser o segundo ou o terceiro e daí para baixo. E
não digamos o último. Além disso, não esqueçamos que, se tudo isso sempre
aconteceu, o sistema econômico de livre mercado, a saber, o sistema capita­
lista puro e duro, produziu uma sociedade tão brutalmente competitiva que,
como todos sabemos, tende-se a privatizar tudo o que se pode converter em
bem privado e, portanto, em ganância do que tem sobre o que não tem, do
poderoso sobre o fraco. Assim, estamos assistindo ao pavoroso espetáculo de
continentes inteiros (como é o caso da África) submergirem na miséria e na
morte, ao mesmo tempo em que os países mais ricos do Norte esbanjam o
A ética de Cristo

inimaginável a partir do privilegiado posto em que estão instalados. Por isso,


com toda a razão do mundo, pode-se garantir que nunca foi mais verdadeiro
que agora o que afirmei antes: ser os últimos é ser os mais necessitados.

O critério subversivo de Jesus

Jesus foi direto ao ponto no que se refere a essa complexa problemática e tudo
o que se relaciona com ela. A prova está na afirmação, atestada repetidas vezes
nos evangelhos, segundo a qual “os últimos serão os primeiros” (Mc 9,35;
10,31; Mt 19,30; 20,16; Lc 13,30). Essa afirmação nos vem dizer, de imediato,
que o projeto de Jesus inclui que os mais necessitados e os que carecem de dig­
nidade e de direitos, na medida em que esse projeto se impuser neste mundo,
deixarão de estar em semelhante situação. Mas não é só isso. A ideia de Jesus é
que a subversão seja total e, portanto, os primeiros, a saber, os que nadam na
abundância e gozam de todas as honras, esses precisamente irão para o último
lugar, na parte de trás do grande trem da história. Por isso, sem dúvida, Jesus
repreendeu repetidas vezes os que pretendem “colocar-se nos primeiros luga­
res” (Mt 20,8; Lc 14,9.10; cf. Mc 10,35-45 par.; Lc 22,24-30 par.). O aspecto
mais significativo do Evangelho, neste ponto concreto, não está, provavel­
mente, em haver criado essa contraposição entre os primeiros e os últimos,
já que conhecemos um dito semelhante de um teólogo coetâneo de Jesus, o
rabino Hillel, que dizia: “Minha humilhação é minha elevação, minha eleva­
ção é minha humilhação”1. O que chama a atenção é a insistência de Jesus,
que repete esse princípio de maneira quase importuna. Sinal evidente de que
Jesus deu enorme importância a essa sentença. Por quê?
A partir das duas séries de textos que põem na boca de Jesus a contra­
posição e a subversão dos primeiros e dos últimos, delineiam-se várias ques­
tões que são não só inevitáveis, mas acima de tudo óbvias e, por certo, neces­
sárias: o que quis Jesus dizer ao fazer tais afirmações? Referia-se apenas a
atitudes internas, na vida privada das pessoas, como seria, por exemplo, a
humildade ou a renúncia a qualquer forma ou manifestação de ambição? É
possível pensar que Jesus pretendeu mudar a sociedade, seus poderes e hie­

1. Lev 105c. Cf. J. GNILKA, El evangelio segiln san Marcos, II, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 6 , 65,
nota 2 2 4 .
;Os últimos serão os primeiros”

rarquias, a ponto de inverter a “ordem estabelecida”? E se isso assim fosse,


é razoável pensar que Jesus foi um “mestre de espírito” ou, antes, um “revo­
lucionário sociopolítico”? Ou é mais exato suprimir semelhante alternativa
e afirmar que Jesus foi ambas as coisas, isto é, um “mestre de espírito” tão
consequente que chegou a ser também um autêntico “revolucionário social e
político”? Pode-se assegurar tudo isso, ou o assunto segue outro caminho que
nada tem a ver com essas coisas?
Para começar a irradiar alguma clareza na resposta que se deve dar a
essas perguntas, o primeiro ponto a ser levado em conta está em que a contra­
posição entre os “primeiros” e os “últimos”, sem restrição alguma, aparece nos
evangelhos somente uma vez: “Os últimos serão primeiros, e os primeiros se­
rão últimos” ( ésontaí oí éschatoi prótoi kai oí prótoí éschatoi) (Mt 20,16). Nesse
caso, não é indicada exceção alguma. Nos outros textos, a contraposição fica
suavizada de alguma forma: “Muitos (polloi) primeiros serão últimos e os úl­
timos serão os primeiros” (Mc 10,31). Exatamente as mesmas palavras repe-
tem-se em Mt 19,30. Todavia, convém observar o fato de que, nesses textos, a
amenização indicada com o “muitos” (polloi) diz-se somente dos “primeiros”,
ou seja, muitos primeiros acabarão sendo os últimos. No entanto, quando se
faz referência aos “últimos”, aqui não se inclui comentário de qualquer tipo,
a não ser que a frase diz, de maneira absoluta, que os “últimos (serão) os pri­
meiros” (.éschatoiprótoí) (Mt 19,30; 2 0 ,1 6 ; Mc 10,31). Isso parece indicar que
o projeto de Jesus é que os últimos deixem de ser os últimos. Mais ainda, a
ideia de Jesus é que os últimos passem a ser os primeiros. Outra questão é como
se há de entender isso e quais os casos em que deve ser aplicado. Porém, seja
como for, a intenção de Jesus sobre “os últimos” é muito clara e não parece
admitir exceções ou escapatórias. No evangelho de Lucas, a afirmação de
Jesus aparece formulada de forma mais genérica e por isso mais imprecisa: “E
assim, há últimos que serão primeiros e há primeiros que serão últimos” (Kai
idoú eisin éschatoi oi ésontai prótoi, kai eísín prótoi oí ésontaí éschatoi) (Lc 13,30).
Por carecerem de artigo, tanto os últimos quanto os primeiros, a inversão de
lugares não se pode aplicar a todos de maneira absoluta. Temos então que ha­
verá últimos que passarão a ser os primeiros e, ao contrário, haverá primeiros
que descerão para o último lugar.
De todas as maneiras e em qualquer caso, fica claro que Jesus propõe
uma “alteração radical” das previsões humanas. Uma inversão dos valores
e das situações estabelecidas, coisa que já se anuncia nos hinos que o m es­
A écica de Cristo

mo evangelho de Lucas põe nos relatos da infância, tanto na boca de Maria


(Lc 1 ,5 1 -5 3 ) como na profecia do velho Simeão, quando descreve os efei­
tos discriminatórios da pessoa de Jesus: a atuação do menino provocará a
queda ou o soerguimento de muitos (Lc 2 ,3 4 ) 2.
Logicamente, essa alteração radical das situações estabelecidas neste
mundo, se é que é levada a sério e aplicada à vida das pessoas e ao que acon­
tece na sociedade, está nos dizendo que a ética de Jesus não é somente uma ética
de ínterioridade, uma ética para formar “boas pessoas” e nada mais. A ética das
“boas pessoas” não transtorna as situações estabelecidas, mas normalmen­
te as respeita, tolera-as, suporta-as, sofre-as com resignação e paciência. As
“boas pessoas”, tal como essa expressão costuma ser entendida nos ambientes
religiosos, distinguem-se por sua paciência e capacidade de suportar o que
lançarem sobre elas. Mas não costumam ser pessoas que protestam e lutam.
E, menos ainda, pessoas revolucionárias que colocam os primeiros em último
lugar e os que estão no fundo, na primeira fila. Por tudo o que foi dito, faz-se
necessário resolver uma dúvida capital: a que se refere tudo isso?

Uma ética contra a dominação e a prepotência

Nos contextos nos quais se fala da contraposição “primeiros-últimos”, não se


trata (ao menos de maneira direta e imediata) de nenhuma supremacia de po­
der político no sentido de que aqueles deixem de mandar e os que estão abaixo,
na ordem das hierarquias de poder, alcancem o mando sobre os que antes
estavam instalados no governo. Jesus não veio a este mundo com a pretensão
de que, na confrontação política de impérios e partidos, uns ganhem e outros
percam, uns subam e outros desçam. Nem Jesus, nem as religiões em geral
estão nesta vida para oferecer um projeto político, por mais que isso tenha sido
muito frequente na história da humanidade e por mais que a tentação constan­
te de muitos profissionais da religião seja envolver-se em política até o extremo,
dados os notáveis benefícios que isso costuma trazer às instituições religiosas.
A que, então, se referia Jesus quando estabelecia a contraposição entre os
últimos e os primeiros? Para começar pelo mais claro: existe uma questão na
qual Jesus foi intransigente e taxativo. E o foi igualmente com seus discípulos

2. J. A. FITZMYER, El evangelio según Lucas, III, Madri, Cristiandad, 1 9 8 7 , 553.


“Os últimos serão os primeiros”

e amigos tanto quanto com seus adversários. Refiro-me aos anseios de poder, de
ser mais que os outros e, definitivamente, de dominar os outros e de impor-se a eles.
Com toda a segurança, pode-se afirmar que isso é o que se tornou para Jesus
a coisa mais insuportável. Por isso Jesus, que foi tão respeitoso, permissivo e
tolerante com “pecadores” e “publicanos” (Mc 2 ,13-17 par.; Lc 15,1-2), com
“samaritanos” (Lc 10,33; 17,16; Jo 4,5-4 0 ), com as “mulheres” (Lc 8,2-3), in­
clusive com as que eram consideradas pessoas de má reputação (Lc 7,36-50;
Jo 4 ,1 6 -1 8 ; 8 ,2 -1 1 ), e que até não hesitou em afirmar que as “prostitutas”
entram no Reino de Deus antes que os sumos sacerdotes (Mt 2 1 ,3 1 -3 2 ), con­
tudo, não suportou as pretensões mostradas pelos discípulos, quando alguns
deles expressaram desejos de ocupar os primeiros lugares (Mc 10,35-45;
Mt 2 0 ,2 0 -2 8 ; Lc 2 2 ,2 4 -2 7 ) ou quando se punham a discutir entre si sobre
quem era o mais importante (Mc 9 ,3 3 -3 7 ; Mt 18,1-5; Lc 9,46-48). Em todos
esses casos, Jesus foi direto ao ponto e lhes disse sem rodeios: “Se alguém
quiser ser o primeiro, seja o último de todos e servo de todos” (Mc 9,35 par.).
Jesus foi bem taxativo nesse assunto porque ele sabia muito bem que aqueles
que passam pela vida tentando subir, elevar-se e pôr-se nos primeiros postos
ou, pelo menos, em cargos e cátedras de importância, ou seja, os que querem
pôr-se acima dos outros, o que pretendem, na realidade, é fazer exatamente o
mesmo que fazem os “chefes das nações” e os “grandes” deste mundo, e que
não é outra coisa senão “tiranizar” e “oprimir” (Mc 10,43 par.). Por essa razão,
porque Jesus não quer neste mundo nem tiranias nem opressões, exatamente
por isso, aos que pretendem pôr-se como primeiros, diz-lhes que se dirijam
ao último lugar e que se ponham a servir os outros.
Nisso Jesus foi taxativo, muito taxativo. Sem dúvida, é a única coisa em
que foi intransigente ao extremo, pois compreendeu, como ninguém, que a
ambição por subir e situar-se sobre os outros é a causa mais determinante da
violência e da opressão neste mundo. Daí que a ética de Jesus, na medida em
que é, antes de tudo, ética da solidariedade humana, nessa mesma medida é
também a ética dos últimos, a ética que se concretiza no elogio e na exempla-
ridade dos últimos, a ponto de apresentá-los como projeto. Jesus não deli­
neou assim as coisas porque pensava ingenuamente que os “últimos” são os
“bons” e aqueles a quem se deve imitar. Nos últimos, há bons e maus, como
em todas as partes. Ocorre que os últimos carecem de poder. E por isso são
os mais necessitados deste mundo. Isso explica o fato de que, em uma ocasião
em que Jesus foi convidado a comer na casa de um dos fariseus mais impor­
A ética de Cristo

tantes (Lc 14,1), “notando que os convidados escolhiam os primeiros luga­


res” (Lc 14,7), disse-lhes sem hesitação e com toda a clareza: “Quando fores
convidado..., não vás te colocar no primeiro lugar... Ao contrário, quando
fores convidado, vai te colocar no último lugar” (Lc 14,8-10). Pelo visto, esse
empenho pretensioso de ocupar os primeiros lugares acontecia igualmente
entre os fariseus e entre os discípulos, como indiquei anteriormente. E sabe­
mos que Jesus, igualmente com os fariseus e com os discípulos, repreendeu
de maneira categórica qualquer tipo de desejo que, por mais disfarçado que
estivesse em “dignidade religiosa” ou coisas do gênero, na realidade tratava-se
de um mecanismo torpe e sujo que serve unicamente para afrontar as pessoas
e grupos, com a trágica consequência do enfrentamento e da violência.

Além das obrigações do direito

Ainda não tocamos no fundo deste assunto. É importante tomar ciência


de que a contraposição entre os “primeiros” e os “últimos”, tal como se encon­
tra no evangelho de Mateus, está situada exatamente no começo e no final da
parábola dos vinhateiros que foram trabalhar na vinha (Mt 19,30; 20,16). Lo­
gicamente, se Mateus pôs a sentença dos “primeiros” e dos “últimos” como
introdução e conclusão dessa parábola, é evidente que nisso está a chave
para entender a parábola. A história é bem conhecida: os que trabalharam
desde o amanhecer e os que começaram quando o sol já se punha, todos,
no final, receberam o mesmo salário. Além disso, os que chegaram por “últi­
m o” foram os “primeiros” que receberam, ao passo que os “primeiros” foram
os “últimos” a receber sua paga, porque assim o dispôs o dono da vinha
(Mt 20,8). Esse procedimento do dono foi naturalmente péssimo para os
que haviam trabalhado desde as primeiras horas da manhã (Mt 20 ,1 1 -1 2 ). E
se a questão for contemplada com os critérios do direito trabalhista, tinham
razão os que protestaram. Segundo as leis trabalhistas do mundo inteiro, a
jornada tem de estar em correspondência com o rendimento, ou seja, quem
mais trabalha rende mais; e quem rende mais “tem direito” a ganhar mais.
Ocorre que quem assim pensa não se dá conta de que na vida, além da rela­
ção de trabalho, baseada no rendimento e regida pela justiça, existe a relação
amorosa, baseada na generosidade e regida pela bondade e pelo carinho. É
exatamente o que o dono da vinha disse aos “primeiros”, os que trabalharam
“Os últimos serão os primeiros”

desde o amanhecer e os que por isso protestaram, porque eles é que haviam
sido os “primeiros” e viram-se defraudados. Precisamente a esses, o dono
teve de recordar uma coisa que, em contrapartida, é absolutamente lógica:
“O teu olho é mau porque eu sou bom?” (Mt 20,1 5).
O que há no âmago dessa história? Em geral, aqueles que veem a st
mesmos como os “primeiros” e, portanto, como os que apresentam maior
rendimento, os mais eficazes e (nesse sentido) os melhores, não podem tole­
rar que os “últimos” sejam tratados como eles, que veem a vida somente a
partir da eficácia, dos direitos, dos privilégios e do bom rendimento. Não
possuem outros critérios em sua cabeça e nem sequer em suas vidas há lugar
para outras categorias ou, quiçá, outros valores. Vale dizer, os que se situam
como “primeiros” costumam ver a si mesmos como os melhores, os mais
eficazes, talvez os que fazem mais pelos outros ou coisas do gênero. Ora,
as pessoas que assimilaram tais critérios são pessoas que não entendem as
razões do coração e, portanto, tais pessoas correm o perigo de não entender
de generosidade e (o que é pior), normalmente, não estão capacitadas para
compreender que a vida tem de se reger por uma bondade tão grande que supere
todas as obrigações do direito. Quer dizer, trata-se de uma pessoa que, por cer­
to, cumpre com o dever estabelecido. Não se deixa, porém, ficar nisso, mas
vai muito mais além do direito e da justiça. Ao dizer isso, estamos tocando
na utopia do Reino anunciado por Jesus.
Por isso, a ética de Cristo nos desconcerta, nos confunde e não consegui­
mos explicá-la. Falamos com frequência de amor e de solidariedade. Mas apli­
camos isso somente à vida privada, às relações amorosas, à intimidade. E não
temos a coragem de afirmar que na vida inteira, tanto na vida privada quanto
na vida social e pública, se não é a bondade e o amor que se impõem, fazemos
desta vida uma selva, um campo de batalha, um inferno, no qual caem os mais
fracos e tiram proveito os que dominam os outros. Sabemos muito bem que
todo aquele que pretende situar-se na frente ou acima dos outros provoca di­
visão, inveja, ressentimentos e, definitivamente, rompe a proximidade entre as
pessoas. Ao contrário, aquele que não mostra desejos, nem pretende postos de
honra e de importância, somente pelo fato de agir assim, produz uma corrente
de harmonia, de união, de humanidade, de proximidade entre as pessoas.
Assim somos nós, seres humanos, assim reagimos normalmente, assim nos re­
lacionamos uns com os outros. E são essas coisas que tornam possível a união
de todos ou, ao contrário, transformam a vida em um inferno.
1 A ética de Cristo

Desigualdade e diferença

É evidente que somos todos diferentes. E vamos continuar sendo, se é que


não se institua a clonagem de seres humanos. É algo que se mostra patente. Uns
são fortes e outros fracos, uns sãos e outros enfermos, alguns ligeiros e outros
lerdos, alguns brancos e outros negros, e assim sucessivamente. Além disso,
existem as diferenças de origem, de nacionalidade, de ideologias e mentalida-
des, de crenças, tradições, culturas etc. etc. Tudo isso, como já disse, é evidente
e ninguém vai discuti-lo. O que acontece é que, muitas vezes na vida, quase
todos confundimos a diferença com a desigualdade. E por isso há muitas pessoas
que estão persuadidas de que as diferenças equivalem a desigualdades. Isto é,
os que são diferentes têm de ser, por isso mesmo, desiguais, o que equivale a dizer
que, segundo pensam muitas pessoas, as diferenças têm que ser traduzidas em
desigualdades. Ou, dito de maneira mais provocadora, são muitos os que estão
convencidos de que as diferenças fundamentam e justificam as desigualdades.
E por isso não toleram que aqueles que são diferentes em origem, talento, cul­
tura, riqueza ou religião (para citar alguns exemplos), sejam ao mesmo tempo
iguais em dignidade e direitos. Por isso há tantas pessoas que veem como a coisa
mais natural do mundo que aqueles que são diferentes, pelo país, pela família
ou pela religião a que pertencem, por isso mesmo tenham que ser desiguais, no
sentido de que se creem mais dignos e com mais direitos do que os que nasce­
ram em outras terras, são de outra origem ou têm outras crenças.
Isso explica por que os homens não se veem iguais às mulheres, os bran­
cos não se veem iguais aos negros, os europeus não se veem iguais aos asiáti­
cos, os cristãos não se veem iguais aos muçulmanos e assim sucessivamente.
Ninguém duvida de que os homens são diferentes das mulheres. Disso, po­
rém, não se deduz que as mulheres não tenham a mesma dignidade que os
homens. E menos ainda se pode deduzir daí que as mulheres tenham menos
direitos que os homens. E o que digo das diferenças de gênero vale também
para as diferenças de origem, de família, de religião ou do que quer que seja.
Em todo esse assunto, é fundamental ter muito claro que as diferenças se
baseiam em fatos circunstanciais, em conjunturas concretas, que podem ser o
lugar onde alguém nasce, as idéias que lhe ensinam quando criança, a educa­
ção que recebe, a saúde que tem, o ambiente em que se desenvolve, a sorte ou a
infelicidade em assuntos de dinheiro, família, costumes etc. etc. Ao contrário,
a igualdade tem sua razão de ser na própria condição humana, no ser humano
“Os últimos serão os prim eiros”

como tal e, portanto, no que é comum a todos os humanos, sejam de onde fo­
rem e vivam como viverem. Somente se levarmos isso em conta poderemos
compreender onde reside e está radicada a razão de ser do direito. E, por
isso mesmo, a razão de ser da afirmação fundamental da declaração universal
dos direitos humanos: “Todos os seres humanos são iguais em dignidade e
direitos”. Isso é certo, por mais diferenças que existam entre uns e outros em
quase tudo o que concerne à vida concreta de cada qual.
Toda essa problemática, relativa à igualdade e à diferença, foi delineada
principalmente a partir da diferença de sexo, enquanto constitui um caso-
limite em que essa diferença se torna, a partir de muitos pontos de vista, sim­
plesmente insuperável3. Com efeito, as mulheres são diferentes dos homens.
Entretanto, pode-se deduzir daí que, precisamente por serem “diferentes”,
têm que ser também “desiguais”? E o que se diz da diferença de sexo pode-se
dizer também da diferença de nascimento, de etnia, de fé religiosa, de língua,
de renda e de muitas outras coisas que marcam a vida das pessoas.
Pois bem, para tornar mais claro esse complicado assunto, o primeiro
fator que se deve ter presente é que a diferença é um fato (político, econômico,
social, cultural, religioso...), ao passo que a igualdade é um valor ou, talvez
mais exatamente, um direito. Por isso, a “diferença” é um termo descritivo, ao
passo que a “igualdade” é considerada um termo normativo4. Nesse sentido,
quando a Declaração de 1789 afirma, em seu artigo primeiro, que “les hom-
mes naissent et demurent libres et égoaux en droits” [“os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos”], na realidade, o que então se quis
dizer é que entre todos os seres humanos existe uma igualdade jurídica5. Isso
nos vem ensinar que, se quisermos ser verdadeiramente humanos e huma­
nizar nossas diferenças, não temos outra saída a não ser esforçar-nos e lutar
por conseguir uma “igual avaliação jurídica dessas diferenças”. Trata-se de um
modelo de organização da convivência e da sociedade, baseado no princípio
normativo de igualdade e dos direitos fundamentais — políticos, civis e so­
ciais — e ao mesmo tempo em um sistema de garantias capazes de assegurar
a efetividade dessa igualdade de direitos6.

3. Cf. L. FERRAJOLI, Derechosy garantias. La lei dei más débil, Madri, Trotta, 2 0 0 1 , 73.
4. ID., íbid., 79.
5. ID., ibid., 8 0 -8 1 .
6. ID., ibid., 75.
A ética de Cristo

Contudo, ao chegar a este ponto, devemos estar conscientes de que, se


isso já é difícil de se conseguir no campo estritamente jurídico, ouso dizer que é
ainda mais difícil consegui-lo no âmbito do religioso. Uma vez que o que divi­
de os homens não são leis (humanas), mas crenças (divinas), então o problema
pode alcançar proporções gigantescas, quase insuperáveis e, por vezes, enor­
memente perigosas. Isso faz com que as diferenças de fato se traduzam em de­
sigualdades de direito que podem desencadear agressões e violências extrema­
mente prejudiciais para a convivência entre os mortais. Pode-se compreender
isso sem muito esforço, porque, quando ocorrem tais desigualdades, quando
os homens as considerarem como desigualdades queridas e ordenadas nada
menos que por Deus, então se pode chegar ao extremo de perder (na mentali­
dade de uma cultura de “crenças”) até o direito à vida. Por isso, nas contendas
religiosas e nas guerras de religião, matou-se o inimigo porque se teve a con­
vicção de que, sendo inimigo de Deus, não tinha sequer direito a continuar
vivendo. Ao dizer isso, não estou descobrindo nada de novo. Trata-se de
coisas muito desagradáveis que conhecemos à saciedade.
Mas o normal é que não se chegue tão longe. O normal, infelizmente,
é que as pessoas e os grupos, que se encontram muito marcados por convic­
ções religiosas, façam das diferenças de fato desigualdades de direito, porque
se acreditam superiores uns aos outros. Cada religião costuma ser considerada a
única religião verdadeira, a religião revelada pelo verdadeiro Deus, enquanto
as demais religiões são vistas como falsas, são expulsas para as “trevas exte­
riores” ou, pelo menos, são consideradas insuficientes. Sem ir mais longe,
na tradição judeu-cristã esteve muito arraigada a ideia teológica de “povo de
Deus” ou de “povo eleito”. Isso é o que pensava Israel de si mesmo. E disso
os cristãos se apropriaram rapidamente, quase desde os primeiros tempos do
cristianismo. Nesse sentido, J. B. Metz disse, com toda a razão, que “durante
muito tempo a Igreja sustentou diante de Israel uma funesta teoria de subs­
tituição, uma perigosa teoria de ‘suplantação’: sem se preocupar demasiado
com o que fazia, se autocompreendeu como o ‘novo Israel’, como a ‘nova
Jerusalém’, como o ‘autêntico’ povo de Deus, interpretando assim Israel com
distorção subestimativa... como premissa histórico-salvífica, já superada, do
cristianismo, como se na história post Christum natum já não houvesse lugar
para esse Israel bíblico”7. Assim sendo, a partir do momento em que se pro­

7. J. B. METZ, Perspectivas de un cristianismo multicultural, in j. J. TAMAYO (dir.), Cristianismo


y líberacíón. Homenaje a Casiano Floristán, Madri, Trotta, 1 9 9 6 , 3 6 -3 7 .
;Gs últimos serão os prim eiros”

duziu essa tentativa de suplantação, o conflito estava já em ação. E a história


posterior encarregou-se de nos demonstrar as brutalidades de violência que
tudo isso causou. A diferença erigiu-se em desigualdade. E com a desigual­
dade teve lugar a perseguição, o ódio, a tortura e a morte. O próprio Metz
tem razão quando recorda e se pergunta: “Por trás da guerra fria e diante dá
realidade da reunificação alemã, fala-se com frequência, em meu país, do
final da época pós-bélica. O que significa isso? Ficará fechada, por fim, a
ferida que tem por nome ‘Auschwitz’?”8.
Além do mais, não sei o que acontece com as diferenças e as desigualda­
des que, como demonstra a experiência, temos quase todos tendências muito
fortes que nos levam a entender e até salientar as diferenças como se fossem
o mesmo que desigualdades. Chegou-se a ponto de se pretender argumentar
com razões “de peso” que a desigualdade é algo natural e até querido por Deus.
E não se pense que aquele que apresentou semelhante teoria foi um desaver­
gonhado ou um ignorante. Entre outros, foi o papa Leão XIII, em sua encí-
clica Quod apostolici (2 8 .1 2 .1 8 7 8 ), quem se lamentou acerca das doutrinas
que no século XIX eram propagadas pelos socialistas, defendendo que “todos
os homens são iguais por natureza”, o que, na opinião daquele pontífice,
representa um atentado contra a honra e a reverência que todos devemos à
autoridade e às leis9. O papa, porém, não ficava somente nisso. Segundo seu
critério, o problema está em que “a desigualdade em direitos e em poderes
procede do próprio Autor da natureza”101. Ou seja, é Deus mesmo, como pai
dos seres humanos, quem dispôs que sejamos desiguais. Daí que Leão XIII
não hesitou em afirmar que “a Igreja... reconhece a desigualdade entre os
homens, inclusive no que se refere à posse dos bens deste mundo”11. A razão
pela qual a Igreja resistia em aceitar a igualdade em direitos e poderes de
todos os homens consistia em que, no reconhecimento dessa igualdade, dela
iria seguir-se a desordem social, de tal maneira que a sociedade inteira se ve­

8. ID .,ib id .,3 7 .
9. Os socialistas, afirma Leão XIII, díctitare non desinunt... omnes- homines esse inter se natura
eaquales, ideoque contendunt nec maíestati honorem ac reverentiam, nec legibus... obedientíam debe-
ri. Quod Apostolici. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 2 .
10. Inaequalitas tamen iuris et potestatis ab ipso naturae Auctore dimanat, ex quo omnís paternitas
in coelis et in terra nomínatur. Quod Apostolici. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 2 .
11. Ecclesia multo satius et utilius inaequalítatem inter homines... etiam in bonis possídendis agnoscít.
Quod Apostolici. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 4 .
A ética de Cristo

ria transtornada e sofreria grave deterioração12. Hoje essa ideia é inaceitável.


Mas é um fato que a Igreja tenha defendido as desigualdades sociais e econô­
micas como algo determinado por Deus. Segundo os pregadores eclesiásticos
dos séculos XVII e XVIII, Deus quer que haja ricos para que deem graças ao
Criador. E quer que haja pobres para que eles sejam na terra “a imagem de
Cristo”13. Isso posto, para aqueles religiosos, o fundamental é que a socie­
dade se mantenha em ordem. Entretanto, para que haja ordem em uma so­
ciedade tão desigual, o ponto decisivo está em que cada qual permaneça em
seu lugar, a saber, que o rico continue sendo rico e que o pobre se mantenha
em sua pobreza. Esse raciocínio era defendido com o curioso argumento se­
gundo o qual “a ordem e a virtude são duas palavras que designam a mesma
coisa”, como escrevia o jesuíta padre Crasset14. É por isso que Deus quer a
desigualdade e dispôs que nós, homens, sejamos desiguais em bens e direi­
tos. Daí o padre Bourdaloue, também jesuíta, não hesitar em afirmar: “Foi
necessário que houvesse diversas classes e, antes de tudo, foi inevitável que
houvesse pobres, a fim de que existisse na sociedade humana obediência e
ordem”15. E é importante saber que essas idéias continuaram sendo pregadas
para o povo, nas igrejas e nos sermões, até depois de meados do século XX.
Assim, um ensinamento tão obstinadamente repetido durante séculos
chegou a criar nas pessoas, pelo menos em grandes setores da população, a
convicção de que a desigualdade não é má, uma vez que é algo querido e dis­
posto por Deus. Entretanto, como é lógico, se começarmos por admitir que
Deus quer a desigualdade, como vai entrar em nossa cabeça que a ética de Jesus
se baseia no projeto de que os últimos serão os primeiros?
Por último, parece-me importante deixar claro que, quando dizemos
que os últimos têm de ser os primeiros, não se trata de uma questão de direito,
mas sim, de jato. Ou seja, o que se pretende não é mudar a sorte, fazendo com
que os de baixo se ponham por cima e, ao contrário, os de cima desçam até
o fundo na escala social. Se assim fosse, não se resolveria nada e a única coisa
que se conseguiría seria a mudança dos atores sociais, e não que a sociedade

12. Ne ordinis tranquilítas magis magisque turbetur, neve societas maíus exinde âertímentum capiat.
Quod Apostolící. ASS XI (1 8 7 8 ) 3 7 3 .
13. B. GROETHUYSEN, La jormación de la concíencia burguesa en Francía durante el siglo XVIII,
México, Fondo de Cultura Econômica, 1 9 8 1 , 2 3 8 -2 3 9 .
14. ID., ibid., 28 1 .
15. ID., ibid., 28 5 .
u0 s últimos serão os prim eiros”

fosse modificada. Jesus não poderia ter sido tão falto de inteligência para di­
zer semelhante despropósito. O projeto ético de Jesus é que haja igualdade efe­
tiva e real. Obviamente, porém, para conseguir uma utopia tão difícil (dado o
que oferece de si a condição humana), o caminho para chegar a issotem de se
basear na modificação das aspirações humanas, dos desejos que todos temos de
ser os primeiros. No dia em que tais desejos deixarem de motivar as pessoas
para ir pela vida afora escalando postos e conseguindo lugares privilegiados,
nesse dia começará a ser uma realidade a igualdade efetiva em direitos, por
mais fortes que sejam as diferenças de fato.

