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CULTURA E imaginação publicitária

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Reitor
Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J.

Vice-Reitor
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Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos


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Vice-Reitor para Assuntos Administrativos


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Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio

Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento


Prof. Sergio Bruni

Decanos
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade (CTCH)
Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)
Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)
Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)

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CULTURA E
imaginação publicitária
Everardo Rocha e Cláudia Pereira (ORGS.)

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© Editora PUC-Rio © Mauad Editora Ltda.
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Conselho editorial PUC-Rio


Augusto Sampaio
Cesar Romero Jacob
Hilton Augusto Koch
Fernando Sá
José Ricardo Bergmann
Luiz Alencar Reis da Silva Mello
Luiz Roberto Cunha
Miguel Pereira
Paulo Fernando Carneiro de Andrade

Projeto gráfico de capa e miolo


Valeska de Aguirre
Revisão de provas
Valeska de Aguirre

Culturas e imaginação publicitária / organização: Everardo Rocha e


Cláudia Pereira. – Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio : Mauad, 2013.

ISBN: 978-85-7478- -7

1. Consumo (Economia) – Aspectos Sociais. 2. Publicidade.


3. Marketing. 4. Comportamento do consumidor. I. Rocha, Everardo.
II. Pereira, Cláudia.
CDD: 339.47

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Sumário

7 Apresentação
Everardo Rocha e Cláudia Pereira
13 De guaraná, namoro e gente moça: interpretação
antropológica e narrativa publicitária
Everardo Rocha e Cláudia Pereira
41 Os anúncios nas revistas ilustradas: imaginário
e valores brasileiros no início do século XX
Everardo Rocha, Cláudia Pereira e Bruna Aucar
69 O dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade
bancária no Brasil
Everardo Rocha e Bianca Dramali
97 Cariocas não gostam de dias nublados: comunicação,
consumo e lifestyle no discurso da Farm
Cláudia Pereira e Carla Barros
113 O Brasil é cool: comunicação, consumo
e o novo luxo da Osklen
Everardo Rocha e William Corbo
149 A forma perfeita: o bem-estar e o modelo
da mulher de revista
Everardo Rocha e Marina Frid
173 Templos e shoppings: a sacralização do consumo
na contemporaneidade
Everardo Rocha, Cláudia Pereira e Lívia Boeschenstein
201 Sobre os autores

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Apresentação
Everardo Rocha
Cláudia Pereira

Os textos que fazem parte dessa coletânea são resultado de di-


ferentes pesquisas realizadas pelo PECC – Programa de Estudos
em Comunicação e Consumo Academia Infoglobo/PUC-Rio.
Desde 2011, o PECC desenvolve estudos que têm como foco
questões relacionadas ao universo do consumo, visto como um
processo de troca simbólica e de prática social. O Programa in-
vestiga o consumo em sua dimensão de sistema cultural e como
narrativa constante nos meios de comunicação. Assim, suas in-
vestigações estão voltadas para o significado cultural do consu-
mo, sua expressividade como forma de comunicação e os modos
assumidos por suas práticas sociais.
A produção acadêmica realizada no âmbito do PECC busca
uma compreensão ampla do consumo como modo privilegiado
para a investigação da cultura moderno-contemporânea. Afinal,
trata-se de um fenômeno capaz de nomear nossa experiência de
vida, nosso tempo presente, nos autodefinir, dizer o que somos
– uma “sociedade de consumo”. Assim, o desafio intelectual do
PECC é investigar os significados colocados pelo consumo como
chave para a pesquisa de nossa cultura.
É nesse sentido, portanto, que o pano de fundo dessas
investigações sobre o consumo é formado por temas como as
tensões entre atitudes emocionais e racionais que promove;
seu lugar no complexo equilíbrio entre perspectivas globais e
realidades locais; sua participação no processo de superposição
das identidades de cidadão e de consumidor; sua relação com

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as oscilações da dinâmica sociocultural; as formas pelas quais


elabora valores centrais do imaginário contemporâneo; como
afeta relações de gênero, percepções da idade, diferenças de
gosto; os modos como estrutura identidades sociais e forma a
visão de mundo de diferentes grupos; como opera um sistema de
classificação que tanto distingue quanto aproxima seres humanos
e bens de consumo; os simbolismos e estratégias empregadas em
suas narrativas e os desdobramentos que incidem nas ideologias
e práticas brasileiras.
Mas, no âmbito do PECC, cabe também a investigação dos
grandes desafios que o consumo apresenta para o mercado. Em
um complexo quadro no qual se revezam as mudanças radicais
e as significativas permanências, os bens de consumo são parte
substancial dos processos de mercado que, cada vez mais, rea-
lizam-se como interfaces do lazer e do entretenimento, infor-
mação incessante em configurações e suportes improváveis, ope-
rações de novas sociabilidades, culturas, sensibilidades e como
modelo de negociação das tensões entre experiências individuais
e identidades coletivas.
Assim, o ambiente de reflexão construído através do PECC
permite uma troca sistemática entre pesquisa universitária e mer-
cado, uma parceria tanto complexa quanto rara no campo das
ciências sociais, e que acontece pelo esforço e abertura intelectual
propiciada pelo Departamento de Comunicação Social da PUC-
-Rio e pela Academia Infoglobo. Essa troca permite que ques-
tões, dilemas e impasses típicos do mundo dos negócios possam
ser submetidos a uma perspectiva de outra ordem, interpretados
pelo viés acadêmico com consistência teórica e temporalidade
longa. A observação próxima do consumidor, desenvolvida pe-
los estudos culturais, permite uma maior compreensão de sua
demanda e escala de valores, viabilizando, entre outros aspec-
tos, a perspectiva da inovação. O conhecimento produzido pela

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apresentação 9

universidade entrega, de forma estruturada e analisada, mate-


riais observados em campo, tanto nas representações quanto nas
práticas de consumo, propiciando um conjunto de informações
culturais relevantes. Com isso revela, e muito, sobre as media-
ções que agora se estabelecem no processo de produção da in-
formação, nas práticas do consumo e na visão de mundo de um
consumidor que se renova e/ou passa a existir.
Neste sentido, o mercado brasileiro da informação, seja dos
meios de comunicação de massa ou de nichos culturais, exige
primeiramente uma compreensão de seu estágio atual e, a partir
disso, o desenvolvimento de uma melhor forma para antecipar-
-se às transformações. Esse quadro se complexifica, sobretudo,
ao constatarmos a crescente incorporação de novos contingentes
populacionais brasileiros – a assim chamada classe C ou nova
classe média – ao universo do consumo, o que torna crucial a
investigação, tanto do significado cultural de bens e serviços,
quanto do valor e do lugar da informação nesse processo. Para
isso, o conhecimento acadêmico da dimensão cultural do con-
sumo é, com a contribuição do PECC, um caminho possível
para a compreensão de alguns fenômenos que, nem sempre, são
privilegiados na agenda acadêmica das ciências sociais.
Em dois volumes, esse primeiro Cultura e imaginação publici-
tária e o segundo Cultura e experiência midiática, estão reunidos
14 artigos produzidos pelos pesquisadores do PECC. Neste vo-
lume são apresentados sete deles, que são resultado das reflexões
sobre o consumo que enfatizam um debate, nas narrativas publi-
citárias e midiáticas, acerca das representações da realidade, em
alguns de seus diferentes modos de realização e acontecimento.
Os três textos que abrem essa coletânea, inspirados pela dis-
tância cronológica, propõem um olhar sobre a narrativa publi-
citária em sua articulação com as trocas simbólicas. O primeiro
deles – “De guaraná, namoro e gente moça: interpretação antro-

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pológica e narrativa publicitária”, de Everardo Rocha e Cláudia


Pereira – se insinua nos caminhos da imaginação publicitária,
buscando os significados da juventude ao longo de diferentes
contextos históricos e sociais, dos anos 1960 até dias mais atuais,
através de anúncios que tangenciam as representações do que é
ser homem ou mulher em nossa sociedade. No segundo, “Os
anúncios em revistas ilustradas: imaginário e valores brasilei-
ros no início do século XX”, Everardo Rocha, Cláudia Pereira
e Bruna Aucar percorrem a história dos anúncios nas principais
revistas ilustradas do século XX. Com o objetivo de empreender
uma reflexão que evidencie como as narrativas neles contidas
elaboraram certos significados culturais da época – três primeiras
décadas do século passado –, o artigo revela parte importante do
nosso imaginário, do nosso espaço social e simbólico, codifican-
do nossas representações e práticas de consumo. O terceiro arti-
go, “O dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária
no Brasil”, de Everardo Rocha e Bianca Dramali, analisa, por
sua vez, a narrativa publicitária do dinheiro no Brasil, a partir de
um corpus composto por diversas peças publicitárias dos serviços
bancários, contribuindo para uma história de como o dinheiro é
representado nos anúncios brasileiros.
Os dois artigos que vêm a seguir destacam marcas de vestuá-
rio para pensar, à luz de uma antropologia do consumo, as repre-
sentações dos estilos de vida traduzidos em narrativas sobre grifes
e roupas. Assim, Cláudia Pereira e Carla Barros em “Cariocas
não gostam de dias nublados: comunicação, consumo e lifestyle
no discurso da Farm”, analisam a visão institucional da empresa
a fim de perceber de que maneira se constrói o imaginário do
que seria, na narrativa do consumo, o estilo de vida carioca, os
valores locais, uma espécie de “carioquidade” que constrói um
determinado perfil de jovens consumidoras – as “meninas da
Farm”. Em “O Brasil é cool: comunicação, consumo e o novo

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apresentação 11

luxo da Osklen”, Everardo Rocha e William Corbo examinam a


narrativa da moda, e em particular aquela empregada pela mar-
ca Osklen, cuja estratégia pretende aproximar-se do imaginário
brasileiro. A narrativa da marca assume formas particulares de
apropriação desse imaginário para, através dele, demarcar a ideia
de um “novo luxo”, como uma espécie de alternativa – “descola-
da” e “natural” – ao glamour das narrativas tradicionais do luxo.
Como uma das mais recorrentes representações das narrati-
vas midiáticas desde sempre, a mulher e suas imagens, simbo-
lismos e usos são o objeto do sexto artigo, “A forma perfeita: o
bem-estar e o modelo da mulher de revista” de Everardo Rocha
e Marina Frid, que analisa algumas representações do feminino,
em especial da “saúde”, do “bem-estar” e da “beleza”, tal como
elaboradas nas revistas impressas voltadas para este público. O
trabalho, também com uma perspectiva antropológica de análise
do consumo, investiga como o discurso da mídia constrói uma
mulher idealizada que se reflete nas representações e nas práticas
concretas de consumo em nossa cultura.
O sétimo e último texto desta primeira coletânea percorre
clássicas questões da antropologia, pelas quais convidamos o lei-
tor a se aventurar, mergulhando nas sinuosas e complexas formas
da ideia de sagrado. Em “Templos e shoppings: a sacralização do
consumo na contemporaneidade”, Everardo Rocha, Cláudia Pe-
reira e Lívia Boeschenstein sugerem a aproximação entre o con-
sumo e o sagrado, através da análise das narrativas midiáticas e
das práticas sociais. Procuram demonstrar como o jornalismo e a
publicidade apropriam-se de categorias como “templo”, “meca”
e “magia”, entre outras, para atribuir valor aos bens materiais e,
ainda, como as nossas mais corriqueiras atividades de consumo,
como ir ao shopping por exemplo, podem ser “ritualizadas”.
Estes são os textos da coletânea Cultura e imaginação pu-
blicitária  que sintetiza alguns trabalhos realizados no PECC e

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expressa o esforço e a dedicação de um grupo de pesquisadores


preocupados com questões que transitam entre os campos da co-
municação e do consumo. Para que tal empreendimento tenha
sido realizado, no entanto, algumas pessoas e instituições foram
fundamentais, tanto pelas condições de pesquisa e produção in-
telectual que propiciaram como pela confiança e incentivo com
que, generosamente, acolheram nosso trabalho. A elas dedica-
mos esse livro.
À Infoglobo, pela coragem, disposição e espírito de inova-
ção, imprescindíveis para que o projeto do PECC se tornasse,
enfim, uma realidade. À PUC-Rio pela excelência acadêmica, a
convivência amiga e a generosa sensação de pertencimento que
propicia.
Na PUC-Rio, queremos agradecer especialmente ao dire-
tor do Departamento de Comunicação Social, professor Cesar
Romero Jacob, ao coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, professor Miguel Pereira, e ao vice-reitor Aca-
dêmico, professor Ricardo Bergman, pelo apoio incondicional,
desde o início de todo esse processo. 
Ao diretor de Marketing Corporativo da Infoglobo, André
Furlanetto, pela generosidade, entusiasmo e permanente par-
ceria desde os primeiros momentos do processo de criação do
PECC. Também da Infoglobo agradecemos à Bianca Dramali,
gerente de Estratégia de Relacionamento, mas, antes de tudo,
ex-aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
PUC-Rio, pelo afeto e competência em levar adiante uma ideia
que nasceu na academia, mas que cresceu e gerou resultados no
mundo dos negócios, e à Selma Rocha Fernandes, diretora de
Cultura Corporativa, por ter acreditado no PECC.

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De guaraná, namoro e gente moça:
interpretação antropológica e narrativa publicitária
Everardo Rocha
Cláudia Pereira

Um brinde à razão

A narrativa publicitária e a experiência do consumo mostram


que, no centro da suposta racionalidade do sistema econômi-
co capitalista, instala-se, alegremente, a emoção, o desvario, o
pensamento mágico, a desrazão. Esse parece ser um dos muitos
paradoxos da cultura contemporânea. Presa entre dilemas como
global e local, extrema pobreza e abundância, ideologia da novi-
dade e norma da tradição, permanência e mudança, o público e
o privado, entre outros, a experiência moderno-contemporânea
indica a formulação de uma pergunta crucial – a incoerência é o
possível, a ambiguidade é a regra, a dualidade é uma constante?
De fato, a publicidade e o consumo traduzem, de maneira
enfática, mais um desses múltiplos paradoxos – a presença do
maravilhoso, a experiência do sagrado e o mundo mágico em
meio ao nosso frenesi de razão prática. A publicidade parece ser
um dos novos lugares que passaram a acolher o pensamento má-
gico na contemporaneidade, em contraponto com a razão como
instrumento privilegiado que explica nosso modo de ser. A per-
gunta bem direta de Paul Veyne (1987) se o gregos acreditaram
em seus mitos, possui como resposta possível, algo bem criativo
e nada preciso – sim e não. A ideia que se pode derivar de Veyne
é que, talvez, eles tivessem vivenciado, naquela experiência social
há mais de dois mil anos, uma relação muito próxima da que

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14 cultura e imaginação publicitária

temos com anúncios, marcas, grifes, lojas, shoppings. Acreditamos


na narrativa publicitária onde, muitas vezes, os animais falam, os
produtos sorriem e a morte não existe? Acreditamos na experiên-
cia do shopping onde não se distingue noite e dia, calor ou frio
e as horas são feitas das coisas abertas ou fechadas? Sim e não.
Essa é a razão pela qual a narrativa publicitária, e por extensão as
práticas de consumo, podem ser vistas como uma espécie de es-
pelho mágico que nos reflete e com o qual realizamos um pacto
de acreditar no impossível.
É com pertinência então que a antropologia, desde sempre
debruçada em estudos de mitos, sacrifícios, rituais, totens, orá-
culos, feiticeiros e xamãs, pode oferecer uma contribuição para
decifrar essa magia contemporânea inscrita em mensagens midi-
áticas persuasivas e atualizada nas práticas através das quais nos
relacionamos com os bens de consumo. Assim, o objetivo deste
artigo é explorar as possiblidades de utilização da perspectiva an-
tropológica para o estudo da publicidade, tomada, neste texto,
tanto como uma narrativa – do consumo – como uma prática
– da comunicação. Procura-se responder, sobretudo, à seguinte
questão: como a antropologia, a partir dos estudos que se debru-
çam sobre a mensagem persuasiva, pode interpretar a publicida-
de como prática e, principalmente, como expressão da cultura?
Para tanto, o presente trabalho divide-se em dois momentos:
no primeiro, aspectos culturais da contemporaneidade são toma-
dos como ponto de partida para uma reflexão sobre os desafios
da publicidade, sustentados pela urgência da observação do co-
tidiano e pela pesquisa dos significados culturais; em um segun-
do momento, considerando a publicidade como a narrativa do
consumo, será examinado um conjunto de anúncios do Guaraná
Antarctica, cada qual provindo de uma década diferente dos últi-
mos 60 anos, o que permite a investigação de pistas, referências e
códigos capazes de revelar alguns dos valores compartilhados em

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de guaraná, namoro e gente moça 15

contextos distintos, quando consideramos a combinação entre


elementos como “juventude”, “homens”, “mulheres” e “namo-
ros”. Pretende-se, enfim, mostrar que a perspectiva antropológi-
ca, por força de uma sólida tradição na análise de sistemas sim-
bólicos, pode contribuir de forma significativa para a pesquisa da
comunicação ao investigar tanto as representações que circulam
através da narrativa publicitária como as práticas de consumo de
grupos sociais.

Prática publicitária e desafios da contemporaneidade

Pensar a narrativa de uma época, de um contexto ou de um


estilo de vida é uma importante contribuição que a antropologia
pode dedicar aos estudos da comunicação, mais especialmente,
aos da publicidade. Há, porém, ainda três abordagens possíveis e
que merecem ser destacadas: a primeira delas diz respeito à refle-
xão sobre a própria natureza da prática publicitária; a segunda,
aos desafios antropológicos que a modernidade tardia impõe à
publicidade e aos seus produtores; a terceira, ao rearranjo simbó-
lico que se estabelece a partir de uma nova hierarquia de valores,
em que modelos tradicionais de construção da legitimidade do
discurso publicitário passam a conviver com outros emergentes.
Passemos, portanto, ao primeiro ponto, o da natureza da
prática publicitária. Afinal, como afirmava Clifford Geertz nos
anos 1970, em A interpretação das culturas (1989 [1973]), os an-
tropólogos não estudam a aldeia, mas na aldeia. Isto quer dizer
que interpretação etnográfica não está presa ou circunscrita ao
que se estuda naquela aldeia e só é válida dentro do seu próprio
limite. Antes, de outra maneira, estudar na aldeia quer dizer que
a questão, dimensão cultural ali investigada, pode ser pensada
como algo que começa naquele substrato concreto e pode dele
decolar para além de si mesmo. De onde parte uma representação

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social não indica que sua interpretação se prenda às fronteiras do


próprio contexto de partida. A perspectiva de Geertz decorre, é
evidente, de Bronislaw Malinowski que, cerca de 50 anos antes,
revolucionou e sistematizou, de forma pioneira, o método etno-
gráfico, ensinando-nos que era preciso uma “imersão no campo”
para que, de fato, fosse possível descrever os grupos culturais
sem o aprisionamento imobilizador de uma postura etnocêntrica
(Malinowski, 1984 [1922]).
O publicitário, da mesma forma, precisa realizar o esforço
antropológico e tentar libertar-se de seus pressupostos, certezas,
crenças e valores cristalizados. E assim, mesmo que de forma
incipiente e não treinada, metódica ou sistemática como a do
antropólogo, colocar-se no lugar do consumidor e vivenciar a
experiência do consumo do produto estudado sem filtros, tecni-
cismos ou traduções. É certo que estamos longe de afirmar que
os publicitários devem fazer antropologia. Não só não devem
como também não podem, pois se o fizerem deixam de ser pu-
blicitários e viram antropólogos, o que não faz qualquer sentido.
O que estamos indicando é que a natureza de seu ofício requer,
de fato, um dado espírito, ou um dado olhar, que em muito se
assemelha àquele do antropólogo.
No cinema, é comum encontrar representações da profissão
do publicitário como aquele que vivencia a experiência do con-
sumo. Como a cena clássica de Mel Gibson na comédia What
women want (EUA, 2000), na qual o personagem decide expe-
rimentar um kit de produtos femininos, que inclui batom, cera
depilatória, meia-calça preta, esmalte, entre outros. Mal sucedi-
do na tentativa, leva um choque ao deixar o secador de cabelos
cair na banheira cheia d’água e, a partir deste momento, passa a
ouvir o pensamento de todas as mulheres.
No decorrer do filme, percebe-se que esta experiência viven-
ciada pelo personagem mostrou-se ineficiente, já que o publici-