Os últimos e a eficácia apostólica

Resta um ponto importante e delicado a ser tratado. Na Igreja, é abundante o


número de pessoas que estão convencidas de que quem está mais acima, pre­
cisamente por isso, tem mais poder e está em melhores condições de prestar
um serviço e ajudar mais os que têm necessidades. Essa convicção é o disfarce
de que se servem “o poder e a glória” que levam não poucos religiosos que se
empenham em “fazer carreira” na Igreja a buscar, sem escrúpulos nem consci­
ência pesada, subir postos e ser bem-sucedidos. Eles imaginam que dos mais
altos cargos se realiza maior bem para o povo de Deus e se está em condições
adequadas para melhorar a sociedade.
Devo confessar que isso foi (e continua sendo) a maior ruína da Igreja e
o impedimento mais forte que apresentamos para o Evangelho no mundo. A
experiência nos ensina que quem se põe acima ou à frente dos outros, a pri­
meira coisa que consegue com isso é criar divisões, inveja, confrontos. E o que
aconteceu quando os dois apóstolos, “filhos de Zebedeu”, foram pedir a Jesus
os primeiros lugares no Reino de Deus. A reação dos outros foi a indignação e
o conflito (Mc 10,41 par.). Mas não é só isso. O pior de tudo é que aquele que
pretende ser o primeiro, quer pense quer não, quer queira quer não, o que na
realidade consegue, logicamente, é pôr os outros por baixo dele. Ou seja, o que
realmente faz é humilhar os outros. Daí a incapacidade radical daquele que se
põe em primeiro lugar para remediar as necessidades dos outros. Somente a partir
da igualdade ou, melhor ainda, de baixo, é que se cria solidariedade. Portanto,
somente a partir do último lugar é realmente possível aliviar o sofrimento e
comunicar felicidade. Sem dúvida, nisso consiste uma das características mais
A ética de Cristo

próprias e mais fortes da ética de Cristo. A partir dessa ética, se é que se leva a
sério e com todas as suas consequências, a vida é entendida de outra maneira.
De uma maneira a que certamente não estamos acostumados.
Nesse sentido e desse ponto de vista, pode-se assegurar que efetivamen­
te Jesus delineou o modelo ideal do comportamento humano exatamente ao
inverso do que costuma ser habitual e até do que se considera como “normal”
nas pautas “sociais” de conduta “política” ou “religiosa” comumente admitidas
em nossa cultura. É evidente que, em toda sociedade humana, é necessário
que haja os que exercem cargos de poder e autoridade. Mais ainda, ninguém
duvida de que, se realmente queremos mudar a realidade , isso tem que ser feito
contando com a ação política e não à margem dela. Por isso, é uma verdade
muito grande que aqueles que dizem que “não se envolvem em política”, o
que na verdade estão dizendo é que se dão bem com os que mandam.
Ocorre, todavia, que, como já disse Max Weber, o poder e o exercício do
poder têm um nome forte. Nada menos que dominação. Além disso, para que
a dominação seja efetiva, necessita da devida “legitimação” diante dos “domi­
nados”, ou seja, diante daqueles que adotam por si mesmos e como máxima
de seu operar o conteúdo do mandato (“obediência”) 16. Por outro lado, sabe-
se por experiência que o poder religioso costuma ser uma importante fonte de
“legitimação” do poder político. Daí a profunda vinculação que sempre existiu
(e continua existindo) entre ambos. Maquiavel tinha razão quando declarou
que “os que estão à cabeça de uma república ou de um reino devem manter as
bases da religião e, feito isto, lhes será fácil manter o país religioso e, portan­
to, bom e unido. E devem favorecer e acrescentar todas as coisas que forem
benéficas para ela (a religião), mesmo que as julgarem falsas”17. Maquiavel
sabia muito bem que política e religião são inseparáveis (também nos tempos
atuais), por mais que haja quem se empenhe em afirmar o contrário. Por isso,
uma de suas “Máximas” dizia: “Jamais houve Estado algum ao qual não se
desse por fundamento a religião, e os mais prevenidos dos fundadores dos
impérios atribuíram-lhe a maior influência possível nas coisas da política”18.
Tudo isso explica que tanto na política quanto na religião há pessoas que
buscam os primeiros lugares porque uns e outros, políticos e religiosos, têm

16. M. WEBER, Economíay Sociedad, II, México, Fondo de Cultura Econômica, 1 969, 7 0 6 -7 0 7 .
17. N. MAQUIAVELO, Discursos sobre la primera década de Títo Lívio, 1 ,12, Madri, Aliança, 2003, 72.
18. El Príncipe, Máximas, II, Madri, Espasa, 2 0 0 1 , 2 3 0 .
“Os últimos serão os prim eiros”

normalmente a convicção de que, tendo poder e exercendo-o com eficácia, ou


seja, exercendo a dominação, tal é a maneira como se pratica o bem neste mun­
do. Que os políticos pensem dessa maneira é algo que necessitará de todas as
matizações que forem necessárias, mas é um problema que se compreende.
Contudo, o que é incompreensível, com o Evangelho nas mãos, é que na Igreja
as coisas tenham chegado ao extremo de pensar que é dominando que um bis­
po em sua diocese ou um pároco em sua paróquia tem como cumprir a tarefa
que a Igreja pôs em suas mãos. Se um dirigente religioso pode exercer algum
tipo de dominação, seria o que Weber chama de dominação carismática, que
não se baseia em nenhuma “carreira”, em nenhuma “ascensão”, em nenhum
“soldo”19. Ou seja, tudo o que se realiza na vida com a pretensão de fazer
carreira, de subir e de lucrar, sem dúvida que poderá dominar e dominará os
outros, porém sua dominação será a imposição pura de quem se assenhoreia
e até humilha, mas nunca a autoridade do carismático que influi nos outros,
não pela força, mas pela convicção do que ele é e de sua forma de viver. Weber
tem razão quando afirma que “o destino do carisma fica postergado na medida
em que se desenvolvem as organizações institucionais permanentes”20. É o que
aconteceu na Igreja: a instituição desenvolveu-se a ponto de deixar o carisma
em segundo plano e, o que é pior, até o absurdo de que, com frequência, nos
ambientes eclesiásticos, olha-se para o carismático com receio e ele é visto até
como pessoa que pode se tornar perigosa. Não esqueçamos nunca de que a
força do carisma é a força da persuasão, que dá sentido à vida das pessoas, que
humaniza a vida e a convivência do povo, que remete ao modelo que foi Jesus.
Somente assim podemos falar, com sentido e tino, em ser o “primeiro”. Nesse
caso, o “primeiro” fará com que os “últimos” deste mundo deixem de estar em
último lugar. Mais ainda, vistas as coisas dessa maneira, pode-se garantir que
dos que estão abaixo na história é de onde pode vir a mudança, a conquista
desse outro mundo pelo qual muitas pessoas de boa vontade suspiram e pelo
qual muitos de nós anelamos com gemidos inenarráveis.

19. M. WEBER, Economíay Socíedad, II, 8 4 9 .


20. ID., ibid., 8 6 7 .
Étic' : c . ; fações,
ética da felicidade

Jesus e Moisés

No tempo de Jesus, o judaísmo helenístico havia feito


de Moisés um herói, um gênio. Os judeus da Pales­
tina, por sua vez, viam em Moisés o autor inspirado
dos cinco livros da Torah (a Lei divina) (Mt 22,24;
Mc 10,3s; Lc 20,28; Mc 7,10), o mediador supremo
da Lei entre Deus e o povo (Jo 7,19.22; Rm 9,15; 10,5;
cf. Gn 3,19), o mestre definitivo (Mt 8,4; Mc 1,44;
Lc 5,14; Mt 23,2; Jo 7,22s), o profeta por excelência,
cuja vinda era esperada (At 3,22; 7,37)4 Os judeus
daquele tempo estimavam tanto Moisés que essa esti­
ma veio a ser um sério impedimento para reconhecer
e aceitar o que se afirmava nos fatos e nas palavras de
Jesus (Jo 5,45-47; 9,28-29; 2Cor 3,12-15). 1

1. X. LÉON-DUFOUR, Diccionario dei Nuevo Testamento, Bilbao,


Desclée De Brouwer, 2 0 0 2 , 4 1 5 .
A ética de Cristo

Diante desta atitude do judaísmo de então, logicamente compreensível,


os cristãos tiveram, desde o primeiro momento, a firme convicção de que
Jesus era superior a Moisés. Nesse sentido, a afirmação do prólogo do evan­
gelho de João é taxativa: “Se a lei foi dada por Moisés, a graça (júris) e a
verdade (alétheia ) vieram por Jesus Cristo” 0 o 1,17). Pensando-se pausada-
mente, o que se afirma nesta sentença é algo com significado muito forte. Na
realidade, o que aí se afirma é que a missão de Moisés foi trazer obrigações e
deveres, alguns dos quais muito pesados, já que isso era a lei para os judeus
de então, uma carga tão pesada quanto um “ju go”2. E foi dessa carga e desse
jugo que Jesus veio aliviar as pessoas para tornar suportável a religião e a
vida (Mt 11,29-30), como explicam acertadamente os melhores comentários
ao evangelho de Mateus3. Essa ideia, de diversos pontos de vista, estava bem
assimilada entre os primeiros cristãos, que sempre viram a superioridade de
Jesus sobre Moisés (Mt 17,2 par.; At 7 ,2 0 -4 0 ; 13,38; 2 6 ,22; Hb 3,2s).
Como é lógico, para um cristão, que considerava Jesus o Filho de Deus,
esta superioridade de Cristo sobre Moisés tinha de resultar como algo inteira­
mente possível de se compreender. No entanto, no cristianismo primitivo, a
contraposição entre Jesus e Moisés teve sem dúvida uma explicação mais ime­
diata e até mais compreensível. Para qualquer judeu, Moisés foi e é um liberta­
dor, uma vez que tirou os israelitas da escravidão do Egito, um fato que estava
muito presente na memória de todos os judeus piedosos. Dessa mentalidade,
participavam também os cristãos da primeira hora, como explica detidamente
o primeiro mártir Estêvão em seu longo discurso, antes de ser assassinado
(At 7,11-40). Porém, como é bem sabido, Moisés não foi só o libertador, mas
também foi o legislador. Precisamente por isso, acusavam Estêvão de blasfemar
contra Moisés (At 6,11) e de falar contra a Lei (At 6,13). Moisés e a Lei estavam
estreitamente vinculados na mentalidade religiosa dos israelitas.
Pois bem, a grande inovação do cristianismo consistiu em anunciar aos
homens religiosos deste mundo que estamos libertados da Lei. Essa é a
ideia apontada já pelo evangelho de Lucas ao afirmar: “A Lei e os Profetas
vão até João (Batista); desde então a boa nova do Reino de Deus é anuncia­
da” (Lc 16,16). E é, acima de tudo, a tese desenvolvida e ampliada por São

2. Cf. J. M. CASTILLO, El Reino de Dios. Por la viday la âignidad de los seres humanos, Bilbao.
Desclée De Brouwer, 2 0 0 0 , 5 5 -6 1 .
3. As referências bibliográficas, em J. M. CASTILLO, El Reino de Dios, 5 9, nota 19.
Ética de obrigações, ética da felicidade

Paulo, de forma que, quando ele fala da libertação da Lei, refere-se, sobre­
tudo, à Lei que foi revelada por Deus a Moisés no Sinai, quer dizer, refere-se
ao decãlogo (Rm 2 ,1 7 -2 3 ; 7,7; 1 3 ,8 -1 0 ; G1 5 ,1 4 ; 3 ,1 0 .1 7 .1 9 ; 4 ,2 1 -2 2 )7
Por isso, afirmou-se e demonstrou-se, com os mais sérios argumentos, que
o apóstolo Paulo anunciou a abolição da Lei. E também o cumprimento ou
plenitude da Lei, que, segundo a fé cristã, se realiza no amor ao próximo
(G1 5 ,1 4 ; IC or 7 -1 9 ; Rm 2,25ss; 3 ,3 1 ; 8,4; 1 3 ,8 -1 0 )7
Por isso quando, no relato da transfiguração (Mc 9,2-13 par.) aparecem
junto de Jesus Moisés e Elias, o que causa entusiasmo em Pedro, afirma-se
que, ao aparecer a nuvem (símbolo bíblico da presença divina), os discípulos
não viram ninguém mais a não ser Jesus sozinho (Mc 9,8 par.). E a voz do céu
disse: “Este é meu Filho bem-amado. Ouvi-o!” (Mc 9,7). Moisés desapareceu.
Fica somente Jesus. Quer dizer, desapareceu a Lei e permanece somente o
Evangelho. Do ponto de vista da mensagem ética de Cristo, que sentido tem
isso? Com esta pergunta, estamos tocando uma das questões mais fundamen­
tais da mensagem moral de Jesus Cristo. É o que veremos a seguir.

Nada de preceitos, mas sim felicidade e alegria

O evangelho de Mateus começa seu relato do sermão da montanha dizendo:


“Ao ver as multidões, Jesus subiu à montanha. Sentou-se, e seus discípulos
aproximaram-se dele. E, tomando a palavra, ele os ensinava” (Mt 5,1-2). Em
seguida, Jesus expõe seu programa: as bem-aventuranças (Mt 5,3-12). Prova­
velmente, a forma do relato contenha uma alusão à subida de Moisés ao mon­
te Sinai (Ex 19,3.12; 2 4 ,1 5 .1 8 ; 3 4 ,ls .4 ). A conclusão do sermão da montanha
também evoca esses textos alusivos a Moisés456. Nesse sentido, afirmou-se, se­
guramente com bastante acerto, que Jesus, ao subir ao monte das bem-aven­
turanças, “assume a função de um novo Moisés”7. Seja qual for o conteúdo a
respeito desse ponto concreto, o certo é que Jesus, no sermão da montanha,

4. J. M. CASTILLO, Símbolos de líbertad, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 1 , 2 7 2 -2 7 9 .


5. TH. R. SCHNEIDER, The Abolition and Fulfillment of the Law in Paul: Journal fo r the Study of
the New Testament 3 5 (1 9 8 9 ) 4 7 -7 4 .
6. U. LUZ, El evangelio según san Mateo, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 3 , 2 7 6 . Cf. J. JEREMIAS:
TWNTiy 875.
7. J. MATEOS, E CAMACHO, El evangelio de Mateo, Madri, Cristiandad, 1 9 8 1 , 52.
A ética cie Cristo

promulga seu programa. Um programa ético. Um programa, porém, que se


diferencia substancialmente do promulgado por Moisés em outro monte, o
Sinai. Lá Moisés promulgou mandamentos, ao passo que Jesus, no monte da
Galileia, anunciou bem-aventuranças. Ou seja, passamos de uma ética de de­
veres e obrigações para uma ética dt felicidade e ventura. Aqui está a surpreen­
dente inovação do projeto moral oferecido por Jesus. Joaquim Jeremias disse,
com toda a razão, que o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho, de
tal forma que a diferença entre um e outro é esta: “A Lei põe o homem diante
de suas próprias forças e pede-lhe que as use até o máximo; o Evangelho situa
o homem diante do dom de Deus e pede-lhe que converta verdadeiramente
esse dom inefável em fundamento de sua vida. Dois mundos”8.
Não se trata, por certo, de que Jesus tenha suprimido os mandamentos,
como se agora fosse permitido matar, roubar, mentir ou cometer adultério.
Não é nada disso. As bem-aventuranças vão muito mais além de tudo o que
os mandamentos significam (ou podem significar). As bem-aventuranças não
se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam
algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são proi­
bições, e sim propostas. Não são a negação que estabelece o que não se pode
fazer, mas a afirmação do que nos dá vida e nos deixa indizivelmente felizes. É
o Evangelho, a “boa notícia”, o “tesouro” (Mt 13,44) e a “pérola” (Mt 13,45s)
que enchem o ser humano de uma felicidade indizível.
Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é
que o programa de Jesus para os seus é um programa de felicidade9. Cada afirma­
ção de Jesus começa com a palavra makárioi, “ditosos”. Essa palavra significa,
em grego, a condição de quem está livre de preocupações e trabalhos diários; e
descreve, em linguagem poética, o estado dos deuses e daqueles que participam
de sua existência feliz. Por conseguinte, Jesus propõe a ventura sem limites, a
felicidade plena para seus seguidores. Deus não quer a dor, a tristeza e o sofri­
mento. Deus quer precisamente o contrário: que o ser humano se realize plena­
mente, que viva feliz, que a boa sorte abunde e superabunde em sua vida.
Jesus, portanto, compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para
aproximar-se de Deus, e para que cada qual seja o que tiver de ser, não é esta-

8. J. JEREMIAS, Palabras deJesús, Madri, Edic. Fax, 1 9 6 9 , 99.


9. J. M. CASTILLO, Teologia para comunidades, Madri, San Pablo, 1 9 9 0 , 3 3 7 , com bibliografia
sobre este assunto.
Ética de obrigações, ética da felicidade

belecer proibições, mas fazer propostas do que mais e melhor se harmoniza com
nossa condição humana,, com aquilo que mais desejamos. Definitivarnente,
trata-se de substituir os mandamentos que proíbem o mal por ofertas que atra­
em para a felicidade. Jesus não diz: “Não faças isto porque, se o "fizeres, te
condenas”. Mas propõe: “Se viveres desta maneira, serás feliz”. Sem dúvida,
esta última proposição é mais atraente e mais eficaz que a anterior. Por isso,
em uma lógica saudável, deveria ser mais determinante em nossas vidas. No
entanto, como regra geral, não funciona assim. Por quê?

A lógica surpreendente das bem-aventuranças

O problema delineado pelas bem-aventuranças está em que o caminho que


propõem, para alcançar a felicidade, mostra-se estranho e surpreendente, pelo
menos à primeira vista. É que as bem-aventuranças indicam que as pessoas feli­
zes são aquelas que não reúnem as condições que todo mundo considera indis­
pensáveis para ser feliz. Afirmar que os “pobres”, os que “sofrem”, os que “têm
fome e sede”, os que vivem “perseguidos”, todas estas pessoas são os “ditosos”
deste mundo, aqueles que podem ser qualificados como os makánoí, os autenti­
camente felizes, isso parece simplesmente um despropósito e seguramente tam­
bém uma zombaria e até um sarcasmo. Pode-se afirmar tudo isso seriamente? E
se é que se fala a sério, que sentido se deve dar-lhes e qual o seu alcance?
Os estudiosos do evangelho de Mateus discutiram esse assunto. Por cer­
to, todos estão de acordo em que a promessa de felicidade oferecida pelas
bem-aventuranças não se refere exclusivamente à “outra vida”. Ou seja, não
se trata de uma promessa de felicidade para depois da morte. Jesus fala, an­
tes de tudo, da felicidade nesta vida. Mas em que consiste esse programa de
felicidade? Há os que se inclinam a pensar que nas bem-aventuranças nos
é oferecida a promessa da graça, a saber, os mais infelizes deste mundo são
ditosos porque a graça generosa de Deus os faz felizes. É a explicação prefe­
rida principalmente pelos estudiosos da Bíblia de origem protestante. Outros
autores preferem pensar que as bem-aventuranças são uma exortação ética,
não estruturada a partir de certas normas, mas sim de alguns ideais de ordem
moral que envolvem exigências de desprendimento e generosidade que vão
mais além de toda lei e que pedem maior entrega que qualquer norma, por
perfeita que seja. É a ideia que, de uma maneira ou de outra, foi difundida
A ética de Cristo

pelos autores cristãos da antiguidade, pelos teólogos medievais e, atualmente,


pela maioria dos católicos10.
Acontece que essas duas explicações não convencem por completo,
apresentando, inclusive, sérias dificuldades. Se se trata de uma promessa de
graça, como preferem os autores de matriz protestante, isso nos viria a dizer
que nossa felicidade fica à mercê do que Deus nos queira dar. Quer dizer, a
felicidade não seria algo simplesmente “humano”, mas “sobre-humano”, de
caráter divino e transcendente, algo que não está a nosso alcance e que, de­
finitivamente, não sabemos em que consiste nem por que Deus no-lo dá. E
no caso de se tratar de uma exortação ética de altíssimas exigências e sublimes
renúncias, como postulam os autores católicos, então nos deparamos com
algo que se torna ainda mais difícil de entender e mais complicado ainda na
hora de pô-lo em prática. Em última instância, isso viria a nos dizer que o que
faz todo mundo sofrer (a pobreza, a fome, o pranto...), para o cristão causam
alegria, sem saber como nem por que as situações humanas que causam em
qualquer pessoa infelicidade e tristeza, nos seguidores de Cristo, surpreen­
dentemente, dão origem à felicidade e à maior alegria deste mundo. Não é
preciso discutir muito para se dar conta de que é preciso enganar alguém
com questões ridículas para acreditar nesta história ou, se assim se preferir,
para aceitar semelhante explicação. O mais seguro é que o significado das
bem-aventuranças e, portanto, do programa de Jesus, é menos rebuscado, é
algo mais humano, mais próximo do que qualquer um entende e vive. E, cer­
tamente, com um alcance quiçá menos “espiritual” e menos “místico”, porém
mais próximo e mais ao alcance de qualquer pessoa de boa vontade.
Para entender o que acabo de apontar, é preciso recordar, antes de tudo,
que as bem-aventuranças falam da felicidade, não no singular, mas no plural.
Ou seja, Jesus não fala da felicidade do indivíduo, mas da felicidade relativa à
comunidade, ao grupo ou, se preferirmos, à sociedade. Jesus não diz “ditoso o
pobre”, mas “ditosos os pobres”. .. o que indica, de imediato, que a felicidade
que ele anuncia e promete não é um assunto privado, mas compartilhado
e, portanto, Jesus compreendeu desde o primeiro momento que a felicidade
não é uma questão meramente individual, mas essencialmente social. Ou, o que
tem o mesmo sentido, que a felicidade não se consegue isoladamente, mas
comunitariamente. Isso não significa que não interesse a Jesus a felicidade de

10. Cf. U. LUZ, El evangelio según san Mateo, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 3 , 2 8 3 -2 8 4 .


Ética de obrigações, ética da felicidade

cada um. O que Jesus afirma é que a felicidade de cada um está necessaria­
mente condicionada pela felicidade dos outros com quem cada um convive.
Nesse sentido, afirmou-se com toda a razão do mundo que “a felicidade da
comunidade é a soma das felicidades dos indivíduos que a compõem”11. E, ao
contrário, pode-se afirmar igualmente que a felicidade de cada indivíduo é o
resultado de um ambiente, de um clima social, em que o ar de família é a feli­
cidade. É assim que Jesus entende a felicidade, a “bem-aventurança” de cada
um e de todos, pois Jesus não fala a indivíduos solitários, mas a pessoas que
vivem associadas e vinculadas socialmente em uma forma de convivência, em
um sistema que, para o bem ou para o mal, condiciona a todos.
Pois bem, a partir desse delineamento, compreende-se todo o restante.
Com efeito, Jesus começa falando de “pobres”, ou seja, para explicar seu proje­
to de felicidade, a primeira coisa que estabelece é a relação com o dinheiro. A isso
se refere a primeira bem-aventurança, em sua formulação mais concisa e mais
original que, segundo os especialistas, é a do evangelho de Lucas: “Felizes, vós,
os pobres” (Lc 6,20), sem rodeios. Sabemos que Mateus acrescenta a referência
“de coração” (Mt 5,3), com o que tirou da bem-aventurança o “fio paradoxal”, tal
como Jesus a pronunciou1112. Mas também é certo que essa matização de Mateus
protegeu a promessa de Jesus da possível interpretação errônea segundo a qual a
mera carência de bens, por si só, proporciona a dita, a felicidade perfeita, o que
é falso, como a experiência de todo o mundo e de todos os dias o demonstra.
Isso posto, a pergunta que ocorre a qualquer um é a seguinte: Por que
Jesus, para expor seu projeto de felicidade, começa pelos “pobres”, ou seja,
pelos que carecem de dinheiro e de bens em geral? Isso supõe e suscita ou­
tra questão, talvez mais pungente: Quer isto dizer que, para ser felizes, a
primeira coisa a fazer é ficar sem um centavo e viver pobres? Confesso que,
ao pensar nessas coisas, fico irritado quando leio alguns teólogos que vão
longe demais para explicar o que Jesus disse assegurando que quanto mais
nos privarmos dos bens deste mundo, mais felizes seremos. Todavia, dado
que esse delineamento não se ajusta, então aqueles que se dão conta de que
isso, dito assim sem mais nem menos, é um disparate, vão ainda mais longe

11. j . LARIOS RAMOS, na Introdução à tradução espanhola da obra d e j. BENTHAM, Fragmento


sobre elgobíerno, Madri, Aguilar, 1 9 7 3 , XXII.
12. H. BALZ, Ptochós, in H. BALZ, G. SCHNEIDER, Díccionario Exegético dei Nuevo Testamento,
II, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 8 , 1 262.
A ética de Cristo

e se põem a falar não da felicidade (que é o tema de Jesus), mas da salvação,


com o que concluem o assunto pela via rápida do recurso a alguma coisa que
ninguém sabe exatamente em que consiste, nem quando, nem como vai ser
alcançada. Com isso, ficamos como estávamos, ou seja, sem entender as bem-
aventuranças de Jesus.

Riqueza e felicidade

Se levarmos em consideração o que acabo de comentar, parece razoável come­


çar falando de coisas mais concretas. Há não muito tempo, o professor Richard
Layard, um dos economistas mais conhecidos no Reino Unido e fundador do
principal centro de pesquisa econômica da Europa, registrado na London School
of Economics, escreveu algo que, segundo fomos educados e com os critérios
que introduziram em nossa cabeça, vem a ser surpreendente. Esse autor afir­
ma, de maneira talvez provocadora: “Um paradoxo preside nossas vidas. A
maioria das pessoas quer aumentar seus ganhos e luta por consegui-lo; porém,
ainda que as sociedades ocidentais tenham se tomado mais ricas, as pessoas
que as formam não são mais felizes”13. Isso significa que temos mais comida,
mais roupas, mais carros, casas maiores, mais calefação central, mais férias no
exterior... e, acima de tudo, mais saúde. Contudo, não somos mais felizes14.
Advirto que não se trata de uma ocorrência original. Estamos diante de um
fato empiricamente confirmado pelos estudos comparativos mais sérios, pelo
menos se a situação atual for comparável com o que ocorria em 1950. Os
dados mais confiáveis que possuímos de três sociedades bastante avançadas,
Estados Unidos, Grã Bretanha e Japão, demonstram isso amplamente15.
É evidente que a pergunta suscitada por este fato se refere à relação que,
de fato, existe entre riqueza e felicidade. Pode-se assegurar, sem mais pressu­
postos, que os ricos são mais felizes que os pobres? De acordo com o que
afirmei antes, temos que contar com um fato comprovado pela experiência:
em qualquer sociedade, os ricos são efetivamente mais felizes que os pobres,
porém tão certo quanto isso é que, com o passar do tempo, as sociedades

13. R. LAYARD, La felícidad. Lecciones âe una nueva ciência, Madri, Taurus, 2 0 0 5 , 1 5 c


14. ID„ ibid.
15. As porcentagens e fontes de onde foram extraídas, in R. LAYARD, op. cit., 2 3 7 , notas 1, 2 e 3.
Ética de obrigações, ética da felicidade

mais ricas não são mais felizes que as sociedades mais pobres. Como se ex­
plica isso? Por uma razão que é perfeitamente compreensível e que se pode
resumir dizendo que os salários que recebemos representam muito mais que um
meio para comprar coisas. Também utilizamos nossos salários, mediante sua com­
paração com os dos outros, como uma medida de como somos avaliados16.Quer
dizer, uma pessoa se sente melhor quando tem um aumento de salário não
só porque, ao ganhar mais, vai poder comprar mais coisas e melhores, mas,
talvez, principalmente porque, ao ter um salário mais alto, ele próprio se sente
mais importante e se vê como uma pessoa de mais categoria do que os que
ganham menos que ele. Por isso, é certo que a única situação na qual estamos
dispostos a aceitar um corte em nosso salário é quando o dos outros também
é cortado. Daí que cada indivíduo, cada família costuma elaborar o que se
chama seu “grupo de referência”17, ou seja, o grupo humano com o qual, de
forma constante e inconsciente, estabelece comparações que lhe servem para
medir seu nível, sua categoria, sua importância. Por exemplo, quando a pes­
soa compara seus salários, isso é feito geralmente com outros semelhantes aos
seus, não com os das estrelas de cinema ou com o ganho dos grandes banquei­
ros. Do mesmo modo que a pessoa de classe média nunca se compara com o
que os mais desfavorecidos socialmente podem receber por dia.
De tudo isso se deduz um critério, mais ainda, um princípio que é bas­
tante esclarecedor: A “percepção de nossas receitas relativas” demonstra ser
mais importante que nossas verdadeiras receitas. Fizeram-sê estudos sérios
que mostram evidências claras de que o incremento das receitas dos outros afeta
negativamente a nossa felicidade18. Isso demonstra claramente que o verdadeiro
motor de nossa felicidade não é o dinheiro, a riqueza e o que a riqueza pro­
porciona diretamente, que é o poder de comprar coisas e acumular bens, mas
algo mais íntimo e inconfessável, algo de que quase ninguém fala, mas que
todo o mundo sente secretamente e que é simplesmente a obscura satisfação
de sentir-se superior e mais importante que outras pessoas com as quais constan­
temente (e sem o percebermos) estamos nos comparando em todos os momentos.

16. R. LAYARD, op. cit., 53.


17. Op. cit., 54.
18. Cf. A. CLARK e A. OSWALD, Satisfaction and comparison income: Journal ojPublic Economícs,
61 (1 9 9 6 ) 3 5 9 -3 8 1 ; A. STUTZER, The role of income aspirations in individual happiness: Journal
ojEconomic Behavíor and Organízation, 5 4 (2 0 0 3 ) 6 9 -1 0 9 . Cf. R. LAYARD, op. cit., 2 4 0 -2 4 1 .
A ética de Cristo

Quando uma pessoa, nesse exercício de comparação, se vê superior a seu


companheiro de trabalho, a seu vizinho, a seu parente, a quem quer que seja,
experimenta uma forma de felicidade que é, seguramente, a felicidade mais
secreta e mais profunda de sua vida. Assim é como e quando se sente melhor.
O problema é que chegar a esse momento não é frequente, nem fácil. Em um
sentido geral, temos na vida motivos de sobra de como esse tipo de compara­
ção se torna frustrante para nós. Afirmou-se, por isso, com muito acerto, que
as pessoas são mais felizes se forem capazes de apreciar o que têm, seja o que
for; se não se compararem constantemente com os outros19. Aqui está um dado
que é determinante em nossa vida. Por quê?

O desejo e a “mímese”

Nós, seres humanos, quando viemos a este mundo, integramo-nos na convi­


vência humana, ou seja, nos socializamos. E nos integramos na sociedade e
na convivência porque o motor que nos mobiliza é o mecanismo da “mimese”,
a “imitação”. A criança imita o que vê e o que ouve em seus pais e, em geral,
ao seu redor. Assim aprende uma linguagem, alguns costumes, alguns tipos
de comportamento, alguns valores, tudo. Ora, imitar os outros desencadeia
inevitavelmente o desejo de possuir o que eles têm. Por isso, na vida dos se­
res humanos, entra a experiência do desejo como elemento determinante e
até decisivo na convivência das pessoas e dos grupos. Este é um dos argu­
mentos decisivos que, como já disse antes, foi analisado com notável perspi­
cácia por René Girard20. Logicamente, porém, na medida em que a imitação
conduz ao desejo, nessa mesma medida a imitação leva também à rivalidade ,
e esta, à violência21. Compreende-se, por isso, a enorme periculosidade que
envolve o desejo e a rivalidade que produz entre os seres humanos. É preci­
so dizê-lo uma vez mais, porque é uma das chaves da vida. Trata-se do que

19. R. LAYARD, op. cit., 80.


20. R. GIRARD, VeoaSatán caercomo d relâmpago, Barcelona, Anagrama, 2 0 0 2 , 2 3 -2 4 ; R. SCHWA-
GER, Brauchen wir ánem Sündenbock?, München, Kõsel, 1 978, 8 9; J.-M ., OUGHOURLIAN Un
mime nommé desir, Paris, Grasset, 1 9 9 1 , 3 8 -4 1 ; A. LLANO, Deseo, violência, sacrifício. El secreto
dei mito según René Girard, Pamplona, Eunsa, 2 0 0 4 , 9 5 -1 0 1 .
2 1 . P RUIZ LOZANO, Antropologia y religión en René Girard, Granada, Facultad de Teologia,
2 0 0 5 , 60.
Ética de obrigações, ética da felicidade J

agora está acontecendo na atormentada vida deste mundo: no “desejo” está a


raiz das rivalidades, dos'confrontos e das violências de todo tipo que inces­
santemente geram conflitos, confrontações, sofrimento e morte.
Compreende-se, por isso, que o último mandamento do décálogo, se­
gundo a Bíblia, em vez de proibir uma ação (matar, roubar, m entir...), proíbe
um desejo: “Não cobiçarás a casa de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de
teu próximo, nem o seu servo, sua serva, seu boi ou seu jumento, nada do
que pertença a teu próximo” (Ex 20,17). Esta proibição, mesmo que enumere
uma série de realidades desejáveis (a casa, a mulher, o servo, a serva, o boi, o
ju m en to ...), não tem limite, uma vez que termina referindo-se a “nada do que
pertença a teu próximo”. Quer dizer, como aponta Girard, que o que aqui se
proíbe é o “desejo comum a todos os homens, o desejo por antonomásia”22. E a
razão de semelhante proibição sem limites está em que só assim se pode resol­
ver o problema número um de toda comunidade humana: a rivalidade e, com
ela, a violência, pois em um grupo humano no qual não se reprime semelhante
agressividade, “o final só pode ser um: a morte”23. Isso é certo até o ponto que,
“para manter a paz entre os homens, é preciso definir o proibido em função
deste temível fato provado: o próximo é o modelo de nossos desejos”. Isso é o
que se costuma designar como “desejo mimético”, o desejo que nasce da imi­
tação24. Embora já tenha falado a esse respeito, insisto nisso porque as pessoas
não costumam perceber o que isso representa na vida: primeiro, em grande
escala, os conflitos internacionais e as guerras; e segundo, em pequena escala,
as tensões nas famílias, entre os irmãos e amigos e na convivência diária. Tudo
isso está mais que provado, porém, infelizmente, é pouco sabido, de forma que
quase ninguém o leva em conta. Por isso, é preciso insistir bastante nisso.