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de guaraná, namoro e gente moça 17

tário pinta as unhas, depila-se, veste a meia, mas não desvenda a


feminilidade em sua essência, ou a alma feminina, pois continua
sendo o mesmo homem machista com pensamentos sexistas e
todos os pressupostos que os orientam. O desvelamento da alma
feminina só se concretiza quando, por acidente, o personagem
do filme passa a ter a capacidade de escutar o pensamento das
mulheres. Uma situação inusitada, impossível, fantasiosa. Me-
taforicamente, porém, do ponto de vista antropológico, esta
situação representaria exatamente o ofício do etnógrafo. Pois,
ao ouvir o pensamento do objeto de nossa observação, ou do
nativo, o etnógrafo estaria muito perto de decodificar os signifi-
cados de seu discurso, de sua cultura. Geertz (1989) nos ensina
que o bom antropólogo deve fazer uma “descrição densa” do
que se observa, ou seja, deve buscar compreender, mais do que o
observado quer dizer, “o que ele pensa que está fazendo”. Busca-
-se, na perspectiva simbólica da antropologia, o significado dos
discursos, dos ritos, das práticas, das representações sociais.
Na “vida real”, ou melhor, na prática profissional, porém,
há óbvios limites quanto à natureza antropológica do ofício do
publicitário, pois não cabe a ele interpretar os significados do
consumo, mas sim vivenciar as suas práticas. E é daí que parte o
segundo ponto para esta discussão: os desafios que a modernida-
de tardia impõe à publicidade e aos seus produtores.
Quando se faz uso da expressão “modernidade tardia”, pre-
tende-se abordar o termo no sentido dado por autores como
Antony Giddens (2002). Este autor discute os efeitos da globa-
lização e da ruptura das instituições tradicionais na construção
do “eu”, da identidade e da maneira com que lidamos com suas
consequências. Em dado momento, ele propõe o conceito de
“estilo de vida”, não aquele usado pelo mundo do marketing,
reduzido a estereótipos e generalizações, mas aos recursos de que
dispomos para aderir às nossas identidades entre inúmeros con-

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juntos simbólicos de práticas, valores e bens de consumo existen-


tes na sociedade contemporânea. Para que tenhamos, segundo
Giddens, alguma “segurança ontológica” frente à dissolução das
instituições tradicionais, é necessária a adesão a um desses possí-
veis “estilos de vida”.
Se, tradicionalmente, a pesquisa de mercado vinha sendo uti-
lizada para ajudar na tomada de decisão das empresas e das agên-
cias de publicidade com relação às suas ações estratégicas junto
ao consumidor, hoje focus groups ou questionários estruturados
parecem já não serem suficientes para necessidades cada vez mais
complexas. A etnografia tem sido cada vez mais valorizada pelas
empresas, que buscam no campo teórico-metodológico da an-
tropologia o que lhes falta na visão de mercado: a abordagem
cultural. E, culturalmente orientadas, as pesquisas de mercado
ganham novas metodologias, recorrem cada vez mais a estudos
acadêmico-científicos e trazem para as salas de reunião discus-
sões que podem contribuir para a compreensão dos fenômenos
sociais e culturais presentes nos processos comunicacionais e
de consumo. Baseados nesta forma de observar os movimentos
sociais que passam a conduzir os rumos da moda e do design,
por exemplo, empresas de pesquisa de tendências passaram a de-
senvolver, no início dos anos 2000, novas metodologias que vi-
sam descrever os processos de imitação e disseminação de novos
comportamentos, crenças, costumes e hábitos de consumo. Para
tanto, esses profissionais de pesquisa de tendências lançam mão
de métodos antropológicos, como etnografia e observação parti-
cipante, sem desprezar, ainda, o que a teoria das ciências sociais
também tem a oferecer.
Considerando, ainda, que tais “estilos de vida” (Giddens,
2002) se multiplicam diante da consolidação de um mercado
cada vez mais amplificado pela internet – a “cauda longa” (An-
derson, 2006) –, pode-se afirmar que tem se tornado cada vez

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de guaraná, namoro e gente moça 19

mais complexa a redução de tais “estilos de vida” a modelos en-


gessados, generalistas e previsíveis, como são aqueles tradicional-
mente usados pelos antigos manuais de publicidade e de pesqui-
sa de mercado. As denominadas segmentações de mercado, em
que se levavam em conta aspectos sociodemográficos e culturais
para descrever as “donas de casa”, os “executivos”, as “crianças”,
os “ricos”, os “adolescentes”, entre outros, já não bastam – por
mais que se tente enfeitá-los com outras nomeações estilosas –
para se definir o que, no jargão da publicidade, chamamos de
target, ou público-alvo. Afinal, de que “donas de casa”, “execu-
tivos”, “crianças”, “ricos” e “adolescentes” estamos falando? Pois
estas são categorias plurais e irredutíveis.
Aqui, chegamos ao terceiro ponto desta reflexão: será que a
publicidade ainda é eficiente ao aplicar modelos tradicionais de
construção da mensagem persuasiva – mais especificamente, de
sua legitimidade?
A antropologia é, por excelência, a arte da observação do co-
tidiano. A etnografia é o registro descritivo deste cotidiano de
um grupo social, a fim de buscar os significados de suas práticas,
valores e crenças. Ao mesmo tempo, com o crescente e populari-
zado acesso aos meios de produção dos mais diversos gêneros de
conteúdo da internet, lança-se uma luz sobre o cotidiano do indi-
víduo comum, transformando-o em celebridade fugaz. Os 15 mi-
nutos de fama de Andy Warhol ganham as redes sociais e demais
ambientes online que nos rodeiam. Vivemos os tempos dos reality
shows. E isso reflete, evidentemente, na narrativa publicitária.
Um dos grandes modelos do discurso persuasivo está no “tes-
temunhal” – o uso da imagem de alguém famoso e com credi-
bilidade –, legitimando o valor, a qualidade ou a novidade de
um produto. Insista no “eu recomendo” e meio caminho estará
andado nos resultados de venda do produto anunciado. No en-
tanto, a legitimidade, ao que tudo indica, passou para outras

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20 cultura e imaginação publicitária

mãos. Na contemporaneidade, é possível identificar a tendência


de levar muito mais em conta o que o indivíduo comum tem
a dizer a respeito de um produto do que o testemunho de um
ator ou atriz, por exemplo. O “famoso”, porém, ainda tem seu
lugar na publicidade atual, mas sua presença, por vezes, apenas
reforça a precariedade de sua recomendação. Anônimos, pessoas
“comuns” ou, ainda, consumidores “reais” conferem credibilida-
de às marcas anunciadas. São eles que recomendam o produto e
o fato de serem indivíduos anônimos forja a “verdade” do pro-
duto e, por extensão, da publicidade. Uma “verdade” que só se
concretiza a partir das ações e práticas do cotidiano – cotidiano
que é, afinal, objeto da antropologia. Assim, de um lado, o co-
tidiano revela, para a antropologia, os códigos sociais e culturais
de um grupo. Do outro lado, a publicidade busca nele os ape-
los racionais e emocionais que mobilizam o consumidor para a
compra. Enquanto a antropologia é capaz de decodificar os sig-
nificados do cotidiano, a publicidade é capaz de dele se apropriar
e o recodificar. Em outras palavras, ressignifica, codifica de novo,
tornando-o, outra vez, atrativo e vendável através de uma roupa-
gem midiática, com trilha sonora, magia e luz. Mas é, de fato, o
cotidiano e suas interpretações que pode ser lugar de encontro e
de aproximação entre a antropologia e a publicidade.

O “outro” na publicidade

A antropologia, como teoria e método, possui uma história


marcada pelo projeto de pesquisa do “outro”, que hoje, parado-
xalmente, é capaz de subsidiar uma reflexão consistente sobre
muitos e diversificados temas da vida cotidiana na sociedade
moderno-contemporânea. No contexto do surgimento e con-
solidação das chamadas ciências sociais, o entendimento do ser
humano era a intenção e o centro de todas as reflexões. Entre-

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de guaraná, namoro e gente moça 21

tanto, quando se propunham pensar o ser humano como uni-


versalidade, essas ciências acabavam tomando a parte pelo todo
e a “humanidade” se verificava através do ser humano que lhes
parecia tanto visível quanto tangível ou, pelo menos, o único
relevante – o ser humano europeu do século XIX. A ideia de
humanidade se confundia com sua projeção eurocêntrica e o
“outro” era naturalmente excluído dos projetos de entendimen-
to dos significados da mente ou da produção ou do poder ou da
sociedade. A imagem do Homem, suas experiências e práticas,
que emergia daquelas reflexões, espelhava os que viviam numa
cultura burguesa e europeia. Um ser humano que se revestia de
universalidade pela sua vertente eurocêntrica. Uma única disci-
plina apenas tinha como projeto o estudo dos não europeus e se
autodefinia como voltada para conhecer a vida de fora, a vida do
“outro”. Era a antropologia, cujo compromisso com a alteridade
acabou por se tornar, pela dinâmica de uma longa história que
não cabe aqui rever, capaz de fornecer um olhar de estranhamen-
to sobre nossas representações e práticas e, dessa forma, elaborar
um instrumental teórico e metodológico importante para pen-
sar a própria “cultura do eu”. Assim, ao nascer marcada por um
olhar para fora, foi capaz de obter, com a diferença, os recursos
intelectuais necessários para propiciar um viés, em certos aspec-
tos, privilegiado quando o desafio passa a ser interrogar nossas
“verdades” e colocar nossas “certezas” em suspensão.
É nesse sentido que podemos dizer que a perspectiva an-
tropológica oferece uma base sólida para pensar nossas repre-
sentações e nossas práticas. Entre as múltiplas narrativas que
constroem o universo simbólico no qual vivemos, uma delas
pode ser tomada como absolutamente central no imaginário
moderno-contemporâneo. Trata-se da narrativa publicitária.
Obviamente, a centralidade que a narrativa publicitária possui
em nossa experiência social indica um lugar privilegiado para,

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22 cultura e imaginação publicitária

através dela, buscar compreender quem somos, nosso modo de


vida e nossos projetos. A publicidade é a narrativa do consumo,
ela nos ensina a consumir, confere significado aos bens, lhes atri-
bui valor simbólico, nos ajuda a classificar as coisas e as pessoas,
reproduz nossos valores e crenças. A publicidade codifica os bens
para o consumo e revela, em suas representações sociais, a nossa
cultura, seus mitos, ritos, crenças e valores.
Como a principal narrativa sobre o consumo gerada pela
nossa sociedade, os anúncios publicitários são capazes de for-
necer amplas possiblidades de pesquisa dentro de um projeto
de compreender nosso mundo, de investigação da cultura con-
temporânea. Um exemplo interessante dessas possiblidades nos
é dado, paradoxalmente, por um tipo de anúncio antigo, tão
antigo que não existe mais, um anúncio de cigarro. Como vere-
mos, o anúncio nos fala de arqueologia e, ele mesmo, acabou se
tornando parte de uma arqueologia da publicidade. Na década
de 1980, um tempo em que ainda existia publicidade de cigarro
na televisão, um anúncio contava uma história que, no fundo,
é a história de todos eles. Uma câmera focaliza ao longe o que
poderiam ser tanto as dunas de um deserto quanto as areias de
uma praia. A câmera se aproxima lentamente. Uma rajada de
vento levanta a areia e dela surge, primeiro irreconhecível e, em
seguida, imponente, um maço de cigarros. Uma voz em off, gra-
ve como as vozes que imaginamos deveriam ser aquelas vindas
do além, explica que se o homem de hoje desaparecer e nada
mais restar, seus descendentes, do futuro, saberão que o ancestral
tinha um estilo de vida. Toda a cena se faz acompanhar por uma
trilha musical que os publicitários acharam própria para especu-
lações arqueológicas. O cigarro era o Hilton e a ironia, eventual-
mente nostálgica, é que a proibição fez com que o produto tenha
se tornado tão arqueológico quanto a mensagem de seu anúncio.
O que importa, porém, é a ideia ali expressa de que os bens de

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de guaraná, namoro e gente moça 23

consumo e a sua narrativa principal – a publicidade – são regis-


tros eloquentes a respeito da experiência social contemporânea.
O cigarro pode não ser bom para a saúde, mas o anúncio do
Hilton é bom para pensar. E ele parece ter razão, pois através
dos bens de consumo e, mais ainda, das narrativas publicitárias
eventualmente preservadas é possível fazer uma “arqueologia” do
que somos, dos múltiplos “estilos de vida” que levamos.
Como estamos falando de jovens, sua sociabilidade e seus
afetos, também um outro anúncio, este mais antigo ainda, pois
é da década de 1940, nos ensina como certos ritos de passagem
podem atualizar-se em sua forma ao mesmo tempo que sua es-
trutura permanece. O anúncio fala de uma das transformações
que se inscrevem no imaginário e no corpo quando se deixa uma
etapa e se assume outra. O anúncio, tal como o do Hilton, deixa
clara essa função especular, arqueológica mesmo, que a publici-
dade pode ter para quem quer pesquisar nosso modo de vida. O
anúncio da revista O Cruzeiro é do Regulador Gesteira e tem o
sugestivo título de Adolescentes. Ele diz o seguinte:

Deixar a infância para trás, atingir a adolescência o mais rapida-


mente possível é o clássico anseio das meninas, quando vão chegan-
do a essa idade de transição, entre menina e moça. Quadra agitada
e complexa, em que um enxame de sonhos, projetos e inquietações
povoa a mente das jovens, exaltando sua tenra sensibilidade, o iní-
cio da adolescência constitui por isso mesmo uma fase perigosa e
decisiva na vida da mulher. Desse período de formação, durante o
qual operam importantes mudanças no organismo feminino, po-
derá depender a futura saúde e felicidade da moça – esposa e mãe
de amanhã. Com efeito, a época da puberdade, que liga a infância
à juventude, é comparável a uma ponte de passagem difícil: para
transpô-la em boas condições a mocinha deve ser preparada física
e psicologicamente. Cabe em especial às mães zelar, com clarivi-
dência e carinho, por essa dupla preparação, indispensável a um
desenvolvimento completo e harmonioso. Tonificar o estado geral

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24 cultura e imaginação publicitária

da adolescência, regular as funções útero-ovariano que começam


– e cujos desarranjos podem ter tão desfavorável repercussão no
sistema nervoso são as primeiras providências. Para isto Regu-
lador Gesteira é o remédio indicado. Excitações nervosas, desâ-
nimo, cansaço, falta de apetite, enjoos, dores durante o período
menstrual, regras escassas ou exageradas, todos esses distúrbios,
que frequentemente se verificam na época da puberdade, poderão
ser tratados e até evitados com o uso do Regulador Gesteira. A
ação que o Regulador Gesteira exerce sobre o organismo femi-
nino é calmante, tônica e normalizadora da menstruação. São,
portanto, essas propriedades que fazem do Regulador Gesteira o
excelente remédio, cujo renome atravessou fronteiras de tantos
países, onde sua aplicação, hoje tão largamente difundida, tem
produzido sempre ótimos resultados no tratamento das perturba-
ções nervosas e outros males causados pelo mau funcionamento
dos órgãos útero-ovariano.

O Regulador Gesteira, assim como os cigarros Hilton, também


não existe mais. As representações acionadas nas duas narrativas
publicitárias permanecem. São muitas possibilidades e é eviden-
te a riqueza das representações nos dizendo no anúncio como
seria a “infância” e, depois, a “mulher”, quais suas “funções” na
sociedade, o que devem fazer as “mães”, qual seu “papel”, o lu-
gar da relação “amorosa/casamento” na vida de cada um, como
controlar o “sistema nervoso”, além das várias dificuldades do
encontro “físico” e “psicológico” com o próprio futuro.1
A narrativa publicitária sistematicamente nos indica o quan-
to poderia render como caminho para a pesquisa de nossa cul-
tura, seus sistemas de ideias, suas representações, suas emoções
codificadas, experiências, práticas, modelos de relações, compor-
tamentos, enfim, sua expressividade ideológica. A publicidade

1
Estes anúncios do Hilton e do Regulador Gesteira são analisados no livro Magia
e capitalismo (Rocha, 2010).

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de guaraná, namoro e gente moça 25

traduz a produção para que esta possa virar consumo e, nesse


processo, ensina modos de sociabilidade enquanto explica o que,
onde, quando e como consumir, na mesma medida em que ex-
plica o que, onde, quando e como ser o que somos. E mais ain-
da, a publicidade é quem, fundamentalmente, sustenta nossos
limites e possibilidades como alegres receptores cotidianos de
diferentes mídias. Por isso, é fundamental pesquisar a narrati-
va publicitária, as representações que aciona, a lógica através da
qual se estrutura, os significados que disponibiliza.
Estudar a publicidade é urgente, é necessário. Ela abre uma
ampla via de acesso para conhecer a nós mesmos, como quem
tem o privilégio de assistir nossas vidas reproduzidas em frag-
mentos. As cenas publicitárias permitem exercícios de imagina-
ção, embaralham limites, questionam precárias diferenças entre
verdade e ilusão, pois nelas podemos ver ideais de seres humanos
perfeitos com “estilo de vida” e controle do “sistema nervoso”.
Tudo isso sem falar no inevitável encontro do amor, do prazer,
da alegria, da festa, dos animais que conversam ou dos produtos
que nos completam. Não envelhecemos jamais, nunca sofremos
além do que os produtos podem nos salvar, existimos sem do-
res em uma terra sem males. A narrativa publicitária é feita de
fragmentos que revelam nosso modo de ser, nossos afetos e, so-
bretudo, nossas práticas de consumo. Falam sério sobre nós na
mesma medida em que elaboram seu mundo de brinquedo que
embaralha e também contrasta rotina e ritual, lógica domestica-
da e mitologia, ficção lá dentro e realidade aqui fora.
A função manifesta da publicidade é, obviamente, vender
bens de consumo, criar mercados, disponibilizar produtos e ser-
viços para que sejam comprados e, assim, sustentar a produção e
o capitalismo. Mas não é apenas essa, pois a simples observação
dos anúncios permite relativizar a exclusividade destas funções
manifestas. Queiramos ou não, para bem ou para mal, eles fazem

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26 cultura e imaginação publicitária

outras coisas além de vender determinados bens de consumo,


pois é igualmente óbvio que consumimos muito mais anúncios
do que produtos e serviços. Isto indica alguma coisa além da ven-
da. Não consumimos tantos bens quanto consumimos anúncios
e neles tenta-se vender um produto enquanto são gratuitamente
oferecidos sistemas de classificação, modos de sociabilidade, re-
lações humanas, estilos, sensações, emoções, visões de mundo,
hierarquias de valores. Tudo isso muito provavelmente em quan-
tidade maior que os bens anunciados, pois estes são vendidos
condicionados às possiblidades da compra; os anúncios, entre-
tanto, são indistintamente distribuídos. Essa constatação mostra
o quanto a publicidade pode falar sobre a sociedade, o quanto
os anúncios especulam sobre o mundo e o extraordinário espa-
ço discursivo disponível, indicando uma pesquisa central para o
conhecimento das formas de representação de nossa cultura e do
pensamento burguês.
Assim, com espírito aberto, olhar atento e sensibilidade para
o estranhamento vamos examinar como os anúncios do Guaraná
Antarctica afetam o imaginário e o comportamento juvenil em
diferentes contextos históricos, modelando o gosto por namorar,
o prazer do encontro, a comida do corpo e a alimentação do
espírito, o que deve ser o homem, a mulher e a relação entre eles.

De guaraná, namoro e gente moça

Em um famoso anúncio de Guaraná Antarctica, datado de


1960,2 o texto enuncia: “Quando gente moça se reúne... está
sempre presente o Guaraná Champagne Antarctica”. Nele, um
jovem casal, aparentemente no balcão de um bar, faz um brinde.
Ao fundo, pode-se ver uma prateleira com garrafas que, aparen-

2
Publicado em http://revi-vendo.blogspot.com.br em 4/10/2012.

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de guaraná, namoro e gente moça 27

temente, guardam outros tipos de bebidas, possivelmente, alcoó-


licas. Ele usa terno escuro, camisa branca e gravata. Ela, bastante
maquiada e bem penteada, usa um vestido estampado. Um copo
de champagne “assina” o anúncio, tendo ao lado uma garrafa do
Guaraná Antarctica.