A genialidade de Jesus

À vista do que acabo de explicar, compreende-se o que pode muito bem ser
qualificado como autêntica “genialidade” nos ensinamentos de Jesus. Segun­
do o programa que o Evangelho apresenta nas bem-aventuranças, Jesus não

22. R. GIRARD, Veo a Satán caer como d relâmpago, 24.


2 3 . P. RUIZ LOZANO, op. cit., 60.
24. R. GIRARD, Veo a Satán caer como el relâmpago, 26.
A ética de Cristo

propõe seu projeto ético a partir de um mandamento e, menos ainda, de uma


proibição. Jesus não proíbe , mas propõe. Quero dizer, não proíbe a violência
e tudo o que a violência pressupõe e envolve (agressões, injustiças, atribu­
iç õ e s , sofrimento e morte), mas propõe a felicidade'. “Felizes os pobres, os
que choram, os que sofrem, os que têm misericórdia, os que trabalham pela
p a z ...”. Ou seja, para Jesus, o que importa na vida é fa z er as pessoas felizes,
viver e agir de tal form a que os outros (e, logicamente, a própria pessoa) se sintam
mais felizes por terem nascido. Por isso as bem-aventuranças se referem a si­
tuações da vida nas quais a pessoa sofre, nas quais não se costuma ser feliz:
os pobres, os que choram, os subjugados, os que têm fome e sede de justiça
(Mt 5,3-6), os que vivem perseguidos (Mt 5,10), os que recebem insultos,
perseguições e calúnias (Mt 5,11). Como, igualmente, as bem-aventuranças
fazem referência aos que prestam ajuda (Mt 5,7), aos que têm um coração
puro e bom (Mt 5,8) e aos que trabalham pela paz (Mt 5,9). Por certo, Jesus
não estabelece aqui uma casuística e, menos ainda, um receituário de fór­
mulas de felicidade. Jesus descreve um estilo de vida, uma forma de ser e de
viver, que se expressa e se concretiza não em alguns preceitos (com suas conse­
quentes obrigações), mas em aspirações à bondade (com a consequente felicidade
que nos trazem). Era assim que Jesus entendia a ética.
A experiência histórica nos ensina que os mandatos e as proibições têm
cada vez menos força para modificar a vida do povo, principalmente em se
tratando de proibições baseadas em sanções transcendentes que ninguém
pode verificar e que, portanto, ninguém tem a garantia de que tenham con­
sequências reais e concretas na existência cotidiana. Para citar um exemplo
as autoridades eclesiásticas repetiiam até a saciedade as proibições (e suas
consequentes ameaças) sobre os pecados contra o sexto mandamento. O que
se conseguiu com tudo isso? Certamente, sabemos que há pessoas reprimidas
nesses assuntos. E também pessoas angustiadas por escrúpulos e transtornos
psíquicos, que tentam resolver com ajuda de psicólogos e psiquiatras. No
entanto, ninguém pode pôr em dúvida que a revolução sexual e a crescente
liberdade que se vive hoje, como fenômeno cultural, é algo que nem os docu­
mentos papais, nem as censuras canônicas, nem as diatribes de pregadores e
confessores podem frear. E é certo que este assunto continuará em pauta, seja
qual for o ponto de vista que se tenha a respeito.
É um fato também que as pessoas vivem cada dia com mais força a preo­
cupação com as vítimas, a sensibilidade diante do sofrimento, a resistência
Ética de obrigações, ética da felicidade

diante da violência. Porém, acima de tudo, é evidente que a aspiração de ser


feliz, de ver um sentido na vida que se leva, de sentir-se a cada dia melhor, de
gozar da mesma dignidade e dos mesmos direitos que os outros têm, de ver­
se e sentir-se respeitado, valorizado e amado, tudo isso é algo qüe tem tal e
tamanha força, que qualquer um que se apresentar com outra mensagem que
não diga sequer uma palavra do que acabo de enumerar, nos tempos atuais e
nos que se aproximam, está e estará fadado ao fracasso.

Uma generosidade crescente

Para terminar, que ninguém me diga que esta forma de apresentar a moral só
pode levar ao hedonismo, ao laxismo e à imoralidade. E, se não se chegar a
tanto, não faltará quem diga que, no mínimo, este “invento” da ética da feli­
cidade poderá servir unicamente para legitimar a própria comodidade, o que
se nos torna mais fácil e exige menos esforço. Definitivamente, uma forma
barata e sem inteligência de disfarçar o próprio egoísmo e a boa vida.
Não sei se ocorreu a alguém pensar e dizer tudo isso. Seja como for, o que
(a meu ver) não admite dúvida é que todo mandamento e toda proibição tem
certos limites, aos quais alguém se ajusta e assunto encerrado. Enquanto a bus­
ca e o alcance da felicidade contém em si e exige uma busca sem limites. Assim
sendo, quando temos de andar às voltas com mandamentos e proibições, logo
aparecem os especialistas em cânones, leis e preceitos, os legisladores de plan­
tão, os encarregados de delimitar até onde nos haveremos de privar de tal coisa
ou até quando terá de ser cumprida tal outra. Necessita-se “delimitar” o man­
damento, para cumprir o que se há de cumprir e nada mais que isso. A história
da moral católica está abarrotada de casos e circunstâncias que hoje nos fazem
rir com ironia. Ao contrário, em se tratando de conseguir que o mundo e a
vida sejam de outra maneira, para que até mesmo os mais infelizes se sintam
ditosos, que é o que Jesus nos diz nas bem-aventuranças, então, meus amigos,
trabalho não nos falta. E é aí que se constata até onde chega a generosidade de
uma pessoa, a fé e a entrega de alguém a uma causa que se leva a sério.
Sejamos sinceros. Se não aceitamos esta forma de entender a ética, é
porque nos causa medo assumi-la como projeto de vida. Porque, se é que isso
é levado a sério, nos defrontamos com a sábia advertência de Marcei Gauchet:
“Passamos brutalmente a uma configuração em que a moral se volta central­
A ética de Cristo

mente para a autoconstituição do indivíduo. Não a moral como doutrina do


sacrifício e sistema de deveres, mas a moral como o poder de prestar contas
somente a si mesmo das razões para orientar a própria conduta”25. Não se
trata de privar-se disto ou daquilo. Nem tampouco de tirar de si a obrigação,
silenciando assim a consciência. Trata-se de algo muito mais sério, mais cen­
tral na vida, a questão mais central na existência: aquilo que autoconstitui o
sujeito, ou seja, aquilo que, se o sujeito carece dele, simplesmente deixa de
ser o sujeito que tem que ser. Portanto, o que está em jogo não é prestar con­
tas a uma autoridade religiosa ou divina. O que precisa ser resolvido consiste
em a pessoa ser o que tem de ser. E isso, se formos simplesmente humanos,
não pode ser outra coisa senão conseguir que neste mundo haja menos sofri­
mento e mais felicidade.
Jeremy Bentham, pouco antes de morrer, enviou uma felicitação de ani­
versário à filha de um amigo, na qual escreveu o seguinte:

“Cria toda a felicidade que puderes, suprime toda a infelicidade que pu­
deres. Cada dia te dará oportunidade de acrescentar algo ao bem-estar
dos demais ou de mitigar em algo suas dores. E cada grão de felicidade
que semeares no peito alheio germinará em teu próprio peito, ao passo
que cada dor que arrancares dos pensamentos e dos sentimentos de teus
semelhantes ficará substituído pela paz e pela alegria mais formosas no
santuário de tua alma”26.

Trata-se, sem dúvida, de um projeto de vida que, uma vez levado a sério,
exige uma generosidade crescente, sem limite algum, mas que é, ao mesmo
tempo, uma fonte inesgotável de felicidade, desfrute e esperança.

2 5 . M. GAUCHET, La religión en la democracia, Barcelona, El Cobre, 2 0 0 3 , 1 1 8 -1 1 9 .


26. Escrito em 22 de junho de 1 8 3 0 e encontrado no álbum de aniversário da menina à qual
foi destinado este texto. Citado em B. PAREKH ( e d Jeremy Bentham, Criticai Assessments, v. I,
Londres, Frank Cass, 1 9 7 4 , p. XVII. Cf. R. LAYARD, Lajelícidad, 2 7 1 .
Jesus e o dinheiro

Condenação do dinheiro
e do apego ao dinheiro

É um fato bastante conhecido que os pregadores,


principalmente se tiverem tendência esquerdista,
costumam arremeter em seus sermões contra os
muitos perigos inerentes às riquezas, ao amor ao di­
nheiro, a qualquer afã de lucro, e o que dirá quando
o que se trata de fustigar é a avareza, a usura, ou
simplesmente a ganância desmedida. Sem falar do
muito que se disse ou se escreveu contra o capita­
lismo, desde o mais moderado até o mais selvagem.
Tudo isso, uma vez refletido pausadamente, leva de
imediato a pessoa a conscientizar-se de que é uma
coisa não apenas bem sabida, mas, além disso e ao
mesmo tempo, igualmente bem curiosa. Por quê?
Muito simples: os padres, às vezes, ao mesmo tem­
po que fustigam o afã pelo dinheiro e condenam o
J A ética de Cristo

capital, costumam ter fama, segundo as más línguas, de ser pessoas que, não
raras vezes, ao verem dinheiro, parecer que veem um parente. Daí os ditos
populares: “Fulano é mais interesseiro do que um padre”; ou também, quan­
do se é muito pedinchão, há quem diga com indolência: “Este pede mais do
que um frade”. Pelo menos antigamente, diziam-se coisas desse tipo. Agora
que a vida mudou tanto, criticam-se os bispos por seus acordos com o Esta­
do, às vezes, por assuntos pouco claros (ou abertamente obscuros) em ques­
tões de bens e finanças de uma Igreja que, em seguida, denuncia as riquezas
e o afã pelo dinheiro. Nesse assunto, logicamente, qualquer pessoa observa
mais de uma contradição. Como se explica que quem condena o dinheiro seja
tão afeiçoado a ele? Isto não indica, mais que uma contradição moral, uma
confissão moral em um assunto que é dos mais sérios que existem nesta vida
para o comum dos mortais?

O “dinheiro” e o “capital”

No intuito de nos colocarmos na pista de uma resposta adequada ao que


acabo de perguntar, é conveniente que tenhamos presente algo que se torna
curiosamente misterioso. Em princípio, o dinheiro vem a ser mero instrumen­
to de troca, inventado pelos homens, para facilitar as complicações lógicas
que a “permuta” de bens e mercadorias implicava antigamente. O dinheiro,
diz o conhecido economista Roland Nitsche, são as “moedas e os cheques
bancários que permitem comprar mercadorias e serviços”1. Porém, o mesmo
autor acrescenta imediatamente: “Definição exata, certamente, mas que fica
bem longe de explicar tudo”12. Por uma razão muito simples: falar de dinheiro
não é o mesmo que falar de capital. Dinheiro é o mero instrumento de troca,
ao passo que capital é o valor do que, de maneira periódica ou acidental,
rende ou ocasiona rendas, interesses ou frutos”. Portanto, o capital é dinheiro.
Dinheiro, porém, posto a produzir mais benefício econômico, mediante o ren­
dimento proporcionado pelas rendas, pelos interesses ou talvez outros frutos
derivados de sua utilização. Parece que quem primeiro falou dessa distinção
entre “dinheiro” e “capital” foi Antonino de Florença (138 9 -1 4 5 9 ), que esta-

1. R. NITSCHE, El dinero, Barcelona, Noguer, 1 9 7 1 , 7,


2. ID., ibid.
je su s e o dinheiro

beleceu uma oposição nítida entre o empréstimo de dinheiro (jcitio mutui) e


a “inversão de capital” ( ratío capitalis)34
. Em forma de empréstimo, o dinheiro
permanece estéril, não obstante, como capital, torna-se produtivo. Quer dizer,
o dinheiro (se investido para produzir mais ganhos) não tem o mero caráter de
objeto, pois que, acima disso, “possui uma propriedade criadora que é precisa­
mente o que chamamos capital”, afirma outro dos grandes moralistas daquele
tempo, Bernardino de Sienah Pois bem, a partir dessa distinção, os moralistas
cristãos estabeleceram uma hábil e inteligente diferença entre o usurário e
o “empresário”. O primeiro é um avarento que só aspira a acumular dinheiro
improdutivo, com todos os vícios que isso acarreta. O segundo, ao contrário,
é um homem empreendedor, que se arrisca (já que pode ganhar ou perder)
a pôr seu dinheiro a produzir, em vez de guardá-lo com avareza. Daí que, se­
gundo os ensinamentos dos moralistas cnstãos (já desde o século XV), a tarefa
empresarial é uma atividade que coadjuva e exige suas próprias virtudes e que
agrada a Deus5. Assim nasceu o capital. E, como é lógico, com o capital nasceu
também o capitalismo e, em consequência, os capitalistas.

A acumulação e o feitiço

Relativamente ao que foi dito até aqui, nada haveria a objetar. O problema
é suscitado quando nos damos conta dos fatos que são ocasionados quando
temos de nos defrontar com o capital e o capitalismo.
Em primeiro lugar, a atividade empresarial e, portanto, a atividade capi­
talista nos demonstrou em sua já longa história que, por suas próprias leis e por
sua própria dinâmica, conduz direta e inevitavelmente a um processo de acumu­
lação do capital que, a cada dia, se concentra mais e mais em menos pessoas.
Daí resulta que capitalismo e desigualdade são dois resultados praticamente inse­
paráveis. Onde houver capitalismo, haverá desigualdades econômicas, sociais
e culturais que clamam ao céu. E sabemos que isso, pelo menos até agora, não
pôde ser evitado. Absolutamente ao contrário, na medida em que o capitalismo

3. ANT. DE FLORENCIA, Summa moralis, Florença, 1 7 4 1 , II, 1 , 6 , 16. Citado por W SOMBART,
El burguês, Madri, Alianza, 1 977, 2 5 7 .
4. Sermo XXXIV, c. III. Citado por W SOMBART, op. cit., 2 5 7 -2 5 8 .
5. Cf. W SOMBART, op. cit., 2 5 9 -2 6 0 .
A ética de Cristo

se toma mais forte, nessa mesma medida as desigualdades (e todas as injustiças


que acarretam) são cada dia mais agressivas e brutais. Saliente-se que, ao abor­
dar essa questão, não estamos diante de uma teoria mais ou menos discutível,
mas sim diante de um fato que vem a ser tão assustador quanto criminoso.
Em segundo lugar, faz-se necessário observar também que, como acerta-
damente afirmou K. Marx, os produtos do trabalho, enquanto apresentados
como mercadorias, são como uma espécie de “fetichismo”, um fetichismo “in­
separável dessa forma de produção”6. Sabemos, certamente, que Marx se equi­
vocou em não poucas coisas. Mas sabemos também que acertou, sem sombra
de dúvidas, quando disse que “as ilusões do sistema monetário” provêm “do
caráter fetichista que a forma-dinheiro imprime aos metais preciosos”7. Certa­
mente, Marx não se refere aqui simplesmente ao dinheiro, mas ao capital no
sentido indicado. E sabemos, por experiência, que o dinheiro e mais o capital
contêm em si uma misteriosa sedução que pode muito bem ser considerada
um fetiche, algo quase religioso, que apaixona e cega a ponto de ver a vida ape­
nas do ponto de vista que oferece o afã pelo ganho e pela acumulação. Como
se explica que haja exatamente agora indivíduos no mundo que acumulam tais
quantias de dinheiro que nem sabem, nem podem ter conhecimento exato do
capital que manipulam e, não obstante, continuam sem parar inventando apai-
xonadamente novas formas de acumular mais e mais? Em comportamentos
dessa natureza, deve ser, sem dúvida, o “capital-fetiche” o fator que os move,
os motiva, os apaixona, os seduz, os arrasta, deixando-os até obcecados para
continuar no afã insaciável de acumular mais e mais capital.
Aqui, todavia, precisamente aqui, se tropeça na misteriosa contradição
diante do dinheiro que se observa em não poucas pessoas religiosas e, mais
concretamente, em homens da religião. A Igreja, que lê no Evangelho as coi­
sas que Jesus disse sobre o dinheiro, que em suas doutrinas sociais previne
contra os perigos contidos nas riquezas e que condena a ambição das pessoas
em acumular tesouros, curiosamente, foi uma das instituições que, por me­
nos que muitos imaginem, mais favoreceram (sem dúvida, sem pretendê-lo)
o auge do capitalismo, pelo menos em seu início. Assim o afirma um dos
estudiosos mais conhecidos e mais clássicos nesse assunto. Refiro-me ao já
citado Werner Sombart, que afirmou o seguinte: “Não se deve esquecer que

6. K. MARX, El Capital, I, 1, IV
7. ID , ibid.
Jesus e o dinheiro

o início do capitalismo coincide com uma época na qual toda a vida social
estava sujeita às regras da Igreja, vale dizer, na qual toda manifestação vital
equivalia a uma tomada de posição diante das leis eclesiásticas, diante das
concepções éticas da religião”8. E esta é a questão surpreendente: em uma
sociedade tão fortemente dominada pela Igreja nasceu e começou a florescer
o capitalismo. E Sombart conclui: “Se quisermos determinar a importância da
religião católica no desenvolvimento do espírito capitalista, devemos ter pre­
sente que esta ideia fundamental da racionalização contribuía já por si para
fomentar consideravelmente a mentalidade capitalista, que, como sabemos,
é nitidamente racional e ordenada a um fim”9. Esse fim, como é bem sabido,
não é outro senão o ganho e, portanto, a acumulação de capital. Ou seja, a
mesma Igreja que, com o Evangelho nas mãos, prega os perigos e as maldades
do dinheiro e do capital, na realidade foi, por intermédio de seus moralistas
e pregadores, uma fonte fundamental de inspiração para o nascimento e o
amadurecimento inicial do espírito capitalista e burguês.
No entanto, a contradição ou, melhor dizendo, a confusão que a Igreja
sofreu com o tema do dinheiro e do capital fica ainda mais patente se levar­
mos em conta que os pregadores e moralistas católicos que, no princípio,
justificaram a aparição do capitalismo, foram também um freio para seu de­
senvolvimento. E eles o foram, já nos séculos XV e XVI, nos países em que
a Igreja teve uma presença mais forte e decisiva. Nesse sentido, o caso mais
claro é o da Espanha. Sombart escreve a esse respeito: “Não se pode negar
que o catolicismo pôs um obstáculo para o desenvolvimento do espírito ca­
pitalista no caso da Espanha, onde o interesse pela religião é tão marcante
que acaba por anular todos os outros”10. Isso era certo, pelo menos, até um
século atrás, quando, em 1913, Werner Sombart publicou a primeira edição
de Der Bourgeois. Quanto ao resto, sabemos que, efetivamente, enquanto nos
países dominados pela Igreja católica o capitalismo encontrou sérias dificul­
dades para seu desenvolvimento, a ética protestante e, concretamente, a ideia
calvinista da predestinação, estimulou os primeiros empresários capitalistas
a trabalhar sem trégua, o que fomentou o crescimento econômico e a acu­
mulação de capitais nos países nos quais o protestantismo exerceu sua maior

8. Op. cit., 23 5 .
9. Op. cit., 2 4 7 .
10. Op. cit., 2 4 3
A ética de Cristo

influência. É a conhecida tese defendida por Max Weber e que foi objeto de
abundantes e documentados estudos11.

O Evangelho é compatível com o progresso econômico?

Se, às incertezas e oscilações a que acabo de me reportar, acrescentarmos


agora as profundas transformações experimentadas pela economia globali­
zada e, portanto, pelo capitalismo mundial, compreende-se a dificuldade
que encerra a aplicação dos ensinamentos do Evangelho sobre o dinheiro
nos tempos que estamos vivendo. Basta que se pense nisto: se todos os
mortais tomassem ao pé da letra o que dizem determinados textos evangé­
licos sobre a maldade do dinheiro e das riquezas, em um belo dia po­
deriamos nos deparar com a cena desconcertante de um pai de família,
trabalhador de uma fábrica de automóveis (suponhamos), que chega à sua
casa e diz a sua mulher e seus filhos: “Vejam, o mundo já é tão cristão que
fiquei sem trabalho, porque ninguém compra carros e temos todos que
viver em tal pobreza que a única saída que nos resta é passar fome e viver
com muita escassez e é até possível que na mais crua miséria”. Isso seria
realmente cristão? Será que Deus quer semelhante situação? Estou ciente
de que, ao dizer isso, estou levando o problema ao absurdo. Mas quem
sabe esse modo de falar nos ajude a nos situar m elhor diante do problema.
Tampouco se pode afirmar, assim, às pressas, que o crescimento econôm i­
co constante é o melhor para este mundo. Sabemos que isso só pode ser
alcançado à custa do empobrecimento de milhões de criaturas e da destrui­
ção dos recursos da terra, do equilíbrio ecológico e do futuro da vida. Isso
equivale a dizer que o crescimento econôm ico descontrolado é o mesmo
que o autogenocídio da humanidade e, mais que tudo, a fúria cruel sobre
os milhões de seres humanos mais infelizes deste mundo.
Assim, a pergunta urgente e aflitiva que nos fazemos neste momento é
tão clara quanto difícil de responder: O que Jesus quis nos dizer quando falou
sobre o dinheiro e as riquezas? Esta é a questão para cada ser humano, para
os cristãos de modo concreto e especialmente para a Igreja.

11. Relativamente a todo este assunto, limito-me a rem eter ao estudo de J. MATTHES, Intro-
ducciún a la sociologia de la religión, v. I, Madri, Alianza, 1 9 7 1 , 65.
Jesus e o dinheiro

“Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24)

No sermão da montanha, de acordo com a redação que nos foi deixada pelo
evangelho de Mateus Je su s expressa (pelo menos à primeira vista) um repúdio
taxativo ao dinheiro, pois, segundo parece, quem serve ao dinheiro não pode
servir a Deus. Isso causa a impressão lógica de que Deus e o dinheiro são
incompatíveis. Ou seja, aquele que quiser aproximar-se verdadeiramente de
Deus tem que renunciar à posse de bens. E, ao contrário, aquele que prefe­
rir reter o dinheiro (e os bens que o dinheiro proporciona) não tem outro
remédio senão renunciar a entender-se com Deus. Isso é realmente assim?
Pode-se garantir tranquilamente que Deus e o dinheiro são absolutamente
irreconciliáveis? Porém, então, se isso é efetivamente assim, não teríamos que
concluir, em uma lógica saudável, que Deus é contra o bem-estar e o progres­
so, posto que, se quisermos bem-estar e progresso, isso só pode ser alcançado
mediante o dinheiro e sua utilização em forma de capital?
Ao propor essas questões, estamos bem cientes de que não se trata de
perguntas inúteis ou de requintes estéreis. Absolutamente o contrário. São hoje
muitas as pessoas que vivem melhor do que há trinta anos. São abundantes,
além disso, as pessoas e famílias que lidam com quantias importantes de di­
nheiro. Seja como for, nos países avançados, a sociedade do bem-estar alcança
grandes setores da população. Nesse contexto, o problema está em que muitas
dessas pessoas têm crenças religiosas e é grande o número dos que aspiram a ser
bons cristãos. Por isso, as pessoas que se encontram em tal situação perguntam-
se, em uma lógica saudável e com a consequente preocupação: é possível estar
perto de Deus, tendo ao mesmo tempo um bom nível de vida? Pode um cristão
considerar-se seguidor de Jesus se possuir uma conta corrente (incluindo “visa
ouro”), receber um bom salário e dispuser de alguns bens, dentro do que, em
um determinado contexto social, pode ser considerado um cidadão que goza de
uma segurança econômica “razoável”? Definitivamente, o que quis Jesus dizer
quando afirmou que “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24)?
Não vem ao caso relembrar aqui as numerosas e, por vezes, contraditórias
explicações que teólogos e religiosos tentaram buscar para as palavras de Jesus
sobre a compatibilidade ou incompatibilidade de Deus e do dinheiro12. No mo-

12. U m resumo condensado das explicações mais salientadas encontra-se em U. LUZ, El evan-
gelio según san Mateo, I, Salamanca, Sígueme, 1 9 9 3 , 5 0 0 -5 0 2 .
A ética de Cristo

mento, convém levar em consideração que Jesus começa dizendo: “Não acumu­
leis para vós tesouros na terra, onde as traças e os vermes arruinam tudo, onde
os ladrões arrombam as paredes para roubar” (Mt 6,19). O mais razoável parece
pensar que Jesus se refere aqui a riquezas improdutivas, a saber, dinheiro ou bens
que se acumulam e se retêm de maneira que não são utilizados para nada. E
por isso estão expostos a que o pó e o caruncho acabem com o que se mantém
zelosamente oculto e bem guardado. Em outras palavras, parece que Jesus fala
dos que acumulam quantias de dinheiro, de tal maneira que se centram nisso,
sem pensar em outra finalidade ou em outra utilidade que se possa dar a ele. É
o dinheiro como “tesouro” no qual se centra e fica preso o “coração”, como diz
o próprio Jesus quando afirma: “Pois onde estiver o teu tesouro, ali também
estará o teu coração” (Mt 6,21). Leve-se em conta que a palavra “coração” (kar-
día) expressa o centro do ser humano. O “tesouro”, por sua vez, indica onde
se encontra o “centro” de uma pessoa e o que mais lhe importa na vida13. Daí
que Jesus termina dizendo: “Não podeis servir a Deus e a Mamon” (Mt 6,24).
O Evangelho utiliza esta palavra estranha, Mammon, que se refere não só ao
dinheiro, mas também a “qualquer bela figura na terra”14. Definitivamente, o
que Jesus pretende dizer aqui é que o dinheiro exerce uma força totalizadora e,
por isso, tem tal poder de sedução que acaba por ser, de fato, o adversário de
Deus. Desse modo, o que as pessoas que se empenham em conciliar a fé em
Deus com a acumulação de dinheiro (improdutivo para qualquer causa nobre)
põem constantemente em jogo é uma destas duas coisas: o verdadeiro serviço
e o culto a Deus ou, ao contrário, o falso culto e, portanto, a idolatria do dinheiro.
Estamos, pois, diante de um problema mais profundo do que parece à primeira
vista na vida de qualquer pessoa. De que se trata?

Deus e o dinheiro

Declarou-se, certamente com bastante razão, que “o dinheiro, como meio ab­
soluto e ao mesmo tempo ponto de união de incontáveis âm bitos... tem re-

13. U. LUZ, op. cit., 50 3 .


14. Segundo a expressão de Theodoros Monajos, recolhida por J. A. CRAMER, Catenae
Graecomm Patrum in Novum Testamentum, I, Hildesheim 1 9 6 7 (ed. orig. 1 8 4 0 ), 4 8 . Citado por
U. LUZ, op. cit., 502, nota 25.
Jesus e o dinheiro

lações muito importantes com a ideia de Deus, que somente a psicologia


pode descobrir, uma vez que goza do privilégio de não cometer nenhum
sacrilégio”15. Efetívamente, o fato de ganhar dinheiro, por si só e por si mes­
mo, não é considerado, nos tratados de moral, algo que ofenda a Deus. Mas
não é só isso. Na pregação religiosa, foi dito muitas vezes que o dinheiro é
uma bênção divina. No século XIX, por exemplo, o papa Gregório XVI con­
cedeu numerosos títulos de nobreza a pessoas e famílias abastadas por uma
razão que, segundo o critério do pontífice, justifica todo o resto: “aqueles
que possuem riquezas costumam ser uma ajuda e um ornato para a sociedade
cristã”16. Mais ainda, na opinião daquele papa, as riquezas são uma bênção di­
vina, que merece ser premiada pela Igreja. É a tese defendida por este pontífice
nos documentos magisteriais mediante os quais concedeu títulos de nobreza
a pessoas abastadas, precisamente porque eram pessoas de muito dinheiro,
o que lhes permitia levar uma vida suntuosa17. Para o papa Gregório XVI, a
questão estava clara: mais dinheiro, mais bênção celestial.
Ocorre que o dinheiro contém algo, profundamente misterioso, que se
parece com Deus. Em um sentido concreto. Ao passo que, segundo a conhecida
formulação de Nicolás de Gusa, é coíncídentia oppositorum. Tanto em Deus quan­
to no dinheiro, as coisas mais opostas, as mais diversas e até as contradições do
mundo alcançam a unidade e coincidem. Dessa ideia, de que todas as estranhe -
zas e tudo o que é irreconciliável no ser encontra sua unidade e sua igualação
em Deus, surge a paz, a segurança e a riqueza universal do sentimento que se
dá com a ideia de Deus e com a certeza de que existe para nós. E daí resulta
algo que é perfeitamente compreensível: os sentimentos que Deus desperta em
sua própria esfera têm certa parecença psicológica com os sentimentos de paz e
segurança que o dinheiro costuma proporcionar às pessoas que o possuem18.
Assim sendo, o dinheiro pode ser um rival de Deus. E há casos frequen­
tes em que, efetivamente, constitui-se no ídolo ao qual se presta um culto de
insuperável fervor. Seja qual for o caso, é evidente que, para muitas pessoas,

15. G. SIMMEL, Filosofia dei dinero, Madri, Instituto de Estúdios Políticos, 1 9 7 7 , 2 7 3 .


16. “Cum nobílesfamilíae, vírtutís ac religionis laude praestantes et divitíarum copia pollentes, magno
christianae et civili reipublicae ornamento atque preaesidío esse soleant”. Letras Apostólicas, 25. Sept.
1 840. Corpus Actorum RR. Pontificum. Acta Gregorii Papae XVI, III, 86.
17. J. M. CASTILLO, Gregorio XVI y la nobleza. En la obra en colaboración: Miscelânea Augusto
Segovia, Granada, Facultad de Teologia, 1 9 8 6 , 2 9 0 -2 9 3 .
18. G. SIMMEL, Filosofia dei dinero, 2 7 3 .
A ética de Cristo

o dinheiro merece mais interesse, mais consideração e mais respeito, real e


efetivo, que o próprio Deus. Como é igualmente certo que o normal nesta
vida é que a grande maioria das pessoas dedique mais tempo, mais esforço,
mais preocupações, mais entrega e mais entusiasmo à causa do dinheiro que à
causa de Deus. Esse fato poderá ser interpretado da maneira que se quiser. O
fato, porém, está aí. E é um fato tão certo que não há exagero algum em afir­
mar que, para uma considerável maioria da população mundial, o dinheiro
é, na prática diária da vida, mais importante que Deus. Isso quer dizer que, se
efetivamente Deus e o dinheiro são inimigos irreconciliáveis, pode-se garan­
tir que, do jeito como estão as coisas, o dinheiro está ganhando a batalha de
Deus. Sem dúvida, o dinheiro tem mais seguidores, mais fiéis incondicionais
que os seguidores e os fiéis que optaram pela fé em Deus, se é que falamos
da fé a sério e com todas as suas consequências. Sejamos sinceros: há pessoas
e famílias inteiras que se sentem muito melhor no dia em que compram um
apartamento do que no dia em que, depois de um retiro espiritual, parecem
sentir como se Deus estivesse muito próximo. A acumulação de capital pro­
porciona mais felicidade que a acumulação de bens celestiais. Trata-se de um
fato demasiado frequente, seja qual for a explicação que se dê.
Porém, o problema não está resolvido com o simples fato de dizer isso,
porque falar do “interesse pelo dinheiro”, ou mesmo do “afã pelo dinheiro” é o
mesmo que utilizar expressões bastante ambíguas. E são expressões ambíguas
porque podem referir-se a coisas, situações ou formas de viver literalmente
contraditórias. O dinheiro pode interessar a uma pessoa por egoísmo e avareza
ou, ao contrário, o dinheiro pode lhe interessar por motivos de altruísmo e
generosidade. Aquele que luta para ganhar, para formar um grande capital e
passar a vida da melhor maneira possível sem pensar em outra coisa eviden­
temente é um indivíduo que pôs seu coração no dinheiro e tem no dinheiro
seu tesouro, a única coisa que verdadeiramente lhe importa na vida. Ao con­
trário, aquele que luta pelo dinheiro porque dele necessita para montar uma
empresa na qual vai oferecer postos de trabalho (devidamente remunerados)
a muitas pessoas; ou simplesmente porque tem uma família que precisa de
recursos, é claro que, nesses casos (e em muitos outros do mesmo tipo), o
dinheiro não é, nem pode ser, inimigo de Deus, porque Deus é o primeiro
a querer que as pessoas tenham postos de trabalho, que, em cada casa e em
cada família, haja dinheiro para chegar até o fim do mês sem transtornos ou
necessidades deixadas a descoberto.
Jesus e o dinheiro i

O problema, portanto, está em saber onde cada um guarda seu “tesouro"


e, por conseguinte, onde cada um tem seu “coração”, pois é exatamente isso,
nem mais nem menos, o que Jesus diz no Sermão da Montanha. Aquele cujo
tesouro está nele mesmo e em sua boa vida, sem pensar em outra coisa que não
seja isso, evidentemente não crê (nem pode crer) em Deus, por mais que reze,
por mais que vá à missa e por mais confrarias ou associações piedosas a que
pertença ou queira pertencer. E, ao contrário, aquele que tem seu coração (e
seu tesouro) na felicidade de todos e em aliviar o sofrimento dos que mais padecem
crê em Deus, ainda que, possivelmente, quase nunca pense em Deus, nem
reze muito, nem frequente missas, romarias ou novenas. Definitivamente,
trata-se de compreender que, certamente, o mais original do cristianismo
está em que o “outro” é inseparável do “Outro”, o humano é inseparável do
divino, o homem é inseparável de Deus. Mais ainda, o que acabo de afirmar
é tão forte e tão sério, que pretender (nada mais que pretender) crer em Deus
e respeitar a Deus, ignorando o homem, não crendo nele, nem respeitando-o,
é tão grave (aos olhos de Cristo) que equivale a uma ofensa contra Deus. Por
isso, entre outras razões, parece-me genial um texto de J. B. Metz, que se cos­
tuma citar quando se fala dessas coisas: “Quem diz ‘Deus’ está exposto a que o
sofrimento dos outros possa atentar contra suas próprias idéias religiosas”19.

As parábolas desconcertantes

Pode-se afirmar, com toda a segurança, que o sacerdote e o levita que apare­
cem na parábola do bom samaritano (Lc 10,31-32) seriam, sem dúvida, ho­
mens que diziam “Deus”. E o diriam muitas vezes. E é certo — se é que
acreditamos no que se relata nessa parábola — que, efetivamente, para aquele
sacerdote e para aquele levita, dizer “Deus” os expunha a que o sofrimento do
outro pudesse (e fez) subverter todas as suas idéias religiosas. O mais provável
é que, se esse sacerdote e esse levita existiram alguma vez, ambos seguiram seu
caminho despreocupados, muito fervorosos, para chegar puros e pontuais ao
templo. Mas o juízo da história (e não sabemos se também o de Deus) pesou
sobre eles, para condená-los, de geração em geração, como o protótipo dos

19. Citado por J. I. GONZÁLEZ FAUS, Del otro al OTRO, na obra em colaboração Aldea global,
justíciaparcial, Barcelona, Cristianisme ijusticia, 2 0 0 3 , 95.
A ética de Cristo

“crentes” “incrédulos”. Disseram “Deus” e, ao se defrontarem com o sofrimen­


to alheio, todas as suas idéias religiosas caíram por terra. Trata-se do esquema
de “espiritualidade disforme” que todos os “ricos” deste mundo carregam ino-
culada em si, como um vírus no sangue de suas idéias mais queridas.
Com efeito, aquele rico “que se vestia de púrpura e linho fino e que fazia
diariamente brilhantes festins” (Lc 16 ,1 9 ) devia ser um homem “religioso”,
conforme ocorria naquela cultura às pessoas de “boa família”. E este o
era, como se deduz do que a parábola relata acerca de seus cinco irmãos
(Lc 16,2 8 -3 1 ). Era, pois, um rico que, por mais de uma vez, diria “Deus”.
O problema está em que aquele ricaço tinha ali mesmo, no portal de sua
casa, um infeliz, o tal Lázaro, um santo que ficou como figura exemplar e
patrono dos hospitais onde antigamente morriam os enfermos mais repug­
nantes. Mais uma vez, como na parábola do bom samaritano, o homem
“religioso” diante do sofrimento do outro. E outra vez a mesma história.
O rico epulão, com seu “Deus” nas costas, viu-se arremessado à perdição
sem recurso (Lc 16,25-26): Por uma única razão. Porque se envolveu com­
pletamente com o espantoso perigo que representa para todos os ricos deste
mundo: o sofrimento (do outro) não integrado em Deus, em “Deus” no qual
pensamos e a quem rezamos, mesmo que o façamos de vez em quando.
O dinheiro encerra o perigo de nos levar, sem que percebamos, a for­
mas e modelos de conduta que são uma autêntica insensatez, coisas de
loucos. É isso que a parábola do rico néscio apresenta (Lc 1 2 ,1 3 -2 1 ). É a
história daquele rico que, quando suas propriedades lhe deram a enorme
satisfação de uma grande colheita, repleto de abundância e de milhões,
não teve outra reação senão dizer a si mesmo: “Eis que possuis quanti­
dade de bens em reserva para longos anos; descansa, come, bebe e te
banqueteia” (Lc 12,19). E o fato é que, pensando nas coisas desse modo,
com espontaneidade, a primeira coisa que ocorre é que aquele ricaço tinha
razão. Logicamente, um indivíduo que de repente se vê com o cofre cheio,
diz para si tranquilamente: “Vamos desfrutar a vida e passar o resto dos
dias no maior bem-estar possível”. Isso é o que pensaria de imediato a
grande maioria das pessoas. Essa forma de pensar seria considerada “o
normal”. Porém, vimos que, segundo os critérios do Evangelho, pensar
assim e reagir assim é pensar como os que perderam a cabeça. Primeiro,
porque ninguém pode garantir que vai viver dois dias, para desfrutar da
fortuna que conseguiu acumular. Isso é o que diz o Evangelho. Ou seja,
Jesu s e o dinheiro

a insensatez está em que o dinheiro dá o que pode dar, mas nada mais. O
dinheiro proporciona abundância e bem-estar. E isso é importante. Porém,
ainda mais importante que isso é a segurança daquele que sabe que pode
desfrutar de tudo sem perigo algum. Ora, o dinheiro não pode dar essa
segurança. Por isso é insensato aquele que pensa que o dinheiro é tudo. A
sensatez de Jesus segue por outro caminho. Vai pelo caminho que conduz
direto à felicidade compartilhada. Esta, sim, está a nosso alcance. Dar ao que
não tem, compartilhar com o que necessita do indispensável, proporcionar
alguma alegria àquele que somente saboreou a miséria e a tristeza. Defini­
tivamente, pôr em prática o programa das bem-aventuranças. Isso é o que,
de fato, traz ventura, felicidade e dá sentido à vida. Por outro lado, e de
maneira lógica, se todos os ricos do mundo pensassem assim, certamente
haveria menos sofrimento e mais esperança., principalmente entre os que
enfrentam piores situações na vida. Assim é a ética de Cristo.

Jesus e os ricos

Chegamos, então, à conclusão de que os ricos não têm solução possível aos
olhos de Deus? Pode-se garantir, com tranquilidade, que Jesus rejeita de for­
ma implacável todo aquele que tem dinheiro e bens e aquele que, por isso
mesmo, vive de maneira confortável nesta vida?
Sinceramente, não é fácil responder a essas perguntas, pois, se é verda­
de que Jesus disse: “Infelizes, vós, os ricos: já tendes a vossa consolação”
(Lc 6 ,24), não é menos certo que o próprio Jesus, que ameaçou os ricos, teve
amigos entre pessoas de dinheiro e se deixou convidar a mesas bem fartas,
como, por exemplo, as refeições organizadas pelos publicanos (Mc 2 ,15-16
par.; Lc 19,1-10; 15,1-2), que eram pessoas que não passavam exatamente
fome e cujo dinheiro, além disso, era de origem obscura e bastante duvidosa.
E em duas ocasiões, de nosso conhecimento, assistiu a banquetes em que,
segundo os costumes orientais, Jesus foi perfumado, com ricos e caros perfu­
mes, por mulheres que davam o que falar (Lc 7 ,3 7 -3 8 ; Jo 12,3). Além disso,
sabemos também que Jesus andava acompanhado de senhoras a quem hoje
qualificaríamos como “da sociedade”, que, além disso, “os ajudavam com os
seus bens” (Lc 8,2-3). Por isso, é preciso perguntar novamente: Na realidade,
a que conclusão chegamos? Jesus aceitava ou repudiava os ricos?
A ética de Cristo

Como resposta, duas coisas devem ser ditas: 1) Jesus rejeita os “camelos"',
2) Jesus acolhe os que “compartilham".
Quando falo do repúdio aos “camelos”, refiro-me à sentença utilizada
por Jesus quando disse a um rico: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mc 10,25 par.).
No tempo de Jesus, utilizava-se também a expressão do elefante e do olho
da agulha. E, segundo parece, na linguagem popular empregava-se por vezes
a contraposição da formiga e do camelo20. Portanto, a questão não admite
dúvida, a não ser que se pretenda forçar o sentido do texto até fazê-lo dizer o
contrário do que expressa seu significado mais óbvio. E não vale lançar mão
da variante que faz do camelo um cabo de amarra (kámelos ), porque isso des­
faz precisamente o caráter paradoxal que a sentença de Jesus encerra. Uma
sentença que afirma com vigor nada mais nada menos que isto: uma pessoa
que retém seus bens para si só e, portanto, se interessa apenas por seu próprio
bem-estar, sem tornar seu dinheiro produtivo e, por certo, negando-se a com­
partilhar o que é seu com o,s que passam necessidades e sofrem com isso, é
impossível que entre no Reino de Deus. Ou seja, é impossível que uma pessoa
que vive nessas condições, e com semelhante projeto de vida, aceite e viva
o projeto de Jesus. Além do mais, parece razoável pensar que Jesus não se
refere aqui à possibilidade de que os ricos possam ou não possam se salvar na
outra vida, porque o Reino de Deus não se refere apenas a essa “outra vida”.
O Reino de Deus, na boca de Jesus, é uma questão, antes de mais nada, “desta
vida”. Por isso, o que parece certo é que um rico (no sentido indicado) poderá
ser muito “religioso” e até muito “católico”. Todavia, não há dúvida de que
uma pessoa que retém seus bens sem se dar conta dos que carecem de traba­
lho e meios de vida; e, pior ainda, se a carência se referir ao indispensável
para viver com dignidade, semelhante pessoa nem crê em Jesus nem aceita o
Evangelho. Esse é o primeiro ponto que Jesus apresenta aos ricos.
Quanto ao que diz respeito àqueles que “compartilham”, a mentalida­
de de Jesus é distinta. Já citei antes algumas passagens evangélicas nas quais
se vê claramente que Jesus manteve boas relações com pessoas que possuí­
am bens, o que permite pensar que Jesus não repelia, por princípio, pessoas
com dinheiro. Nada disso. Sabemos que Jesus manteve excelentes relações com
pessoas que gozavam de uma boa situação econômica. Por exemplo, segundo

20. J. GNILKA, EI evangelio segCin san Marcos, v. II, Salamanca, Sígueme, 1 986, 102.
Jesus e o dinheiro

o evangelho de Lucas, no' grupo que acompanhava Jesus, havia, habitual-


mente, mulheres que, segundo parece, tinham uma posição social aceitável,
quiçá privilegiada. Tal é o caso de Joana, a mulher de Cusa, que ocupava
um posto de confiança na corte do rei, onde era o “intendente” de Herodes
(Lc 8,3). E, nesse contexto, menciona-se também certa Susana, a qual, se
merece menção nominal, deve ser porque se tratava de pessoa conhecida.
E Lucas termina dizendo que iam também com Jesus “muitas outras que
os ajudavam com seus bens” (Lc 8,3). O mais provável é que se tratava de
viúvas, uma vez ser algo impensável que, em uma sociedade tão androcên-
trica e machista como aquela, algumas mulheres casadas abandonassem seus
maridos para irem, por povoados e caminhos, acompanhando um estranho e
novo profeta (Jesus), junto de um bom grupo de homens. Uma atitude assim,
naquele povo e naquela cultura, tinha que parecer algo escandaloso e até uma
falta que merecia um castigo21. Seja como for, o certo é que eram mulheres
que possuíam bens. E tão certo quanto isso é que não reservavam aqueles
bens para si mesmas, mas, com o que possuíam, ajudavam Jesus e o grupo
que o acompanhava. Algo semelhante se há de dizer de outras duas mulheres
cuja casa era frequentada por Jesus. Refiro-me a Marta e Maria (Lc 10,38-42).
Se essas duas mulheres eram irmãs de Lázaro, o rapaz a quem, segundo o
evangelho de João, Jesus devolveu a vida (Jo 11,4 3-44), é preciso pensar que
Jesus tinha uma grande amizade com essa família, a ponto de se emocionar
e chorar quando lhes acontecia uma infelicidade (Jo 11,33-35). Um carinho
que as pessoas comentavam (Jo 11,35). Mas o importante aqui é saber que se
tratava de uma família muito conhecida, não só no povoado onde moravam,
mas também na capital Jerusalém (cf. Jo 11,18-19). E, acima de tudo, era
uma família que tinha dinheiro para comprar e gastar em um perfume tão
caro (Jo 12,3; Mc 14,3) que foi motivo de escândalo para alguns dos seguido­
res de Jesus Qo 12,5; Mc 14,4). Contudo, é um fato notável o próprio Jesus
ter justificado e defendido a mulher que fez aquilo Qo 12,7; Mc 14,6).
Sem dúvida, porém, mais significativa foi a relação que Jesus manteve
com os publicanos, indivíduos que lidavam com muito dinheiro, que extor-
quiam os pobres e, além disso, colaboravam mais diretamente com o poder

21. As condições de marginalização e até exclusão em que vivia a mulher na sociedade judia do
século I foram amplamente estudadas. Sobre este assunto, cf. J. JEREMIAS, Jerusalén en tiempos
dejesús, Madri, Cristiandad, 1 9 7 7 , 3 7 1 -3 8 7 .
A ética de Cristo

imperial, já que eram eles que cobravam os impostos para os romanos. Ora,
sabemos que Jesus mantinha boas relações de amizade com essa classe de indi­
víduos (Mc 2,15-16 par.; Lc 15,1-2) e os punha como exemplos de boa condu­
ta diante de Deus, em contraste com os “observantes” fariseus (Lc 18,9-14). E
a prova mais clara da sintonia mantida por Jesus com esses homens é o que fez
ao passar por Jerico: foi direto para a casa de Zaqueu, o chefe dos publicanos
da região. E lá, na casa de um homem da pior fama, deixou-se convidar para
uma boa ceia e hospedou-se naquela casa enquanto permaneceu no povoado
(Lc 19,1-5), o que provocou as críticas de toda a vizinhança (Lc 19,7).
É evidente, pois, que Jesus não teve inconvenientes em manter relações
com pessoas de dinheiro. Saliente-se, contudo, que o fez somente quando
se tratava de pessoas que não se apegavam a seus bens, mas estavam dis­
postas a dar o que tinham. Isso foi o que aconteceu com as mulheres que
ajudavam Jesus com seus bens (Lc 8 ,3 ), com Maria, quando perfumou Jesus
com um perfume que custou um dinheirão (Jo 12,3; Mc 14,3) e, acima de
tudo, com Zaqueu quando se comprometeu, diante de Jesus e diante das
pessoas, a devolver tudo o que havia roubado e a dar aos pobres a metade
de seus bens (Lc 19,8). Sem dúvida, para Jesus, o importante não era se uma
pessoa tinha ou não dinheiro. O que interessava a Jesus era se uma pessoa,
possuísse o que possuísse, estava disposta a desapegar-se do que tinha, ou
fazer seus bens terem uma produtividade a serviço dos outros. Daí elogiou
a pobre viúva que dava tudo o que tinha para viver, ao mesmo tempo em
que censurava os que davam do que lhes sobrava (Lc 2 1 ,1 -4 ). Por isso
Jesus censura severamente o “rico néscio”, aquele indivíduo que teve uma
colheita fabulosa e a única coisa que lhe ocorreu foi como armazenar tudo
o que havia colhido, para viver tranquilo o resto de seus dias (Lc 12,13-21).
Aquele homem mereceu o qualificativo de “insensato” (Lc 12,20), porque
pensava somente em si. Ao passo que o Evangelho elogia o rei que foi capaz
de perdoar uma dívida enorme (Mt 18,27) a um sujeito que demonstrou ser
um desavergonhado (Mt 1 8 ,2 8 -3 0 ).
A atitude de Jesus para com as pessoas que têm dinheiro e bens é, por­
tanto, bastante clara: se se trata de pessoas que só pensam em reter o que é
delas para elas, tais pessoas não podem pretender, enquanto se mantiverem
nessa posição, crer ao mesmo tempo em Jesus e em seu Evangelho. Se, ao
contrário, se trata de pessoas que estão dispostas a desapegar-se de algo do
que têm (e que não seja meramente o que lhes sobra), para que isso redunde
Jesus e o dinheiro

em benefício de outros, então nos encontramos diante de crentes que levam a


sério o projeto de Jesus, ao qual os evangelhos denominam “Reino de Deus”.
O problema aqui suscitado consiste em que, nesse assunto do dinheiro,
como em muitos outros assuntos da vida, corremos o risco de enganar a nós
mesmos, lançando mão de razões tão aparentes quanto falsas, que servem
apenas para mascarar a verdade das coisas. E mais ainda quando, nas situa­
ções que temos de resolver, entram em jogo coisas que mudaram muito desde
os tempos de Jesus até nosso tempo. Refiro-me concretamente aos dois fato­
res que temos de misturar aqui: a economia e a religião.

Ética e Economia

A desordem e a confusão que se observam em quase tudo o que se refere ao


complexo mundo dos comportamentos éticos manifestam-se agora sobretudo
no que diz respeito às relações entre ética e economia. A confusão é tal que,
como se disse muito bem, “no que tange às relações entre economia e ética,
a apreciação mais comum em nosso horizonte histórico é a de considerá-
las incompatíveis. Tal como normalmente o sentimos e vivemos, não parece
que seja fácil vislumbrar que nosso atual horizonte da economia chegue a
ser marcado pela ética22. Essa dificuldade chega ao extremo de que “parece
como se houvesse uma insuperável separação entre o mundo da economia e
o mundo ético, como se fossem total e irremediavelmente incompatíveis”23.
Isso é realmente assim?
A dificuldade com que aqui nos defrontamos é certamente muito mais
séria do que alguns imaginam, o que quer dizer, entre outras coisas, que
hoje é muito mais complicado do que parece dizer uma palavra que venha a
ser sensata, realista e evangélica quando se tem como referência o complexo
mundo da economia. A dificuldade está em que, ao falarmos de economia,
estamos falando não simplesmente de dinheiro, mas de capital. Pois bem,
como é do total conhecimento de todos, há três tipos de capital: o produ­
tivo, o comercial e o financeiro. E cada uma dessas formas de capital gera
uma quantidade de problemas que, do ponto de vista da ética, se tornam

2 2 . J. CONILL SANCHO, Horizontes de economia ética, Madri, Tecnos, 2 0 0 4 , 12.


23. Op. cit., 12.
A ética de Cristo

cada dia mais difíceis de resolver. Basta pensar nos numerosos problemas
propostos hoje pelo capital comercial em sua forma dominante: o comércio
global. Sobretudo os problemas (concretamente de caráter ético) que provêm
da Organização Mundial do Comércio (OMC) e as consequências que daí se
seguem, principalmente para os países mais pobres do planeta24. Entretanto,
sem dúvida, a dificuldade maior está na globalização da economia. Para citar
um exemplo muito simples: uma camisa que uma pessoa compra em uma
loja de roupas certamente foi fabricada em um país onde as pessoas vivem
de forma miserável; e nessa camisa trabalharam mãos de meninos e meninas
submetidos a uma autêntica escravidão. Ou seja, o mais certo é dizer que
você está vestindo uma camisa fabricada por escravos. E dá no mesmo se
a camisa é cara ou barata, se é de marca25 ou não. Neste momento, tudo o
que diz respeito a manufatura de roupas, calçados ou mil outras coisas, que
usamos ou comemos todos os dias, quer compremos em grandes lojas ou em.
uma loja de R$ 1,99 ou em um camelô”, o mais provável é que esses artigos
tenham sido produzidos duramente, em noites estafantes e intermináveis,
por mulheres e crianças que certamente não ganham sequer um dólar ao dia.
Precisamente nossas compras acabam sendo frequentemente bastante ba­
ratas (pensemos nas “liquidações”), porque a produtividade é escandalosa­
mente barata, à custa da saúde e da miséria de milhões de criaturas famintas.
Como é lógico, essa situação estabelece para todos nós problemas éticos de
uma envergadura simplesmente aterrorizante.
Todavia, não é isso o que mais preocupa. O mais grave de tudo isso é o
que o conhecido sociólogo Anthony Giddens soube explicar de forma mui­
to simples: “Na nova economia global, gestores de fundos, bancos, empresas,
assim como milhões de investidores individuais, podem transferir quantias
enormes de capital de um lado do mundo para o outro pressionando apenas
um botão, em um instante. Ao fazê-lo, podem desestabilizar o que podería pa­
recer economias sólidas e à prova de bomba, como ocorreu há alguns anos na
Ásia . Aqui estamos falando não do capital produtivo (o que tem por função

24. Cf. SUSAN GEORGE, Remettre VOMC à saplace, Paris, Editions Mille et une Nuits, 2 0 1 .
25. Sobre os problemas éticos suscitados hoje pelas marcas, seu comércio e sua publicidade,
recomendo o já clássico estudo de NAOMI KLEIN, No logo. El poder de las marcas, Barcelona,
Paidós, 2 0 0 1 . 26

26. A. GIDDENS, Um mundo desbocado. Los efectos de la globalización en m estras vidas, Madri,
Taurus, 2 0 0 0 , 22.
Jesus e o dinheiro

produzir bens), nem do 'capital comercial (o que realiza o intercâmbio entre


os bens produzidos), mas do capital financeiro, o que circula pelas bolsas de
valores e mercados de finanças de todo o mundo, não para produzir bens ou
fazer o intercâmbio do que se produz, mas com a intenção primordial e básica
de “dirigir-se para onde forem gerados os maiores rendimentos”27. Quer dizer,
trata-se de um capital destinado fundamentalmente a acumular e, portanto, a
concentrar a riqueza cada vez mais e mais em menos proprietários.
Pois bem, o capital financeiro tem, entre outras, duas características que
são fundamentais para compreender o que está ocorrendo neste momento na
economia mundial. A primeira característica é a enormidade, porque são ta­
manhas as quantias de capital dedicadas à pura especulação e à ganância dos
ricos, que parece incrível o que está acontecendo. O já citado A. Giddens ex­
plica isso de maneira gráfica: “O volume de transações econômicas mundiais
mede-se normalmente em dólares norte-americanos. Para a maioria das pes­
soas, um milhão de dólares é muito dinheiro. Medido como feixe de notas de
cem dólares, totalizaria 50 centímetros. Cem milhões de dólares chegariam
mais alto que a catedral de São Paulo de Londres. Mil milhões de dólares
mediriam quase 2 00 quilômetros, 20 vezes mais que o monte Everest 2829.Pois
bem, acrescenta o mesmo Giddens, “não obstante, manipula-se muito mais
que mil milhões de dólares a cada dia nos mercados mundiais de capitais
Quando se pensa que há no mundo, neste momento, mais de oitocentos
milhões de seres humanos que se alimentam abaixo da tabela mínima da
alimentação básica para continuar vivendo, compreende-se a atrocidade ética
que representa o fato de que tais quantias de dinheiro tenham por fim circu­
lar pelos mercados mundiais em busca de maiores ganhos, ao mesmo tempo
em que milhões de criaturas morrem de fome.
A segunda característica consiste em que o capital financeiro se globalizou.
Ou seja, para os mercados de finanças não há fronteiras nem leis internacionais
que os controlem, de tal maneira que a norma que os rege é, como afirmou
o Nobel de economia, J. Stiglitz, o maior lucro possível30. Daí sua eficácia. Mas
também os perigos econômicos e éticos que implica. Tem razão George Soros

27. J. STIGLITZ, El malestar en la globalización, Madri, Taurus, 2 0 0 3 , 150.


28. A. GIDDENS, op. cit., 22.
29. Op. cit., 22.
30. Cf. nota 2 4 . ^
A ética de Cristo

quando diz que “os mercados são amorais: permitem que as pessoas ajam se­
gundo seus interesses... Esta é uma das razões pelas quais são tão eficientes”31.
Ocorre, porém, que essa eficácia econômica acarreta, inevitavelmente, um cus­
to muito alto, o qual consiste em que, “com bastante frequência, as empresas
encontrem melhores expectativas de benefícios por meio de simples opera­
ções financeiras do que mediante inversões que ampliem suas capacidades
produtivas”32. Isso equivale a dizer que os mercados financeiros concentram
quantias assombrosas de capital cujo destino fundamental não é a produção ou
a distribuição de bens para que a pessoa viva, mas sim a acumulação de riqueza
para o proveito daqueles privilegiados que podem investir na especulação e
viver dela. Ou, em outras palavras, os mercados financeiros concentram quan­
tias assombrosas de capital cujo destino fundamental é o lucro, a concentra­
ção desse capital em poucas mãos, em detrimento inevitável da produtividade.
Torna-se impossível calcular o dano que a eficácia (para os ricos) deste sistema
econômico está acarretando precisamente às pessoas mais pobres da terra.
De qualquer maneira, e além das diferentes teorias econômicas, é indu-
bitável que “abundam os argumentos que permitem explicar como uma gran­
de parte dos capitais financeiros, cujos fluxos internacionais alcançam cifras
certamente colossais e uma surpreendente velocidade de transação, não fazem
mais que girar virtualmente sobre si mesmos (divisas, créditos, títulos, deriva­
dos) e apenas uma parte reduzida deles supera esse universo panfinanceiro
e se relaciona com o mundo dos bens e serviços reais”33. Ou seja, trata-se de
assombrosas quantias de dinheiro que, em grande medida, não produz bens
e serviços para ninguém e sua função é somente acumular lucros para aqueles
que podem empregar seus capitais nesse negócio tão característico do sistema
capitalista. Ademais, nunca deveriamos esquecer que, “em se tratando de
operações financeiras de alcance transnacional, os agentes que nela intervém
situam-se à margem de qualquer legislação nacional, escapando assim do
controle e da fiscalização dos governos”34. E, logicamente, se escapam dos
controles fiscais dos governos, com maior facilidade escapam do julgamen­
to ético das doutrinas morais que podem ser ditadas pelas religiões. Isso dá

3 1 . G. SOROS, Globalízación, Barcelona, Planeta, 2 0 0 2 , 25.


3 2 . E. PALAZUELOS, La globalízación financiem, Madri, Síntesis, 1 9 9 8 , 2 0 7 .
3 3 . E. PALAZUELOS, op. cit., 13-14.
3 4 . E. PALAZUELOS, op. cit., 113.
Jesus e o dinheiro

motivo para pensar que os mercados amorais, dos quais fala G. Soros, são,
na realidade, mercados imorais. Desse juízo, por certo, a grande maioria da
população não compartilha, sobretudo os milhares de cidadãos que investem
na bolsa com a consciência tranquila. São muitos os moralistas dás diferen­
tes confissões religiosas (incluindo a católica) que não veem problema ético
nenhum nas inversões financeiras. Terão suas razões para pensar assim. Mas
também pode ser que, nesse complicado assunto, seja muito difícil libertar-se
da mentalidade submissa que o sistema estabelecido conseguiu que todos assi­
milemos, até fazer nosso o que outros pensaram para sua utilidade própria e
em detrimento (como sempre acontece) dos mais débeis. É provável que esse
aspecto obscuro e talvez pouco edificante das especulações financeiras seja o
que explica o zeloso silêncio em que esse assunto está envolvido, principal­
mente quando os investidores são pessoas ou instituições religiosas.
Há ainda uma observação que me parece fundamental em todo esse
complicado assunto. Há investidores da bolsa que, para tranquilizar
a consciência, apelam para o argumento de que seus investimentos são
pensados e gerenciados de maneira a só investir em “fundos éticos, eco­
lógicos e solidários”, uma fórmula que se propagou a partir da “Escola de
Finanças Aplicadas”35. Não sou economista e, portanto, não vou discutir
as razões que se dão, a partir dessa escola, para justificar os investimentos
financeiros. Só quero deixar claro uma coisa: um economista especializado
em finanças, T. M. Rybczynski, destacou, no tocante ao exercício e à distri­
buição dos direitos de propriedade, a forma como os sistemas financeiros
passam por três fases diferentes. A primeira é a do capitalismo de proprietá­
rios, quando estes atuam também como gerentes; a segunda corresponde
ao capitalismo dos gerentes profissionais, na qual os proprietários delegam o
direito a utilizar os ativos e decidir sobre a distribuição dos recursos gera­
dos; a terceira seria a do capitalismo profissional, delegando os proprietários
aos gestores de carteiras o poder de controlar os resultados dos gerentes
empresariais contratados, de impor a eles a disciplina e de receber os re­
cursos distribuídos pelas empresas36. Isso posto, não é necessário ser um

3 5 . ESCUELA DE FINANZAS APLICADAS, Fondos Éticos, Ecológicosy Solidários, Madri, 2 0 0 1 .