Figura 1: Anúncio dos anos 1960.

Já nos anos 1970, a ideia de juventude parece ter sofrido


uma transformação. Dois anúncios revelam, naquele contexto,
um modelo diferente de juventude, menos comportada, mais
provocativa e em busca de emoção. Jovens corajosos que dese-
jam, antes de tudo, ser “livres” em suas escolhas. E que “desapa-
recem” figurativamente, sendo representados por subjetividades
e estilos de vida.
O anúncio intitulado Todo jovem deveria fazer este teste antes
dos 25 anos (Figura 2) traz um “teste” contendo questões que
buscam medir o quanto aquele que o lê é, de fato, “livre” para
fazer o que bem desejar. São seis perguntas que versam sobre as
mais diferentes situações, desde provocações no trânsito até a es-
colha do presente de um casal amigo. No bar, no trânsito, diante
de situações de confronto, como numa discussão de trânsito ou
num desafio lançado por um “halterofilista”, o que se espera é
que o jovem tenha personalidade, assumindo suas escolhas e de-
cisões. Como, por exemplo, a de beber um Guaraná Antarctica,
enquanto outros bebem algo mais “forte”.

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28 cultura e imaginação publicitária

Figura 2: Revista Veja, 14/10/1970.

A partir do resultado, quem respondeu – especificamente


um homem, já que as perguntas são claramente dirigidas a ele –
recebe uma espécie de classificação:

Se você respondeu afirmativamente a todos os quesitos A, você é


um cara livre, que faz o que quer em qualquer situação. Se você
respondeu afirmativamente a todos os quesitos B, você é um cara
livre pra fazer tudo o que os outros querem. Se você respondeu afir-
mativamente a todos os quesitos C, você acaba de descobrir porque
a turma disfarça e muda de assunto sempre que você chega. (1970)

O curioso na noção de ser “um cara livre, que faz o que quer
em qualquer situação” é que a liberdade é definida pelo desejo
do confronto, da briga, do enfrentamento e da submissão do
“outro” em metade das situações. A outra metade do ser livre
se define pela compra de um quadro, pela gíria da moda e por
beber guaraná.

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de guaraná, namoro e gente moça 29

No segundo anúncio dos anos 1970, em que também predo-


mina mais a ideia de juventude do que o jovem em si, a relação
entre juventude e liberdade se dá de uma forma bastante dife-
rente (Figura 3).

Figura 3: Revista Veja, 3/3/1971.

Desta vez, tal relação se constrói a partir do esporte, como


diz o texto do anúncio:

Passe este verão com um frio no estômago. Para fazer isso, é sim-
ples: suba num vôo de esqui aquático, “surf ” ou caia de queixo
no Drinkão de Verão. Drinkão de Verão é a pedida deste calor:
copo cheio de gelo e Guaraná Antarctica por cima. Fica lindo de
ver. Fica divino de beber. Aí, v. parte de novo para o seu esporte
favorito. E se o seu esporte favorito for mulher, melhor. Porque
com mulher e Guaraná Antarctica, v. já tem duas das três melhores
coisas da vida. Antarctica. (1970)

“Verão”, “surf ”, “calor”, “esporte”: junto com o Guaraná


Antarctica, o jovem encontra, neste estilo de vida, a “liberdade”

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30 cultura e imaginação publicitária

que lhe traz diversão e prazer. E prazer é um modo de vida, um


“estado de espírito” possível a partir do “esporte favorito”. Este é
a terceira “coisa” importante na vida. As outras duas “coisas” são
o guaraná e a mulher, para assim, compor o quadro completo
das “três melhores coisas da vida”. Ser jovem é saber ter prazer
e, mais que isso, conquistá-lo. É interessante também observar
que o “drinkão de verão” é absolutamente inusitado uma vez
que se compõe de um copo com gelo e o guaraná “por cima”...
flutuando talvez. Um drinque, um líquido portanto, que supõe
que uma de suas partes deva ficar por cima é tão deliciosamente
mágico quanto a roupa ou a pele que podem ser limpas em
profundidade mesmo sendo necessariamente superfície ou não
seriam roupas e peles. Trata-se do indefectível encanto da famo-
sa “publicidade da profundidade”, como denominou Roland
Barthes (1972).
A aproximação entre juventude e natureza ganha traços ain-
da mais fortes no anúncio de 1981 (Figura 4).3

Figura 4: Natureza e juventude.

3
Publicado em http://www.flickr.com/photos em 8/10/2012.

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de guaraná, namoro e gente moça 31

A “natureza” está “nas mãos” do jovem, assim como os cabe-


los “naturalmente” encaracolados da namorada. A figura mas-
culina parece se render, portanto, aos encantos da feminilidade,
deixando de lado o estilo de vida aventureiro. A mulher não é
mais uma “coisa”, parte de um “esporte”, mas uma conquista,
algo a se preservar, tal qual a natureza.
Os anúncios do Guaraná Antarctica dos anos 1990 caracteri-
zaram-se por propor combinações de “sabor” para a bebida. Na
Figura 5, o sanduíche; na Figura 6,4 a pipoca.

Figura 5: “Pipoca com guaraná”. Figura 6: Revista Veja, 7/8/1991.

Sanduíche, pipoca e guaraná: bens materiais que traduzem


um modo de ser que surge a partir do consumo. Mais ainda,
a pipoca, simbolicamente, remete a um tipo de comensalidade
caracteristicamente jovem, associado a cinema, amigos e diver-
são. Douglas e Isherwood (2004) já discutiram os significados
do consumo da comida e da bebida como marcadores sociais.
Outra peça publicitária, de 2005, revela o jovem do Guara-
ná Antarctica como alguém que “respeita” o jeito de ser de sua
namorada (Figura 7).

4
Publicado em http://cdn.mundodastribos.com em 13/10/2012.

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32 cultura e imaginação publicitária

Figura 7: Revista Veja, 7/12/2005.

Ele parece ser mais relaxado do que aquele dos anos 1970,
pouco afeito a brigas e confusões, menos preocupado com a opi-
nião alheia, ou ainda mais romântico do que aquele de 1971,
que vê a mulher apenas como um “esporte”:

Faça diferença. Faça do seu jeito. Meu namorado me acha uma


pessoa intensa e respeita isso. Tudo o que eu gosto eu repito. Se
gosto de uma música, ouço o dia inteiro. Bom, ele não só respeita
como adora. Até porque outra coisa que eu gosto é de fazer cari-
nho. Ninguém faz igual. (2005)

Sete anos depois, o Guaraná Antarctica veiculou uma pu-


blicidade menos “tradicional”, e publicou no Youtube um filme
de pouco mais de dois minutos divulgando um aplicativo para
smartphone que ajuda o jovem a evitar a ex-namorada (Figura 8).

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de guaraná, namoro e gente moça 33

Figura 8: Ex.lover blocker.

O filme mostra um adolescente triste, sofrendo com o tér-


mino de seu namoro. A fim de evitar uma “recaída”, ele instala o
ex.lover blocker em seu smartphone:

Todo mundo sabe como é duro terminar um namoro. E também


como é fácil cometer um erro. A grande burrice de ligar pra ela.
Guaraná Antactica apresenta ex.lover blocker. O aplicativo que aju-
da você a não ligar pra sua ex. Funciona assim. Baixe o aplicativo.
Bloqueie o número de sua ex. E escolha os amigos que vão te
proteger. Agora, se você tiver uma recaída e tentar falar com sua
ex o aplicativo bloqueia a ligação. Além de mandar um aviso para
os seus amigos. Essa é a hora do resgate. Seus amigos vão te ligar e
tentar te convencer a não fraquejar. Mas se mesmo assim você ligar
pra ex, um aplicativo dispara uma mensagem no Facebook e todos
vão saber que você é um mané. Agora, se os amigos conseguirem te
convencer a não ligar, missão cumprida. Amigos unidos. Amigos
felizes. Ex.lover blocker. (2012)5

As oito peças do Guaraná Antarctica, aqui descritas, buscam


ilustrar de que maneira a publicidade, especificamente neste

5
Revista Exame, 11/06/2012. Guaraná Antarctica apresenta “Ex.lover blocker”
no Dia dos Namorados. Publicado em http://exame.abril.com.br em 4/10/2012.

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34 cultura e imaginação publicitária

caso, contribui para a construção de ideias sobre as gerações, os


valores morais, os modelos de masculinidade e feminilidade, os
estilos de vida, as sociabilidades; em diferentes momentos histó-
ricos, sociais e culturais.
Os jovens dos anos 1960, representados no anúncio acima
mencionado, diferem na forma como se vestem e, também, em
como se relacionam com a bebida em si: o “champagne” que ain-
da faz parte da marca do guaraná é lembrado no gesto do brinde,
que, tipicamente, se associa ao “mundo adulto”.
Neste momento histórico, a “cultura juvenil”, segundo Ed-
gar Morin (2006), apenas brotava na cultura de massa, tanto
na música como no cinema. Nos anos 1960, este autor refletia
sobre uma cultura de massas em construção, delineando o que
seriam os valores norteadores que a sustentavam no contexto da
sociedade norte-americana, em primeiro lugar, e das sociedades
ocidentais, num segundo momento – dentre os quais, a felicida-
de, o hedonismo, o feminino e, o que nos interessa em especial,
a “juventude” –, pautando uma comunicação que homogeneiza
os gostos e padroniza os estilos de vida. Morin ([1975] 2006)
demonstrou que tudo teve início com a adesão destes mesmos
jovens, enquanto “classe de idade”, aos movimentos feministas e
antirracistas dos anos 1950, provocando imediata identificação
com os anti-heróis de filmes como The wild one (EUA, 1953),
com Marlon Brando, e Rebel without a cause (EUA, 1955), com
James Dean, instigando-os a imitarem seus modos e suas modas
e, sobretudo, a se organizarem em gangues pelas ruas dos Estados
Unidos e da Europa para, um pouco depois, aportarem no Brasil.
Sobre a chegada do rock’n’roll ao país em 1955, com a gra-
vação da música Rock around the clock pela cantora de boleros
Nora Ney, Waldenyr Caldas (2008) aponta que somente um ano
depois o novo ritmo se disseminou entre os jovens. De fato, é em
1956, com o enorme sucesso do filme também chamado Rock

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de guaraná, namoro e gente moça 35

around the clock (EUA, 1956), que a gravação original de Bill Ha-
ley e seus cometas contribuiu para incluir o Brasil no rol dos países
consumidores da indústria cultural norte-americana. A cultura
de massas se consolidou, sobretudo, no governo do presidente
Juscelino Kubitschek (1956-1961), com a abertura do mercado
para os produtos importados. Segundo Caldas (2008), chegaram
aqui, entre outros produtos como a Coca-Cola, os rádios portá-
teis de pilha – talvez os primeiros gadgets que permitiram uma
mobilidade incorporada até hoje pelo estilo de vida dos jovens.
O rádio portátil se associou a outros bens simbólicos específi-
cos e se instalou, especialmente, nos centros urbanos brasileiros,
tornando-se, paulatinamente, a referência cultural do país (Cal-
das, 2008). Podia-se desde já se identificar uma “nova cultura da
juventude” (Caldas, 2008: 76), facilitada, sobretudo, por sua
relação direta com o processo de urbanização daquela sociedade
brasileira. E, como tal, contribuiu, paralelamente, para a sedi-
mentação de uma cultura de massas definitiva. Até mesmo as
emissoras de rádio rurais passaram a ser solicitadas para também
incluírem em sua programação musical o rock’n’roll. Estes jo-
vens, no entanto, eram tão conservadores quanto seus próprios
pais. Sempre estiveram de acordo com o status quo, alinhados
com as expectativas da família e do Estado (Caldas, 2008: 76).
E é este, enfim, o jovem representado no anúncio do Guaraná
Antarctica de 1960.
Nos anos 1970, a publicidade analisada parece indicar que a
marca desejava, naquele momento, atrair a preferência do jovem
do sexo masculino e seu discurso é totalmente pautado na afir-
mação de sua masculinidade. Ele deve ser “forte” e ter personali-
dade. Deve ser, também, “livre” para decidir beber, por exemplo,
um Guaraná Antarctica no balcão de um bar, a despeito da rea-
ção alheia (Figura 1).

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36 cultura e imaginação publicitária

As opções (A, B e C) oferecidas pelo “teste” do anúncio de


1970 (Figura 2) denotam, em contraste com o anúncio de 1961,
três tipos de juventude: a primeira, que se revela na letra A de
todas as perguntas, é a “rebelde”, da qual se espera uma atitude
irreverente, corajosa e destemida, ainda inspirada pelo “selva-
gem” Marlon Brando ou pelo “sem causa” James Dean; o segun-
do modelo de jovem que se encontra na letra B parece ser aquele
que apenas segue a moda, mas nunca está à frente dela ou, ainda,
que busca nos outros uma aprovação para suas ações e escolhas;
por fim, a letra C indica que este é o jovem “menos jovem” dos
três, ou seja, mais próximo do “mundo adulto” do que seus pa-
res – mais ainda, ele é covarde e não se arrisca. A ideia do jovem
ousado e destemido também se repete no anúncio de 1971, é o
que pratica um esporte como o surf ou o “esqui aquático”.
“Rebeldia”, “irreverência” e “liberdade” são valores es-
truturantes para a compreensão do cenário cultural, em todo
o mundo, que emergiu, principalmente, a partir de 1968. Os
movimentos sociais capitaneados pelos jovens acabaram por as-
cendê-los a um outro patamar, saindo de meras vítimas de uma
subcultura anglo-saxônica ritmada pelo rock’n’roll para o de ato-
res sociais hippies, contraculturais ou engajados politicamente
(Morin, 2006; Caldas, 2008; Goffman e Joy, 2007). Os jovens
“romperam” com os adultos e passam a andar com suas próprias
pernas. Desejavam, afinal, um espaço de poder experimentado
através da vontade de serem livres.
Nas décadas de 1980 e 1990, os jovens já haviam se conso-
lidado em seu papel de transformadores sociais. Especialmente
no Brasil dos anos 1980, em que, politicamente, se instalava no-
vamente o regime democrático, e onde, culturalmente, surgia o
“BRock”, movimento musical que trouxe à cena artística bandas
de rock brasileiras, o que se vivia era um momento de exercí-
cio de liberdade. Os jovens deste contexto já não precisavam

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de guaraná, namoro e gente moça 37

clamar pela liberdade de expressão e nem eram mais classifica-


dos a partir das ideologias de esquerda ou direita, ou de atitudes
contraculturais e anti-autoritárias. Eles eram plurais e conviviam
harmonicamente com suas diferenças. Para eles, a política não
estava mais associada à luta ou às bandeiras, mas à natureza. Ju-
ventude e natureza passaram a ser um par, também na publici-
dade. A rebeldia se traduzia nas roupas que vestiam e na forma
como se relacionavam, principalmente, com a música – nas so-
ciabilidades dos espaços destinados para assistir a shows e dançar.
Através do consumo, a juventude destas duas décadas encontrou
formas simbólicas de construir suas “cercas e pontes” (Douglas e
Isherwood, 2004). Nos anúncios de 1990 e 1991, por exemplo,
são os bens que simbolizam as pessoas, e não o contrário – como
o sanduíche, a pipoca e o guaraná, que tomam o lugar dos pró-
prios jovens para manifestar, materializado em alimentos típicos,
um dado “espírito jovem” presente na comensalidade.
Contemporâneos, os jovens revelados nos anúncios de 2005
e 2012, ao contrário, são mais sensíveis, apaixonados e se relacio-
nam com suas namoradas de forma respeitosa. Eles não precisam
se afirmar a partir de sua masculinidade, ao contrário: necessitam
do apoio dos amigos para não ter a “recaída” de procurar a ex-
-namorada. Os amigos ganham enorme importância, revelando o
lugar da sociabilidade, da tecnologia e da amizade – todas interli-
gadas – no estilo de vida desta juventude (Rocha e Pereira, 2009).
Os estilos de vida traduzem-se, cada vez mais, em cotidia-
nos. Trata-se de cotidianos – diversos, já que, da mesma forma,
traduzem-se em possíveis escolhas e estilos de vida (Giddens,
2002) – representados nas imagens dos anúncios da revista, não
mais o da família feliz bebendo guaraná (Figura 9), mas aquele
do jovem ex.lover que estabelece uma relação muito particular
com a tecnologia e com seus amigos (Figura 5).

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38 cultura e imaginação publicitária

Figura 9: Jornal O Globo, 7/04/1960.

Este é um consumidor “de verdade”, humano – suas fragili-


dades são expostas e, não por isso, sua masculinidade é questio-
nada. Em sua “humanidade”, revelam-se suas escolhas, que na
contemporaneidade são mais flexíveis, fartas e permitidas. De
qualquer forma, porém, ele ainda é um jovem, uma “classe de
idade” (Morin, 2006) que pressupõe um conjunto de práticas,
valores e crenças que, reunidas, configuram numa classe, mas
que, paradoxalmente, é transitória, já que fase da vida. E é papel
do antropólogo olhar para tal “humanidade”, e para seus coti-
dianos simbolicamente apropriados pela narrativa publicitária,
buscando, através deles, interpretar e compreender este nosso
complexo mundo.
Se, num dado momento, a “juventude” foi um valor fun-
dante para a cultura de massa (Morin, 2005) e, no outro, a “cul-
tura juvenil” dela muito se apropriou para marcar seu lugar no
mundo social (Morin, 2006), suas representações na publicidade
nos convocam a buscar as especificidades destes contextos atra-

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de guaraná, namoro e gente moça 39

vés de suas transformações. Analisando as associações feitas entre


um produto – o Guaraná Antarctica – e os jovens, consideran-
do que tais associações decorrem de um sistema de classifica-
ção que toma coisas por pessoas e pessoas por coisas (Douglas
e Isherwood, 2004), procuramos evidenciar, neste trabalho, a
enorme contribuição que a abordagem antropológica pode ofe-
recer para uma interpretação da narrativa publicitária.

Referências bibliográficas
ANDERSON, Chris. A cauda longa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1972.
CALDAS, Waldenyr. A cultura juventude de 1950 a 1970. São Paulo:
Musa Editora, 2008.
DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,
1989.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jor-
ge Zahar Editores, 2002.
GOFFMAN, Ken e JOY, Dan Contracultura através dos tempos. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2007.
MALINOWSKI,  Bronislaw.  Argonautas do Pacífico Ocidental. São
Paulo: Abril Cultural, 1984.
MORIN, Edgar. Cultura de massas do século XX: o espírito do tempo
I: neurose. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2005.
__________. Cultura de massas do século XX: o espírito do tempo II:
necrose. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006.
ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_________ e PEREIRA, Cláudia. Juventude e consumo. Rio de Janei-
ro: Mauad, 2009.
VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Lisboa: Edições
70, 1987.

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Os anúncios nas revistas ilustradas:
imaginário e valores brasileiros no início do século XX
Everardo Rocha
Cláudia Pereira
Bruna Aucar

Introdução

“Larga-me...deixa-me gritar!”. Este dramático slogan sublinhava


o desenho assustador de um homem mordendo um pano e era o
modo que se julgava adequado para vender o Xarope São João na
perspectiva do longínquo ano de 1900.1 O anúncio, veiculado
na Revista da Semana, ficou na memória de gerações e ganhou
tanto destaque que foi resgatado para compor o cenário da no-
vela de época Lado a lado, em exibição na TV Globo em 2013
(Figura 1).

1
Todos os anúncios mencionados neste trabalho foram retirados da Coleção 100
Anos de Propaganda. Anúncios publicitários de 1875 a 1980. São Paulo: Abril
Cultural, 1980. Foram selecionados anúncios representativos do período 1900
a 1931 dos seguintes periódicos: Revista da Semana (30/06/1900; 05/07/1924;
23/01/1926; 01/10/1927 e 26/10/1929), A Vida Moderna (25/12/1907), Arara
(29/04/1905; 07/10/1905; 29/01/1906; 21/10/1906 e 26/01/1907), Fon-Fon
(26/06/1909; 23/04/1910; 08/04/1911; 20/04/1918 e 05/09/1925), O Malho
(06/12/1902), Revista A Ilustração Brasileira (01/08/1909), Careta (02/02/1918 e
02/10/1920), Revista Eu Sei Tudo (1919), Cruzeiro (15/02/1930 e 11/07/1931);
do jornal O Estado de São Paulo (18/05/1902 e 30/04/1905) e do Guia Artístico
do Rio de Janeiro (1922).

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42 cultura e imaginação publicitária

Figura 1: Anúncio do Xarope São João.

Naquele início de século, 12 anos após a Lei Áurea e 11 após


a proclamação da República, ainda não se podia falar na publi-
cidade como atividade profissional. Ela não era nem estruturada
em uma cadeia de relações de trabalho, nem reconhecida como
profissão. Tratava-se apenas do início de alguma coisa que seria
a bem-sucedida trajetória de uma atividade profissional sobre a
qual se pode dizer, mais de 100 anos depois, que modelou aspec-
tos centrais da própria história do imaginário brasileiro.
Com a emergência do consumo como fenômeno econômi-
co, social e cultural, a publicidade assumiu, paulatinamente,
proeminência e legitimidade como um recurso indispensável
para a compreensão dos espaços sociais, simbólicos, públicos e
privados. A publicidade se torna um dispositivo complexo e po-
deroso, confirmando o lugar central da estrutura midiática como
autoridade e influência cultural no cenário brasileiro. A publici-
dade é uma narrativa que dá forma e concretiza diversas lingua-
gens, valores e imagens, elaborando representações coletivas e
identidades, papéis sociais e estilos de vida, desejos e subjetivi-
dades, através de um incansável universo simbólico que sustenta
nossa cultura material transformada em bens de consumo.

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os anúncios nas revistas ilustradas 43

Sendo assim, nesse trabalho, vamos nos apropriar dos pri-


meiros movimentos desta poderosa narrativa para compreender
certos aspectos do nosso imaginário social, analisando o que so-
bre ele podem revelar alguns dos anúncios presentes nas revistas
ilustradas das três primeiras décadas do século XX. As revistas
ilustradas são veículos de grande destaque no período, responsá-
veis por influenciar comportamentos e criar modismos. Através
delas e dos “anúncios” que veiculavam é possível termos uma
perspectiva da construção histórica dos significados culturais
brasileiros em um período de transformações substanciais e de
complexa negociação de nossa identidade cultural. Aqui é im-
portante dizer que, nos limites desse trabalho, chamaremos de
“anúncios” os textos e imagens das revistas ilustradas que ob-
jetivavam vender produtos e serviços, sem entrar na complexa
discussão envolvida no emprego de termos como “publicidade”,
“propaganda” ou “anúncio” naquele contexto histórico, ao me-
nos na primeira década do século passado.
Assim, ao percorrer a história dos meios de comunicação no
país, percebemos que a noção de “anúncio publicitário” está di-
retamente ligada a diversos fatores, como a organização de uma
cadeia de atividades profissionais, o início da produção capita-
lista de massa, o aprimoramento da tecnologia, a solidificação
do consumo, o crescimento urbano, entre outros tantos, cujo
amadurecimento necessário para formar o mercado publicitário
no Brasil demanda investigações mais profundas. É óbvio que
isto não significa que nada era vendido e comprado ao longo de
nossa história. Sempre “coisas” foram vendidas e compradas e
não se supõe que os vendedores não “falassem bem” delas. O fato
de “falarem”, “escreverem”, “cantarem”, “desenharem” ou “decla-
marem” e mesmo “publicarem” rasgados elogios ao que vendiam
não significa que fizessem o que, ao longo do século XX, no
Brasil, passou a ser conhecido como “publicidade”. De fato, a

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44 cultura e imaginação publicitária

organização da atividade, tal como a conhecemos hoje, se realiza


paulatinamente na virada do século XIX para o XX e tem um
marco significativo com a criação da Agência Eclética, em 1914.
É claro que se pode encontrar “anúncios” e de fato eles estão
suficientemente documentados nos jornais e revistas brasileiras
desde o início do século XIX ou até mesmo antes disso. A ques-
tão é que, se assumirmos que qualquer coisa “anunciada”, ou
o termo “anúncio”, traduz automática e arbitrariamente o que
hoje chamamos “publicidade”, seria não apenas anacronismo,
como nos levaria – no limite – à situação surreal de acreditar que
a “publicidade” surgiu com a própria atividade simbólica hu-
mana. “Anunciar coisas” é apenas “anunciar coisas”. A atividade
publicitária, como de resto qualquer outra, requer um contexto
que a sustente. E este, no caso da publicidade, só será dado pelo
capitalismo moderno e, assim mesmo, lentamente.
De fato, será apenas com os impactos nas estruturas produ-
tivas oriundos da industrialização – processo histórico, social e
simbólico que se alastra por todo o Ocidente na segunda metade
do século XVIII – que acontece uma expansão dos meios de
comunicação, localizada em certos contextos socioeconômicos,
marcadamente o europeu. Com a chamada  Revolução Indus-
trial, reorganizamos a base produtiva agrária e artesanal para uma
composição urbana e desenvolvimentista da indústria, o que gera
uma transformação profunda nos modos de vida e nas relações
sociais. A partir de meados do século XIX, o cenário começa a se
consolidar em direção a uma atividade econômica mais vigorosa
e organizada. O “mercado” passa a ser um dos eixos centrais por
onde gravitam as atividades da metrópole. É nesse processo que
podemos falar de uma atividade publicitária em certos contextos
sociais, pois marcas de produtos e de empresas passam a contri-
buir para o processo de construção de um imaginário coletivo,
incorporando-se, de forma crescente, ao cotidiano dos indivíduos

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os anúncios nas revistas ilustradas 45

e grupos sociais. O uso de meios como mediadores da comuni-


cação faz com que a experiência social ganhe novos contornos
(Berger e Luckmann, 2002). Novas percepções são estimuladas
com a abrangência de canais de comunicação. Os meios criam
novos modos de ação e relacionamento e, como indicou John B.
Thompson (2010), a interação social libera-se dos limites físicos
e dos ambientes espaço-temporais.
As revistas ilustradas do início do século XX são um im-
portante momento deste processo e reforçaram o jargão de que
“uma imagem vale mais do que mil palavras”, mesmo que não se
consiga dizer isso sem palavras, conforme ensinou Roland Bar-
thes (1974). Se os jornais marcaram o século anterior, dando
espaço muitas vezes à luta política, à ideologia de combate, à
informação opinativa, as revistas trouxeram uma nova atmosfera
e mudam o tom da imprensa no país. “Se o Brasil demorou mais
de 300 anos, desde a sua descoberta, para fazer a sua primeira
revista, andou depressa nos últimos 180 anos” (Civita, 1990).
Novas técnicas de impressão inundaram os veículos de comuni-
cação com imagens. Para Daniel Boorstin (1980), com a invasão
de material visual sobre as sociedades, o pensamento corria o ris-
co de se tornar puramente imagético, pensar apenas em termos
de representação, cópia de objetos e pessoas. A abundância visual
viria modelar parte substancial da atividade publicitária. 
Dezoito anos após os ingleses publicarem a  Ilustrated
News, ganhávamos a nossa primeira revista ilustrada. A Semana
Ilustrada foi produzida pelo alemão Henrique Fleiuss no Rio de
Janeiro, em 1860 (Souza, 2004). Mas foi somente na virada do
século, em 1900, que vimos surgir a Revista da Semana, primeira
encadernação que privilegiava o uso de ilustrações como com-
plemento ao texto e como forma de anunciar produtos. Logo de-
pois, vieram O Malho, A Careta, Fon-Fon, publicações editadas
na então capital da República. Em São Paulo, surgem Vida Pau-

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46 cultura e imaginação publicitária

lista,  Arara,  Cri-Cri. Todas muito bem elaboradas, com anún-


cios em posições fixas que sustentavam as influências de um es-
tilo art-nouveau europeu e de um tecnicismo americano. Muniz
Sodré (1986) também relembra que a caricatura foi uma grande
influência da imprensa naquele início de século. Os políticos
foram alvo de sátiras ilustradas e garotos-propaganda das marcas.
Importantes nomes da literatura também participavam como
colaboradores das revistas. 
Com os aparatos da indústria gráfica remodelando a impren-
sa tradicional, o consumo começa a ocupar lugar de destaque no
cotidiano e a ser pensado como um fenômeno que espelha os
estilos de vida da coletividade urbana em expansão. A ideologia
do consumo penetra profundamente nas sensibilidades estabe-
lecendo diretrizes para novos contornos da experiência pública
e privada. Com a formação das metrópoles, grandes espaços de
comunicação e troca se estabelecem, uma vez que o contato hu-
mano já pode extrapolar os limites das pequenas distâncias geo-
gráficas. Uma cena urbana complexa e contraditória vai marcar
o nosso modelo civilizatório. O processo industrial instala uma
ordenação nas cidades que em parte se sustenta nas relações de
compra e venda. A etiqueta urbana vai abraçar o consumo como
o elemento doutrinador dos comportamentos, estilos e modos
de vida. Assim, o consumo vai ensinar, objetiva e subjetivamen-
te, como vamos nos organizar nesta composição social moderna.
A arquitetura recorta a paisagem cosmopolita com vitrines
ornamentadas que ostentam produtos e marcas do mercado em
franco crescimento. A imagem é potencializada nos mais dife-
rentes aspectos e setores. Na grande cidade, o que se vê prevalece
sobre o que se ouve (Pais, 2010). A modernidade parece associa-
da à hegemonia do olhar. Os meios de comunicação asseguram
o vínculo com a representação da cidade, tanto no real, como no
imaginário. A publicidade aproveitou o crescimento de uma ve-

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os anúncios nas revistas ilustradas 47

locidade citadina para impetrar sua narrativa. Com a exportação


de valores culturais massificados, a presentificação do tempo é
uma vertente que responde por mudanças significativas nas re-
lações humanas e impacta as subjetividades (Morin, 1989). Para
Guy Debord (1997), o tempo se tornou um fator de abstração
e, muitas vezes, está ligado ao tempo de consumo das imagens.
O consumidor transporta-se à ficção das narrativas dos meios
de comunicação tornando-as reais através de identificações ca-
talisadas pela imagem. Cada vez mais, a experiência urbana é
redimensionada pelos processos comunicacionais e a comunica-
ção verbal vem a ser ultrapassada pela comunicação à distância
(Canclini, 2005).
Neste cenário de transformações, onde a comunicação en-
contra-se no centro das mudanças, o consumo se torna o grande
produtor de símbolos, signos e representações que se põem como
códigos culturais. A narrativa publicitária, agora sim, torna-se o
dispositivo que vai dar voz aos apelos do consumo e, assim, ga-
nhar espaço no imaginário coletivo como a esfera de referência
para as escolhas e estilos de vida. Desta forma, as categorias so-
ciais passam a ser organizadas também de acordo com as divisões
e hierarquias determinadas pela lógica do consumo e não mais,
apenas, pelas antigas disposições.
O consumo é o grande domínio ideológico pelo qual va-
mos nos reconhecer plenamente. “É no consumo que homens e
objetos se olham de frente, se nomeiam e se definem de manei-
ra recíproca” (Rocha, 1985: 68). A publicidade, ao transformar
cultura material em bens envolvidos em simbologias particulares
através das quais nos localizamos, referenciamos e transitamos
socialmente, investe o consumo de um lugar central na ordem
dos sistemas definidores das identidades, diferenciações e clas-
sificações do mundo moderno. Os consumidores vão usar estes
códigos para sustentar vivências, ideias, expressões, realidades.

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48 cultura e imaginação publicitária

Desta forma, é através dos bens de consumo que os sujeitos mo-


dernos vão conhecer a si próprios, definir suas experiências e
sustentar suas representações. E é justamente a narrativa publici-
tária que vai transformar cultura material em bens de consumo
customizados, embutindo simbologias que permitem localizar,
diferenciar e classificar como mapas de sobrevivência na vida so-
cial contemporânea.

O nascimento das revistas

Os primeiros anos do século XX no Brasil marcaram o nasci-


mento de um novo estilo de vida nas capitais nacionais. A Belle
Époque reverbera, contagiando os hábitos nos centros urbanos
já redimensionados pelas novidades da comunicação, do entre-
tenimento e do consumo. O telefone, o telégrafo, o cinema, o
automóvel, o avião, trens e estradas aproximaram as principais
cidades do mundo e inspiraram outra percepção da realidade.
Os fluídos modernizantes do velho continente geravam um cli-
ma de efervescência cultural neste lado do Atlântico. 
Na Europa, o desenvolvimento da grande imprensa e a expan-
são do público leitor ocorreu desde a primeira metade do século
XIX. Esse processo chega ao Brasil com atraso e somente nas três
últimas décadas dos anos 1800 é que começamos a espelhar uma
modernização da imprensa e o nascer de uma indústria gráfica,
mesmo assim apenas nos principais centros do país (Kaminski,
2010). Paradoxalmente a esse crescimento editorial tardio, gran-
de parte da população brasileira do período não sabia ler, nem
escrever. Estudos mostram que, até 1920, mais de dois terços da
nação ainda era analfabeta (Bortoni-Ricardo et alli, 2008).  
Desde a proclamação da República, o intento de instaurar
uma comunicação que chegasse às massas se evidenciava. Com
a abolição da escravatura no ano anterior, o mercado encontra

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os anúncios nas revistas ilustradas 49

as condições de possibilidade para candidatar-se ao lugar de re-


gente da estrutura social, iniciando um processo de adensamen-
to que pretende invadir todas as experiências e espaços da vida
moderna. Assim, ampliar as técnicas de reprodução de imagens
era uma determinação importante do período. Para expandir o
alcance junto às camadas urbanas, percebe-se, claramente, um
esforço dos editores em povoar suas páginas impressas com re-
cursos visuais. Neste sentido, as revistas vêm referenciar este
modelo pretensamente mais “inclusivo” e “democrático”. O
florescimento das revistas também significava a emergência de
um consumo cultural homogeneizado, simplificado, que asso-
ciava a necessidade informativa às nuances do entretenimento.
Novos leitores semialfabetizados eram conquistados por publi-
cações abundantemente ilustradas e repletas de caricaturas. As
notícias eram produzidas de modo a agradar o cidadão comum
que começava a ter acesso a este tipo de cultura. Com a adesão
popular às revistas, fica claro uma mudança nas sensibilidades e
a formação de novas redes sociais derivadas deste consumo mo-
derno (Velloso, 2008). As revistas representaram uma renovação
imagética da imprensa e promoveram um diálogo entre a socie-
dade instruída e a iletrada. A cultura visual interferiu não só na
produção de significados decorrentes das novas leituras, como
também na composição de outros arranjos sociais.
A ilustração passa a ter uma função central para os “anún-
cios”. Os reclames eram marcados por desenhos e textos com
uma grande variedade de tipos. Muitos cartazes eram acoplados
em ruas movimentadas. Com a organização urbana, a oferta de
bens e serviços se multiplica, promovendo um crescimento do
comércio. Paris era a referência para a moda e a elegância nacio-
nal, o grande centro produtor de códigos culturais em geral. O
chapéu, por exemplo, se tornou artigo obrigatório no vestuário
de homens e mulheres. Mais de 1 milhão e 400 mil unidades

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50 cultura e imaginação publicitária

foram produzidas pela indústria chapeleira nacional em 1905.


Mas, segundo o vendedor Antonio Francisco Bandeira Junior,
os consumidores não podiam saber que o produto era feito no
país. “Se o comprador souber que o chapéu é nacional, embora
lhe custe 60% menos, não o quererá!” (Figura 2).

Figura 2: Anúncios de chapéu.

As revistas vieram renovar o campo dos anúncios, trazen-


do novos ares para a imprensa nacional. Com a importação de
máquinas e novas técnicas de impressão, o número de periódicos
ilustrados nas capitais aumenta consideravelmente na passagem
do século. Pequenas gráficas se transformam em empresas jorna-
lísticas, sendo responsáveis desde a produção à circulação das re-
vistas (Civita, 1990). Os periódicos ilustrados se tornam o maior
canal de consumo das referências parisienses retratadas através
da crônica social, da charge, sonetos e fotos de pessoas. Neste
sentido, quatro importantes revistas podem ser destacadas como
marcos da primeira década do século: O Malho, Fon-Fon, Care-
ta e O Tico-Tico.

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os anúncios nas revistas ilustradas 51

O Malho  aparece em 1902, especializada em ironizar os


fatos políticos. Entre seus caricaturistas famosos, estavam Ange-
lo Agostini e K. Lixto. Em 1905, surge a nossa primeira revista
infantil,  O Tico-Tico, que rapidamente conquistou o público
com o primeiro herói dos quadrinhos, o Juquinha, e seu aju-
dante, Giby, desenhados por J. Carlos. Uma larga galeria de
personagens, como Chiquinho, Lili, Zé Macaco também estive-
ram presentes em anúncios. A revista carioca Fon-Fon, lançada
em 1907, foi assim batizada por alusão à buzina do automó-
vel, símbolo de modernidade e desenvolvimento.  Fon-Fon  foi
idealizada pelo célebre escritor e crítico de arte Gonzaga Duarte
e teve na ilustração seu principal enfoque. A colaboração do
pintor Di Cavalcanti, em 1914, confirma essa faceta.  Care-
ta vem logo depois, em 1908. Impressa em papel couché, a revis-
ta tinha prestígio junto aos intelectuais e era caracterizada pelo
humor (Civita, 1990).
Nas revistas, os anúncios ganham cores e inspiração art-nou-
veau. Reclames como os do Moulin Rouge mostram a influência
deste estilo (Figura 3). Conhecidos caricaturistas, como Julião
Machado, Luiz Peixoto, K. Lixto, Vasco Lima, passam a dese-
nhar para anúncios. Aos poucos, as empresas começavam a se
preocupar com a fixação de suas marcas no imaginário do consu-
midor. Os poetas se tornam os precursores da função de redator
publicitário. Olavo Bilac, Casimiro de Abreu, Bastos Tigre, Her-
mes Fontes, Guimarães Passos, entre outros, refinaram o texto
dos anúncios muitas vezes como uma poesia popular e inteli-
gente (Ramos, 1990). O público considerava as rimas dos textos
uma forma de lembrar nomes e marcas. Casimiro de Abreu foi
o primeiro a usar seus versos nos anúncios, e para o Café Fama
escreveu “Ah! Venham fregueses! E venham depressa. Que aqui
não se prega. Nem logro, nem peça.” (Carrascoza e Hoff, 2009).

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52 cultura e imaginação publicitária

Figura 3: Anúncio com inspiração art-nouveau – Moulin Rouge.

Entre as grandes empresas que anunciavam nas revistas es-


tavam as marcas de águas minerais, como a Caxambu. A Salu-
taris usava muito a figura do avião em seus anúncios. A Caixa
Econômica também ocupava páginas inteiras para destacar seus
préstimos (Figura 4).

Figura 4: Anúncios das águas Caxambu e Salutaris, e da Caixa Econômica.

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os anúncios nas revistas ilustradas 53

Como o telefone ainda era um recurso precário, os serviços


dos Correios eram muito usados. Balanças para cartas eram enfa-
tizadas como artigo indispensável para escritórios. O mundo dos
anúncios também foi assolado pelo sucesso das lâminas Gillette,
oferecidas em “elegantes carteiras de metal oxidado e prateado,
acompanhadas de lâminas aperfeiçoadas”. As marcas de cerveja
se firmaram como importantes anunciantes. A Antarctica caiu no
gosto popular ao oferecer vários tipos de cerveja. Em 1901, a pro-
dução da cervejaria alcançou 3 milhões de litros. Na contramão,
os anúncios da  Brahma  realçavam as interações medicinais da
cerveja, como aumentar o leite das lactantes, com o slogan: “Dá
apetite, saúde e vigor. Alimento em fórmula líquida” (Figura 5).

Figura 5: Anúncios de balanças, da Gillette, da Antarctica e da Brahma.