3 6 . T. M. RYBCZYNSKI, A new look at the evolution of the financial System, in J. REVELL (ed.),
The recent evolution of financial system, Londres, McMillan Press LTD, 1 997. Citado por A. TO-
RRERO, Internacionalización de las bolsas y de las Finanzas, Madri, Pirárhide, 2 0 0 1 , 55.
A ética de Cristo

especialista em finanças para se dar conta de que, tal como funcionam os


mercados financeiros neste momento, o investidor jã não é aquele que con­
trola em que e como se investe seu capital. Isso é decidido pelos especialistas,
a saber, os “gerentes profissionais”, que são os que sabem como o capital
vai ser mais rentável, já que isso é o que se pretende. Com isso quero dizer
que, se efetivamente vivemos em um sistema de “capitalismo profissional”,
aquele que se envolver nesse sistema terá que se ater às regras de jogo dele.
Pois bem, em tal sistema é fundamental a regra de que o lucro é o que im­
porta. Isso posto, se quem decide aonde vão parar os investimentos são os
gerentes profissionais, quem me garante que meu dinheiro não esteja sendo
empregado para financiar empresas que fabricam armamentos, que traficam
drogas e pessoas, que difundem pornografia ou que chantageiam criaturas
indefensas e inocentes? Sejamos sinceros e honestos. Quando chegamos a
essa pergunta, não há investidor da bolsa que possa ter uma resposta segura
e tranquilizadora para sua consciência. Eis um dos problemas mais graves
suscitados hoje pelos investimentos financeiros a qualquer investidor que
pretenda ser simplesmente honrado.
Muitas instituições religiosas investem na bolsa ou até mesmo vivem desse
tipo de negócio. O lamentável sucesso das fraudes e ganhos ilícitos que, há al­
guns anos, foi mostrado por “Gescartera”37 evidenciou a quantidade de dioceses,
institutos religiosos e conventos que, pelo visto, vivem desse tipo de negócio.
Aliás, com esse motivo ouviram-se vozes episcopais defendendo que “aplicar
não é pecado algum”. É surpreendente a escrupulosidade com que, na Igreja,
são tratados os assuntos relacionados com o sexo, ao passo que os que dizem
respeito aos lucros nos mercados financeiros não representam nenhum proble­
ma. Tudo isso nos faz repensar se estamos ou não no caminho do Evangelho.

Além do utilitarismo

Em um sentido geral, os especialistas em economia estão convencidos de


que a finalidade das ciências econômicas é conseguir a maior utilidade, o máxi-

3 7 . O Caso Gescartera foi um escândalo financeiro ocorrido na Espanha em 2 0 0 1 , em que de­


sapareceram 2 0 milhões de pesetas com mais de 2 mil afetados, incluindo fundações, ONGs,
congregações religiosas e empresas públicas. (N.do E.)
Jesus e o dinheiro

mo rendimento na gestão do capital. Para isso são orientadas, definitivamente,


as diversas teonas econômicas ensinadas nas universidades, nos livros de eco­
nomia e pela grande maioria dos entendidos desse assunto. Isso quer dizer que,
segundo a opinião comumente admitida, existe uma relação direta entre econo­
mia e utilitarismo. Ou, o que significa a mesma coisa, entre economia e ganho: a
economia encontra-se devidamente delineada e funciona tanto melhor quanto
mais utilidade econômica (mais ganho) proporcionar. Esse fato parece inteira­
mente lógico. Mais ainda, pode-se pensar para que serve uma ciência econômica
que não faz que os ganhos aumentem, ou com que finalidade a queremos?
Assim estiveram as coisas até que, com o passar do tempo, começamos
a nos dar conta de que em questão de economia (tal como está organizada)
existe algo que não funciona. E, por certo, algo muito sério. Algo que não
depende (nem só, nem principalmente) das decisões dos políticos, isto é, de
agentes externos à ciência econômica enquanto tal, mas sim do fato de que a
ciência econômica em si mesma, tal como normalmente se ensina e se põe em
prática, é uma pretensa ciência que desencadeia consequências desastrosas em
quase todas as ordens da vida. Basta pensar no desequilíbrio econômico mun­
dial, que consiste no fato de que, enquanto nos países ricos é preciso pagar
quantias enormes de dinheiro para que não se produza mais, em outros con­
tinentes há milhões de seres humanos que morrem de fome e na miséria. E
isso não é apenas questão de vontade política. Se os políticos agem assim, isso
se deve a que a ciência econômica e, portanto, os responsáveis pela economia
dizem que não se pode fazer outra coisa. É preciso continuar cometendo se­
melhante barbárie, porque assim é estabelecido pela economia. Sem dúvida,
se chegamos a esta desastrosa “ordem mundial”, isso quer dizer que a ciência eco­
nômica, que nos guiou até onde estamos, é a manifestação patente do fracasso mais
estrondoso que a humanidade jamais viveu.
E não é só isso. Não se trata apenas do desequilíbrio econômico mundial.
Além disso, é preciso levar em consideração que, nos países que tiveram a
sorte de progredir e crescer aceleradamente do ponto de vista econômico, nem
por isso o povo se sente agora mais feliz que há cinquenta anos. Nos países
ricos, logicamente, as pessoas têm agora mais dinheiro que há meio século. E
têm mais de tudo o que o dinheiro proporciona. Mas têm mais felicidade? Ou
seja, as pessoas se sentem melhor agora do que há cinquenta anos? Isso não
está demonstrado em nenhuma parte. Se é certo que melhoramos em mui­
tas coisas, não é menos verdade que pioramos consideravelmente em muitas
A ética de Cristo

outras que são muito fundamentais na vida. É evidente que, nos países ricos,
houve melhora no nível de vida. Isso, porém, não quer dizer que tenhamos
melhorado igualmente em qualidade de vida.
Tudo isso explica que, nos últimos anos, tenham se levantado vozes
autorizadas que exigem uma mudança fundamental nos delmeamentos da
economia mundial, sobretudo no que diz respeito às relações entre economia
e ética. Isso é o que, entre outros, o professor Amartya Sen, prêmio Nobel
de Economia em 1998, destacou38. A contribuição principal desse destaca­
do economista consiste, certamente, em ter enfrentado os peritos em ciências
econômicas com a seguinte pergunta: A riqueza e o êxito da gestão econômica
limitam-se ao problema do dinheiro e à renda per capita? Vale dizer, trata-se
de saber se, além do dinheiro, para explicitar se a economia funciona bem ou
mal, não se faz necessário levar em conta outros indicadores que são decisi­
vos na vida das pessoas e dos povos? Concretamente, Amartya Sen insistiu
nos valores éticos, que são determinantes para que a qualidade de vida de um
povo, de uma sociedade, de um indivíduo se torne aceitável.
Falando ainda mais concretamente, entre os valores éticos, Amartya Sen
destaca, sobretudo, a liberdade. Uma economia que obtém grandes lucros, porém
à custa de transformar as pessoas em escravas de seu trabalho, do consumo, da
manutenção de certo nível de vida ou simplesmente da compra de uma moradia
(como acontece concretamente agora aos jovens na Espanha), é uma econo­
mia radicalmente mal traçada. Como foi dito muito bem, “o novo enfoque de
Sen incide em um aspecto crucial para o desenvolvimento da economia, em
uma questão vital: supõe-se ou não que a economia se interessa pelas pessoas
reais? Porque realmente afeta as pessoas reais o alcance da pergunta: como se
deve viver?39. Pois bem, ao fazer essa pergunta, estamos tocando a questão
central da ética, o que equivale a dizer que uma economia orientada somente
a conseguir o máximo de utilidade, ou seja, uma economia gerenciada so­
mente em função do utilitarismo é uma economia sem ética. Entretanto, uma
economia assim enfocada é uma economia desorientada e que, precisamente

3 8 . Entre suas publicações, cumpre salientar: Sobre ética y economia, Madri, Alianza, 1989;
Nuevo examen de la desigualdad, Madri, Alianza, 1 9 9 5 ; Bienestar, juslicia y mercado, Barcelona,
Paidós, 1 9 9 7 ; Desarrollo como libertad, Barcelona, Planeta, 2 0 0 0 . Cf. T. CONILL SANCHO on.
cit., 145.
3 9 . J. CONILL SANCHO, op, cit., 148.
Jesus e o dinheiro

por isso, pode nos arrastar a todos a catástrofes sem precedentes. Mais ainda,
tal como estão as coisas neste momento, não é- que essas possíveis catástrofes
possam acontecer, mas já estão causando estragos assombrosos em grandes
setores da população mundial. Segundo os informes oficiais dos organismos
internacionais (ONU, FAO, OMS), morrem de fome e desnutrição, a cada
dia, não menos de 30 mil crianças e, certamente, outros tantos adultos. Isso
é dolorosamente compreensível. E a fome não espera. A fome mata. E mata
imediatamente. Sabemos, porém, que existem atualmente no mundo mais de
oitocentas milhões de criaturas que se alimentam abaixo da tabela mínima de
calorias diárias que um ser humano necessita para continuar vivendo. E o mais
absurdo dessa situação é que a causa de semelhante genocídio não é a falta de
alimentos. Absolutamente o contrário. Um dos problemas mais sérios enfren­
tados pelos países ricos é o excesso de produção alimentar. Porém, as “leis” da
economia, tal como se encontram elaboradas atualmente, dizem que é preciso
pagar aos agricultores (ricos) para frearem a produção, em vez de alimentar os
que morrem de fome. Pode haver uma imoralidade maior? Mais ainda, pode
haver uma situação mais irracional e mais absurda?
O mais preocupante, em todo esse assunto, é que o poder (real e efetivo)
dos governantes para modificar essa situação é muito mais limitado do que
muitas pessoas imaginam, por uma razão que se compreende de imediato.
Segundo dizem os especialistas em economia, uma das características essen­
ciais do contexto financeiro internacional é o predomínio das instituições pri­
vadas no financiamento internacional40. Desde 1985, ou seja, há vinte anos,
vem se produzindo um crescimento espetacular dos investimentos interna­
cionais nos mercados de finanças41. Pois bem, os novos protagonistas de tal
crescimento já não são os Estados ou os Governos, mas “as instituições de
investimento coletivo”, nas quais entram, sobretudo, os fundos de investi­
mento, os fundos de pensões e as companhias de seguros, ou seja, as institui­
ções privadas que podem competir na hora de oferecer uma rentabilidade
imediata, o grande argumento para captar novos recursos e, portanto, mais
clientes42. Daí, a tendência crescente a privatizar os serviços públicos, que foi
ganhando terreno nas últimas duas décadas.

4 0 . A. TORRERO, Internacíonalizaciôn de las bolsasy de lasfinanzas, Madri, Pirâmide, 2 0 0 1 , 27.


4 1 . E R. EDWARS, The newfínanee. Regulation & Financial stability, AEI Press, 1 9 9 6 , 5 5 -5 6 .
4 2 . A. TORRERO, op. cit., 3 5 -3 6 .
A ética de Cristo

O que nos diz isso tudo? O sistema econômico vigente tem suas leis de
eficácia e rendimento utilitário. E o sistema não pode ser infiel a suas leis,
porque nisso está sua vida. Isso significa que o sistema se rege e continuará
sendo regido pelo pnncípio da eficácia e não por princípios éticos. Contudo,
nunca deveriamos esquecer que a aplicação do princípio da eficácia depende
de instituições financeiras privadas, ao passo que os princípios éticos depen­
dem das decisões livres das pessoas. Isso quer dizer que a batalha decisiva,
para o bem ou para a desgraça da humanidade, vai ocorrer não no terreno da
política e das decisões que nos são impostas de cima, mas no campo da ética e
das opções que assumimos; somos nós que, de baixo, podemos humanizar a
orientação tomada pelo gasto público e privado, pelo comércio e pela divisão
da riqueza mundial. Ou seja, a palavra decisiva, para a felicidade ou para a
desgraça de milhões de criaturas, não será dada pela política, mas pela ética.

O dinheiro como armadilha

Como o dinheiro está tão mal distribuído, os que o têm em abundância


costumam procurar para si (inconscientemente) razões que justifiquem a si­
tuação privilegiada que desfrutam, em contraste com os que não têm o indis­
pensável para viver. Não pretendo fazer aqui uma enumeração dessas razões
e menos ainda analisar suas causas e seus efeitos. Isso, por si só, precisaria de
um livro inteiro para ser tratado com certa seriedade. Minha intenção aqui
é mais limitada e mais concreta. Quero dizer algo sobre o dinheiro como
armadilha para os que pretendem trabalhar pelo que, em linguagem cristã,
costuma ser designado como o “Reino de Deus”.
Segundo os evangelhos, Jesus impôs um preceito claro e decisivo a seus
“discípulos” e “apóstolos” (Mt 10,1-2). Esse preceito se refere a duas coisas
fundamentais: primeiro, o que têm que fazer neste mundo; segundo, como têm
que fazer o que ele lhes determina.
Quanto ao primeiro, a missão que Jesus impõe a seus discípulos e apóstolos
consiste, antes de tudo e essencialmente, no anúncio de que o Reino de Deus
está próximo (Mt 10,7). Ou seja, o Reino de Deus se aproxima. E essa pro­
ximidade deve ser notada em quatro coisas: “Curai os doentes, ressuscitai os
mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios” (Mt 10,8). Quer dizer, o
Reino de Deus se faz presente onde se luta contra o sofrimento humano, onde
Jesus e o dinheiro

se dá vida onde há morte, onde se devolve a dignidade às pessoas e grupos


excluídos (tal era o caso dos leprosos) e onde se liberta as pessoas das forças
do mal que os oprime e os humilha (expulsão de demônios) (Mt 10,8)43. Defi­
nitivamente, trata-se da missão pela vida e pela dignidade dos seres'humanos,
a expressão da bondade e do amor que nós, mortais, podemos entender e
aceitar, seja qual for nossa maneira de pensar e nossa maneira de viver.
Isso posto, a segunda condição que Jesus impõe àqueles que envia a
essa missão é como deverão realizá-la. Isso, em última instância, nos indica
que Jesus tinha uma ideia muito clara e firme de como deve seguir pela vida
alguém que leva a sério o projeto do Reino de Deus. Se esse projeto envolve a
defesa da vida e da dignidade dos seres humanos, se, por isso mesmo, o Reino
exige que se alivie o sofrimento e que se faça com que as pessoas sejam felizes
(sempre que isso estiver a nosso alcance), como se há de realizar semelhante
tarefa de acordo com Jesus?
Pois bem, assim formulada a pergunta, o próprio Jesus dá uma respos­
ta que, inevitavelmente, para muitas pessoas vem a ser desconcertante. O
preceito que Jesus impõe, na regra seguinte, àqueles que envia para realizar
essa missão, consiste nisto: “Não providencieis ouro, nem prata, nem di­
nheiro para guardar em vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem
duas túnicas, nem sandálias, nem bordão; pois o operário tem direito ao
seu alimento” (Mt 1 0 ,9 -1 0 ; Mc 6 ,8 -1 1 ; Lc 1 0 ,4 -1 2 ). Ou seja, a ideia de
Jesus (se é que os evangelhos a reproduzem com fidelidade, ao menos em
seu conteúdo básico) é que se defende a vida, se respeita a dignidade, se
transmite a felicidade e se alivia o sofrimento não mediante o dinheiro e
a posse de bens, nem utilizando vestes de qualidade e distinção, nem car­
regando sinais de poder, como parece sugerir o “bordão”, mas exatamente
ao contrário, ou seja, despojando-se de tudo isso. Pois bem, pode-se levar
tudo isso a sério? Pode-se aceitá-lo de alguma forma? E caso se aceite, posto
que não podemos crer no Evangelho “seletivamente” e excluindo dele o
que nos incomoda, então o que nos diz isso hoje, a nós que vivemos em
uma sociedade e em uma cultura tão diferentes da sociedade e da cultura
em que Jesus pôde dizer essas coisas?

4 3 . Analisei detidamente esse aspecto central do Reino de Deus em meu livro: El Reino de Dios.
Por la víday la dígnidad de los seres humanos, Bilbao, Desclée De Brouwer, 1 9 9 9 , concretamente
às pp. 6 3 -7 7 .
A ética de Cristo

Segundo parece, se essas palavras de Jesus forem analisadas do ponto de


vista histórico, o mais provável é que tenham sua origem no “radicalismo iti­
nerante do cristianismo primitivo e mostram como foi seu desenvolvimento
no primeiro século”44. De qualquer maneira, e seja o que for essa curiosidade
histórica, a opinião mais autorizada dos especialistas é que essas palavras de
despojamento total têm sua origem no próprio Jesus e não foram invenção
de determinados grupos de exaltados itinerantes45. E, então, a pergunta que
se apresenta para nós é inevitável: O que o Evangelho quer nos dizer, hoje,
ao nos proibir a utilização do dinheiro para anunciar e tornar presente o
Reino de Deus neste mundo? O já citado Ulrich Luz afirma acerta damente
que “há poucos textos evangélicos que deixam transparecer tão claramente
como este a distância entre a situação originária e nosso tempo”46. Trata-se
de uma forma muito suave de indicar não só a distância cultural e social que
existe entre o tempo de Jesus e o nosso, mas algo muito mais forte, a saber: o
quão distante estamos nós do Evangelho anunciado por Jesus. Logicamente,
essas palavras tão claras e fortes de Jesus traçam de maneira crua o tema do
financiamento da Igreja. Todavia, para além desse assunto, que já é bastante
sério por si só, o Evangelho nos põe aqui diante do problema do dinheiro
como armadilha. Reconheçamos com toda a honestidade: o dinheiro é muito
sedutor. Existem, no entanto, ambientes nos quais mostrar-se como pessoa
apegada ao dinheiro é uma atitude malvista e provoca até escândalo. Por isso,
acontece com frequência que as pessoas procurem razões que possam ju sti­
ficar o dinheiro que têm e do qual usufruem. Pois bem, um dos argumentos
mais eficazes que os homens de Igreja encontraram para possuir e lidar com
o dinheiro é o apostolado. Em que sentido se pode afirmar que, nesse assunto
concreto, o dinheiro atua como armadilha?
Se tentarmos responder essa pergunta com base nos argumentos oferecidos
pelo são juízo, sem dúvida, imediatamente encontram-se numerosas razões que
justificam perfeitamente o fato de ter dinheiro. E muito dinheiro. Por isso na
Igreja, com tanta frequência, foram buscados e possuídos importantes capi-

4 4 . G. THEISSEN, Radicalismo itinerante. Aspectos literario-sociológicos de la tradición de las


palabras de Jesús en el cristianismo primitivo, in Estúdios de Sociologia dei cristianismo primitivo,
Salamanca, Sígueme, 1 9 8 5 , 2 8. Citado por U. LUZ, El evangelio según san Mateo, v. II, Salaman-
ca, Sígueme, 2 0 0 1 , 1 2 9 -1 3 0 .
4 5 . Cf. U. LUZ, op. cit., 13 0 , que traz as razões e a docum entação bibliográfica a respeito.
4 6 . Op. cit., 131.
Jesus e o dinheiro

tais, bens avultados, dinheiro'e riquezas de toda índole. Porque tudo isso es­
tava “razoavelmente” justificado. Para fazer o bem, para fazer apostolado, para
ajudar os outros, para fomentar a honra e o culto divino, para toda espécie
de iniciativas culturais, científicas, educativas, caritativas etc. etc. E quem vai
fazer objeções a tudo isso? Isso está certo. Mas tão certo quanto isso é o fato
de que, com base em toda essa argumentação, nós, pessoas de Igreja, incor­
remos com frequência em situações autenticamente escandalosas. Trata-se de
um tema excessivamente explorado para que se insista nele mais uma vez.
Outra questão é se todo esse complicado problema é visto a partir dos
argumentos oferecidos pela experiência mística que, para um cristão, é a expe­
riência de Jesus. Então, tudo muda. E as coisas são vistas de forma distinta
e com uma lógica distinta. É a lógica de Jesus, quando disse a alguém que
queria segui-lo: “As raposas têm tocas e os pássaros do céu, ninhos; o Filho
do Homem, porém, não tem onde recostar a cabeça” (Mt 8 ,20 par.). É a lógica
de Antônio, o chamado “pai dos monges”, de quem nos informa santo Ataná-
sio que foi justamente a leitura do Evangelho o que moveu aquele homem a
vender a boa herança que havia recebido de seus pais e, depois de dar ti)do
aos pobres, tomar a decisão de retirar-se ao deserto, onde viveu desde sua
juventude até passar dos cem anos47. É a lógica de Francisco de Assis que,
ao escutar precisamente o texto de Mt 10,9-10, tirou os sapatos que calçava,
deixou-se ficar pobre em extremo despojamento e assim viveu até o fim de
seus dias, deixando esse critério como norma na primeira regra franciscana48.
E é a lógica de muitos homens e mulheres que, ao longo dos séculos e por sua
fé em Cristo, optaram por viver sem meios, sem recursos humanos, em extre­
ma pobreza, com a convicção de que esse, e não outro, é o caminho que têm
de seguir os que se propõem a levar a sério e firmemente o projeto do Reino
de Deus, o projeto de Jesus, que é o projeto da bondade sem limites, do amor
sem limites, da humanização que supera todas as nossas desumanizações.
Esse projeto pode conseguir que neste mundo haja menos divisões, mais res­
peito, mais proximidade entre todos, mais bondade, mais amor, porque isso,
e não o dinheiro nem os meios proporcionados pelo dinheiro, é o que pode
mudar a revolução descontrolada que conduz nosso mundo.

4 7. VítaAntonií, 2, 3. Ed. Sources Chrétiennes 4 0 0 , Paris 1 9 9 4 , 133.


4 8 . Regula non bullata, n. 14. Cf. N. 8. Ed. H. U. von Balthasar, Die grossen OrdensregelnFran-
císcus von Assisi.
A ética de Cristo

Vistas assim as coisas, a pergunta final deste capítulo seria a seguinte:


Por que Jesus foi tão radical em um assunto tão vital quanto o dinheiro?
E a resposta parece bastante clara: Porque Jesus compreendeu como ninguém
que aquilo de que a pessoa necessita não é ajuda, mas respeito, estima, bondade
e amor. Existem na vida, certamente, mil situações nas quais não resta outra
saída senão prestar ajuda. 'E ajuda urgente. Mas pode-se ajudar os outros sem
proximidade humana, sem respeito, sem estima para com eles e, sobretudo,
sem bondade nem amor. O dinheiro pode proporcionar ajuda, mas não passa
daí. Com o dinheiro se dá algo que é distinto da pessoa em si mesma. Quem
passa pela vida despojado de tudo só pode dar-se a si mesmo e o que tiver em
si mesmo de bondade e amor, porque não tem outra coisa. E o surpreendente
é que a história nos mostra que aqueles que levaram a sério esse projeto e se
lançaram nesse caminho são os que reformaram a sociedade e conseguiram
que a Igreja seja fiel ao Evangelho e traga algo verdadeiramente útil a este
mundo. Por isso, pode-se afirmar que uma das grandes armadilhas nas quais
a Igreja caiu continuamente; assim como as instituições eclesiásticas, é a do
dinheiro. A armadilha dos que pensaram, e pensam, que com mais dinheiro
melhorarão mais este mundo e vão conseguir que as pessoas tenham mais fé
e mais esperança. É o grande engano e, até, a grande traição. Por uma razão
muito simples e muito profunda, que o grande teólogo que foi Hans Urs von
Balthasar soube formular admiravelmente:

‘Só o amor é digno de f é ”.


11
Jesus e o poder

A tentação mais grave

Já falei neste livro sobre o que Jesus pensava acerca


do poder, porque dificilmente se pode explicar o
Evangelho sem que esse tema salte aos olhos. De
qualquer maneira, e mesmo correndo o risco de repe­
tir algumas coisas, é preciso dedicar um capítulo ao
complicado problema do poder, as idéias que se tem
sobre isso e, antes de mais nada, como se deve gerir
o desejo de poder que todos nós temos inscrito em
nossos genes vitais e humanos mais determinantes.
É grande o número de pessoas convencidas de
que o perigo mais forte que nos ameaça é a ambi­
ção pelo dinheiro. Daí são muitos os que pensam
que existe tanto sofrimento e tanta desgraça neste
mundo principalmente devido à ambição dos ricos,
fato este que, no momento histórico que estamos
vivendo, se manifesta nas atrocidades causadas pelo
A ética de Cristo

sistema capitalista, em sua forma mais agressiva (o mercado neoliberal), nos


países pobres do planeta e, em geral, nos grupos marginalizados de nossa
sociedade e, acima de tudo, nos excluídos do sistema.
É certamente indubitável que a péssima organização econômica, se se
considera esse assunto de uma perspectiva global, é uma das causas da situa­
ção de extrema necessidade em que vivem e morrem tantas milhares de cria­
turas humanas, justamente em um mundo onde há de tudo em abundância.
Isso é tão evidente que ninguém, desde que fale sensatamente, porá isso em
dúvida. Todavia, a pergunta que se deve fazer é a seguinte: o perigo mais gra­
ve, que hoje ameaça a humanidade, provém da ambição pelo dinheiro ou tem
sua causa principal na ambição pelo poder ?
Parece-me oportuno recordar que, como facilmente se pode compreender,
ao suscitar essa pergunta, não se trata de satisfazer a mera curiosidade, própria
de pessoas quer não têm coisas mais sérias em que pensar. Sem dúvida, esta­
mos diante de um assunto muito sério. Tão sério que se trata de saber se a raiz
mais profunda do dano que causamos a nós mesmos, e que causamos também
aos outros, está no desejo de dinheiro ou no desejo de poder. Aí está o verda­
deiro cerne do problema. Exatamente no “desejo”. Com efeito, sabemos que a
raiz última dos milhares de problemas que nos fazem sofrer, e com os quais
causamos sofrimento, está no desejo. Em um dos casos, no desejo de dinheiro.
No outro caso, no desejo de poder. Precisamente por isso, porque a raiz é co­
mum, compreende-se que, frequentemente, ocorrem numerosas interferências
dessas “ambições” ou “desejos desmedidos”. E a prova está em que, muitas e
muitas vezes, torna-se difícil saber se o que move determinados indivíduos
em seus comportamentos “ambiciosos” é a ânsia pelo dinheiro ou a ânsia pelo
poder. Contudo, e mesmo cientes da complexidade do assunto, se aqui nos
perguntamos pela “tentação mais grave”, é porque existem dois fatos que, não
só dão ensejo, mas obrigam a enfrentar esse problema.
O primeiro fato manifesta-se e está à vista de todos. Agora mesmo, há
pessoas que têm tanto dinheiro que nem sabem onde colocá-lo, nem o que fa­
zer com ele, e, contudo, surpreendentemente, continuam sem cessar, lutando
dia e noite para acumular mais e mais capital. Se já possuem em excesso tudo
o que o dinheiro pode oferecer e proporcionar, como se explica que conti­
nuem sem cessar com o afã de acumular mais e mais? O que o dinheiro pode
proporcionar tem um limite. Se, apesar disso, o desejo pelo dinheiro não ces­
sa, é preciso perguntar-se se esse empenho está centrado no dinheiro, ou se o
Jesus e o poder

que busca é outra coisa, que vai muito mais além do que o dinheiro pode pro­
porcionar. Ou seja, deve-se perguntar se o desejo mais poderoso, na vida de
qualquer ser humano, é o desejo de dinheiro ou o desejo de poder. O poder
que, entre outras coisas, pode proporcionar (e proporciona) a acumulação de
um capital fabuloso, quiçá inigualável.
O segundo fato é de uma ordem completamente distinta. Refiro-me con­
cretamente a um fato que qualquer pessoa percebe quando se põe a ler aten­
tamente os evangelhos. Como se sabe muito bem, Jesus de Nazaré reuniu um
grupo de discípulos que, em seu círculo mais reduzido, costuma ser repre­
sentado nos “Doze” apóstolos. Pois bem, na convivência com esse grupo de
homens, Jesus foi paciente e tolerante até extremos que chamam a atenção.
Concretamente, Jesus nunca (que saibamos) jogou na cara deles ambição
econômica de nenhum tipo. Nem os repreendeu por assuntos de dinheiro.
No grupo, havia bolsa comum (jo 13,29), segundo parece, mal administrada
(jo 12,6). Porém, o evangelho de João, que é o que nos informa sobre esses
detalhes, não faz a menor alusão a que Jesus ou os outros do grupo dessem
importância a esse assunto. Naquele grupo, sem dúvida, o tema econômico
não parece ter constituído problema algum. É certo, ao menos, que as comu­
nidades cristãs, nas quais foram elaborados e redigidos os relatos evangélicos,
consideraram não haver nada significativo a destacar e relatar a esse respeito.
Não obstante, quando surge o tema do poder, da prepotência, da prioridade
sobre os demais, o simples fato de dar-se importância ou, ao contrário, o
desagradável assunto dos fracassos e frustrações acarretados pela vida, em
tais situações, Jesus é taxativo e até intransigente, de tal modo que, como já
afirmei antes e vamos ver agora mais detidamente, em tais ocasiões, o próprio
Jesus vai direto ao ponto e não tem papas na língua, chamando as coisas por
seu nome e chegando, em alguns casos, até a repreensões que soam simples­
mente a insultos. Vamos ter oportunidade de analisar a abundante e variada
informação que os evangelhos nos proporcionam a esse respeito.
Mas desde já é preciso tirar uma conclusão que parece bastante óbvia.
A ética de Cristo está assentada sobre uma base fundamental: Jesus viu clara­
mente que o perigo mais grave que ameaça os seres humanos é a tentação do poder.
Não há dúvida de que isso é o que causa o maior prejuízo a todos, o que
mais nos desumaniza, o que mais nos divide e o que, por isso mesmo, torna
praticamente impossível a convivência em paz, sem agressões e sem violência.
Por essa razão Jesus não tolerou, de maneira alguma, as pequenas ou grandes
A ética de Cristo

ambições das quais os apóstolos deram sinais evidentes. E não é que aqueles
homens (segundo parece) fossem mais ambiciosos que o restante dos mortais.
Sem dúvida, nisso, eram como são todos os outros. Nem mais, nem menos.
No entanto, Jesus viu que tinha de cortar pela raiz inclusive brotos à primeira
vista insignificantes de rivalidade e, sobretudo, as pretensões de poder de uns
sobre outros, por mais que tais pretensões aparecessem camufladas com as
melhores intenções, como direi no momento oportuno. Jesus quis deixar bem
estabelecido um princípio que, uma vez aplicado sem concessões, tornaria a
história dos seres humanos no planeta terra completamente diferente. Em vez
da história dos “salvadores” imperialistas que, um após outro, foram impondo
sua hegemonia à custa de horrores inenarráveis, teríamos a história de uma
humanidade em paz, em convivência harmoniosa e em progresso crescente de
humanização. Mas não foi assim. E o sabemos de sobra. E o sofremos até ex­
tremos incríveis. Pois bem, a constante que determinou e marcou as grandes
e as pequenas confrontações diárias foi sempre, invariavelmente, a ambição
pelo poder, a exaustiva e insaciável lei do mais forte, com o rastro de sangue,
humilhação e morte que continua implacável seu curso, até o dia de hoje.
Há um agravante que se nos apresenta neste momento. Se levarmos em
consideração que o poder conta, nos tempos em que vivemos, com meios cuja
força de destruição jamais haviam atuado em igual medida, não parece exage­
rado afirmar que hoje nos vemos presos a uma alternativa que não deveriamos
enfrentar com frivolidade e, menos ainda, tirando-lhe a importância. Trata-
se da alternativa entre hegemonia ou sobrevivência. Noam Chomsky, no final
de seu estudo sobre esse dramático dilema, soube delinear a situação com
realismo: “Na história atual”, diz Chomsky, “podemos discernir duas tendên­
cias: uma orientada para a hegemonia, que age racionalmente num contexto
doutrinai lunático, ao mesmo tempo em que ameaça a sobrevivência; a outra,
dedicada à crença de que ‘é possível outro mundo’, nas palavras que animam
o Fórum Social Mundial, que desafia o sistema ideológico reinante e pretende
originar alternativas criativas de pensamento, ação e instituições. Ninguém
pode predizer que tendência predominará. É um modelo familiar ao longo da
história, muito embora a diferença capital seja que hoje os riscos são muito
maiores”1. E Chomsky conclui com um texto sombrio de Bertrand Russell:

1. N. CHOMSKY, Hegemonia o supervivencia. La estratégia imperialista de Estados Unidos, Barce­


lona, B.S.A., 2 0 0 4 , 3 4 3 -3 4 4 .
Jesus e o poder

“Depois de tantos séculos nos quais a terra engendrou inócuos trilobites


e borboletas, a evolução progrediu até o extremo de gerar Nero, Gengis
Kan e Hitler. Creio, porém, que se trate de um pesadelo passageiro; com
o tempo, a terra voltará a ser novamente incapaz de sustentar ã vida e a
paz voltará a reinar”2.

Mas então, se esta previsão se cumprir, esta nossa terra já não terá a
paz da vida, mas a frieza da morte. Assim forte e assim perigosa é a paixão
pelo poder. Jesus de Nazaré tinha suas razões para repreender, pelo menos
dentro de seu grupo e do movimento que originou, o desejo de poder dos
primeiros apóstolos.