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54 cultura e imaginação publicitária

Naquele início de século, começamos a jogar futebol, esporte


até então elitizado, trazido da Inglaterra por Charles Muller. Sen-
do assim, passamos a vender bolas. As comercializadas pela Casa
Fuchs rapidamente conquistaram sua fatia de mercado. Anúncios
de páginas inteiras, coloridos ou preto e branco, transformavam o
leitor em consumidor. As enormes tiragens das revistas começam
a organizar a propaganda como negócio, com maior número de
agenciadores de anúncios e a predição de uma estrutura empresa-
rial. Os preços aumentavam de tempos em tempos, consolidando
a primeira lei do mercado, a da oferta e da procura.

A alma do negócio

O clima ufanista da época fez com que os historiadores no-


meassem o período de  Belle Époque Brasileira  ou  Belle Époque
Tropical. O apreço e a imitação das vanguardas europeias se
prolongam e continuam a determinar as principais escolhas de
consumo da sociedade, ao fim da primeira década do século XX.
Pianos, automóveis, perfumes, carros de turismo são anunciados
nas páginas de revistas. Despontam, também, mercadorias vin-
das de navio da Europa e dos Estados Unidos – as importações
começam a gerar um lucrativo comércio.
Mas, nenhum produto divulgaria mais suas vantagens do que
os milagrosos remédios. Desde um “prodigioso depurativo vege-
tal” ao “reconstituinte enérgico e de gosto tal modo agradável que
as crianças o reclamam”, eles foram os campeões de anúncios em
jornais e revistas. A figura da mulher doente era o alvo deste tipo
de propaganda porque existia a ideia de que o sexo feminino, em
sua “fragilidade”, estava mais predisposto às doenças do que o
homem. No anúncio da revista Careta, de 2 de outubro de 1920,
uma mulher à frente de um espelho dizia como o Biotônico a ti-
nha deixado com mais disposição e mais bonita (Figura 6).

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os anúncios nas revistas ilustradas 55

Figura 6: Anúncio do Biotônico.

Não se admitia mulheres fumando em público, mas nos re-


clames era comum vê-las posando com um cigarro nas mãos. No
desenho do cigarro La Reine, uma mulher aparece elegantemente
vestida em estilo europeu, com um enorme chapéu, colar de pé-
rolas, echarpe volumosa, guarda-chuva fino em uma das mãos e
um cigarro na outra. Na parte debaixo da ilustração, vinha o slo-
gan: O cigarro chic!. A ideia era associar o consumo de cigarro com
um ideal de vida sofisticado, elitizado. Este anúncio foi veiculado
na revista Eu Sei Tudo, em 1919. Desde 1913, a indústria taba-
gista tinha aumentado muito sua produção de maços (Figura 7).

Figura 7: Anúncio do cigarro “chic”, La Reine.

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56 cultura e imaginação publicitária

A partir da fomentação do negócio da propaganda, do in-


cremento do mercado editorial e das transformações sociais vi-
venciadas naquele tempo, passamos a cristalizar a ideia de que
absolutamente tudo poderia ser posto à venda. Quanto mais a
sociedade se modificava, mais a vida urbana se tornava depen-
dente de artefatos materiais e serviços – produtos que em outros
tempos eram inimagináveis. Começamos a esboçar o nascimen-
to do que mais tarde viria a ser chamado de “sociedade do con-
sumo”. Os processos de industrialização e a ascensão de veículos
de comunicação invadem os estilos de vida desta coletividade
urbana em expansão, que ancora no fenômeno do consumo o
destino de boa parte de suas interações materiais e subjetivas.
Aproveitando-se do imenso espaço ocupado pelo consumo na
vida moderna, a narrativa publicitária cria mensagens que tradu-
zem a cultura e criam necessidades simbólicas. Os anúncios, que
até então funcionavam como meros reclames, espaços de veicu-
lação de informações estáticas, ainda que elogiosas, e pouco mais
que descritivas do produto, começam a perceber uma vocação
para ir muito além. A atividade publicitária é a difusão pública
de ideias, associadas ou não ao valor de uso de um produto,
que garante algo mais do que a mera satisfação propiciada por
sua funcionalidade. Jean Baudrillard (2007) elenca a publicida-
de como o reino preferido do pseudo-acontecimento, onde as
noções de verdade e mentira perdem o sentido. O autor enfati-
za ainda que a publicidade moderna nasce quando um anúncio
deixa de ser “anúncio espontâneo” e se torna uma “notícia fabri-
cada”. Por meio da realidade do signo, a verdade passa a existir.

Faz-se do objecto um pseudo-acontecimento que irá tornar-se o


acontecimento real da vida quotidiana através da adesão do consu-
midor ao seu discurso. Descobre-se que o verdadeiro e o falso são
aqui inapreensíveis – como igualmente acontece nas sondagens

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os anúncios nas revistas ilustradas 57

eleitorais, onde nunca se sabe se o voto real ratificará apenas as


sondagens (deixando de ser acontecimento real e surgindo unica-
mente como sucedâneo das sondagens que, de modelos de simula-
ção indiciosos, se tornaram agentes determinantes da realidade) ou
se são antes as sondagens que reflectem a opinião pública (Bau-
drillard, 2007: 167). 

A publicidade veiculada nas revistas começava a associar a


identidade do produto à identidade do consumidor. Através de
recursos metafóricos, mágicos, a publicidade cria signos ilusórios
que acabam traduzidos como experiência real ao serem incorpo-
rados, aprovados, usados, replicados por quem compra. Hoje,
a publicidade envolve uma série de atividades ligadas à propa-
gação comercial de um produto ou serviço e todas as áreas do
conhecimento humano acabam se apropriando deste modo de
comunicação.
Desta forma, as mensagens dos anúncios impressos nas re-
vistas ilustradas vão estimular códigos de conduta através das
simbologias atribuídas aos bens. A partir do começo dos anos
1920, multiplicam-se os confortos da vida moderna brasileira.
Geladeiras, enceradeiras, fogões a gás, chuveiros elétricos são ar-
tefatos introduzidos no ambiente doméstico. A publicidade vai
construir narrativas valorizando o prestígio e status que o consu-
mo destes bens representa socialmente e não apenas relatando
suas funções práticas. As mensagens vão incitar a realização abso-
luta, a busca da felicidade através da compra. Ao trabalhar com o
campo da persuasão, a narrativa publicitária tem a função de or-
ganizar signos que instigam conquistas ligadas a um determina-
do padrão social. Os objetos passam a ser componentes ativos na
relação com os sujeitos, impulsionando desejos contundentes,
determinantes para esta relação. O indivíduo contemporâneo já
não vive sem os seus suportes materiais, que são fundamentais

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58 cultura e imaginação publicitária

para a formação da sua subjetividade. Assim, o universo social


passa a se organizar de acordo com hábitos de consumo que vão
determinar os estilos de vida moderno-contemporâneos.

Na esfera do consumo homens e objetos adquirem sentido, pro-


duzem significações e distinções sociais. Pelo consumo, os objetos
diferenciam-se diferenciando, num mesmo gesto e por uma série
de operações classificatórias, os homens entre si. O consumo é, no
mundo burguês, o palco das diferenças. O que consumimos são
marcas. Objetos que fazem presença e/ou ausência de identidade,
visões de mundo, estilos de vida. Roupas, automóveis, bebidas,
cigarros, comidas, habitações, enfeites e objetos os mais diversos
não são consumidos de forma neutra. Eles trazem um universo de
distinções. São antropomorfizados para levarem a seus consumi-
dores as individualidades e universos simbólicos que a eles foram
atribuídos. No consumo o objeto se completa na sua vocação clas-
sificatória (Rocha, 1985: 67).

Classificando os sujeitos e organizando a esfera social, o con-


sumo caracteriza-se em grande parte pela exposição, exibição,
notoriedade. Para mostrar que estávamos inseridos em um mun-
do civilizado, era preciso comemorar em grande estilo o cen-
tenário da independência, em 1922. Mesmo com a economia
apresentando problemas graves, o presidente Epitácio Pessoa
não mediu esforços para isso e a população da capital começou
a se preparar para os festejos. Com a Primeira Guerra Mundial,
o clima de euforia da Belle Époque tinha sido deixado de lado e
o governo buscava estimular um sentimento de pertencimento
nacional. O prefeito do Rio de Janeiro Carlos Sampaio promove
o “plano de embelezamento do Rio” que muda a aparência da ci-
dade. O Hotel Glória é inaugurado anunciando um alto padrão
no setor hoteleiro (Figura 8).

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os anúncios nas revistas ilustradas 59

Figura 8: Anúncio do Hotel Glória.

A Exposição Internacional do Rio de Janeiro ratifica o pro-


gresso brasileiro.

(...) entendemos as exposições universais como meios de comu-


nicação de massa, próprios de suas épocas, que celebram a genia-
lidade industrial como processo comercial, ou seja, de consumo.
Assim, à luz dos estudos do consumo contemporâneo, percebemos
que o ajuntamento de pessoas nas grandes exposições universais do
século XIX proporcionou importantes mudanças na opinião públi-
ca a respeito dos países envolvidos e suas técnicas (Freitas, 2011).

Já no governo de Arthur Bernardes, a Semana de Arte Mo-


derna, em fevereiro de 1922, se torna um marco histórico da
composição da identidade brasileira e emergência de uma nova
disposição estética. Sob a liderança de Mário de Andrade,
Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, o movimento teve
um cunho político forte ao criticar e revolucionar os conceitos
vigentes na arte, no teatro, na pintura, na poesia e na música. A
repulsa ao modelo clássico de inspiração internacional propor-
cionou o que chamamos de Modernismo Brasileiro, incitando
a adoção de pilares artísticos genuinamente nacionais (Martins
Filho, 2011). As revistas tiveram importante papel no discurso

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60 cultura e imaginação publicitária

do modernismo, já que implantavam uma estética visual nova


para a imprensa da época, aglutinando “elementos da cultura art
nouveau com influências do futurismo, do surrealismo, do ro-
mantismo e do simbolismo”, como ressalta a historiadora Moni-
ca Velloso.2 Ainda assim, vamos encontrar em anúncios de anos
seguintes procedimentos poéticos rejeitados pelos modernistas,
como no epigrama da Camisaria Marvelo, publicado na revis-
ta O Cruzeiro, em 1930: “Neste apuro de elegância. Não existe
dissonância. Sou conquistado, sou belo. E toda a minha atração.
Confesso de coração. É o colarinho Marvelo!”. Ou mesmo nos
versos do creme dental Odol, de 1931 (Figura 9), também anun-
ciado nas páginas de O Cruzeiro: “Dentes que enfeitem o riso.
Com brilhos claros de sol. Pouco, para isto, é preciso: A Pasta e
o Líquido Odol.” (Carrascoza; Hoff, 2009).

Figura 9: Anúncio da Camisaria Marvelo e Odol.

2
Fluxo modernista teve facetas e locações distintas. Publicado no jornal O Globo
em 04/02/2012.

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os anúncios nas revistas ilustradas 61

Em 1924, o clima de liberdade e transgressão dos chamados


“anos loucos”, que romperam paradigmas culturais, se reflete
no anúncio da linha Reveillon, da Comp. Joalheira, publicado na
Revista da Semana (Figura 10). Este período marca o início do
processo de ascensão e liberdade da mulher na sociedade ociden-
tal. O direito ao voto feminino causava comoção e protestos em
alguns países do mundo, como a Inglaterra. O divórcio também
povoava o debate, embora no Brasil ele só viesse a ser consolida-
do décadas depois, no fim dos anos 1970. As saias ficaram mais
curtas, os cabelos foram cortados como no filme La Garçonne
(França, 1923), os olhos maçados de preto e os lábios vermelhos
formavam um desenho em forma de coração. Também o cigarro
como expressão de liberdade e afirmação da mulher frente ao
mundo masculino aparece em 1929 nos eventos norte-ameri-
canos, depois internacionalizados, conhecidos como Torches of
Freedom. Eles expressaram uma interessante junção entre os mo-
vimentos de emancipação da mulher e o ato de fumar em públi-
co como protesto pela opressão e forma de luta pela igualdade
com os homens. Uma curiosa parceria entre política libertária e
práticas de consumo que merece um estudo mais amplo.

Figura 10: Anúncio da Comp. Joalheira.

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62 cultura e imaginação publicitária

Ao longo deste processo, começam a aparecer também anún-


cios de remédios para emagrecer e cremes de beleza, com fór-
mulas de Paris. As revistas se firmavam no consumo da mulher
elitizada, por ser um veículo atualizado com as novidades inter-
nacionais. Ilustrações de mulheres sofisticadas, bem vestidas e
cheias de joias continuam a aparecer nas propagandas de meias
e perfumes. Os novos modelos de roupas femininas da  Parc
Royal  são divulgados em cenários de tênis ou turfe, esportes
considerados nobres. As vitrolas são outro símbolo de status da-
quele tempo (Figura 11).

Figura 11: Anúncios para a mulher elitizada.

A Victor Talking Machine Company, uma das primeiras gra-


vadoras dos Estados Unidos, escolhe as páginas da  Revista da
Semana para anunciar a “gravação e manufactura dos mundial-
mente afamados discos” no Brasil (Figura 12).

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os anúncios nas revistas ilustradas 63

Figura 12: Anúncio de discos.

Com as revistas, podemos ver que os anúncios nelas veicu-


lados eram o espaço da vanguarda. Através deles, a população
brasileira poderia ter acesso às novidades de cada período, além
de fazer a conexão com o que estava sendo produzido em outros
lugares do mundo. As revistas ilustradas das primeiras décadas
do século refletiram os movimentos iniciais de uma estratificação
da população brasileira pelo consumo de bens e acesso à infor-
mação diferenciada.

Considerações finais

Partindo da hipótese que a publicidade pode ser pensada


como parte do processo social de significação, observamos que
as narrativas dos anúncios não são apenas representativas, como
também ajudam a construir e elaborar os códigos culturais em
cada temporalidade percorrida. As revistas ilustradas trouxeram
uma nova forma de ver o mundo, já que se tornaram determi-
nantes na formação da opinião pública brasileira. Se, no início,
as revistas ainda disputavam espaço com os jornais impressos, no
momento seguinte, a partir das décadas de 1930 e 1940, elas se
consagram como mídia mais influente do país. 

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64 cultura e imaginação publicitária

Desta maneira, podemos considerar que o repertório publici-


tário deste formato consagrado no desenvolvimento da imprensa
nacional se estabelece como um valioso material informativo e
histórico. Os anúncios veiculados nas páginas das principais re-
vistas ilustradas tornam-se bons suportes para o entendimento
dos significados e experiências coletivas do início do século pas-
sado. Em especial, a presença da fotografia transformou a nossa
maneira de se relacionar com o mundo, estimulando uma comu-
nicação visual como objeto de consumo e valor cultural. Através
das narrativas destes anúncios, podemos verificar elementos que
traduzem os códigos sociais de uma identidade brasileira em for-
mação, o prognóstico de uma organização social em torno da
produção e do consumo, além de uma relação intimista com os
veículos de comunicação. Tais aspectos preconizaram a formação
de uma sociedade de massas no Brasil, o que viria a se concretizar
no período seguinte, a partir de 1930, com a expansão do rádio
e das revistas que mudaram o tom da imprensa no país, como a
histórica O Cruzeiro. 
Os significados dos bens materiais e mensagens midiáticas
são incorporados nas subjetividades, nas identidades sociais e
nas relações humanas através de sistemas simbólicos discrimi-
natórios (Rocha, 1985). A publicidade opera como uma bússola
para a navegação social, um dispositivo capaz de guardar uma
impressionante memória coletiva que nos permite interpretar o
imaginário cultural no qual vivemos e as práticas que através dele
experimentamos.

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os anúncios nas revistas ilustradas 65

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O dinheiro anunciado:
notas sobre a publicidade bancária no Brasil
Everardo Rocha
Bianca Dramali

Bancos, anúncios e contextos

Desejar é uma das condições do indivíduo moderno-contem-


porâneo, o consumo uma das instâncias onde se pode buscar a
concretização de alguns desses desejos. Esses desejos e suas vir-
tuais realizações são socialmente disponibilizados pela publici-
dade que, como narrativa do consumo, se utiliza de múltiplas
enunciações que afirmam ser esta ou aquela marca a condição de
possibilidade para transformar alguns desses sonhos imaginados
em realidade. Imaginar desejos e sonhos, inserir-se neles e, nessa
instância de fantasia realizá-los, é uma atividade básica de sus-
tentação do consumo moderno, o day-dream (Campbell, 2001),
uma espécie de sonho acordado.
Os bancos através da publicidade de suas marcas buscam
realizar sonhos a partir do acesso ao produto comercializado por
eles – o dinheiro – que, por sua vez, é uma chave que abre as
portas para o consumo de outros bens. Mas será que o simbolis-
mo da publicidade bancária seria regido pela razão prática e pela
lógica econômica inerente ao produto e que nos vem à mente tão
obviamente quando falamos de dinheiros e bancos? O quadro
econômico brasileiro, esse contexto mais amplo, torna especial-
mente interessante um trabalho sobre a publicidade do dinheiro,
os anúncios bancários. Vivemos hoje um dos períodos de maior
estabilidade econômica e monetária. Desde 1994, com o plano

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70 cultura e imaginação publicitária

Real, podemos considerar que contamos quase duas décadas de


estabilidade da moeda. Desde então os brasileiros podem planejar
os seus gastos, longe da inflação galopante que nos acompanhava,
e entram efetivamente na sociedade contemporânea de consumo.
Além disso, presenciamos também o aumento do volume
e da participação do investimento publicitário por parte dos
bancos. Do montante do investimento publicitário brasileiro,
o setor “mercado financeiro e seguros”, onde estão inseridos os
bancos, representou no primeiro semestre de 2010, quase 10
por cento. Um crescimento de um e meio por cento em relação
ao mesmo período do ano de 2009.1 A categoria “instituições
do mercado financeiro” passou de 8º em 20052 para 5º lugar
em 20083 no ranking de anunciantes no Brasil. Cabe ressaltar
que o crescimento do investimento publicitário pelo setor ban-
cário não só reflete o crescimento econômico nacional, como
participa desse processo. Outro dado relevante é que as marcas
dos bancos figuram entre as mais valiosas do Brasil. As maiores
marcas bancárias são Bradesco, Itaú e Banco do Brasil. Também
o crescimento da camada média da população brasileira, a dita
nova classe média, faz com que esse novo contingente popula-
cional busque cada vez mais o acesso aos serviços bancários. A
esse movimento de ampliação da base de clientes dos bancos é
dado o nome de “bancarização”. Todo esse contexto agrega rele-
vância a uma análise da publicidade dos bancos como forma de
investigar as dimensões culturais que incidem sobre o fenôme-
no da economia. É como o economista Fábio Sá Earp explica:

1
Almanaque IBOPE. Setores econômicos – 1º Semestre 2010. Data de Publi-
cação: 11/ago/2010.
2
Almanaque IBOPE. Categorias – 30 Maiores – 2006 – Ano. Data de Publica-
ção: 06/mar/2007.
3
Almanaque IBOPE. Categorias – 30 Maiores – 2008 – Ano. Data de Publica-
ção: 19/fev/2009.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 71

“O fenômeno monetário não pode ser analisado apenas com o


instrumental do que hoje se chama ciência econômica. A moeda
é a relação social essencial das sociedades mercantis, assim como
o parentesco o é nas sociedades ‘primitivas’” (Earp, 1993: 96).
Vamos examinar mais detidamente como a publicidade codifica
certos valores culturais que acabam por construir uma visão do
banco, seus significados e funções através de caminhos simbóli-
cos que muitas das vezes passam longe da perspectiva utilitária e
da lógica produtivista típica do dinheiro, produto que vendem e
razão de ser de sua existência.
Ao falar com a sociedade e da sociedade, a publicidade não
vende apenas produtos, mas vende o consumo como um modo
específico de estarmos no mundo. E isto não acontece apenas
pelo que costumamos chamar de publicidade, como anúncios
em mídia impressa ou filme em intervalo comercial de televisão.
Na verdade, inclui muito mais, pois além de anúncios, as pro-
moções, marcas, pontos de venda, embalagens e, de resto, uma
parte substancial das mensagens midiáticas que circulam através
da chamada cultura de massa também falam do consumo. O
que ocorre é que nos envolvemos, nos mais diversos momentos,
em um ambiente marcado pelas mídias, uma espécie de clima,
ecologia ou atmosfera midiatizada, no qual a narrativa publici-
tária é um dos mais fortes suportes e, portanto, uma presença
inevitável. Em certo sentido, é como se a experiência da vida
social acontecesse em um ambiente no qual “Não se pode evitar
rigorosamente a recepção de anúncios. Ela se impõe à revelia de
nossa vontade” (Rocha, 1985: 132). Estamos permanentemen-
te envolvidos no universo simbólico propiciado pelas narrativas
midiáticas que, de alguma forma, dialogam com as mensagens
publicitárias ou, no mínimo, reverberam o consumo como um
eixo ideológico central do nosso tempo. Todos são produtos da
chamada indústria cultural e, como tais, são produções simbó-

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72 cultura e imaginação publicitária

licas que viabilizam a manutenção de níveis de consumo neces-


sários para que o sistema capitalista se sustente. Assim, “a publi-
cidade, enquanto um sistema de ideias permanentemente posto
para circular no interior da ordem social, é um caminho para o
entendimento de modelos de relações, comportamentos e da ex-
pressão ideológica dessa sociedade” (Rocha, 1985: 29). Por isso,
trata-se de uma narrativa através da qual podemos analisar e bus-
car entender um pouco mais sobre a vida social e a teia de valores
culturais que engendramos e na qual estamos emaranhados.
Publicidade e consumo são temas centrais na vida moderno-
-contemporânea, e sua análise, portanto, cria um campo de estu-
dos que vem se consolidando como representativo e consistente na
busca por uma interpretação da nossa sociedade a partir de suas
representações e práticas. Podemos considerar que o consumo, en-
tendido como sistema cultural, é uma das perspectivas possíveis, e
mesmo extremamente adequada, para entender a sociedade con-
temporânea, no mínimo pelo fato de ser o fenômeno que nomeia
nosso modo de vida como “sociedade de consumo” (Baudrillard,
2008). A publicidade, como narrativa do consumo, seria:
(...) mais que uma técnica mercadológica apenas e dispõe de mar-
gem de autonomia, sendo irredutível a uma interpretação estrita-
mente econômica. (...) Uma interpretação da publicidade é neces-
sária porque sua existência e eficácia se relacionam ao fato de que
ela, idealizando a vida sempre no mesmo sentido, se torna espelho
onde se reflete um projeto social (Rocha, 1985: 59-60).