O desejo de poder e superioridade

Os evangelhos estabelecem um princípio muito claro e muito firme: aquele


que pretende ser maior que os outros e, portanto, estar em lugar superior aos ou­
tros, ter mais poder que os outros e submetê-los a sua própria vontade, não pode
entrar no Reino de Deus. Pois bem, sobre este princípio, faz-se necessário dizer
várias coisas.
Antes de tudo, é importante levar em consideração que esse princípio
foi insistentemente repetido por Jesus, em diferentes momentos, em ocasiões
muito diversas e sempre que houvesse oportunidade para falar dessa questão.
Vê-se, portanto, claramente, que nos deparamos aqui com uma convicção
muito firme de Jesus, à qual, sem dúvida, ele deu a máxima importância,
tanto é que, como já afirmei antes, foi nesse ponto que se deram os enfrenta-
mentos mais duros entre Jesus e os apóstolos.
Em segundo lugar, é preciso recordar que Jesus propôs a seus discípulos
esse princípio sempre que, entre aqueles homens, surgiram diferenças ou
discussões sobre qual deles era “o maior” (Mc 9 ,3 4; Mt 18,1; Lc 9,46; 22,24)
ou quando alguns pretendiam instalar-se nos primeiros lugares (Mc 10,37;
Mt 2 0 ,2 1 ), fato que, logicamente, provocava a indignação dos outros
(Mc 10,41; Mt 20 ,2 4 ), que também nutriam desejos de poder e mando. Enfim,

2. Op. cit., 3 4 4 , que remete a JUDY COTH, Bertrand Russell Socíety Quarterly (fevereiro de
2 0 0 3 ).
A ética de Cristo

recolhendo toda a documentação dos evangelhos sobre esse assunto, os textos


são abundantes (Mc 9,34; 10,37; cf. Mt 18,1; 20,21; cf. 24; Lc 9,46; 22,24)3.
Em terceiro lugar, sempre que se estabeleceram entre os discípulos
discussões desse tipo, Jesus apelou para o mesmo critério: em vez de brigar
entre si e discutir pelo poder, o que tinham de fazer era “tornar-se como
crianças”. A afirmação de Jesus nesse sentido é taxativa: “Em verdade, eu
vos digo: se não mudardes e não vos tornardes como as crianças, não entra­
reis no Reino dos céus” (Mt 18,3 par.). Em outros casos, o que Jesus exige
deles é mais difícil: rebaixar-se até “ser escravo” (Mt 2 0 ,2 6 -2 7 ). Pois bem,
falar de crianças e escravos, nas culturas mediterrâneas do século I, era,
na realidade, falar de pessoas sem direitos. Isso é bem sabido no caso dos
escravos. Mas não é menos certo no que se refere às crianças, uma vez que
era prática frequente (principalmente se fossem meninas) tirar os bebês das
lixeiras de onde eram recolhidos para serem vendidos como escravos4.
Obviamente, tudo isso quer dizer que, entre os critérios éticos de Jesus,
ocupava um lugar de destaque a convicção de que a renúncia a ser (ou, inclu­
sive, mostrar-se como) o mais importante, o mais forte, o mais poderoso, é
a conãitio sine qua non para “entrar no Reino”, que é a expressão utilizada
pelos evangelhos para falar daqueles que se põem de parte da vida e que, em
consequência, lutam por defender e tornar mais digna a vida das pessoas
neste mundo5. É evidente, portanto, que Jesus tinha a firme convicção de
que o maior perigo que existe para a vida neste mundo é o desejo de poder ou,
dito com mais propriedade, a ambição de mandar nos outros, o desejo de
controlar suas vidas e suas condutas, o empenho em obrigá-los à obediência,
à submissão silenciosa e paciente ou, pelo menos, à resignação daquele que
vê que sua vida não tem outra saída senão suportar e cumprir o que os outros
pensam e decidem. Por isso, sem dúvida, as religiosas exaltaram a obediência
e controlaram a liberdade. E por isso também a conduta de Jesus, exatamente
nesse ponto, foi surpreendente, totalmente singular. Em que sentido? Ou,
mais concretamente, o que quer dizer isso?

3. Cf. J. M. CASTILLO, El reino de Dios. .., 128.


4. J. D. CROSSAN, Jesus: vida de un campesino judio, Barcelona, 1 9 9 4 , 3 1 8 .
5. Cf. J. M. CASTILLO, El reino de Dios..., 6 3 -7 8 .
Jesus e o poder

Obediência ou seguimento?

Jesus não se relacionou com seus discípulos com superioridade, mas


com exemplaridade. Assim sendo, Jesus não se situou, diante de seus dis-
cípulos, como o superior que exige “obediência” de seus “servos”, mas como o
amigo exemplar que solícita “seguimento” de seus fiéis “amigos” (cf. Jo 15,15).
Com efeito, o verbo “obedecer” (ypakoúein ) aparece nos evangelhos apenas
três vezes: quando se diz que “o vento e o mar obedecem” a Jesus (Mc 4,41
par.); quando o próprio Jesus diz aos discípulos que, se tiverem fé, até uma
árvore silvestre (uma amoreira) lhes obedecerá (Lc 17,6); e quando as pes­
soas ficam espantadas ao ver que Jesus “manda até nos espíritos imundos e
eles lhe obedecem” (Mc 1,27). Vale dizer, na linguagem dos evangelhos, a
obediência se aplica aos elementos inanimados (o mar, o vento), às plantas
do campo e aos demônios. Jamais se disse dos discípulos ou de qualquer
outro ser humano que se relacionasse com Jesus mediante a obediência ou a
sujeição, que é a resposta obediente a uma ordem.
Isso quer dizer, antes de tudo, que Jesus não pede a ninguém que re­
nuncie a sua liberdade. E menos ainda que ponha essa liberdade em mãos de
alguém, nem sequer de Deus, alienando a capacidade de decidir que, segun­
do o Novo Testamento, está presente e não pode faltar onde verdadeiramente
está o Senhor da vida e da história, porque “onde está o Espírito do Senhor,
aí está a liberdade” (2Cor 3,17). Por isso, quando Jesus diz ao Pai do céu:
“Entretanto, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36 par.), não
significa que Jesus renunciou a sua própria capacidade de decidir e a sua
liberdade, mas sim que, naquele momento decisivo, foi Jesus quem viu com
lucidez e aceitou com plena liberdade que a atitude mais coerente, naquela
situação, era fazer o que Deus lhe pedia.
Existe, porém, algo mais sério e mais profundo em todo esse assunto.
Trata-se de compreender (ou, ao menos, tentar compreender) o que é mais di­
fícil para nós, mortais, aceitarmos. Refiro-me ao que já assinalei: Jesus não quis
se relacionar com as pessoas com base no poder e na superioridade, mas na exempla­
ridade. Mais ainda, não só nunca quis agir como o superior que se impõe com
poder, mas também viu em semelhante comportamento uma conduta radical­
mente inaceitável, por mais que a relação de superioridade e poder pretenda
se apresentar e justificar como algo que diz respeito a quem representa Deus
ou detém o poder religioso. O argumento mais sério e vigoroso para afirmar
A ética de Cristo

o que acabo de dizer está no relato do lava-pés (Jo 13,1-16). O evangelho de


João confere singular importância a esse relato, como se evidencia já na solene
introdução dada pelo evangelho ao singular texto (Jo 13,1-3). Com efeito,
para contar uma coisa à primeira vista tão simples, como é o fato simples e
vulgar de u m homem que lava os pés de outros homens, invoca-se a solenida­
de do m om ento, é “a hora” em que Jesus vai “passar deste mundo para o Pai”
(Jo 13,1a). Invoca-se também o amor supremo e fiel até o fim que Jesus teve
para com seus discípulos (Jo 13,1b). Recorda-se, além disso, que Jesus estava
consciente “de que o Pai havia entregue tudo em suas mãos” (Jo 13,3a). Pon-
dera-se até que Jesus sabia perfeitamente que “vinha de Deus e a Deus voltava”
(Jo 13,3b ). O u seja, não se pode dizer mais como introdução preparatória de
algo que, sem dúvida, causa a impressão de que se trata de um fato decisivo.
E foi? Pois bem , o fato surpreendente é que, em continuação, o evangelho
diz que “Jesu s se levanta da mesa, depõe o seu manto e toma um pano com o
qual se cm ge. Depois, derrama água em uma bacia e começa a lavar os pés dos
discípulos e a enxugá-los com o pano com que se havia cingido” (Jo 13 4-5)
A descida brusca, da solenidade da introdução para a vulgandade do que ali
se fez, parece incrível. De que serve tanta ponderação para, em seguida, acabar
dizendo que ali foram lavados os pés, uma coisa que se faz privadamente e que
não m erece nem argumentos nem exclamações de tipo algum?
Sem dúvida, o evangelho de João relata assim o fato para que fique claro
que ali aconteceu algo que não é fácil de entender. O primeiro que não o en­
tendeu foi o mais importante dos discípulos, o apóstolo Pedro, que ficou pas­
mado quando viu que Jesus vinha fazer uma coisa tão vulgar como a de lavar-
lhe os pés (Jo 13,6), uma tarefa que, naquela cultura, era própria de escravos
ou serventes6. Logicamente, Pedro se negou termmantemente a permitir a
continuidade daquele gesto (Jo 13,8). Certamente, Jesus estava consciente de
que tal atitude era difícil de ser entendida (Jo 13,7), e mais difícil de aceitar
“Lavar os p és a mim? Jam ais!” (Jo 13,8a), assegurou Pedro. Por isso, Jesus foi
taxativo: “Se eu não te lavar, não poderás ter parte comigo”. Ou seja, Jesus es­
tava m anifestando que ali estava em jogo algo tão sério, que se o mesmíssimo
Pedro não o aceitasse, a partir daquele instante estana rompida toda a relação
entre C risto e os apóstolos. Parece razoável pensar que, se cortasse a cabeça

6. Em um a so cied ad e machista, como era a sociedade judaica do século I, as filhas deviam lavar
os pés do pai. J . JEREMIAS Jeru sa lén en tiempos deJesús, 3 7 5 .
Jesu s e o poder

do colégio apostólico (na expressão da teologia posterior), semelhante rup­


tura equivalia ao corte de relações com todos. Por que tanta seriedade em um
assunto que, à primeira vista, se apresentava sem transcendência?
Compreende-se claramente que o que ali estava em jogo não era a hu­
mildade — nem a de Pedro, nem a de Jesus. Para um simples ato de humil­
dade, não se invoca toda a pesada artilharia teológica que o Evangelho põe
em movimento neste episódio. O que é, então, que ali se propunha e resolvia?
Jesus o explica com uma clareza admirável e surpreendente: “Vós me chamais
de Mestre e Senhor , e dizeis bem, pois eu o sou” (Jo 13,13). Não sabemos se
naquele momento, Jesus tinha ou não consciência de que era o “Senhor”, no
sentido pleno dessa palavra, quer dizer, no sentido de que ele era de condição
divina, ou seja, “Deus”. Porém, seja o que for, uma coisa é certa: o evangelho
de João põe na boca de Jesus a palavra Kyrios, com artigo, o que significa, se­
gundo o ensinamento religioso que o evangelho de João nos quer transmitir,
que Jesus estava afirmando solenemente que é “o Senhor”, o único Deus. Pois
bem, uma vez feita semelhante afirmação, Jesus acrescenta: “Se pois eu, o Se­
nhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis, também vós, lavar-vos os pés uns
dos outros; pois é um exemplo que eu vos dei: o que eu fiz por vós, fazei-o
vós também” (Jo 13,14-15).
O que estava afirmando Jesus, ao dizer essas coisas? Insisto em que a
questão não se reduzia a uma simples lição de humildade, nem sequer a uma
boa exortação para praticar a caridade. Tudo isso pode ser deduzido desse re­
lato, uma vez que há espaço para dúvida. Porém, a intenção de Jesus ia muito
mais longe, tão longe que o próprio Jesus teve de perguntar aos discípulos
aturdidos. Compreendeis o que vos fiz?” (Jo 13,12). Mas aquilo era difícil de
entender, porque, definitivamente, o que Jesus estava dizendo a seus apósto­
los era o seguinte: Eu, que sou o Mestre que ensina o que é preciso saber, e que sou
o Senhor-Deus que dispõe o que se há de fazer, não me relaciono convosco com base
no poder, mas na exemplaridade. Daí Jesus termina dizendo: “Pois é um exemplo
que eu vos dei: o que eu fiz por vós, fazei-o vós também” (Jo 13,15). Com
isso, Jesus estava afirmando que eles, os apóstolos do Evangelho, não podem
compreender sua missão com base no poder que se impõe, mas sim na exempla­
ridade que convence. E isso, precisamente isso, é o que a cabeça de Pedro não
comportava. Por isso resistia a que Jesus, o Mestre e o Senhor, se pusesse a
seus pés como um escravo. Porque isso representava para Pedro, e para os
demais apóstolos, que eles, os escolhidos por Cristo para'anunciar o Evange­
A ética de Cristo

lho, tinham que prosseguir na vida, não mediante a imposição de um suposto


poder recebido de Deus para mandar, mas sim entendendo que sua missão era
ir pelo mundo pondo-se em lugar do escravo, do servo, dando esse exemplo
que rompe todos os esquemas humanos que nós homens inventamos para
nos impor, para ser mais importantes e mandar nos outros.
Havia um agravante, que complica tudo ainda mais. Aqui não vale a
amolecida escapatória do “serviço”. Sabemos de sobra que todos os que man­
dam, os que abusam do poder e até os ditadores e os tiranos não se cansam de
dizer que eles assumem o poder como um serviço. Isso é o que dizem, a toda
hora, os homens da política e os da religião. Todos os que, de uma forma ou
de outra, são hábeis na pantomima do beijo na criança órfã. Entretanto, o re­
sultado imediato está em que, na hora da verdade, os que falam do “serviço”
quando lhes convém, na realidade o que costumam fazer é impor aos outros
sua vontade, seus pontos de vista e, não raras vezes, até seus caprichos. Jã es­
tamos cansados, cansados demais, de suportar os ambiciosos que costumam
mascarar seus desejos de podér com a edificante etiqueta do serviço.
Por isso, Jesus traçou seu projeto ético, não com base na obediência
ao poder , mas sim no seguimento à exemplaridade. já afirmei que os evange­
lhos não falam nunca de “obediência” a um poder que se impõe, submete e
manda. A relação que, segundo os evangelhos, se estabeleceu entre os dis­
cípulos e Jesus foi de “seguimento”. De fato, enquanto o verbo “obedecer”
(ypakoúein ) nunca é aplicado, nos relatos evangélicos, a indivíduos ou gru­
pos que se submetem a um superior, nem sequer a Deus, o verbo “seguir”
( akoloutheín ) é utilizado 67 vezes para expressar a relação entre Jesus e os
que creem nele. Em 30 casos, trata-se do seguimento dos discípulos que ha­
bitualmente o acompanhavam7. E em 3 7 ocasiões, o verbo “seguir” se aplica
ao “povo” ou a outras pessoas8. A ética de Cristo, portanto, não é ética de
submissão a um poder que manda e dá ordens, mas é ética de seguimento a uma
pessoa que é exemplo que atrai e dá sentido à vida. Isso, logicamente, quer di­
zer que a ética de Jesus não é a ética da sujeição a outro, àquele que pensa

7. Mt 4 ,2 0 .2 2 ; 8 ,2 2 .2 3 ; 9 ,9 ; 1 0 ,3 8 ; 1 6 ,2 4 ; 1 9 ,2 7 .2 8 ; 2 6 ,5 8 ; Mc 1 ,1 8 ; 2 ,1 4 ; 6 ,1 ; 1 0 ,2 8 ; 1 4 ,5 4 ;
Lc 5 ,1 1 .2 7 .2 8 ; 1 8 ,2 8 ; 2 2 ,3 9 .5 4 ; Jo 1 ,3 7 .3 8 .4 0 .4 3 ; 1 3 ,3 6 .3 7 ; 1 8 ,1 5 ; 2 1 ,1 9 .2 0 .2 2 . Cf. J. M.
CASTILLO, EI Reino de Dios. .., 214.
8. Mt 4 ,2 5 ; 8 ,1 .1 0 .1 9 ; 9 ,2 7 ; 1 2 ,1 5 ; 1 4 ,1 3 ; 1 9 ,2 .2 1 ; 2 0 ,2 9 .3 4 ; 2 1 ,9 ; 2 7 ,5 5 ; Mc 2 ,1 5 ; 3 ,7 ;
5 ,2 4 ; 8 ,3 4 ; 1 0 ,2 1 .3 2 .5 2 ; 1 1 ,9 ; 1 4 ,5 1 ; 1 5 ,4 1 ; Lc 7 ,9 ; 9 ,1 1 .2 3 .5 7 .5 9 .6 1 ; 1 8 ,2 2 ,4 3 ; 2 3 ,2 7 .4 9 ;
Jo 6 ,2 ; 8 ,1 2 ; 1 0 ,2 7 ; 1 2 ,2 6 . Cf. J. M. CASTILLO, op. cit., 2 1 5 .
Jesus e o poder

e decide, mesmo que seja o bispo, o sacerdote ou o catequista, mas é a ética


de quem se sente atraído e seduzido pelo exemplo de Jesus e pelos valores
exemplares que encontramos no Evangelho.
E agora, pois, se realmente levamos a sério esse delineamentb da ética
de Cristo, disso se seguem pelo menos duas consequências que são funda­
mentais para a vida dos indivíduos e também para a vida da Igreja. Antes de
tudo, para os indivíduos. A conduta daqueles, para quem Cristo representa
algo sério em suas vidas, tem de ser regida pela exemplaridade do Evangelho
e pelo seguimento fiel de Jesus, e não pela submissão incondicional a normas e
decisões ditadas pelo confessor, pelo diretor espiritual, pelo sacerdote, pelo
bispo ou pelo papa. Não se trata de não atender (e menos ainda depreciar) o
que disserem tais autoridades. Trata-se de aceitar o que mandam tais persona­
gens na medida em que isso estiver de acordo com o Evangelho de Jesus. Antes que
qualquer ordem, norma ou mandato, está o exemplo de Jesus, o Senhor. Há
sacerdotes e dirigentes eclesiásticos que, na prática, dão maior importância a
uma norma litúrgica do que a um critério evangélico, assim como há pessoas
na Igreja para as quais, na vida diária, tem mais valor prático o que diz um
cânon ou uma rubrica do missal do que o que diz um texto evangélico. É
evidente que tudo isso vem a constituir deformações que suplantam o Evan­
gelho e submetem o exemplo de Jesus à vontade dos que detêm o poder, por
mais que se trate de um poder “religioso”.
E em segundo lugar, para a vida da Igreja, porque os religiosos, em geral,
são homens formados e educados com a ideia fixa de que eles são os pos­
suidores do poder sagrado, em virtude do qual têm direito a mandar e a ser
obedecidos. Daí que, na administração e no governo da Igreja, das dioceses e
das paróquias, são eleitos mais homens “autoritários” do que homens “evan­
gélicos”. Ou seja, parece bastante claro que na Igreja há mais interesse em que
haja governantes com um poder que se impõe do que seguidores com uma
fidelidade ao Evangelho que dá sentido à vida da pessoa. Em outras palavras,
no governo da Igreja é mais valorizado o bom “gestor”, o bom “administra­
dor” ou o bom “governante” do que o “profeta”, o fiel “seguidor” de Cristo,
o homem “evangélico”, porque se antepõe a “obediência” ao “seguimento”. Vale
dizer, antepõe-se o poder dos homens ao exemplo deixado a nós por Jesus, o
Senhor. Está aí uma das raízes mais profundas do desconcerto em que nós,
cristãos, vivemos no tocante a não poucos pontos de vista. E urge que os cris­
tãos tomem consciência disso e, consequentemente, tomem decisões.
A ética de Cristo

Poder e autoridade

Segundo a conhecida definição de Max Weber, o poder é “a probabilidade de


que um ator implicado em uma relação social esteja capacitado para conseguir
o que quer contra toda a resistência que se opuser, seja qual for a base sobre
a qual se funda essa probabilidade”.
A autoridade, por sua vez, é “a probabilidade de que uma ordem possuidora
de certo conteúdo específico obtenha a obediência de dado grupo de pessoas”.
A autoridade, portanto, é a probabilidade de obter obediência, porém com base
em um “conteúdo específico”, que pode consistir nas qualidades de uma pessoa
ou em um “carisma” de que a pessoa (ou a instituição) está dotada. No entanto,
o poder é mais forte e, por sua natureza, é mais impositivo, uma vez que se en­
tende como a capacidade de conseguir o que se quer, vencendo qualquer resis­
tência. Nesse sentido, pode-se afirmar com toda a razão que, enquanto o poder
consegue obediência, a autoridade age mediante o exemplo ou, caso se prefira,
a exemplaridade. É o que acabo de explicar no capítulo anterior.
Isso posto, perguntamo-nos: o que caracterizou Jesus, durante seu mi­
nistério público, foi o poder ou a autoridade? Frequentemente, os fatos prodi­
giosos narrados pelos evangelhos (curas de enfermos, expulsão de demônios,
tempestade acalm ada...) foram interpretados como “milagres”, isto é, como
manifestações de um poder infinito, que domina e modifica as chamadas “leis
da natureza”. Pois bem, começando pelo fato de que a comunidade científica
não admite a existência de “leis naturais”, mas somente dos “paradigmas”, que
explicou de maneira brilhante Thomas S. Kuhn9, o primeiro elemento que se
deve levar em conta quando falamos dos chamados “milagres” de Cristo é o
fato de que nos evangelhos nunca se menciona o “poder” (krátos) de Jesus. E
menos ainda se afirma que ele foi “todo-poderoso” (pantokrátor). É certo que
os relatos evangélicos mencionam, repetidas vezes, a “autoridade” ( exousía) de
Jesus101. Essa autoridade, porém, não pode ser interpretada como se fosse um
“poder” (dynamis), porque os evangelhos afirmam várias vezes que Jesus “não
podia” fazer certas coisas, por exemplo, determinadas curas11. Isso acontecia

9. La estructura de las revoluciones cientificas, México, Fondo de Cultura Econômica, 1 9 7 7 , 13.


10. Mt 9 ,6 -8 ; 2 1 ,2 3 .2 4 .2 7 ; 2 8 ,1 8 ; Mc 1 ,2 2 .2 7 ; 2 ,1 0 ; 1 1 ,2 8 .2 9 .3 3 ; Lc 4 ,3 2 .3 6 ; 5 ,2 4 ; Jo 5 ,2 7 ;
7 ,1 ; 1 0 ,1 8 ; 17,2.
11. Mt 2 7 ,4 2 ; Mc 1 ,4 5 ; 6 ,5 ; 7 ,2 4 ; 15,31; Jo 5 ,1 9 .3 0 ; 9 ,3 3 .
Jesu s e o poder

quando o enfermo ou as pessoas a quem se dirigia Jesus não tinham fé. Daí
o próprio Jesus atribuir as curas à fé dos próprios enfermos, aos quais Jesus
costumava dizer: “A tua fé te salvou” (por exemplo, Mc 5,3 4 par.). Além disso,
se os atos prodigiosos de Jesus são interpretados como manifestações de sua
chamada “onipotência”, é preciso perguntar-se por que Jesus não curou todos
os enfermos que havia na Palestina quando ele andava pelo mundo, ou por
que não acabou com a grande fome que aquele povo sofria etc.
Verdade é que a “autoridade” ( exousía), quando precedida pela preposi­
ção kata, significa “dominação” ou até “tirania”. Nesse sentido, os evangelhos
a aplicam aos chefes das nações, aos homens que gerem o poder político, ao
menos tal como esse poder era exercido nas monarquias absolutas antigas.
Nesse sentido, são muito convincentes e claros os textos de Marcos 10,42 e
Mateus 20,2 5 . Mas nunca deveriamos esquecer que é justamente esse tipo
de comportamento que Jesus proíbe terminantemente a seus discípulos (Mc
10,43; Mt 20,26). Ou seja, pode-se afirmar com toda a segurança que o Evan­
gelho proíbe severamente que na Igreja seja instaurada, mantida e justificada
qualquer forma de exercer o poder que se pareça ao que eram antigamente as
monarquias absolutas, não só pelo que aquelas monarquias costumavam ter
de tirania e despotismo, mas por algo mais próximo de nós e mais universal.
Refiro-me ao fato evidente de que, em uma monarquia absoluta, o que se
impõe é a vontade e o poder do soberano, e não os direitos dos cidadãos. Ou
seja, em uma monarquia absoluta, ninguém tem seus direitos garantidos. E,
menos ainda, se pode falar de “direitos humanos”. Além disso, uma situação
assim e um semelhante estado de coisas não pode ser justificado apelando-
se para a natureza própria do poder religioso, porque, no caso de falarmos a
partir do Evangelho, semelhante forma de exercer o poder está estritamente
proibida pelo Senhor. Daí, para muitas pessoas, ser surpreendente e até es­
candaloso o fato de o Vaticano ser a última monarquia absoluta que resta na
Europa. Sem dúvida, a partir da Revelação cristã, não se pode justificar nem
esse Estado nem sua forma de organização política nos tempos atuais.
Não é um exagero o que acabo de dizer. Outra coisa é termos medo de
dizê-lo. Creio, porém, que, se quisermos ser fiéis à nossa fé no Senhor, não
podemos continuar calados a respeito de coisas tão evidentes. Nos assun­
tos de poder, estamos todos especialmente ameaçados de “cair em tentação”.
Jesus sabia disso muito bem. Por isso disse a seus apóstolos que eles tinham
de se comportar exatamente ao contrário de como se comportam os homens
A ética de Cristo

da política. A ideia de Jesus é que seus apóstolos tinham que seguir sua vida
como “serventes” (diakonoí) e “escravos” (cloúloi) (Mc 10,44-45 par.). E é pre­
cisamente nesse contexto que Jesus afirma que está no mundo, “não para ser
servido, mas para servir” (Mc 10,45 par.). Está claro, portanto, quejesus, nem
se entendia com base no poder, nem tolerava que seus representantes nesta
terra dessem a impressão de homens que pretendem ser vistos como seres
superiores, dotados de um poder que os outros não podem ter. Isso é válido
até quando esse poder se apresenta como poder “sagrado”, como poder dado
por Deus para o bem sobrenatural dos homens. Nesse caso, o assunto é mais
delicado e até se pode afirmar que também é mais perigoso. Estamos, então,
diante de um poder intocável, que pode pretender estar acima de todos os
outros poderes, o que pode chegar até a intimidade das consciências, lá onde
cada ser humano vê a si mesmo como uma boa pessoa ou, ao contrário, como
um degenerado, um perdido, um rejeitado por Deus.
Nos evangelhos, a “autoridade” ( exousía) de Jesus nunca é entendida
como ação de domínio ou de imposição que violenta as pessoas sobre as
quais é exercida tal autoridade. Absolutamente o contrário. A exousía de Jesus
é autoridade para perdoar (Mt 9,6; Lc 5,24). É também autoridade para curar
os que se viam dominados por poderes satânicos (Lc 4,36). E é também au­
toridade para ensinar (Mc 1,22; Lc 4 ,3 2 ). Aqui, porém, é importante recordar
que, segundo o relato evangélico, Jesus ensinava de maneira que as pessoas
ficavam “impressionadas” (Mc 1,22) e se davam conta de que aquele ensi­
namento não era como a imposição doutrinai e normativa dos letrados, que
oprimiam as pessoas com cargas religiosas insuportáveis. Por isso, quando
Jesus expulsa os vendedores do templo (Mc 1 1,15-19 par.), logo depois os
sumos sacerdotes lhe perguntam com que “autoridade” faz aquilo (Mc 11,28
par.). Não lhe perguntam pela autoridade com que ensinava, e menos ain­
da por uma suposta autoridade para impor verdades, preceitos ou normas
Perguntam-lhe qual é a autoridade que tem para “fazer” (poiêís) o que fez lã,
no templo. Ou seja, o que estava em questão era a liberdade de atuação que
Jesus possuía e manifestava. Isso é o que aqueles “sacerdotes” que mantinham
o poder sobre o povo não toleravam.
O contraste é evidente. Os dirigentes religiosos judeus tinham “poder”,
mas não tinham “autoridade” diante das pessoas. No caso de Jesus, a situação
era exatamente o inverso: não tinha “poder” sobre o povo, mas gozava de
uma enorme “autoridade”, que seduzia, atraía e entusiasmava as pessoas. Essa
Jesus e o poder 1

é a chave para entender como tem de ser a autoridade na Igreja. Os bispos e


os sacerdotes não podem pretender ser um poder a mais na sociedade. Um
poder que se defronta com os outros poderes e pretende estar acima deles
em determinados assuntos, por exemplo, nos problemas que se referem ou
tocam de leve a moralidade pública e privada. Os bispos e os sacerdotes têm
a autoridade que brota do Evangelho e que se reflete no Evangelho. Não
podem ter autoridade além dessa. Pois bem, já vimos que, no Evangelho, a
autoridade está necessariamente vinculada à exemplaridade da própria vida,
porque, se assim não for, a chamada “autoridade” deixa de ser autoridade,
convertendo-se em poder que, de maneira disfarçada e camuflada, domina,
impõe-se, ameaça, castiga e oprime. Todavia, já ficou claro que Jesus Cristo
não deu (nem pode dar) a ninguém poder para fazer essas coisas neste mun­
do. Toda teologia cristã que entra em conflito com o Evangelho deixa de ser
teologia e transforma-se em mera ideologia. Assim sendo, é evidente que uma
teologia que se apoia no Evangelho para oprimir e causar sofrimento deixa de
ser teologia e degenera em ideologia opressora. Infelizmente, é o que aconte­
ce muitas vezes em ambientes eclesiásticos nos quais, em nome de Cristo,
ocasionam-se humilhações e sofrimentos inconfessáveis.

A autoridade evangélica

O que acabo de expor sobre o poder e a autoridade não significa nem


quer dizer que não deva existir na Igreja uma autoridade que coordene e orga­
nize o governo da instituição. É uma lei sociológica bem conhecida que toda
instituição que pretender perpetuar-se necessita organizar-se e, portanto, ter
seus dirigentes e coordenadores do governo. A autoridade na Igreja, porém,
não pode ser nem uma autoridade diferente, nem uma autoridade maior que
a autoridade que Jesus, o Senhor, deixou süficientemente bem descrita e con­
figurada com sua vida e com seu exemplo. Pois bem, esse assunto é para nós
tão difícil de aceitar e até de compreender, que se faz necessário insistir nele
uma vez mais, mesmo à custa de parecer repetitivo e maçante. É preciso dizer
novamente: a autoridade de Jesus está essencialmente ligada a sua exemplaridade.
Vale dizer, Jesus teve a influência que de fato exerceu sobre as pessoas, não
só nem principalmente porque se apresentou diante do povo dizendo que ele
vinha de Deus e com poderes divinos, mas, sobretudo, porque sua forma de
A ética de Cristo

viver e sua relação com uns e com outros, com os “justos” e com os “pecado­
res”, com os ricos e com os pobres, com os sãos e com os enfermos, com os
poderosos e com os impotentes, com os grandes e com os pequenos e, mais
que qualquer outra coisa, sua sensibilidade diante do sofrimento dos mais in­
felizes foi de tal qualidade humana, que as multidões se puseram a “segui-lo”
(Mt 4,25; 8,1) a ponto de não lhe deixar nem tempo para comer (Mc 3,20)
e até dar a impressão de que era um indivíduo que havia “perdido o juízo”
(Mc 3,21). Por isso Jesus nunca foi visto como “sacerdote” ou como “letrado”,
ou seja, como homem do poder cultuai ou doutrinai, mas sempre foi tido
como um “profeta” (Mt 16,14 par.), o homem que, por sua forma de viver,
convencia e era escutado, pondo cada um diante da decisão de segui-lo ou
rejeitá-lo. Nisso consiste a estrutura fundamental da autoridade evangélica.
Logicamente, não é este o espaço para analisar a estrutura hierárquica da
Igreja, tampouco a natureza dos poderes sacramentais que a teologia vem ex­
plicando desde a Idade Média. O que de fato interessa deixar claro é que tanto
essa estrutura quanto esses poderes, tudo o que constitui poder na Igreja tem que
ser entendido e praticado d luz da autoridade evangélica, porque é evidente que
não pode haver na Igreja poderes que sejam exercidos à margem do que é
ensinado pelo Evangelho, e, menos ainda, de forma contrária ao que Jesus fez
e disse. Na Igreja, não pode haver poder para ja z er o contrário do que o Senhor da
Igrejafe z e disse, de tal maneira que, se necessário for, em determinados pontos,
terá que ser repensada a teologia da “sagrada potestade” que, com frequência,
é utilizada nos livros de teologia para justificar, por vezes, comportamentos ou
decisões que pouco ou nada têm a ver com o Evangelho.