Assim, os anúncios operam como espaços básicos de produ-


ção de sentido na vida social. Por isso, é coerente uma interpreta-
ção da publicidade como caminho para uma leitura da sociedade
moderno-contemporânea, dos valores que a regem e, no caso
desse trabalho, de como ela imagina, simboliza, experimenta e
“anuncia” algo tão essencial quanto o dinheiro e os bancos que
existem para vendê-lo.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 73

Narrativas publicitárias e realidades econômicas

Os anúncios publicitários podem ser considerados uma face


visível dos trânsitos do capital ou mesmo uma das principais
formas através das quais o capital se expressa em curiosas e di-
versificadas narrativas. Num estudo sobre os valores presentes na
publicidade brasileira relacionados aos momentos econômicos,
desde os anos 1950 até os 1990, Mota Rocha (2010: 40) explica
que “o discurso publicitário reproduz a diversidade de valores e
visões de mundo que caracteriza as sociedades complexas, não
sendo possível, por isso, reduzi-lo a uma única tendência”. De
fato, apesar de não haver possibilidade de reduzir o discurso pu-
blicitário a uma única tendência, podemos, no caso dos anún-
cios dos bancos, identificar algumas recorrências marcadamente
presentes nas narrativas publicitárias em determinados momen-
tos históricos brasileiros, como veremos a seguir.
Nos anos de 1950, é a ideia desenvolvimentista e de pro-
gresso do Brasil o que sustenta a ideologia dominante no gover-
no JK (Cardoso, 1978). Esse processo já havia se iniciado nos
anos de 1930, com Getúlio Vargas, e se estende até parte do
regime militar – no final da década de 1960 –, onde o conceito
de industrialização associa-se à prosperidade e à formação da
nacionalidade, que lança o Brasil numa corrida pelo progresso.
Assim, teríamos uma nação onde o bem-estar deveria ser pro-
porcionado, a partir do consumo, para todos numa lógica de
crescimento econômico inclusiva, apoiada por um projeto so-
cial. Empresas buscavam associar suas imagens ao progresso e aos
interesses nacionais, buscando incorporar-se ao ideário social de
nacional-desenvolvimentismo.
Na publicidade, até a década de 1960, o que prevalecia como
valor e principal característica dos produtos divulgados era o seu
valor de uso, a sua utilidade – para o que serviam – destacando-

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74 cultura e imaginação publicitária

-se os seus atributos funcionais, numa espécie de pedagogia para


o consumo. A partir do final dos anos 1960 até os anos 1980,
muda a relação da sociedade com os bens. Usos e funcionalida-
des, como conforto e utilidade, perdem destaque nas narrativas
publicitárias, dando espaço aos bens apresentados como sím-
bolos, acessórios necessários à distinção social e à satisfação de
aspirações individuais coletivamente cobiçadas. Os valores que
ganham destaque são: status, distinção, prestígio, hierarquia e
tecnologia, associada à ideia de moderno. Interesses materiais e
individualistas ganham projeção. Os bens industrializados ga-
nham posição central na vida social, numa espécie de fascínio,
adquirindo mais importância que valores antes estabelecidos e
predominantes, tais como trabalho árduo, família amorosa ou
até mesmo o projeto de construção nacional. Tais bens ganham
uma aura simbólica capaz de ser magicamente transferida para
os consumidores, dando novo sentido ao conceito de sucesso.
A vida plena – o viver bem – era representada por uma corri-
da por esse novo sucesso, sinônimo de dinheiro e poder. Va-
lores demonstrados e concretizados pela posse e uso de bens e
serviços restritos a poucos, destinados apenas aos escolhidos.
Em certo sentido, aqui parece que passamos da lógica nacional-
-desenvolvimentista para uma lógica hedonista, e as narrativas
publicitárias passam a focar, principalmente, o prazer indivi-
dual. Produtos e serviços surgem como condição necessária e
suficiente para a felicidade.
Durante a crise econômica que assolou o país nos anos de
1980, ganha espaço no discurso publicitário a relação de custo-
-benefício, já que o consumidor não parecia nem muito disposto
– nem ao menos capaz, na maior parte das vezes – de desembol-
sar mais para bancar o prestígio de uma dada marca. Palavras e
referências ao termo “economia” eram cada vez mais frequentes
nas narrativas publicitárias. São retomadas as esferas da funcio-

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 75

nalidade, utilidade e características objetivas dos produtos e ser-


viços, tão utilizadas como recursos nas mensagens publicitárias
da década de 1960.
Entre os anos de 1980 e 1990, a descrença, o pessimismo e
a frustração eram sentimentos presentes na sociedade brasileira
após os fracassos dos planos econômicos, como o plano Cruzado,
o plano Bresser e o plano Verão, que prometiam acabar com a in-
flação, retomar o desenvolvimento e o progresso nacionais, reavi-
vando uma certa utopia de que o bem-estar social seria alcançado
pelo desenvolvimento industrial do país, como já ocorrera no
passado (Cardoso, 1978). Com isso, tudo que evidenciava uma
intensa relação com o capital, como a narrativa publicitária dos
bancos por exemplo, sofre uma crise de credibilidade.

A retórica do grande capital transformou-se nessa direção, para


fazer face ao descontentamento de uma parte crescente da popula-
ção, inclusive da própria classe média alta, chamada a pagar parte
dos custos de uma modernização que reproduziu a violência, de-
gradou o meio ambiente, erodiu a sociabilidade e falhou em dar à
vida algum sentido transcendente (Mota Rocha, 2010: 204).

Nesse contexto, já no final da década de 1980, podemos


observar uma transição para apelos publicitários que recorrem
a conceitos como qualidade de vida e responsabilidade social,
que surgem como valores que buscam reinventar o otimismo,
combatendo a desconfiança. Era hora do assim chamado grande
capital retomar e reconstruir a sua reputação junto à sociedade, a
fim de restaurar a sua boa imagem como provedor de bem-estar.
E não apenas bem-estar individual, insuficiente para elevar a re-
putação das empresas, mas também social. O valor qualidade de
vida passa a ser representado, mais pela forma como o uso do
tempo, do espaço e das relações sociais ou afetivas poderia ser
otimizado pelo capital e os produtos e serviços por ele concebi-

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76 cultura e imaginação publicitária

dos e anunciados, do que pela via tradicional de ostentação de


poder e riqueza propriamente ditas. Tempo, espaço e relações
socioafetivas, eventualmente escassos na vida contemporânea,
passam a ser traduzidos como novas representações da riqueza.
Mais recentemente, após o sucesso do plano Real, implanta-
do efetivamente como moeda em 1994, e com o controle rigoro-
so da inflação, o crescimento econômico precisava ser novamente
retomado, “não mais à maneira dos militares, como um fim em si,
mas como um meio para se alcançar a ‘qualidade de vida’ propor-
cionada por um capital ‘socialmente responsável’” (Mota Rocha,
2010: 134). Diante desse contexto, representações que remetam
ao desenvolvimento e ao crescimento – tanto do país quando dos
indivíduos – tornam-se mais frequentes em alguns anúncios dos
últimos anos da década de 1990, permanecendo até hoje.
A chamada “cultura da inflação”, em certo sentido, embebeu
as relações sociais no Brasil, simbolizando algo como um desca-
so institucional. Assim, criar e consolidar uma moeda estável,
operando como referência sólida no Brasil, foi uma conquista
importante. Os números que mostram o quanto era dramático o
cenário econômico anterior, e que inevitavelmente atingia nossa
vida cotidiana, são impressionantes. De 1979 a 1994 passamos
por seis planos econômicos, tivemos 13 ministros da Fazenda e
uma inflação acumulada de 13.342.346.717.617,70% (Leitão,
2011). De julho de 1994 até maio de 2011, o cenário é outro:
não passamos por mais nenhum plano econômico, mantivemos
o Real como moeda desde então, tivemos apenas cinco ministros
da Fazenda e uma inflação acumulada de 286,63%.4
Mas, mesmo antes da crise inflacionária ter atingido índices
altíssimos na década de 1980, o processo já vinha se construindo
desde muito tempo. O dinheiro deixa de ser um valor estável no
4
Real completa 17 anos com 286% de inflação acumulada. Publicado em www.
globo.com.br em 02/07/2011.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 77

Brasil quando em 1942 passamos por nossa primeira troca de


moeda e só paramos de mudar em 1994. De fato, no período co-
lonial tínhamos uma moeda, o “Real”, conhecida popularmente
como “Réis”. Seu símbolo era “R” e vigorou até 07/10/1833,
quando, no Segundo Império, passou a ser denominada “Mil
Réis”. Durou quase 110 anos, sendo substituída em 1942 pelo
“Cruzeiro”, cujo símbolo era “Cr$”. Nessa troca foram retirados
três zeros da moeda anterior. O “Cruzeiro” durou cerca de 25
anos, entre 1942 e 1967. Por conta da inflação do período e do
poder de compra diminuído, a moeda se transforma em “Cru-
zeiro Novo” (NCr$), são retirados mais três zeros e sua duração
é efêmera, indo apenas até 1970. Neste ano, volta ao seu antigo
símbolo, “Cr$”, e denominação, “Cruzeiro”, permanecendo as-
sim até 1986. Em 28 de fevereiro daquele ano, uma tentativa de
controle inflacionário que se chamou plano “Cruzado”, retira três
zeros da moeda e altera seu nome para “Cruzado” (Cz$). Essa nova
moeda dura menos de três anos e, em janeiro de 1989, outro pla-
no econômico, agora denominado “Verão”, congela preços, corta
mais uma vez três zeros da moeda e a renomeia como “Cruzado
Novo”, com o símbolo “NCz$”. Essa moeda dura pouco mais de
um ano e, em março de 1990, o então presidente Collor bloqueia
as aplicações financeiras e a moeda volta a ser denominada “Cru-
zeiro” (Cr$). Em agosto de 1993, a moeda fica sem três zeros no-
vamente e vira “Cruzeiro Real”. Nos 11 meses de sua existência,
o “Cruzeiro Real”, cujo símbolo era “CR$”, acumulou taxas de
inflação extremamente altas. Finalmente, em julho de 1994, no
governo Itamar Franco é criado o “Real” (R$), que permanece até
hoje. Antes de sua entrada em circulação, vigorou uma unidade
de conta, não de troca, chamada URV (Unidade Real de Valor)
com variação diária. A economia era estimulada a usá-la como
referência. Quando a URV chegou a 2.750 “Cruzeiros Reais”, a
nova moeda, “Real”, entrou em vigor.

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78 cultura e imaginação publicitária

Mais que um evento restrito ao campo econômico, a inflação


pode ser percebida como fenômeno sociocultural que deve ser
objeto de uma perspectiva multidisciplinar (Vieira et alii.,1993)
pelo fato de possuir diversas implicações sobre a sociedade e a
cultura, sobre o cotidiano dos cidadãos e sobre os hábitos de
cada um de nós. Depois de ter experimentado sucessivos fracas-
sos no combate à inflação, foi possível avaliar como tal fenôme-
no pode gerar tamanha perturbação na vida privada. E como
sua solução também passaria, dentre outros fatores, pela mu-
dança em relação aos aspectos culturais que impactam o valor
monetário. Sentimentos e reações como instabilidade, incerte-
zas, desconfiança, desorganização, descrença nas regras formais
e sociabilidades abaladas são apenas alguns dos sintomas sociais
relacionados com o fenômeno inflacionário que se perpetuou na
sociedade brasileira por tantos anos.
Isso efetivamente afeta a forma da sociedade brasileira perce-
ber o dinheiro e os bancos, que durante todos esses anos tiveram
desde o papel pedagógico de ensinar a usar “os novos dinheiros”,
passando ao de vilões nos períodos de especulação financeira e
hiperinflação, para buscar um lugar de provedores de bem-estar,
tanto coletivo quanto individual, em um período de estabilida-
de econômica. As narrativas publicitárias tiveram que lidar com
esses vários papéis que a instituição bancária assumia em dife-
rentes contextos. Nos dias atuais, pretendem, também, colocar
os bancos como guias que nos localizam e ajudam no contexto
dessa nova sociedade digital, complexa, onde tudo é tão veloz
e grandioso, mas onde há sempre um banco humanizado que
vai simplificar a vida, realizar sonhos e conceder a você as novas
riquezas sociais. A ideia central passa a ser: mais tempo para você
e sua família, com qualidade de vida e um mundo melhor. E
o dinheiro? Esse fica praticamente invisível nas narrativas mais
recentes da publicidade bancária.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 79

Esses inconstantes momentos da economia, as experiências


cotidianas deles derivada, os diferentes impactos na vida social e
os valores culturais que engendraram, vão se refletir na narrativa
publicitária dos bancos. Os anúncios objetivaram, em cada mo-
mento, envolver os bancos em um universo simbólico adequado
para atingir o sucesso e alavancar as vendas e, como de resto é a
razão de ser da publicidade, garantir o devido lugar no imaginá-
rio e nas práticas de consumo. É a lógica e a magia desse processo
nos anúncios dos bancos que vamos examinar a seguir.

Os anúncios e seus bancos

Uma vez que o sentido está menos na essência do que na re-


lação entre os termos, cabe destacar que a classificação dos anún-
cios publicitários analisados levou em consideração as relações
entre eles, privilegiando o conjunto como forma de distinguir
as semelhanças e as diferenças que apresentavam. Além disso,
foram levados em conta os diversos momentos históricos nos
quais os anúncios foram criados, colocados no circuito midiá-
tico e consumidos pelo público, para identificar também nesses
contextos o sentido das mensagens. Também foi considerada na
classificação quem é o anunciante e os públicos aos quais se di-
rige. A classificação desenvolvida busca evidenciar os valores que
ganham maior destaque nas narrativas publicitárias dos servi-
ços bancários, agrupando os anúncios de acordo com a maior
ou menor incidência desses valores e representações. É evidente
que classificar determinado anúncio em uma ou outra categoria
não é algo absoluto, e que não faz o anúncio ser exclusivamente
pertinente àquela categoria. Na realidade, o que a alocação nas
categorias permite é, sobretudo, identificar o viés predominante
em cada anúncio e não a inexistência de alguns elementos relati-
vos à outra categoria.

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80 cultura e imaginação publicitária

É claro que essa classificação dos anúncios publicitários não


é exclusiva dos bancos e pode também ser pensada para as narra-
tivas publicitárias de outros produtos e serviços. Porém, chama
atenção a intensidade com que estão presentes na publicidade
bancária que, pelo senso comum e pelo tipo de produto – o di-
nheiro –, deveria apresentar uma comunicação publicitária mais
sóbria e racional. De um banco não se esperaria um anúncio
que se aproxime do lirismo, possua um tom de protesto ou in-
cite a um movimento mobilizador, no limite, revolucionário,
de transformar o mundo. Muito menos que nos mobilize para
falar de diversas mudanças, inclusive do próprio banco, como
é proposto, por exemplo, em campanha do banco Itaú, como
veremos. Os anúncios indicam que as marcas dos bancos pre-
tendem estar presentes, cada dia mais, na vida dos consumido-
res, construindo uma relação de confiança com seu público, sem
precisar nem mesmo falar sobre os seus produtos ou serviços.
Assim, os anúncios dos bancos podem, via de regra, ser clas-
sificados em três grandes categorias que denominamos – “o ban-
co fala de si”; “o banco e a vida cotidiana”; “o banco e o outro”.
As narrativas publicitárias – imagens e/ou textos – expressam
os significados dos bancos através de características presentes
nessas categorias e que podem aparecer tanto isoladas quanto
misturadas ou, ainda, diferencialmente acentuadas nos anúncios
concretos. De uma forma ou de outra, com mais ou menos ên-
fase, essas características permitem a classificação dos anúncios
dos bancos nas categorias acima que acabam por representar as
possibilidades básicas de arranjo dos valores entre as quais flutua
a publicidade bancária. O ponto a ser destacado é que trata-se
de fato de uma flutuação, uma questão de ênfase pois, podemos
ter um anúncio no qual a categoria dominante é, por exemplo,
“o banco fala de si” e nele também aparecerem elementos das
categorias “o banco e a vida cotidiana” ou “o banco e o outro”.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 81

Vamos conhecer cada uma dessas categorias e suas características


um pouco mais detidamente.
Os anúncios da categoria “o banco fala de si” são aqueles nos
quais a ênfase é dada em características como a apresentação da
instituição bancária e seus serviços; um “tom” predominante-
mente informativo; o foco, por vezes, na relação entre o banco
e o progresso econômico do país; uma abordagem que busca
mais “racionalidade”. São anúncios que tendem para ser mais
“explicativos”, no limite quase “pedagógicos”, e também mais
“racionais” nas narrativas sobre o banco e seus produtos. Por
isso, alguns anúncios dessa categoria estão entre os mais antigos
existentes sobre bancos. Eles também coincidem com o início
da própria publicidade profissional no Brasil, cuja narrativa era,
muitas vezes, voltada para uma “explicação” ao consumidor que
não conhecia ou era pouco afeito ao produto ou serviço.
Uma segunda categoria é aquela formada pelos anúncios nos
quais é enfatizado “o banco e a vida cotidiana”. Suas característi-
cas principais são o fato de colocar o banco como algo atuante e
presente em nossa vida cotidiana; como um serviço que acompa-
nha e apoia nossos vários momentos especiais e rituais – pedido
de casamento, nascimento de filhos, estudos, formaturas, início
da vida profissional, entre outros – até a conquista e realização
de um sonho de consumo – casa, carro, eletrodomésticos, com-
putadores, viagens e que tais; outra característica central dessa
categoria é fazer com que os bancos se apresentem como chaves
do consumo de todo e qualquer bem, realizando os desejos, as
boas emoções e a felicidade através de seu principal “produto”, o
dinheiro. Também nessa categoria, os anúncios procuram fazer
o banco presente em nossa vida cotidiana através do tema tecno-
logia, como solução que facilita a nossa vida, traz sucesso e nos
faz ganhar tempo.