Um poder ineficaz?

A história da Igreja nos ensina fartamente que demasiadas vezes, para


obter mais eficácia, sacrificou a exemplaridade. Para aludir a coisas mais con­
cretas, é evidente que um poder absoluto é mais eficaz, pelo menos à primeira
vista, do que um poder compartilhado democraticamente. Daí, a tentação
constante que os dirigentes eclesiásticos tiveram de imitar formas de poder
político que pouco ou nada têm a ver com a “autoridade evangélica”. Cer­
tamente por isso, encontramo-nos hoje na Igreja com formas de exercer o
poder que, por pouco que se pense nelas, em nada se parecem com o que
Jesus e o poder

Jesus fazia e dizia. Nesses' casos, a saída mais frequente é culpar os bispos e
sacerdotes em geral de ambição e desejo de poder. E pode ser que haja, não
resta dúvida. Entretanto, o mais certo é que a hierarquia eclesiástica assim
procede, o mais das vezes, por motivos de eficácia pastoral ou apostólica.
Simplesmente porque se pensa que dessa maneira se conseguem coisas que,
mediante a exemplaridade evangélica e sendo “realistas”, não se conseguem.
Daí, por exemplo, que a Igreja católica, a partir de sua organização central
como Estado independente, o Estado da Cidade do Vaticano, mantém relações
diplomáticas internacionais com todos os demais Estados do mundo com os
quais pode fazê-lo, para conseguir, dessa maneira e por esse meio, “direitos”
de caráter legal que, de outra maneira, não conseguiría. Isso, evidentemente,
confere à Igreja um poder adicional, um poder que não está nem na revelação
cristã, nem no Evangelho, nem, com certeza, na vida de Jesus. Porém, o fato
é que isso produz seus resultados em não poucos assuntos que equivalem a
problemas resolvidos em coisas de importância notável: benefícios econômi­
cos e fiscais, privilégios legais, direitos que beneficiam os cristãos sobre os
adeptos a outras confissões etc. etc.
Logicamente, a primeira coisa que acorre ao pensamento de qualquer
pessoa é que a Igreja, ao agir dessa forma e lançar mão desses procedimentos,
manifesta em primeiro lugar que não está provida o bastante da força da Pala­
vra de Deus e da força do Evangelho. E por esse motivo recorre a outras forças,
a força da política e do direito, a força da diplomacia e dos pactos internacio­
nais, a força dos privilégios e do dinheiro, mesmo que, ao fazer essas coisas,
tenha de se comportar como Jesus jamais se comportou, e por mais que sua
presença neste mundo se pareça muito pouco com o que de fato foi a presença
de Jesus na sociedade de seu tempo. Isso faz com que se pense que existem na
Igreja pessoas importantes que, a partir de um “realismo” muito compreensí­
vel, porém pouco evangélico, causam a impressão de que acreditam mais na
eficácia do poder político do que na força da exemplaridade evangélica.
Jesus, o Senhor da Igreja, tinha outros critérios, pensava de outra ma­
neira. Antes de tudo, é impensável imaginar Jesus estabelecendo negociações
com Herodes e com Pilatos para conseguir privilégios legais ou econômicos
para seus apóstolos e discípulos e assim poder anunciar o Evangelho sem a
desagradável oposição dos letrados, senadores e sumos sacerdotes. Quando
Jesus diz a seus apóstolos que os envia “como ovelhas para o meio de lobos”
(Mt 10,16), não lhes diz que denunciem os lobos, mas que vençam o medo
A ética de Cristo

(Mt 10,26.28.31) e estejam dispostos a comparecer “perante os governadores


e reis” (Mt 10,18), de maneira que não terão de se preocupar com o que vão
dizer nos tribunais: “É o Espírito do vosso Pai que falará em vós” (Mt 10,20).
Não entro nas questões técnicas suscitadas por essas recomendações de Jesus,
porque existe nelas algo tão evidente, que seria preciso estar cegos para não
vê-lo. Sem dúvida, Jesus pensava nas relações de seus discípulos com a polí­
tica de maneira completamente diferente de como pensa a política vaticana,
e também de maneira completamente diferente de como pensam não poucos
grupos de esquerda que se enfrentam com os poderes deste mundo baseados
na “lógica do poder”. E é inquestionável que Jesus não seguia por aí de modo
algum. Temos a prova mais clara disso em um fato desconcertante: Jesus
viveu dominado e oprimido pelo grande império daquele tempo, o Império
Romano. Os legionários romanos percorriam as ruas de Jerusalém impondo
ordem. E por toda a Palestina, agiam impunemente os publicanos, que eram
os arrecadadores de impostos para o fisco de Roma. É evidente que a situação
tinha de ser sumamente tensa. E de tempos em tempos surgiam os movi­
mentos revolucionários de libertação, que as legiões romanas reprimiam sem
contemplações, recorrendo até mesmo ao derramamento de sangue.
Pois bem, nesse contexto, o fato surpreendente é que Jesus, o grande
profeta que ficou do lado do povo, pelo menos de acordo com o que nos
relatam os evangelhos, não falou nem uma única vez contra os romanos, nem
denunciou seus abusos, nem, por certo, se pôs a negociar com o procurador
de Roma para gerenciar as coisas de forma que a situação se tornasse mais
suportável. É surpreendente o fato de os evangelhos não informarem de nada
disso, pelo menos diretamente. E, contudo, Jesus foi morto por uma causa
política. Como se disse muito bem, a participação dos romanos na morte de
Jesus parece inquestionável, do ponto de vista histórico12. O fato de Jesus ter
morrido crucificado pressupõe que deve ter sido por motivos políticos13. As
autoridades religiosas de Israel, legalmente, não podiam ditar sentença de
morte na cruz. Mas sabe-se que os romanos utilizaram na Palestina o casti­
go da morte na cruz entre os anos de 63 a.C. e 66 d.C. Contudo, somente
punham este tormento em prática quando se tratava de subversivos que se

12. X. ALEGRE, Los responsables de la muerte de Jesús. Revista Latínoamericana de Teologia 14


(1 9 9 7 ), 168.
13. H. W KUHN, Kreuz II. In TRE (Theologische Realenzyklopãdie) 19, 717.
Jesus e o poder

rebelavam contra Roma14. Além disso, Jesus foi crucificado, não entre dois
ladrões, mas entre dois lestaí (Mc 15,27 par.), uma palavra que o historiador
Flávio Josefo, entre outros, utiliza para designar os rebeldes políticos15. Deve-
se acrescentar a isso que a pretensão messiânica de Jesus, tal como ficou escri­
ta no título da cruz, “rei dos judeus” (Mc 15,26), pôde ser tomada como um
verdadeiro perigo para a estabilidade da dominação romana. Seja como for, é
preciso afirmar com segurança que o responsável último pela execução cruel
de Jesus foi Pilatos, o representante do poder imperial na Palestina. Verdade é
que os relatos da paixão carregam a mão sobre a responsabilidade dos sumos
sacerdotes e autoridades religiosas ao pressionarem o governador para que
ditasse a sentença de morte na cruz. Porém, prescindindo das considerações
históricas e teológicas que podem ser feitas sobre esse importante matiz da
história final de Jesus, fica em aberto uma pergunta-chave: Por que os pode­
res políticos mataram Jesus se ele jamais atacou diretamente tais poderes?
Existem duas formas de se enfrentar um poder político injusto e opres­
sor. Uma é a confrontação direta, utilizando as mesmas armas utilizadas pelo
poder: a diplomacia, as leis, a pressão sobre a opinião pública e, eventual­
mente, até a violência. Outra forma é a confrontação indireta, não recorren­
do às armas do sistema, mas precisamente àquilo em que os poderes deste
mundo costumam falhar, que é a coerência ética e a liberdade profética. Ju s­
tamente o que Jesus fez. Não disse sequer meia palavra contra os romanos,
mas viveu e ensinou a viver com tal retidão moral e com uma liberdade diante
dos assuntos que verdadeiramente interessam e importam às pessoas, que os
poderes deste mundo, tanto políticos como religiosos, se sentiram seriamente
ameaçados. Não suportando semelhante ameaça, viram que a solução mais
eficiente era liquidar com aquele profeta incômodo e até perigoso.
Ainda mais concretamente: as armas mais perigosas utilizadas pelo po­
der político não são os armamentos bélicos, mas a manipulação das consciên­
cias mediante a hábil manipulação do desejo. De modo concreto, o desejo de
poder e o desejo de dinheiro. Os Estados Unidos não venceram no Vietnã com
bombas e mísseis. Venceram com Coca-Cola e dólares. E o que está aconte­
cendo na China é mais clamoroso ainda. Assim se ganham nas urnas segui­
dores incondicionais e votos. Pois bem, como já vimos pouco a pouco, foi

14. H. W KUHN, op. cit., 717.


15. H. W KUHN, op. cit., 7 1 7 . Cf. X. ALEGRE, op. cit., 168.
A ética de Cristo

precisamente nesses dois “desejos” que Jesus delineou sua confrontação com
o sistema. Os poderes deste mundo não temem as pessoas que saem à rua
com cartazes e megafones. Se essas pessoas tiverem apego ao poder e ao di­
nheiro, o sistema rí com desdém dos manifestantes mais entusiastas, porque,
certamente, sem que o saibam, no fundo são tão defensores do sistema como
aqueles a quem denunciam, vagueando com seus inocentes gritos. O poder
político tem seus inimigos mais perigosos nos profetas que abrem os olhos
das pessoas, que libertam as consciências da sedução de subir e possuir. Um
povo que não se deixa domesticar pelos mecanismos do sistema é um povo
que não é “governável” com os meios utilizados pelos poderes deste mundo.
E isso que, verdadeiramente, qualquer governante teme.
i

12
Jesus e o puritanismo

Uma situação inexplicável?

Nos tempos atuais, estamos vendo e vivendo situa­


ções e experiências difíceis de explicar. Por um
lado, é evidente que agora se vive uma liberdade,
no que concerne à sexualidade, que não existia há
cinquenta anos. Como se disse, com toda a razão, “o
sexo-pecado foi substituído pelo sexo-prazer”1. Mais
ainda, é um fato que “o sexo converteu-se em um
objeto de consumo de massas”12. A questão é tão evi­
dente que não necessita mais argumentos para nos
fazer ver que, nesse assunto, a vida também mudou
a extremos que, até há alguns anos, muitas pessoas
não podiam imaginar. E, no entanto, por muito certa
que esteja toda a permissividade sexual e suas múlti-

1. G. LIPOVETSKY, El crepúsculo dei deber, 58.


2. ID .,ibid, 58.
A ética de Cristo

pias manifestações na sociedade atual, não é menos verdade o que o próprio


Lipovetsky disse também com algo (que a mim parece) de desconcerto e cer­
tamente como um fenômeno que não se sabe explicar de todo. “Observemos
um fato: o desaparecimento da cultura do dever e a celebração social dos di­
reitos subjetivos à vida livre e realizada não conduzem, em absoluto, à deriva
orgíaca, o erotismo se desenvolve sempre em limites estritos, é mais exibido
do que praticado, estável que nômade, equilibrado que paroxístico”3.
Nesse assunto de sexo, é um fato que, por maior que seja a liberdade e
até a libertinagem que se proclamem com o escândalo das almas puras, sem­
pre paira com certa força repressiva, para à qual cada um dá a explicação que
pode, mas que aí está, uma espécie de censura constantemente ameaçadora.
Essa censura proíbe e exige, faz com que as pessoas se sintam culpadas por
coisas das quais afirma-se, logo a seguir, que nada têm em si de culpabilidade.
Sabemos que os psicanalistas têm muito que dizer sobre “os laços da carne”4,
assunto sobre o qual existe uma literatura quase interminável5. Para não falar
da ressonância social encontrada em tudo o que, seja qual for a maneira, se
relaciona com temas de sexo. Limito-me a recordar um fato que todo o mun­
do guarda em sua memória. Faz apenas alguns anos, quando o presidente
Clinton se permitiu não sei que “liberdades” com uma bolsista da Casa Bran­
ca, esse assunto teve mil vezes mais ressonância nas manchetes da imprensa
mundial do que toda a desastrosa “política do fracasso”, a política econômica
de Clinton, como a qualificou recentemente o Nobel em economia Joseph
E. Stiglitz6, que foi conselheiro presidencial naqueles anos. E, se falarmos de
uma história mais próxima e recente, todos nós sabemos que o casamento
de homossexuais deu mais o que falar na Espanha do que todas as suspeitas
operações que funcionam no obscuro mundo dos mercados financeiros ou da
especulação imobiliária. Está visto que, para muitas pessoas, continua sendo
verdade o que já disse: em nossa cultura, “a pureza, mais do que a justiça,
transformou-se no meio principal da salvação”7. Para muitas pessoas, isso
continua sendo tão verdade quanto o era há cinquenta anos.

3. ID., ibid., 62.


4. C. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud (2 a ed.), Madri, San Pablo, 1 995, 173.
5. Cf. a seleta bibliografia citada por C. DOMÍNGUEZ MORANO, op. cit., 1 7 3 -2 0 7 . ■'
6. Losfelices 90. La semilla de la destrucción, Madri, Taurus, 2 0 0 3 , 60.
7. E. R. DODDS, Losgriegosy lo irracional (1 1 a ed.), Madri, Alianza, 2 0 0 1 , 150.
Jesus e o puritanismo

Que estranho mecanismo de conduta existe por trás de tudo isso? Quero
dizer, como se explica que, não obstante todas as liberdades sexuais que nos
escandalizam, continua se mostrando mais escandaloso o padre que sai do
armário que o afã de determinados hierarcas eclesiásticos para tirar do Estado
todo o dinheiro que podem?

As origens do puritanismo

Há pessoas de pouca cultura que, ainda hoje, dizem que a religião cristã é a
responsável pela repressão sexual que, durante séculos, a cultura do Ocidente
teve de suportar. É verdade que os autores cristãos, desde os primeiros séculos
e ao longo da Idade Média, recriminaram com'veemência os pecados nos quais
o apetite sexual intervinha, qualquer que fosse sua forma. Também é fato que a
espiritualidade cristã, fortemente influenciada pelos monges, carregou na mão
sobre esse assunto8. Além disso, é verdade que, entre o início da Era Cristã e o
final da Idade Média, as atitudes dos europeus para com uma quantidade de
grupos minoritários experimentaram profundas transformações9. Também é
certo que um dos grupos que mais tiveram de suportar a intolerância foi preci­
samente o dos gays10. Isso é um indicador eloquente para aqueles que afirmam
que a repressão sexual é um produto típico do cristianismo.
No entanto, essa questão é muito mais complicada e, por certo, mais antiga
que Cristo. Se os Padres da Igreja e o monacato ensinaram ou exigiram condu­
tas estranhas, intransigentes e até extravagantes, a origem de tais ensinamentos
não está precisamente em Cristo, suas raízes são muito mais antigas. Um dos
estudiosos que melhor conhecem essa questão, o professor E. R. Dodds, da
universidade de Oxford, afirmou, há anos, que foi no século V a.C. que teve
início, na Grécia, a profunda transformação que deu origem ao puritanismo
que marcou, até hoje, a cultura do Ocidente. Foi naqueles tempos remotos
que os gregos começaram a ver não só uma distinção e separação entre a

8. Cf. J. M. CASTILLO, El futuro de la Vida Religiosa. De los orígenes a la crisis actual, Madri, Trotta,
2 0 0 3 , 1 3 5 -1 5 7 .
9. J. BOSWELL, Cristianismo, tolerância social y homosexualidad. Los gays en Europa Occidental
desde el comienzo de la Era Cristiana hasta el siglo XIV, Barcelona, Muchnik Ed., 1 9 9 3 , 25.
10. J. BOSWELL, op. cit., 27.
i A ética de Cristo

psikhé (alma) e o soma (corpo), mas também um antagonismo fundamental


entre ambos. De qualquer maneira, seja ou não verdade que na boca de um
ateniense comum do século V a palavra psykhé tinha ou podia ter um leve
sabor de coisa estranha ou sobrenatural, o que não tinha era sabor algum de
puritanismo. A alma , então, ainda não era vista como prisioneira do corpo;
era a vida ou o espírito do corpo, e nela se sentia perfeitamente à vontade,
como em sua própria casa. E foi então que o novo esquema religioso deu sua
contribuição decisiva, carregada de consequências para o futuro: ao atribuir
ao homem um eu oculto de origem divina, rompendo assim o equilíbrio entre
o corpo e a alma, introduziu-se na cultura europeia uma nova interpretação
da existência humana, a interpretação que denominamos puritana11.
Não vou abordar aqui o complicado e discutido problema que consiste
em saber de onde os gregos extraíram essas idéias. O importante é saber que, a
partir do século V a.C., Pitágoras começou a difundir suas idéias sobre o “dua­
lismo”: a realidade é articulada sobre uma série de opostos básicos12. A partir
dessa ideia, Pitágoras fundou uma espécie de ordem religiosa, uma comunida­
de de homens e mulheres cuja regra de vida era determinada pela esperança de
vidas vindouras13. O fato é que Pitágoras, primeiro, e Empédocles, mais tarde,
difundiram a crença em uma alma ou eu separável que, mediante técnicas
apropriadas, pode ir se libertando do corpo, mesmo durante a vida. Assim sen­
do, esses homens acreditavam em um “eu”, essencialmente radicado na alma,
que é mais velho que o corpo e sobreviverá a ele14. Daí a pensar que o corpo é
a prisão da alma não há mais que um passo. E esse passo foi dado. Com isso,
ficaram assentadas as bases ideológicas do puritanismo mais ortodoxo.
A consequência dessas doutrinas revelou-se inevitável: se existe algo
próprio do corpo, é o prazer sensível ou, em uma expressão mais realista, o
prazer sensual . Por isso, o velho catecismo pitagórico afirma sem hesitação:
O prazer é mau em toâas as circunstâncias; porque vimos aqui para ser castigados,
e deveriamos ser castigados”15. Estabeleceu-se dessa maneira o princípio que
rege o puritanismo: o homem deve purificar-se, não só de contaminações

11. E. R. DODDS, op. cit., 137.

12. A. BERNABE, Orfismo y Pitagorismo, in C. GARCÍA GUAL (ed.), Historia de la filosofia anti-
gua, Madri, Trotta, 1 9 9 7 , 83.
13. E. R. DODDS, op. cit., 141.
14. E. R. DODDS, op.cit., 144.
15. Iamb. Vita Pith. 85.
Jesus e o puritanismo

específicas, mas, na medida do possível, de toda mancha de concupiscência.


Por isso, no poema das placas de ouro, a alma se dirige a Perséfone nestes ter­
mos: “Da companhia dos puros venho, Rainha pura dos que estão embaixo
A passagem final e funesta, nesse processo, foi dada por Empédoclés, que não
hesitou em denunciar o casamento e toda espécie de relações sexuais . Não
sem razão, Empédoclés foi o autor das “Purificações”, cuja tese fundamental é
esta: “A alma caiu no corpo-cárcere”; portanto, “deve submeter-se a um ciclo
de transmigrações, e a vida virtuosa a libertará”17. A separação da alma e do
corpo, a superioridade da alma sobre o corpo e, acima de tudo, a confron­
tação da alma-espírito com o corpo-matéria conduziu inevitavelmente a um
delineamento que, decisivamente, tornou-se desumanizador e até inumano.
Introduziu a ruptura e a violência na intimidade secreta de todo ser humano.
O mal está em que essas idéias não ficaram só com os pensadores gregos
dos séculos V e IV Depois deles, os estoicos se encarregaram não só de manter
essa visão do homem e da vida, mas também de desenvolvê-la e transmiti-la à
posteridade. Assim o foi, a partir do fundador do estoicismo, Zenão de Cítio,
cujas idéias chegaram até nós “batizadas” como cristianismo por não poucos
escritores dos primeiros séculos de nossa era. Segundo os estoicos, a grande
dificuldade para que o homem viva em harmonia consigo mesmo provém
das “paixões”, especialmente do “prazer” (hedoné) e do “desejo” (epithymía1
61718) .
Um dos autores nos quais é expressa com mais clareza e força essa maneira
de pensar é Fílon de Alexandria, um judeu helenista, que viveu nos mesmos
anos em que Jesus andava pelo mundo. E, além disso, um judeu que, sem
ser cristão, teve uma influência decisiva nos escritores cristãos do cristianismo
primitivo. Por isso, sem dúvida, Eusébio de Cesareia, o grande historiador do
cristianismo dos três primeiros séculos, lhe dedica dois capítulos do livro II de
sua História Eclesiástica19 . Pois bem, a preocupação fundamental de Fílon é o
domínio das “paixões”, sobretudo o controle total sobre o prazer . Fílon é
taxativo: “Deus detesta o prazer e o corpo”20. E sua conclusão é negativa até o

16. E. R. DODDS, op. cit., 151.


17. A. ALEGRE GORRI, Los filósofos presocráticos, in C. GARCÍA GUAL, Historia de la filosofia

antígiia, Madri, Trotta, 1 9 9 7 , 62.


18. H. VON ARNIN, Stoicorum Veterum Fragmenta, Leipzig 1 9 0 2 -1 9 0 5 , v. I, n. 2 1 1 , v. III, n. 3 7 8 ,

381; 386; 391; 412; 444.


19. Os capítulos XVII e XVIII.
2 0 . Leg. Alleg. III, 77.
1 A ética de Cristo

radicalismo sem limites: “Maldito o prazer por todos estes motivos!”21. Mais
ainda, para Fílon, “o prazer é absolutamente sacrílego”22.
Por outro lado, como se sabe muito bem, o puritanismo é coisa que sem­
pre foi inventada e fomentada pelos homens, muito embora suas vítimas mais
infelizes tenham sido as mulheres. Fílon foi um puritano rigorista. Daí seu
desprezo pela mulher. Com efeito, para esse autor, “as mulheres engendram
os desejos que, pelos olhos, nos levam às formas e às cores, aos sons e aos
desejos do ventre e do baixo-ventre”23. Por isso, no conceito de Fílon, “a mu­
lher amada é o prazer, enquanto a mulher odiada é a prudência (phrónesís)24.
Dai esse autor chegar a dizer que “a descendência feminina da alma é o vício
e a paixão, ao passo que a descendência masculina é a virtude”25. As bases do
puritanismo mais rigoroso estavam solidamente estabelecidas.
Nada há de surpreendente no fato de que a moral e a espiritualidade
cristãs, que assimilaram estas idéias, se tenham ocupado essencialmente da
rejeição de todo prazer, principalmente do prazer sexual, fazendo disso uma das
tarefas apostólicas mais exigentes a que a moral cristã se dedicou (e continua
se dedicando). A rejeição do prazer tornou-se uma das chaves de sua doutri­
na. Esse prazer, como ensinam os moralistas cristãos ortodoxos de todos os
tempos, é permitido somente dentro do casamento e em condições que dele
se possa seguir a procriação. Essa foi, e continua sendo, a doutrina oficial
da Igreja, na qual, ademais, os pregadores insistiram e os confessores foram
especialmente exigentes, como se sabe muito bem. Em última instância, tudo
isso foi apenas uma das mais destacadas expressões do puritanismo que tão
profundamente marcou a cultura do Ocidente.

Jesus não foi puritano

Uma das coisas que mais chamam a atenção, ao ler os evangelhos, é que
alguns escritos nos quais ocupam um lugar tão central e determinante as

21. Leg. Alleg. III, 111.


22. Despee, leg. I, 2 92.
23. Quod Deus, 15.
24. Quis rerum divínarum, 4 9.
25. De saci: Ab. et Caín, 103.
Jesus e o puritanismo

questões relacionadas com a ética não se interessem em nada pelos problemas


morais relativos à sexualidade. E que ninguém diga que, então, esse assunto
não preocupava as pessoas. Dizer isso seria, desde logo, uma ingenuidade ou
ignorância. Mas também seria uma mentira, porque problemas relacionados
com o sexo aparecem repetidas vezes nos relatos evangélicos. Isso reflete,
obviamente, uma problemática perfeitamente compreensível em qualquer
modelo de cultura, porém, mais ainda, em uma sociedade como aquela, da
qual dispomos de ciados abundantes para pensar que era uma sociedade bas­
tante puritana, enormemente patriarcal e machista26. Jesus viveu, portanto,
em uma situação na qual qualquer conduta socialmente desviada no tocante
ao sexo era motivo de escândalo, de julgamento e de condenação.
Pois bem, neste contexto, torna-se ainda mais chocante que as primeiras
comunidades cristãs, nas quais foram recolhidos e redigidos os atos e os ditos
da vida de Jesus, não tiveram nada a dizer sobre a moral sexual, ou, se tiveram
algo a comunicar sobre esse assunto, não o consideraram digno de menção.
Isso quer dizer, antes de tudo, que o problema da sexualidade não interessou
a Jesus enquanto problema ético. Pelo menos, não existem dados sobre isso.
E, portanto, pode-se e deve-se deduzir que os evangelhos não oferecem mate­
riais para elaborar uma “ética da sexualidade”, o que, decisivamente, significa
que aqueles primeiros cristãos pensaram que tinham bastante a ver com a
“ética do amor cristão”, que resume e condensa tudo o que Jesus nos deixou
como “testamento ético” (cf. Jo 13,3 3 -3 5 ; Mt 2 5 ,3 1 -4 6 ; Rm 13,8-10).
O mais certo é que o que acabo de dizer parecerá a muitas pessoas uma
coisa inaceitável, exagerada ou simplesmente falsa. Não é. E vou demonstrá-
lo. Antes de tudo, surpreende o fato de que os evangelhos não digam absolu­
tamente nada sobre uma coisa que é muito importante na vida de qualquer
homem. Refiro-me ao casamento. Jesus esteve casado ou não esteve? Quase
todo o mundo afirma que Jesus foi celibatário. O fato é que semelhante afir­
mação baseia-se unicamente no silêncio dos evangelhos sobre essa questão.
Vale dizer, não interessou aos evangelistas inserir em seus relatos nem sequer
uma leve indicação, ao menos de passagem, que nos informasse do estado de

2 6 . Por exemplo, os costumes que havia naquela sociedade, em relaçao aos direitos e deveres
da mulher, indicam fortemente a importância que os judeus de então davam ao tema do sexo,
sempre em detrimento das mulheres. Cf. J. JEREMIAS, Jerusalén en tiempos de Jesus, 3 7 1 -3 8 7 ,
com extensa bibliografia.
A ética de Cristo

solteiro ou casado de Jesus. Verdade é que esse silêncio parece um argumento


suficiente para pensar que Jesus efetivamente viveu solteiro toda a sua vida.
Entretanto, também é certo que isso não passa de mera conjectura, bastan­
te lógica, sem dúvida, porém, afinal de contas, mera conjectura. Por isso,
há quem diga que Jesus era casado com Maria de Mágdala. Uma afirmação
ousada. Porém, nada mais que isso, uma simples ousadia, já que não exis­
tem argumentos históricos de peso para demonstrar o casamento de Jesus
com Mágdala. O mais razoável, portanto, é pensar que Jesus foi celibatário.
Todavia, é já curioso que, em um assunto tão capital como este (ao menos
segundo o critério de muitas pessoas), não possamos ir além da conclusão de
que é “o mais razoável”. Certeza absoluta não temos, o que já é um indicador
eloquente de que isso, na mentalidade de Jesus e de seus seguidores, não era
um ponto decisivo. Certamente não o era.
Contrariamente ao que disse antes, que Jesus não falou nada da sexualidade
enquanto tal, alguém me dirá, sem dúvida, que Jesus condenou os “desejos im­
puros” (Mt 5,28), o “divórcio” (Mt 19,3-9, par.) e o “adultério” (Mt 5,28.31-32;
19,9 par.; Mc 7,22; Mt 19,18, par.). Portanto, é evidente que Jesus se interessou
pelo tema do sexo e rechaçou determinados comportamentos. Trata-se da ar­
gumentação, baseada em textos evangélicos, que foi utilizada tradicionalmente
pelos moralistas cristãos. O que se deve dizer sobre essa questão?
No que se refere aos textos contra o adultério, que são os que mais se
repetem, nesses casos, a única coisa que Jesus faz é afirmar a doutrina que,
na cultura de Israel, havia sido ensinada toda a vida. Jesus se refere concre­
tamente à proibição do Decálogo (Ex 20,14). Todavia, quando se trata dessa
proibição, é necessário ter presente que o que se proíbe diretamente não é um
ato de impureza”, mas um ato de “injustiça”. Na sociedade judaica do tem­
po de Jesus, admitia-se e aceitava-se perfeitamente que um homem casado
abandonasse sua legítima esposa e fosse viver com outra, como vou explicar a
seguir. Para os judeus daquele tempo, não constituía problema algum o tema
da fidelidade ou infidelidade ao amor conjugal e, portanto, a infidelidade ao
amor erótico. O problema para eles estava na “injustiça” que se cometia ao
apropriar-se de algo (ou de alguém) que, na mentalidade própria daquela cul­
tura, pertencia a outro. Esse, nem mais nem menos, era o fator determinante
na proibição do adultério. Daí Jesus, no texto de Mateus 5,27, recordar a já
citada proibição do Decálogo. E, a seguir, acrescenta algo que, na realidade,
não é radicalizar mais essa proibição, mas simplesmente recordar a raiz e a
Jesus e o puritanismo

razão por que se proíbe o adultério, como também é proibido roubar ou ficar
com o alheio (Ex 20,15). Essa raiz e essa razão é o “desejo”. Não esqueçamos
que a última proibição do Decálogo é a chave de todo o resto e que vai ao
âmago de qualquer problema. Trata-se precisamente da proibição do dese­
jo ”, que no texto do livro do Êxodo assim se expressa: “Não cobiçarás a casa
de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu servo,
sua serva, seu boi ou seu jum ento, nada do que pertença a teu próximo (Ex
20,17). Obviamente, o problema aqui não são os desejos “impuros , mas o
“desejo” (e nada mais) de tudo o que pertence a outro. Por isso, no texto do
sermão da montanha (Mt 5 ,2 8 ), Jesus proíbe “desejar” uma mulher “casada”
(gyné), ainda que essa palavra, caso o contexto o indique, possa designar uma
“noiva” (Mt 1,20.24). Porém, é evidente que em Mt 5,28 se refere à proibição
de desejar aquela que é “esposa” de outro (lG or 7,2ss)2'.
A importância dessa proibição divina é muito mais forte do que mui­
tas pessoas imaginam, porque, como evidenciaram as excelentes análises de
René Girard, o que está em jogo em todo este assunto não é a castidade, mas a
violência. O “desejo” é a consequência inevitável da mímesis (“imitação”), que
normalmente costuma ser mímesis aquisitiva, cujo passo seguinte é a Mímesis
de Rivalidade, que desencadeia a violência em todas as suas formas2728. Por uma
razão que qualquer um entende. O desejo mimético nem sempre é conflitan­
te, porém costuma sê-lo, e isso por razões que o décimo mandamento torna
evidentes. O objeto que desejo, seguindo o modelo de meu próximo, este
quer conservá-lo, reservá-lo para seu próprio uso, o que significa que não o
deixará arrebatar sem luta. Já temos a violência, porque, como insiste Girard,
“dado o mimetismo de nossos desejos, estes se assemelham e se reúnem em
pertinazes, estéreis e contagiosos sistemas de oposição”29. Daí o escândalo, a
confrontação e a luta de todos contra todos. O problema mais profundo da
convivência humana. O lamentável, porém, é que um problema tão sério e de
tão graves consequências tenha sido banalizado nos catecismos católicos adul­

2 7 . H. VORLÀNDER, Mujer, in L. COENEN, E. BEYREUTHER, H. B1ETENHARD, Díccíonario


Teológico dei Nuevo Testamento, III, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 3 , 128.
2 8 . U m bom resumo das idéias de Girard, em PABLO RUIZ LOZANO, Antropologiay Religíón en
René Girard, Granada, Eacultad de Teologia, 2 0 0 5 , 4 0 -4 3 .
2 9 . R. GIRARD, Veo a Satãn caer como el relâmpago, 129. '
A ética de Cristo

terando interessa damente o texto bíblico e convertendo o “desejo mimético”,


que é o que Deus proíbe, em “d esejo impuro”, que é o que a Igreja proíbe.
Por último, o texto de Mateus 19,3-9 par. costuma ser explicado como a
proibição que Jesus faz do “divórcio”. Na realidade, não se trata disso. Jesus,
logicamente, responde à pergunta que lhe é feita pelos fariseus (Mt 19,3).
Pois bem, essa pergunta não se refere ao divórcio, mas ao “direito unilateral
e exclusivo do marido” de repudiar a esposa, o que era permitido na religião
judaica (Dt 24,1). Além disso, para acabar de complicar um assunto já bastan­
te espinhoso por si só, ocorre que, nos tempos de Jesus, havia em Jerusalém
duas escolas teológicas que tinham idéias contrárias justamente nesse tema.
Por um lado, havia a escola rabínica de Shammai, que era rigorista e de ob­
servância estrita. Por outro, estava a escola de Hillel, demasiado tolerante, e
que por isso defendia que o marido podia repudiar a mulher “por qualquer
causa”, que é justamente o que os fariseus perguntam a Jesus (Mt 19,3 par.). A
permissividade dos hillelistas era tal que reduziam a pleno capricho o direito
unilateral que o marido tinha ao repúdio30. E isso, nem mais nem menos, é o
que os fariseus perguntam a Jesus. Ou seja, perguntam-lhe se estava ou não de
acordo com a teoria de Hillel, ao que Jesus responde que não está de acordo
de modo algum. E, para argumentar sua resposta, Jesus lança mão do projeto
original de Deus, que foi fazer do homem e da mulher “uma só carne”, isto é,
“um só ser” (Gn 2,24). E isso, decisivamente, vem nos dizer que Jesus não só
anula a concessão “machista” que Moisés fez aos judeus, por sua “dureza de
coração” (Mt 19,8), mas também, acima de tudo, defende a igualdade de direitos
do homem e da mulher. Segundo o critério de Cristo, o homem não tem privilé­
gio algum para decidir por sua conta se separa-se da esposa ou continua com
ela. A igualdade da mulher e do homem encontra-se solidamente afirmada no
Evangelho. E esse é o significado de: “Não separe, pois, o homem o que Deus
uniu!” (Mt 19,6b), porque, como diz Jesus, “não são mais dois, mas uma só
carne” (Mt 19,6a). Vale dizer, já não há desigualdade entre ambos.
Jesus, portanto, não foi puritano. Nos textos em que, de alguma forma,
toca de leve o tema do sexo, não se refere a ele, mas aos direitos de igual
dignidade que cabem ao homem e à mulher. E, antes disso, Jesus insiste
na proibição do “desejo”, que é fonte e origem da violência. Decisivamen­
te, se Jesus menciona determinados textos bíblicos, que fazem referência

30. J. JEREMIAS, Jerusalén en tiempos deJesús, 3 8 1 -3 8 2 .


Jesus e o puritanismo

ao sexo, é para deduzir deles dois ensinamentos fundamentais na vida: o


perigo contido no desejo que conduz à violência ; e a igualdade de direitos
entre homens e mulheres. É evidente que as preocupações de Jesus não se
referiam em absoluto ao puritanismo. Há coisas mais importantés com as
quais se preocupar na vida humana.

Jesus e as mulheres

Pode-se afirmar, com toda a segurança, que um dos indicadores mais claros
para averiguar se um homem é puritano ou não, e também para avaliar a for­
ça que o puritanismo exerce na vida dessa pessoa, é o que consiste na relação
que o indivíduo costuma manter com as mulheres. Um homem que sistematica­
mente se mantém à distância das mulheres e, sobretudo, se vir nelas um peri­
go (justifique como justificar esse perigo), é evidente que está infectado pelo
vírus ético do puritanismo. Além disso, se levarmos em consideração que o
puritanismo é um fenômeno, não só de ordem ética, mas igualmente de índo­
le social, quando falamos de puritanismo, deparamo-nos com um fenômeno
no qual a liberdade exerce um papel decisivo: a liberdade de consciência e a
liberdade diante da sociedade. Em uma sociedade puritana e em uma cultu­
ra marcada por uma religião repressiva e fundamentalista, faz-se necessária
uma personalidade dotada de uma notável independência, com uma grande
liberdade interior e exterior, para podermos dizer que estamos diante de um
homem que não se deixou dominar pelo puritanismo.
Isso posto, uma das coisas que mais chamam a atenção, lendo os evan­
gelhos, é a presença e a importância que as mulheres tiveram na vida de Jesus.
Começando pelo mais elementar, o primeiro ponto que se deve ter presente é
que Jesus jamais teve problema algum com mulher alguma. E menos ainda teve
conflito de qualquer espécie com as mulheres coletivamente ou com alguma
em particular. Os evangelhos, pelo menos, não fazem menção de incidentes
nesse sentido. Isso, no caso concreto de Jesus, é bastante surpreendente por­
que, como se sabe muito bem, Jesus foi um homem conflituoso, ou seja, um
homem que, por sua forma de viver e de falar, teve problemas muito sérios e
confrontos graves (que o levaram à morte) com as autoridades religiosas e polí­
ticas de seu tempo. Mas não é só isso. Jesus teve conflitos com os dois partidos
políticos que havia em Israel: os saduceus (Mc 12,18-27) e, sobretudo, com
A ética de Cristo

os fariseus, fato que consta em quase todas as páginas dos evangelhos. Teve
problemas também com sua família (Mc 3,21; 6,4; Jo 7,5) e com as pessoas de
seu povo (Mc 6,1-6), que se enfureceram com ele a ponto de querer matá-lo
(Lc 4,28-30). Mais ainda, sabemos que, em determinados momentos, Jesus
enfrentou até seus próprios discípulos e seguidores, sem excetuar o próprio
Pedro, a quem não hesitou em chamar de “Satanás” (Mt 16,23). Pois bem, esse
homem, que teve problemas com tanta gente, jamais teve problema com algu­
ma mulher. E isso que as mulheres com as quais Jesus teve de tratar não foram
sempre mulheres precisamente exemplares ou edificantes. Sabe-se que, na vida
de Jesus, cruzaram mulheres “endemoninhadas” ou possuídas de “maus espí­
ritos” (Lc 8,2), contaminadas por enfermidades impuras (Mc 5,25-34 par.),
“ligadas por Satanás” (Lc 13,16), “adúlteras” (Jo 8,3-4), “prostitutas” (Lc 7,37),
“infiéis a seus maridos” (Jo 4 ,1 7 -1 8 ) e, além disso, algumas delas de origem e
crenças alheias à religião de Israel (Jo 4,7; Mc 7,24-30). E ele soube tratar todas
essas mulheres de maneira que se sentiram acolhidas, compreendidas, perdoa­
das, aliviadas em seus sofrimentos e até profundamente estimadas.
Há, no entanto, algo muito mais eloquente. Refiro-me à quantidade de
mulheres que sempre estiveram perto de Jesus, sinal evidente de que Jesus exercia
uma atração especial sobre elas. Logicamente, as mulheres não se aproximam
de um homem por quem se sentem rejeitadas ou menosprezadas, de qualquer
maneira que seja. O evangelho de Lucas diz que Jesus era acompanhado não
só pelos “discípulos” e “apóstolos”, mas por “muitas mulheres” (Lc 8,2-3). E
Marcos fala das mulheres que andavam com Jesus “quando ele estava na Gali-
leia” e, além delas, “várias outras, que tinham subido com ele para Jerusalém”
(Mc 15,41). Se levarmos em conta que, naquela sociedade, as mulheres não
podiam entreter-se com homens fora de sua casa, de modo que uma mulher
que falasse na rua podia ser repudiada sem receber o pagamento estipulado
no contrato matrimonial31, é evidente que tinha de parecer como algo suspei­
to, no mínimo, aquele grupo de homens e mulheres, todos juntos, que iam
com Jesus “através de cidades e aldeias” (Lc 8,1). Hoje, isso chamaria a aten­
ção. É preciso imaginar que daria o que falar aquela quantidade de pessoas
rodeando Jesus em todas as horas, sem se afastar dele.
E nada do que foi dito é o mais chocante. Porque o comportamento de
Jesus, em uma matéria (para muitas pessoas) tão melindrosa e delicada, não

3 1 . J. JEREMIAS, Jerusalén en tiempos dejesús, 3 7 2 .


Jesus e o puritanismo

teve outra saída senão mostrar-se incompreensível. Por exemplo, quando se


deixou “beijar” (Lc 7 ,3 8 ); “tocar” (Lc 7,39) e “perfumar” (Lc 7,38), em públi­
co, por uma prostituta “conhecida na cidade” (Lc 7,37), o que, evidentemen­
te, provocou sérias suspeitas na casa do piedoso fariseu onde aconteceu tudo
aquilo (Lc 7,39). E o mais surpreendente é que Jesus, em vez de ficar ner­
voso pela cena que ali se passou, o que fez foi defender a mulher “pecadora”
(Lc 7 ,3 7 .3 9 ), elogiando seus “beijos” e seus “perfumes” (Lc 7,44-46), e jogan­
do na cara do dono da casa que não havia recebido dele as mostras de delica­
deza e carinho que teve da mulher (Lc 7 ,4 4 -4 6 ). É evidente que é preciso ser
um homem muito livre para proceder dessa maneira, na casa de alguém que
o convidou para a refeição, e se tratando de uma casa de “boa família”. Jesus
estava a anos-luz de nosso empenho em manter a boa imagem e a exempla-
ridade que cuidamos zelosamente “para não dar o que falar”. Sem dúvida, os
critérios éticos de Jesus andavam por outros caminhos. Jesus era menos puri­
tano que nós, mas penetrava mais no fundo da vida do que todos os irrepreensíveis
que se orgulham de nunca haver escandalizado ninguém.
Além do mais, sabemos que Jesus teve grandes amizades com mulheres.
É o caso de Marta e Maria (Lc 10 ,3 8 -4 2 ) que, tal como é narrado no relato
de Lucas, dá a impressão de que a casa dessas duas irmãs era frequentada
por Jesus. Tem-se a impressão de que Lucas quer salientar a importância de
escutar Jesus, o que era feito por Maria32. Contudo, o fato é que Marta se
afoba para atender bem Jesus (Lc 10,40), enquanto Maria se senta a seus pés
(Lc 10,39). São indícios de uma amizade frequentada. Em contrapartida, há
o relato do evangelho de João, em que essas duas irmãs nos são apresentadas
como moradoras de Betânia, perto da capital, Jerusalém, e têm outro irmão,
Lázaro, a quem Jesus devolveu a vida 0 ° 1,1-54). Por mais que não possa
ser demonstrado que o relato de João tem conexão com o de Lucas33, parece
que seria mister forçar demasiado a explicação de ambos os relatos para não
ver neles as mesmas pessoas. Com efeito, em ambos os evangelhos, trata-se
de duas irmãs, que têm os mesmos nomes, que vivem em uma aldeia, e com
as quais Jesus tem uma profunda amizade, fato este que se evidencia ainda
mais no evangelho de João, no qual se diz expressamente que “Jesus amava
Marta e sua irmã e Lázaro” (Jo 11,5). A seguir, repete-se a convicção que ti­

3 2 . J. A. FITZM YER, El evangelío según Lucas, III, Madri, Cristiandad, 1 9 8 7 , 294.


3 3 . R. E. BROWN, El evangelío según Juan, Madri, Cristiandad, 1 9 7 9 , 4 9 -5 2 .
A ética de Cristo

nham as duas irmãs: se Jesus tivesse estado na casa, o irmão não teria morrido
(Jo 11,21 e 32). Isso expressa, antes que uma fé religiosa, a firme convicção de
um relacionamento que não se rompe. Aquelas duas mulheres queriam bem
a Jesus, sentiam-se queridas por ele e não duvidavam de sua fidelidade. E a
tudo isso é preciso acrescentar o detalhe final da ceia que ofereceram a Jesus
(Jo 12,1-7). Segundo Marcos e Mateus, essa ceia foi servida na casa de um tal
Simão, o leproso (Mc 14,3-9; Mt 2 6,6-13). De qualquer maneira, não parece
que este relato seja o mesmo (com algumas variantes) que o da pecadora que
já comentei (Lc 7 ,3 6 -5 0 )34. Todavia, o que não admite dúvida é o fato de se
tratar de uma mulher que faz algo que normalmente não era permitido às
mulheres naquela sociedade. Maria, como a pecadora do capítulo sete de
Lucas, lança-se aos pés de Jesus e o perfuma. Ademais, a qualidade e o preço
do perfume (Mc 14,3), e o fato de quebrar o frasco, de tal maneira que não
reservou nada para si, tudo isso denota uma humanidade, uma proximidade,
uma admiração e um carinho muito fortes. Isso foi motivo de críticas, escân­
dalo e indignação (Mc 14,4 par.). O fato, porém, é que Jesus, como o fez com
a prostituta, defende essa mulher e justifica sua atitude.
Não se pode demonstrar que essa Maria, irmã de Marta e Lázaro, fosse
Maria de Mágdala. Não existem dados para isso. Porém, seja como for, há
traços comuns que se repetem: a mulher sempre aos pés de Jesus em sinal
de proximidade; sempre esbanjando generosidade e delicadeza, mediante o
perfume, os beijos, as carícias; sempre malvista pelos assistentes; Jesus tam­
bém sempre malvisto por permitir semelhantes intimidades; e Jesus sempre
defendendo a mulher, por mais que os acusadores fizessem suas denúncias
em nome da decência (caso da prostituta), em nome dos pobres (caso da un-
ção de Betânia) ou em nome do serviço que havia de ser prestado ao próprio
Jesus (caso de Marta).
No grande relato da Paixão, as mulheres voltam a aparecer. Primeiro,
quando Jesus é conduzido ao Calvário. “Mulheres que batiam no peito e se
lamentavam por causa dele” (Lc 2 3,27). E a seguir, quando Jesus agoniza na
cruz. “Havia também mulheres que olhavam, à distância, e entre elas Maria
de Mágdala, Maria, mãe de Tiago, o Menor e de José, e Salomé, que o seguiam
e serviam quando ele estava na Galileia, e várias outras, que tinham subido
com ele para Jerusalém” (Mc 15,40-41). Segundo o relato de João, sabemos

34. J. GNILKA, El evangelio según san Marcos, II, Salamanca, Sígueme, 1 9 8 6 , 259.
Jesus e o puritanismo

que junto à cruz estava sua mãe, a irmã de sua mãe e Maria de Mágdala, e
com elas João (Jo 19,25). Porém, pelo que dizem os evangelhos sinópticos,
no momento da morte de Jesus, não estavam lá seus discípulos, que haviam
fugido e o haviam deixado sozinho. Lá estavam somente as mulheres, as ami­
gas fiéis, que nunca o deixaram. É evidente que a relação de Jesus com essas
pessoas deve ter sido profunda e muito firme.
Por último, não custa recordar que, seja qual for a interpretação teo­
lógica dada às aparições do Ressuscitado, é um fato que, nos relatos dessas
aparições, as mulheres ocupam o primeiro lugar. É a elas que Cristo, o Senhor
Ressuscitado (Mc 16,1-10; Mt 2 8 ,1 -8 ; Lc 2 4 ,1 -1 2 ; Jo 2 0,1-10) aparece pri­
meiro. Dizer que elas foram as primeiras a vê-lo, não se trata de uma ordem
de precedência cronológica, porque a ressurreição não acontece nem no es­
paço nem no tempo, já que é uma realidade “meta-histórica” que, portanto,
transcende o histórico e não está sujeita às coordenadas áe nossa história. No
entanto, a ordem das aparições que os relatos evangélicos estabeleceram, o
que de fato fizeram, é para nós um indicador valioso. Em um sentido concre­
to: isso quer dizer que as comunidades cristãs, nas quais foram redigidos os
relatos das aparições, tinham a convicção de que, no que diz respeito ao inte­
resse por Jesus e ao encontro com o Ressuscitado (o “Cristo da Fé”), as primeiras
foram as mulheres. Isso obviamente reafirma a relação singular que o homem
Jesus de Nazaré teve com as mulheres.
Para concluir este tópico, quero fazer com que se leve em conta algo que
me parece importante. Em tudo o que recordei sobre o comportamento de Jesus
com as mulheres, não se trata de que Jesus tenha se rebaixado ao tratar com mu­
lheres indignas e ao deixar-se amar por elas. Isso seria enaltecer Jesus à custa das
mulheres, mais uma vez. Não se trata disso, em absoluto. O que os evangelhos
deixam muito claro é que as mulheres, que a sociedade considera como indig­
nas, possuem tal dignidade (sejam elas quem forem e se portem como se porta­
rem), que Jesus, para deixar isso claro de uma vez para sempre, não hesitou em
pôr em jogo seu bom nome e chegou até a escandalizar os mais piedosos.

Os “demônios” do puritanismo

O puritanismo é uma atitude diante da vida que põe a pureza acima das
relações humanas. Ou seja, o puritanismo supõe uma escâla de valores na qual
A ética de Cristo

o primeiro lugar é ocupado pela pureza, pela vida irrepreensível em questões


de sexo e, sobretudo, pela imagem pública que se tem diante das pessoas. É
disso que mais cuida um puritano autêntico. Um puritano vive como vive, em
última instância, por uma motivação religiosa. Isso implica uma consequência
muito séria: o puritanismo é muito difícil de ser extirpado da mentalidade e
da vontade de uma pessoa, porque o puritano vê em sua conduta o meio pri­
mordial da salvação. E com ele, também o meio principal de sua própria digni­
dade e dos valores que são os que, na prática diária da vida, mais se apreciam
e melhor se cuidam. Em contrapartida, também é importante recordar que o
puritanismo é, antes de tudo, um fenômeno cultural profundamente arraigado
na cultura do Ocidente, como já expliquei anteriormente. Com isso, quero
dizer que o puritanismo é, para muitas pessoas, não só uma opção religiosa,
mas também um constitutivo da própria identidade cultural. Pode haver pessoas
que não possuem crenças religiosas (ou as possuem muito diluídas), mas
que sejam pessoas profundamente puritanas, sem que isso queira dizer que
a religião não desempenha um papel fundamental neste assunto. Se a identi­
dade cultural estiver integrada por uma boa dose de puritanismo, reforçado
por crenças religiosas (sejam quais forem), então nos encontramos diante de
um edifício monumental de rocha irremovível, que o passar dos tempos não
pode destruir.
É evidente que um puritanismo bem cultivado dá brilho a uma pessoa, a
uma família, a um nome ou a uma instituição. Mesmo nos tempos atuais, com
todas as liberdades sexuais, que saíram da alcova para a rua, o puritanismo
continua tendo muito mais força e muito mais presença do que alguns imagi­
nam. Se as paredes dos consultórios dos psicoterapeutas falassem, ficaríamos
pasmos, assim como qualquer um fica espantado escutando o que se diz em
algumas missas de domingo ou em determinadas pregações clericais, que dão
muito que falar. Insisto, porém, que um bom puritanismo é uma “marca de
garantia” que produz no puritano o efeito satisfatório de quem pode andar
pela rua com a cabeça bem erguida. É a gratificação proporcionada pelo mais
saudável puritanismo em todos os que o cultivam com esmero.
Ocorre, porém, que o puritanismo, por mais gratificante que seja, tem
seus custos. E alguns desses custos são de natureza tal que chegam a ser au­
tênticos “demônios”. Foi por isso, sem dúvida, que Jesus não o foi, nem pôde
ser, puritano de modo algum. Explico-me. O puritanismo encerra alguns
Jesus e o puritanismo

pressupostos e desencadeia algumas consequências que podem ser qualifica­


das, conforme já disse, como autênticos “demônios”.
O primeiro pressuposto do puritanismo é a separação da alma e do corpo.
Vale dizer, o puritanismo, como já disse, pressupõe que em nós exista um eu
profundo e espiritual, que pode subsistir separado de nossa corporalidade.
Essa ideia não é bíblica. Nem se encontra na Grécia clássica antiga. Por exem­
plo, não aparece nem em Homero nem em Sófocles, de maneira que quando
Édipo fala de “minha psikhe” ou de “meu soma” poderia ter dito igualmente
“eu”. Essa maneira de pensar persiste nos autores ãticos do século V, do mes­
mo modo que em seus predecessores jônios. A separação da alma e do corpo
e a ideia de um “eu”, que pode existir separado do corpo, aparece a partir de
Platão35. E tem sua origem, segundo parece, nos xamãs das religiões da Escan­
dinávia e das culturas primitivas do norte da Ásia até chegar à Indonésia36.
O segundo pressuposto é mais perigoso. Trata-se, não já da separação,
mas, sobretudo, da confrontação da alma e do corpo, o que significa que a alma se
encontra “prisioneira do corpo”, encarcerada nele. Desde que essa ideia foi in­
troduzida na cultura ocidental, rompeu-se o equilíbrio entre o corpo e a alma, e,
o que é pior, produziu-se uma ruptura do ser humano em sua intimidade mais
profunda, com tão sombrias consequências que, a partir de então, o homem
sentiu-se dividido e em luta constante consigo mesmo. Daí a necessidade que a
“alma” tem de libertar-se do “corpo”, já que o corpo toma impuro e aprisiona o
mais nobre, o mais espiritual, o mais essencial e o mais puro de nós mesmos.
Do que foi dito, segue-se o terceiro pressuposto. É o horror ao corpo e o
desprezo pelos sentidos. Por isso se explica a necessidade inconsciente de “auto-
castigo” tão cara ao puritanismo. Daí à rejeição e à condenação do “prazer” não
há mais que um passo, o qual constantemente é dado pelo puritano autêntico.
O corpo concebido como “cárcere” ou como “túmulo” da alma, ambas as idéias
claramente apontadas por Platão37. De onde passaram aos estoicos e, mais tar­
de, aos autores cristãos, começando por alguns textos de São Paulo, nos quais
mostra um evidente desprezo pelo corpo, por exemplo, na dramática descrição
de sua luta interior, na qual chega a clamar pela libertação “deste corpo que

35. E. R. DODDS, op. cit., 136.


3 6 . Op. cit., 138.
3 7 . Op. cit., 149.
A ética de Cristo

pertence à morte (Rm 7,21 24). Essa mentalidade não aparece nos evangelhos,
mas inspirou amplamente a moral e a espiritualidade cristãs durante séculos.
Pois bem, a partir desses pressupostos, a primeira consequência que inevi­
tavelmente deles se segue está em que o indivíduo se centra em si mesmo, em sua
luta interior, em seu constante anelo de purificação e de libertação do cárcere
do corpo em que se sente aprisionado. Porque sua luta interior assim o exige. E
sua consciência vive inquieta enquanto não consegue a paz que é proporcionada
pela pureza imaculada da alma que não se deixa contaminar pelo sensual.
Por isso, a segunda consequência consiste em que o puritano autêntico
põe a pureza acima das relações com os outros. Assim, se, para assegurar e garantir
a fiel observância dos costumes puros é preciso afastar-se de um semelhante,
falar com ele o menos possível, marginalizá-lo ou denunciá-lo, o bom puritano
não hesitará em fazer tudo isso. O que interessa, antes de tudo, é assegurar a
saúde da alma mediante o exemplar domínio do corpo, dos sentidos e de tudo
o que possa ter relação com a sensualidade. E também proteger a boa imagem
que há de ter, diante da opinião pública, um puritano “como Deus manda”.
A terceira consequência consiste em que o puritanísmo desenvolve enor­
memente tudo o pue se relaciona com a castidade, ao mesmo tempo em pue inibe a
sensibilidade pela justiça e pelo sofrimento no mundo. Sem dúvida, esta é a mais
destrutiva de todas as consequências desencadeadas pelo puritanismo. Nesse
ponto, ocorre um fenômeno estranho. Todo bom puritano dirá, se lhe for
perguntado, que o mais importante na vida é a caridade fraterna, a defesa dos
que sofrem, a ajuda aos necessitados e a prática do bem. Tudo isso é muito
bem estabelecido em teoria. Todavia, não sei o que acontece com o purita­
nismo que, ao chegar aos fatos concretos e às questões imediatas, o puritano
se lança à rua para protestar contra os casamentos de gays e lésbicas, porém,
jamais irá a uma manifestação para defender os direitos das mulheres, das
crianças, dos trabalhadores, ou para clamar contra a fome no mundo. Ocorre
que, no fundo, o puritanismo costuma viver bem ao lado da direita política,
ao passo que, com as pessoas de esquerda, se sente mal. Ainda que possa
parecer simplista, a direita política se sente justificada defendendo a pureza,
enquanto o ideal da esquerda foi sempre a luta pela justiça. Nisso, natural­
mente, como em muitas outras coisas, há exceções. E, por certo, sabemos de
sobra que tanto na direita quanto na esquerda há pessoas impuras e pessoas
injustas. Todavia, não parece exagerado afirmar que as tendências políticas
vão na direção que acabo de indicar.
Jesus e o puritanismo

E com isso chegamos ao cerne da questão. Jesus nao foi puritano por
que o fator decisivo na vida é a “relação pura”, isto é, a relação de amor, que é
amor e não outra coisa, nem outro interesse, mas sim “comunicação emocional” e
transparência na relação — com o dispêndio de generosidade que é preciso ter
para compreender sempre o ponto de vista do outro38. Pois bem, o puritano
de pura estirpe não está disposto a aceitar e viver isso, por mais que afirme o
contrário. E não está disposto a viver isso porque, diante desse projeto, sente
medo — o medo que brota da falta de liberdade. Refiro-me à liberdade para
pôr em jogo o próprio nome, o próprio prestígio, a própria respeitabilidade,
quando a vida nos põe em circunstâncias que exigem de nós que mantenha­
mos uma relação pura, sem usar nem abusar de ninguém, nem de tal pessoa, nem
dos outros em geral. Se Jesus nos ensinou algo grandioso, foi isso. Ocorre,
porém, que não somos educados para vivê-lo. Nossa cultura não caminha
nessa direção.
Mais ainda, um indivíduo que, por seu puritanismo, é incapaz de viver
verdadeiramente o que denominei a “relação pura”, sem medos, sem tabus, sem
repressões, e com o mais delicado respeito pelos outros (sejam eles quem fo­
rem, vivam como viverem e pensem como pensarem), decisivamente, é incapaz
de ser uma “boa pessoa”. Essa é a consequência mais grave do puritanismo. E,
por isso mesmo, o conteúdo mais genial que se encontra no Evangelho consiste
em que, sem dizê-lo, nos dá as chaves para sermos “boas pessoas”. Sendo as­
sim, o meio primordial da salvação é precisamente a bondade, porque somente
onde há bondade, sem restrição alguma, o amor é possível. E sabemos pela fé que é
no amor (e não na pureza) que se funde o divino com o humano.

3 8 . A. GIDDENS, Un mundo desbocado, 7 4 -7 5 .


Conclusão:
Ética e mística

Estou consciente de que propus neste livro uma série


de coisas que muitas pessoas acharão estimulantes,
motivadoras, sublimes até, porém pouco realistas e
praticamente impossíveis de serem levadas a efeito.
Tem muita razão aquele que pensar assim, porque
assim é o Evangelho. Quando Jesus diz que amemos
nossos inimigos, que nos façamos como crianças ou
que, se quisermos anunciar o Evangelho, que ande­
mos pela vida sem calçado, sem bagagem e sem um
centavo no bolso, é possível pensar que tudo isso
era e é realista e aplicável à vida de qualquer pessoa,
por muito boa que seja? Pode-se dizer, sem mais
nem menos, que tudo isso é realista?
Há um realismo que nos torna incapazes de
entender o Evangelho. É o realismo que circula na
terra. E, como anda tão baixo e tão por baixo, não
vê nem pode ver o que há mais acima, que também
é uma realidade. Não sei se é o realismo que alguém
A ética de Cristo

encontra em tantos comentários eruditos de exegetas bem documentados.


Existe, porém, outro realismo. O realismo dos místicos, dos que veem a vida
olhando mais de cima. E por isso veem até o mais profundo da realidade.
Os idealistas de Maio de 68 escreviam sob a forma de pinturas nas paredes
de Paris. Em uma daquelas pinturas, alguém disse: “Sejam realistas: peçam
o impossível”. Hoje, o Maio de 68 está desprestigiado. Ninguém crê naquilo.
Nem espera nada de seus idealismos utópicos. Não sei se estou na direção cer­
ta quando penso que as gerações jovens de hoje apontaram agradavelmente
para o novo realismo, com o que demonstram um senso comum que falta a
mim e não sei se faltou a muitos de nós que agora somos adultos. Seja qual
for o caso, tenho a impressão de que os poucos jovens que hoje ingressam nos
seminários e nos conventos não esperam muito do que podemos contribuir
com eles, nós que vivemos, iludidos e desconcertados, aqueles felizes anos 60,
quando as utopias nos eram familiares. Por isso, acredito que não seja tarefa
fácil organizar entre todos um futuro melhor.
Todavia, existem coisas nas quais concordamos e que são evidentes. É
evidente que as normas e as obrigações não vão mudar o mundo. É evidente
também que o “cristianismo sem Evangelho” é, em grande medida, o respon­
sável pelo desprestígio da Igreja. E é evidente, sobretudo, que o “Evangelho
íntegro”, ou seja, o Evangelho sem recortes nem mutilações, só pode ser en­
tendido e vivido pelos místicos, tanto mais quanto mais simples forem esses
1 místicos. Refiro-me aos místicos que nunca sabem que o são. Os místicos que
passam por pessoa normal e que, por isso, não chamam a atenção de nin­
guém. Trata-se dos místicos que são boas pessoas. Nem mais nem menos que
isso. Boas pessoas até nas circunstâncias mais duras da vida, nas dificuldades
de um salário que não chega ao fim do mês, na insegurança de um trabalho
precário, na solidão daquele que tem de viver uma cultura diferente, na triste­
za de uma convivência na qual ninguém o compreende, na enfermidade sem
esperança de cura, na velhice que se vive sem amargura nem ressentimento,
no anonimato daquele que nunca é uma pessoa importante nem faz nada
que chame a atenção... Quando uma pessoa, apesar de tudo isso e de todo o
imaginável, continua sendo boa pessoa, sem nunca se cansar de ser simples­
mente isso, uma boa pessoa, nesse caso, temos aí um místico. Um místico
que, certamente, nunca será descrito nos livros de mística. Todavia, uma pes­
soa assim não viveria dessa maneira se não tivesse o impulso da mística que
ninguém sabe de onde vem nem por que é assim.
Conclusão: Ética e mística

É o místico que nunca está satisfeito consigo mesmo. E que jamais pode
imaginar que é uma boa pessoa. É o místico que sofre com os que sofrem.
Porém, acima de tudo, é o místico que não suporta a desigualdade. Vale dizer,
não suporta o fato deste mundo estar “organizado” de tal maneira que uns
tenham mais direitos que outros. E que alguns se imponham sobre todos os
outros. O que acontece é que, em se tratando de um místico assim, ninguém
o verá como um místico. Dir-se-á a respeito dele que é um tipo raro, quiçá
pouco equilibrado, possivelmente, até pouco edificante. Tudo isso foi pensa­
do e dito de Jesus, o Senhor.
Por isso, pergunto: é real ou irreal a existência de uma pessoa assim? De
acordo com a resposta que cada um der a essa pergunta, assim será o julga­
mento que emitirá sobre a possibilidade ou impossibilidade de fazer chegar à
prática o que, de maneira tosca, quis dizer neste livro.

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