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82 cultura e imaginação publicitária

Na terceira categoria “o banco e o outro”, as características


que se destacam nos anúncios são: a ênfase em valores como
qualidade de vida, sustentabilidade, ecologia ou responsabilida-
de social. São anúncios nos quais, ora os clientes, ora os próprios
funcionários dos bancos, se tornam protagonistas da narrativa
publicitária de maneira direta e central, mostrando o quanto,
uns e outros, são beneficiados e felizes por fazer parte daquele
processo e daquela instituição.
A primeira categoria, “o banco fala de si”, é aquela à qual
pertencem anúncios que atravessam a maior parte da história da
publicidade bancária. São muito recorrentes, quase uma cons-
tante por um longo período que vai dos primeiros anúncios dos
bancos no início do século XX até, aproximadamente, os anos
1960. Entretanto “falar de si” não se restringe, obviamente, a
esse período apenas e reaparece em diversos anúncios bastante
recentes. Nessa categoria, como dissemos, predomina a infor-
mação que busca demonstrar credibilidade e solidez das insti-
tuições bancárias. Assim, os anúncios falam do capital do banco,
de seus endereços, dos serviços disponíveis, dos nomes das pes-
soas responsáveis pela instituição, das taxas de juros praticadas,
e apresentam, por vezes, breves explicações sobre como proceder
em relação a determinados serviços oferecidos. São anúncios de
estilo sério, sóbrio, didático e informativo.
Os serviços bancários no Brasil se popularizam mais com a
consolidação da urbanização, do progresso e do desenvolvimen-
to nacionais, o que se intensifica entre os anos de 1940 e 1960. A
disseminação dos serviços bancários acontece também em razão
do processo de trocas de moeda que se inicia em 1942 com a
entrada do “Cruzeiro” em substituição ao “Mil Réis”. Uma das
peças mais emblemáticas para essa categoria é a que retrata a sede
da Caixa Econômica Federal ao lado do convite “Deposite suas
economias na Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro”. Esse

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 83

anúncio é veiculado na revista O Cruzeiro perto do Natal, em 26


de dezembro de 1942. Nele, além do endereço da sede da Caixa
Econômica Federal do Rio de Janeiro na Rua 13 de Maio n° 33
a 35, existem informações muito precisas – técnicas, didáticas,
racionais – tais como:
Saldo de depósitos em 30 de junho último: 1 bilhão e 60 milhões
de Cruzeiros.
Depósitos garantidos pelo Governo Federal que responde por eles
(Dec. 24.427, de 19-6-34. Art. 1).
Juros de 4 1/5 a.a., capitalizados semestralmente.
Os depósitos populares até Cr$ 20.000,00 (vinte contos de réis)
não poderão ser penhorados (Dec. Citado, art. 55).

O tamanho exagerado da fonte com que é escrito o nome da


instituição bancária reflete a função desta peça publicitária: “o
banco fala de si”. A grandiosidade da ilustração do prédio-sede
busca, mais uma vez, mostrar a solidez do banco. Esse anúncio
pode ser um modelo tanto do conteúdo quanto do padrão grá-
fico de tantas outras veiculações presentes na publicidade ban-
cária brasileira desde a década de 1920 até, aproximadamente, a
década de 1960. No anúncio, a única imagem presente é a do
prédio da sede da Caixa no Rio de Janeiro e as informações do
saldo total de depósitos que, por mais estranho que pareça hoje,
era corriqueiro nos anúncios bancários da época, assim como
os juros pagos e a garantia dada ao investimento pelo Governo
Federal. Até aqui, ao que parece, a publicidade bancária refletia
a estabilidade monetária presente no Brasil – com o Mil-Réis
– ao buscar demonstrar a solidez de suas instituições a partir
de diversos símbolos, como prédios próprios, nomes de sócios e
diretores, capital, entre outras informações quase que “técnicas”.
Quando se iniciam as incertezas econômicas com a primei-
ra mudança monetária em 1942, temos os bancos apoiando a
sociedade em sua nova relação com o dinheiro. Aos bancos, a

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84 cultura e imaginação publicitária

partir desse momento, é dada a oportunidade de se colocar efe-


tivamente como prestador de serviços para uma parcela maior
da população. Com a troca da moeda, contar com assessoria dos
bancos poderia ser o caminho racional para lidar com o “novo
dinheiro”. Nesse processo, surgem comparações entre os serviços
bancários e o “dinheiro vivo”. Estava em marcha uma mudança
cultural na relação com o dinheiro, que deveria atingir um pú-
blico mais amplo, para tornar-se algo com mais “plasticidade”,
revezando com outros meios de pagamento nas práticas cotidia-
nas. Um anúncio exemplar nessa linha é do Banco do Estado
da Guanabara veiculado também na revista O Cruzeiro de 25
de março de 1967 e que traz em meia página a imagem de uma
mão segurando várias folhas de cheque misturadas com cédulas.
E, logo abaixo, segue a frase que resume a intenção do anúncio:
“Tão bom quanto dinheiro vivo”. Na outra metade da página há
um texto explicando porque o cheque verde, nome do produto
bancário oferecido pelo Banco do Estado da Guanabara, pode ser
comparado a dinheiro. Um dos principais motivos apresentado é
de que o banco é um dos mais sólidos do país.
Em certo sentido, esse tipo de anúncio bancário marca uma
importante passagem de uma percepção mais concreta do di-
nheiro para uma mais abstrata. Por isso, a ideia de que uma outra
coisa, no caso o cheque, é idêntica ao “dinheiro vivo”. Passava-
-se a trabalhar a representação do dinheiro, através de produtos
como o cheque que oferecia a segurança do dinheiro vivo, popu-
larizando a disseminação dos serviços dos bancos. Isso num con-
texto em que até mesmo o valor do dinheiro vivo era colocado
em questão, quando o país, em 1967, já passava por sua segunda
mudança de moeda. Nos dias atuais, apesar da intensificação do
aspecto emocional na narrativa publicitária dos serviços bancá-
rios, frases como “a melhor relação custo-benefício pra você”,
presente em uma campanha do Itaú em 2008, demonstram que,

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 85

quando falam de si, continuam recorrendo algumas vezes ao tom


racional na comunicação.
Uma outra forma que as instituições bancárias costumam fa-
lar de si refere-se à participação que elas têm no desenvolvimento
e progresso do país. Este tom de falar de si mesmo ainda é bas-
tante recorrente hoje em dia. Se o banco não precisa mais falar
de si no sentido de garantir sua solidez ou explicar coisas como
o cheque, continua falando de si quando se trata de anunciar
o quanto contribui para o país em vários planos, entre os quais
se destacam as ditas contribuições ao esporte e ao que chamam
cultura. Algumas marcas do setor bancário apropriam-se também
de um estilo nacionalista, falando de como contribuem para, por
exemplo, o desenvolvimento e o crescimento econômico do país.
Uma outra categoria central na narrativa publicitária dos
bancos é a que chamamos de “o banco e a vida cotidiana”. O
filme Vitrola do Bamerindus, famoso na época de sua veiculação,
em 1997 (Silva, 2012), é uma peça publicitária que representa
extremamente bem esta intervenção do banco na vida cotidiana,
ao viabilizar nossos projetos de compra de bens de consumo. O
filme Vitrola expressa que a felicidade de conquistar o sonho do
futuro poderá ser vivida agora através do consumo não do bem
em si, mas de um produto diferente: um título de capitalização
do banco. Os seus sonhos não precisam esperar. Podem ser rea-
lizados imediatamente. O banco entra na vida cotidiana, fala de
desejos e sua realização relaciona-se com outros bens, possivel-
mente, encaixados no universo do seu público e oferece o pro-
duto que tem – dinheiro – como o viabilizador desse day-dream
(Campbell, 2001) do consumidor.
Um bom exemplo disso é uma campanha do Banco do
Brasil, veiculada na televisão em agosto de 2010, na qual são
realizados sonhos que vão além dos bens de consumo propria-
mente ditos. Num dos filmes da campanha, uma mãe saudosa

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86 cultura e imaginação publicitária

de seu filho distante emociona-se quando o vê na tela de um


computador que acabou de ganhar. Na cena do comercial vemos
o sonho da mãe realizado, porque consegue falar com seu filho
que está morando longe de casa. Tudo isso porque o filho a pre-
senteou com um computador que viabiliza essa comunicação.
Ele, é claro, consegue comprar o computador e realizar o sonho
da mãe porque “o Banco do Brasil dá até 180 dias para começar
a pagar”. A felicidade de mãe e filho é sustentada pela voz em off
que afirma: “Com o crédito do Banco do Brasil você realiza os
seus sonhos agora”. Outra situação interessante é a que mostra
a presença do banco na vida do consumidor através de uma in-
tensa participação em rituais importantes e momentos especiais.
Um bom exemplo é um anúncio do banco Itaú, veiculado no
jornal O Estado de S. Paulo em 2009, no qual vemos um jovem
casal finalizando a decoração do quarto do bebê que ainda está
para nascer. Mas que, como nos diz o texto do anúncio, “já tinha
o futuro garantido antes mesmo de nascer”. Tudo isso porque
seus pais fizeram um investimento no Itaú.
Nos últimos 10 anos, presenciamos um significativo au-
mento de propagandas bancárias voltadas ao oferecimento de
crédito. Isso tem muito a ver com o momento de estabilidade
monetária e econômica que estamos vivendo, onde o consumo
é fomentado e incentivado pela concessão de linhas de crédito e
empréstimos disponibilizados pelas instituições bancárias. Com
a legislação que permitiu o desconto direto de empréstimos ban-
cários tanto nos salários quanto nas aposentadorias – o chama-
do “crédito consignado” –, os bancos, com uma margem muito
maior de garantia do pagamento, ampliaram significativamente
seus anúncios neste sentido, uma vez que entre os produtos de
qualquer banco, poucos podem ser melhores negócios do que
o empréstimo, a venda direta do dinheiro. Pelo empréstimo, o
consumo dos serviços bancários viabiliza o acesso ao consumo

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 87

de bens e mercadorias mais diversas. O crédito é concretamente


balizado pela renda de cada indivíduo, mas simbolicamente tem
o tamanho do desejo de cada um e realiza todos os sonhos ela-
borados nos anúncios.
Uma terceira categoria definida nesse trabalho é a que cha-
mamos de “o banco e o outro”. Nessa categoria, encontram-se
anúncios publicitários que, ora enfatizam os benefícios que o
banco oferece para um “outro” abstrato – como responsabilida-
de social, ecologia, sustentabilidade ou qualidade de vida –, ora
falam da felicidade que trazem para “outros” muito concretos
em anúncios que incluem o bem-estar do cliente ou de seus fun-
cionários em suas narrativas. Assim, podemos considerar que,
quando o banco fala com o “outro” nesta classificação, este “ou-
tro” pode ser representado pelos clientes ou funcionários, pela
sociedade ou, até mesmo, pelo próprio planeta.
As narrativas desses anúncios, via de regra, trazem os sorrisos
de clientes felizes, confiantes e satisfeitos com o que o banco
lhes proporciona ou uma inacreditável alegria de seus funcioná-
rios que dançam, cantam, brincam descontraídos em um êxtase
de prazer atrás de suas caixas e balcões. O “clima” de uns e de
outros nos anúncios indica que, para clientes e funcionários, um
banco é quase uma atividade de lazer e entretenimento em meio
a cafezinho, água gelada e salas especiais. Todos são parceiros,
cooperativos, seguros, exalando alegria e afeto como parte de um
processo de produção da confiança, da felicidade e do bem viver.
O banco Santander, por exemplo, veiculou em televisão no ano
de 2010 um filme que inicia com uma pergunta que convida à
reflexão de todos: “Qual a moeda mais valiosa do mundo?”. No
restante do filme publicitário, as cenas são de pessoas que teste-
munham a relação de confiança, amor e cooperação que há entre
o Santander, seus clientes e funcionários.

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88 cultura e imaginação publicitária

Por outro lado, quando o banco pretende falar de um “ou-


tro” abstrato e mostrar como contribui para melhores condições
da vida coletiva ou o cuidado que tem com o ser humano, a
sociedade e o planeta, os temas são sustentabilidade, responsa-
bilidade social, equilíbrio ecológico, preocupações difusas com
a qualidade de vida. Existem até mesmo anúncios que falam
de compromissos “politicamente corretos” e conselhos de estilo
“moral” como em uma campanha de 1982 do banco Itaú que
chegou a afirmar que “dinheiro não é tudo na vida. Mesmo na
vida de um banco”.
Uma das campanhas recentes do mesmo banco nos ensina
que “o mundo muda e que o Itaú muda com você”. Um dos
filmes dessa campanha chega a apresentar um discurso moralista
acerca do consumismo. Curioso notar como um banco, provedor
de dinheiro e fomentador do consumo através da concessão cada
vez mais expandida tanto de crédito quanto de sonhos, apresenta
um discurso contrário ao que chama de “consumismo sem limi-
tes”. O filme, veiculado na televisão em 2010, começa com a fra-
se: “Qual o papel de um banco numa sociedade de consumo que
está descobrindo que o consumismo sem limites não vai levar a
nada?”. E, mais adiante, a mesma voz em off volta a perguntar:
“Como orientar as pessoas a usar o dinheiro conscientemente?”.
As imagens que acompanham essas profundas especulações pu-
blicitárias são de pessoas andando nas ruas, crianças brincando,
senhores cantando. Algumas outras reflexões desse teor são tra-
zidas pelo anúncio: “Como pensar em previdência num tempo
em que as pessoas vão viver mais, e em aposentadoria quando
as pessoas não querem parar nem quando se aposentam?”. Para
completar, no final do filme, temos a grande conclusão de cunho
filosófico-publicitário: “Quando a sociedade e o mundo estão fa-
zendo novas perguntas, é preciso pensar em novas respostas”. As
novas respostas, como não poderia deixar de ser, são dadas pelo

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 89

banco, pois “o mundo muda, e o Itaú muda com você”, conclui


a voz em off. Um outro filme, também de 2010 e da mesma
campanha, traz várias afirmativas acerca das mudanças ocorridas
nos últimos anos. A locução começa afirmando “o mundo mu-
dou”, acompanhada da imagem do globo terrestre. Em seguida,
uma sucessão de imagens da mudança: pessoas sorrindo no es-
critório e o texto “os homens de negócios mudaram”; avó e neto
brincando com um tablet e o texto “envelhecer mudou”; três
meninos – um brasileiro, um indiano e um chinês – correndo
em um parque e o locutor em off dizendo “as potências mundiais
mudaram”. De fato, o mundo muda e o banco muda com você,
o que quer dizer que se tudo muda no mesmo sentido, a relação
se torna permanente.

Dinheiros sutis, desejos concretos

A distância entre o desejo e sua realização que as marcas em


geral buscam preencher, ganha, no caso específico dos serviços
bancários, um aspecto peculiar. Como os bancos dão acesso ao
consumo de dinheiro, a função simbólica da publicidade de bus-
car realizar sonhos e satisfazer desejos através do consumo parece
ficar ainda mais evidente e potencializada.
Vimos que a lógica da estabilidade monetária e econômica
no Brasil impacta, sim, a narrativa publicitária dos serviços ban-
cários, criando um contexto que promove não só a adequação
em relação aos tipos de produtos anunciados, como também aos
próprios anúncios. É isso o que explica a significativa transfor-
mação da publicidade dos bancos nitidamente observada a partir
dos anos 1990, após as sucessivas crises econômicas e monetárias,
e o fato de que os anúncios mostram hoje mais frequentemente
produtos relacionados ao crédito, contrastando com a poupan-
ça, produto privilegiado na década de 1980. Tudo isso parece

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90 cultura e imaginação publicitária

indicar que a publicidade reflete os movimentos que ocorrem no


plano socioeconômico e como uma narrativa que tanto inventa
quanto reproduz a cultura, a publicidade, se sustenta em uma
relação com o universo simbólico que lhe deu origem e espelha
em seus anúncios o que se processa nas práticas concretas de vida
dos atores sociais.
A instabilidade econômica e monetária que vivemos durante
tantos anos em nossa história deixou sequelas sociais. Nesse perí-
odo, em relação ao que podemos chamar de esfera da economia,
nossa autoestima era baixa, as representações dominantes eram
as de uma sociedade pessimista, cética e descrente de “planos
econômicos” ou “soluções políticas”. Os impactos simbólicos
da inflação muito alta eram negativos, pois experimentávamos
um cotidiano no qual o dinheiro e seu valor oscilante pareciam
um joguete nas mãos dos mais diversos governantes e interes-
ses econômicos. O capital e a perversidade política eram tidos
como os grandes responsáveis pela falta de sentido nas relações
econômicas, principalmente no que tange à especulação finan-
ceira estimulada pelos bancos, que lucravam com as regras desse
jogo. Uma certa antipatia parecia surgir em relação ao setor de
serviços bancários, muitas vezes percebido como “um mal neces-
sário”, quase que compulsório. Diante desse quadro, as institui-
ções bancárias precisaram criar, através de campanhas publicitá-
rias, outras narrativas para redefinir seu lugar, buscando novas
funções sociais e novos significados para o dinheiro, um novo
simbolismo nos anúncios nos quais os bancos poderiam se mos-
trar capazes de promover e estimular ganhos tanto individuais
quanto coletivos. Uma outra narrativa que pudesse contar uma
história mais positiva dos bancos e suas atividades, agora não
mais como parte interessada de um quadro no qual eram vistos
como lucrando com a inflação e insensíveis aos seus desdobra-
mentos socioculturais.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 91

Nesse sentido, merece destaque a predominância recente do


tom mais relacional e emocional das narrativas publicitárias dos
bancos. Mesmo representando um “produto” que poderia ser
entendido como racional – o dinheiro – a publicidade bancária
desde a segunda metade da década de 1990 privilegia a huma-
nização em seus anúncios publicitários. O dinheiro anunciado
em boa parte das vezes não o é literalmente. Assim, podemos
constatar que o produto dinheiro é o que menos aparece nas
narrativas publicitárias de serviços bancários. O dinheiro é hoje
representado por sonhos, sorrisos e uma sociedade melhor que
o banco ajuda a construir. Assim, a comunicação e as referên-
cias ao dinheiro não se dão a partir de seu valor intrínseco, mas
sim de seu valor simbólico e do valor das emoções que ele pode
proporcionar. A imagem de uma simples chave através da qual
se pode obter os demais bens de consumo componentes de todo
e qualquer day-dream (Campbell, 2001). O dinheiro como uma
espécie de realizador de sonhos que, nos anúncios bancários, é
tanto sutil quanto silencioso.
Por força dessa imagem de um dinheiro discreto, os anún-
cios bancários também contribuem para a ideia de que, cada
vez mais, a relação social com o dinheiro se dá de maneira ainda
mais abstrata. Dinheiros de plástico – cartões de débito e crédito
– e transferências de valores que são apenas números piscando
em nossas diversas telas, nos caixas eletrônicos, celulares e inter-
net, são algumas das representações do dinheiro que compõem
hoje nossa rotina. É preciso acreditar que aquele número exibido
na tela ou impresso no saldo do extrato possa ser devidamente
convertido em espécie quando precisarmos dele ou quando in-
cluir o empréstimo pré-aprovado.
Em um mundo que tem pressa, talvez apenas a eficácia da
mágica, a eficácia simbólica, concedida pelo consumo e todo
sistema de comunicação de massa que o cerca, consiga atender

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92 cultura e imaginação publicitária

aos desejos efêmeros, inesgotáveis, que almejam resultados ime-


diatos, sem esforço ou longo tempo investido. A sociedade mo-
derno-contemporânea parece encontrar na mágica do consumo
a solução para as suas questões mais profundas, como ser feliz,
belo, saudável e bem-sucedido. Podemos ver tudo isso enfatizado
no caso da publicidade bancária, que pela vasta oferta de crédito
amplia o consumo de mais dinheiro, virtualmente acelerando a
realização dos desejos, convertendo o dinheiro em tantos outros
consumos sonhados que não precisam esperar, pois, desde que
recorra ao seu banco, são obtidos de imediato.
Pensar a questão do consumo dando peso à sua dimensão de
fenômeno da cultura é sair de uma perspectiva mais tradicional
que enfatiza a produção e a lógica meramente econômica. Nessa
perspectiva da cultura é possível pensar que o consumo moder-
no-contemporâneo define, em certa medida, a experiência do
econômico, provocando nela um relativo processo de “desma-
terialização” (Barbosa, 2008), pelo fato de que os bens se sus-
tentam mais por seu valor como signo e como representação do
que por seu valor de uso ou de troca. É evidente, porém, que as
dimensões culturais e econômicas se imbricam no fenômeno do
consumo, elas coexistem, são complementares e, combinadas,
oferecem resultados mais consistentes para a análise, sobretudo
no caso do consumo de bancos que podem ser vistos como lojas
de dinheiro. Quando pensamos a intensidade das relações entre
cultura e economia, podemos entender essa espécie de “financei-
rização”, tanto real quanto simbólica, que atravessa a experiência
social moderno-contemporânea.

Para começar, formulamos a hipótese de que o capitalismo con-


temporâneo é ao mesmo tempo financeiro e midiático: financeiri-
zação e mídia são as duas faces de uma moeda chamada sociedade
avançada, essa mesma a que se vem apondo o prefixo “pós” (pós-
-industrialismo, pós-modernidade etc.). Se antes a comunicação

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 93

e a informação, sob a égide da sociedade produtivista, podiam ser


analisadas como “despesa extra” do capital, hoje elas têm lugar
de destaque no processo de unidade do conjunto, como biombo
da financeirização, isto é, de um novo modo de ser da riqueza
(Sodré, 2012: 49).

Assim, financeirização reúne mídia e dinheiro em um pro-


cesso, cada vez mais comum ao nosso tempo presente, no qual
valores, ideias, desejos, projetos, identidades, saúde, planos, tra-
balhos, educação, gosto, relacionamentos, emoções etc. formam
uma visão de mundo sustentada no amálgama entre os parâme-
tros das finanças e dos meios de comunicação. Um estudo sobre
a publicidade dos bancos é, portanto, a reunião dos dois eixos
desse processo: os anúncios, um dos centros da produção midiá-
tica, e o banco, efetivamente, o centro da financeirização.
De fato, a publicidade dos bancos traduz, exemplarmente,
essa articulação entre mídia e finanças e, nela, os dois eixos se
reúnem em cada contexto social e histórico dado. Por isso, o
banco, vendedor de dinheiro, do produto com o qual podem ser
obtidos todos os demais, oscila ao dirigir suas mensagens midiá-
ticas para a esfera pública. Nas suas narrativas publicitárias apa-
rece, por vezes, como um banco que “fala de si”, que explica sua
credibilidade e segurança. Em outras, como banco que pretende
realizar nossos sonhos, comprar nossas coisas, interferir em nossa
“vida cotidiana”. Finalmente, como banco que parece se impor-
tar com “o outro”, seja funcionário, cliente, sociedade ou mesmo
a própria Terra. O banco, por seu lugar complexo e sua realida-
de ambígua nas relações concretas da vida social, nos propõe
anúncios que pretendem construir uma narrativa que disfarce
seu peso e enfatize seu benefício. Ele é uma loja de dinheiro que,
de acordo com o substrato econômico no qual esteja situado,
será forte e seguro, atenderá nossos desejos de consumo ou ainda
será capaz de nos oferecer qualidade de vida. As narrativas publi-

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94 cultura e imaginação publicitária

citárias dos bancos parecem indicar que ele pode fazer tudo isso
ao mesmo tempo ou enfatizar uma ou outra dessas virtudes em
harmonia com o contexto, porém independentemente de qual-
quer coisa poderá cuidar de todos nós – sociedade e planeta.

Referências bibliográficas
BARBOSA, Lívia. Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2008.
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70,
2008.
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo mo-
derno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001
CARDOSO, Miriam. Ideologia do desenvolvimento – JK/JQ. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
LEITÃO, Miriam. Saga brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2011.
MOTA ROCHA, Maria Eduarda. A nova retórica do capital. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.
ROCHA, Everardo. Representações do consumo. Rio de Janeiro:
Mauad/Editora PUC-Rio, 2006.
__________. Cenas do consumo: notas, ideias, reflexões. Revista Se-
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__________. Magia e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
__________. A sociedade do sonho. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.
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-Dumará, 1993.
SILVA, Márcia. Imagens da terceira idade: um estudo sobre a repre-
sentação do idoso veiculada em duas propagandas da televisão
brasileira. Semina: Ciências Sociais e Humanas. Londrina, v. 33,
n. 1, p. 91-102, jan./jun. 2012.

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o dinheiro anunciado: notas sobre a publicidade bancária no brasil 95

SODRÉ, Muniz. Financeirização do mundo e educação. Revista


Científica de Información y Comunicación. N. 9, 49-60. Departa-
mento de Periodismo I, Universidad de Sevilla, 2012.

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Cariocas não gostam de dias nublados:
comunicação, consumo e lifestyle no discurso da Farm
Cláudia Pereira
Carla Barros

Introdução

“Para a Farm, não tem tempo feio: é verão o ano inteiro!” Esta
frase, retirada do site de uma das mais bem-sucedidas lojas fe-
mininas do Rio de Janeiro, sintetiza o que se espera do “carioca
típico”, ou seja, uma predisposição “natural” para expor seu cor-
po, sua beleza e sua alma aos olhos do Outro. O sol que brilha
para todos, democratizando “cariocamente” as faixas de areia,
das ruas, das ciclovias e de quaisquer outros lugares de circulação
a céu aberto, no entanto, é o mesmo que, simbolicamente, de-
limita espaços sociais, aproximando e distanciando coisas e pes-
soas, iluminando um sistema de classificação que se realiza pelo
consumo e que se consolida através do discurso publicitário.
O objetivo deste trabalho é fazer revelar, a partir do discurso
de uma marca de moda feminina do Rio de Janeiro, a Farm,
algumas representações sociais do que é “ser carioca”. Para tanto,
serão observados três pontos de vista “nativos” que concorrem
para a construção de sua imagem institucional: 1. o site oficial,
2. o discurso do executivo de marketing e 3. os esquemas de
branding, a partir de um mapa de associações com outras marcas
atuantes na cidade.1 Sendo assim, a metodologia baseia-se na
1
Contribuíram para a pesquisa exploratória e para o trabalho de campo os bol-
sistas do PECC (Programa de Estudos em Comunicação e Consumo – Aca-
demia Infoglobo/PUC-Rio), Luana de Souza Martins e Raphael Oliveira da

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98 cultura e imaginação publicitária

pesquisa exploratória a partir de dados secundários e na análise


do discurso.
A escolha da loja Farm como objeto de estudo deve-se à re-
conhecida relevância da marca no cenário da moda do Rio de
Janeiro e do Brasil, como demonstra o trecho abaixo, retirado de
uma matéria publicada na internet em 2011:

A cara do Rio de Janeiro. Assim pode ser definida a Farm, marca


carioca que dispensa apresentações, mas que, vale dizer, começou
pequenininha, com um stand na Babilônia Feira Hype, e hoje con-
ta com 40 lojas espalhadas pelo Brasil (todas próprias).
A história da grife começa humilde, com um investimento inicial
de R$ 1.200 feito pelos sócios Marcello Bastos e Kátia Barros para
começar os negócios na feira. Mas logo a partir daí, a Farm passou
a se sustentar sozinha. A dupla, que já chegou a perder apartamen-
tos e carros enquanto investia em outras empreitadas, não precisou
mais tirar nenhum centavo do bolso. Hoje, o faturamento da em-
presa passa dos R$ 100 milhões anuais e a Farm é sempre uma das
cinco lojas que mais faturam nos shoppings paulistanos.
O sucesso da marca fez com que grandes shoppings passassem a
convidá-la para fazer parte de seu time de lojas, sem sequer cobrar
pelo ponto, com o intuito de atrair mais clientes para os locais.
No Iguatemi de São Paulo, por exemplo, o espaço separado para
receber a grife carioca em 2006 precisou rapidamente ser alterado
para um maior, já que a loja quebrou um recorde: com um mês de
funcionamento, teve a maior venda por metro quadrado de moda
jovem feminina da história do shopping.2

Por ser reconhecida como a marca que tem “a cara do Rio”,


a Farm se destaca, nesta análise, sobretudo pelos reflexos de sua
influência nos traços de uma moda que, para além das praias

Silva, ambos alunos da graduação do Curso de Comunicação da PUC-Rio, na


habilitação Publicidade.
2
Publicado em http://ffw.com.br/noticias/ em 25/06/2012.

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cariocas não gostam de dias nublados 99

da Zona Sul, chega aos shoppings paulistas, mineiros e gaúchos


ditando uma maneira de se firmar marcadamente carioca, modi-
ficando, de um certo modo, determinados espaços de consumo
das culturas locais. É como se o “jeito de ser carioca” se cons-
tituísse, para o contexto desta pesquisa, como um valor que é
apreendido e integrado ao um “jeito de ser local”, do Outro,
modificando-o.

Do ponto de vista da antropologia do consumo

Antes que se apresente a análise do material que compõe o


corpus desta pesquisa, é importante que se estabeleçam as bases
teóricas que sustentam as proposições deste artigo.
Considerando a perspectiva da antropologia, o que se busca
é uma “descrição densa” (Geertz, 2008) dos discursos presentes
na construção da ideia de um “jeito de ser carioca” do ponto de
vista “nativo”, ou seja, é revelar o que eles, os “nativos” da Farm,
pensam que estão fazendo, mais do que aquilo que estão dizen-
do. Com alguma licença metodológica, o que se busca é alcançar
este objetivo sem que se realize, pelo menos neste momento,
uma etnografia. Sendo assim, lança-se mão de um material dis-
ponível que reúne categorias de pensamento, modelos, imagens,
conceitos que acabam por constituir os valores, as práticas e, por
que não dizer, as crenças e os mitos da Farm, através de seu dis-
curso institucional.
E uma das formas que este discurso assume é a publicidade.
Para Rocha (2010), a publicidade é a narrativa do consumo e,
como tal, confere significado aos bens e às marcas.
Por outro lado, é pela publicidade que os valores de uma so-
ciedade se codificam de uma forma idealizada, constituindo um
mundo mágico, perfeito, em que nada pode sair errado (Rocha,
2010). Porque o discurso publicitário, ainda segundo Rocha, re-

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100 cultura e imaginação publicitária

produz tais valores é que, no caminho inverso, decodificando-o,


podemos compreender o que se passa nas relações sociais a partir
dos anúncios e de outras mensagens persuasivas.
Com a antropologia do consumo, é possível enxergar as tro-
cas materiais como trocas simbólicas (Bourdieu, 1974; Mauss,
2003); os bens materiais como marcadores sociais que estabe-
lecem distâncias e aproximações (Douglas e Isherwood, 2004);
o consumo como um sistema classificatório que ordena pessoas
e bens (Rocha, 2010); as coisas como unidades que se comple-
mentam entre si, umas “puxando” as outras (McCracken, 2003);
apenas para citar alguns autores e conceitos importantes para a
compreensão do lugar teórico no qual se insere este artigo.
Veblen (1987), Douglas e Isherwood (2004), Sahlins (1979)
e Rocha (2010), em particular, defenderam a ideia de se enten-
der o consumo como um grande sistema classificatório, ou ain-
da, um modo privilegiado de comunicação entre os indivíduos,
que pode criar “barreiras ou pontes”, nas palavras de Douglas
e Isherwood (2004) em seu clássico trabalho, aproximando ou
afastando indivíduos e grupos – enfim, criando distinções, hie-
rarquizando, como um grande sistema totêmico, conforme su-
geriu Rocha (2010).
Entre os vários autores citados, destaca-se aqui a contri-
buição de McCracken (2003) e, em particular, o conceito de
“unidade Diderot”, que parte do princípio de que os bens de
consumo podem se complementar por causa de sua consistên-
cia cultural interna. Assim, ao adquirir um deles, o consumidor
se sentiria impelido a adquirir outros, pois é como se deter-
minados bens “andassem juntos”. À força coercitiva que age
sobre os produtos, indicando sua complementaridade, o autor
chama de “efeito Diderot”. A referência ao principal autor da
Encyclopedie deve-se a uma história contada por Diderot em
um ensaio, no qual relata o impacto de um presente ganho –

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cariocas não gostam de dias nublados 101

um robe escarlate – na transformação ocorrida em seu gabinete.


O afastamento do velho roupão e a entrada em cena da nova
veste acabaram por provocar em Diderot um grande desconfor-
to em relação aos móveis e objetos presentes no local, levando-o
a substituí-los por novos bens que estivessem em sintonia com
o robe escarlate.
Deste modo, uma análise das “unidades Diderot” serve para
se compreender de que modo estilos de vida são constituídos a
partir desta “exigência” de complementaridade que se impõe no
universo dos bens.

Cultura carioca

O Rio de Janeiro e a cultura carioca foram temas de alguns


estudos que destacamos pontualmente, respeitando o escopo do
artigo.
O ensaio de Schwarcz (1994) investigou como a mestiçagem
foi vinculada de modo profundo à identidade brasileira e de que
maneira a figura do Zé Carioca acabou representando, de modo
simpático, a malandragem vivida na cidade do Rio de Janeiro.
A autora ressalta que estavam em jogo duas representações pos-
síveis a respeito da “malandragem mestiça” e de nossa identi-
dade: uma mais negativa, que associava a malandragem à falta
de trabalho, à vagabundagem e à criminalidade potencial; uma
segunda, que teria prevalecido, encarnada no personagem do Zé
Carioca, onde o malandro aparecia definido como um sujeito
bem-humorado, bom de bola e de samba. Esta última versão
reintroduzia, nos anos 1950, o modelo do “jeitinho” brasileiro
dentro da ideia de que a mistura encontrada no Brasil teria gera-
do um tipo singular de civilização. O Zé Carioca, possibilidade
positiva, tornou-se personalidade símbolo de um “jeito de ser”
reproduzido “para dentro e para fora” do país.

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102 cultura e imaginação publicitária

Goldenberg (2002), junto com outros autores, se propuse-


ram a compreender a “cultura do corpo” e a relacioná-la com a
construção de identidades, com o espaço urbano e com as rela-
ções sociais que se estabelecem entre gêneros e camadas sociais,
usando o Rio de Janeiro como um rico campo de observação e
análise. Os autores tratam o corpo carioca como “fato social”.
Construído culturalmente, ele se afasta da natureza e ganha o
espaço urbano como “roupa, máscara, veículo de comunicação”
carregado de signos que posicionam os indivíduos na sociedade.
Em outro estudo, Santos e Veloso (2009) buscaram identifi-
car representações sobre a essência do “ser carioca” para os mora-
dores da cidade do Rio de Janeiro. O “carioca típico” levantado
na pesquisa teria as seguintes características: “alegre”, “jovial”,
“informal”, “despojado”, “de bem com a vida”, “simpático” e
“sociável”. A este perfil de um “povo especial/único”, se somaria
a percepção do Rio de Janeiro como uma “cidade especial/úni-
ca”, onde se coloca uma ênfase nas belezas naturais “ímpares” ali
presentes. “Ser carioca”, assim, aparece como um “estado de espí-
rito” que pode ser vivenciado mesmo por quem não tenha nasci-
do na cidade, mas more nela e compartilhe de seu estilo de vida.
Estes trabalhos, em busca de representações sobre a identida-
de e a cultura carioca, apontam para o campo de possibilidades
que a análise proposta no presente artigo pode explorar, o que
será feito a seguir.

Farmrio.com.br

Em nada surpreende que a palavra “rio” componha o ende-


reço do site oficial da marca. A ideia é integrar a cidade à própria
gênese da Farm. Analisando o discurso presente na internet, já é
possível apontar na direção de interessantes aspectos que serão,
mais adiante, explorados no presente trabalho.

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cariocas não gostam de dias nublados 103

Em determinada seção da página da Farm na internet, de-


nominada “A Farm”, pode-se encontrar o seguinte texto, que
introduz um vídeo institucional e uma espécie de “linha do tem-
po” que conta a trajetória da marca, desde seu ano de fundação,
1997, até 2012:

Foi com estampas, cores e muita descontração que a FARM surgiu


na zona sul do Rio e conquistou o Brasil. Marcello Bastos e Kátia
Barros conseguiram interpretar como ninguém o que é a garota-
-carioca-zona-sul, ponto de partida que inspirou o fenômeno da
moda balneário.3

O vídeo começa mostrando uma visão panorâmica da orla


do Rio de Janeiro, mais especificamente da Zona Sul da cidade.
Tendo ao fundo a Pedra da Gávea, lê-se: “Farm: essencialmen-
te carioca, alto astral, colorida e descolada”. Em off, uma voz
feminina fala: “A praia, sol, sair à noite...”. Em seguida, suce-
dem-se, por aproximadamente um minuto, imagens das lojas
e do escritório, pontuando os números de pontos de venda e
de funcionários. Numa destas indicações, surge um coração for-
mado por um grupo de pessoas sorridentes que, visto do alto, é
legendado com a seguinte frase: “50 profissionais só na equipe
de criação”. E sucedem-se imagens das “viagens de pesquisa” ao
redor do mundo. Em seguida, o que se vê são diversas coleções,
demonstradas através do making of de sessões de fotografia e de
desfiles. Mais números aparecem e, no final, voltam imagens da
paisagem do Rio de Janeiro, encerrando o vídeo com a marca
Farm em destaque.
Nesta sequência, descrita aqui brevemente, é possível iden-
tificar – considerando a natureza da retórica do discurso publi-
citário – momentos em que, intercalados, apelos emocionais e

3
Publicado em http://www.farmrio.com.br em 25/06/2012.

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racionais se sustentam mutuamente. E a emoção fica a cargo do


sentido de pertencimento da marca Farm ao Rio de Janeiro, ao
estilo de vida carioca, que se traduz nas expressões “estampas, co-
res e muita descontração”, “garota-carioca-zona-sul”, “alto astral,
colorida e descolada”, “praia, sol, sair à noite”, além das imagens
aéreas da paisagem de praias e montanhas.
Nesta mesma seção “A Farm”, é possível encontrar referên-
cias à expansão da marca para outras cidades do país, que passam
a ficar “mais cariocas”, como descreve a frase: “O Brasil fica um
pouquinho mais carioca em 2008: são inauguradas as lojas de
Recife, Fortaleza e Campinas”.4

A voz do marketing

“É importante ter pessoas legais usando a sua marca.” A fra-


se é de André Carvalhal,5 gerente de Marketing da Farm. Nes-
te ponto do texto, pretende-se analisar o que há de carioca na
Farm, a partir do discurso de um “nativo”, do ponto de vista da
produção e reprodução dos significados da marca. A proposição
é considerar algumas categorias de pensamento usadas com re-
corrência na fala de Carvalhal, a fim de identificar o que funda-
menta o outro discurso, publicitário – “o que eles pensam que
estão fazendo”, proposto por Geertz (1989).
Neste sentido, o que sintetizaria o ponto de vista do gerente
de Marketing são duas categorias de pensamento: “lifestyle cario-
ca” (ou ainda “estilo de vida Farm”) e “menina zona sul”.
Giddens (2002) apresenta uma abordagem interessante, para
os fins deste estudo, com relação à ideia de “estilos de vida”: para
ele, trata-se de conjuntos de práticas e valores disponíveis para

4
Idem.
5
Em palestra ministrada como parte da programação do PECC, no dia 26 de
abril de 2012, na PUC-Rio.

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cariocas não gostam de dias nublados 105

serem escolhidos, os quais os indivíduos incorporam, ou aos


quais aderem, no sentido de garantir uma “segurança ontológi-
ca”, um lugar na modernidade tardia, caracterizada pela ruptura
de instituições que antes garantiam identidades fixas e estabele-
cidas. Ainda segundo o autor, tais estilos de vida são práticas do
cotidiano e podem ser alternantes.
Um exemplo citado pelo próprio André Carvalhal ilustra
bem de que maneira se pode entender tal “estilo de vida Farm”
à luz da teoria de Giddens: ao inaugurar a primeira loja fora do
Rio de Janeiro, na cidade de Belo Horizonte, a Farm decidiu
manter, segundo ele, as características do que seria o “lifestyle
carioca”, ou seja, “chinelo, praia, conforto”. O que aconteceu foi
uma mudança de comportamento, segundo o diretor de Marke-
ting, das jovens mineiras, que abandonaram o “salto alto” e pas-
saram a ir mais descontraídas ao shopping e aos ambientes tam-
bém frequentados pelas vendedoras da Farm, como a faculdade,
com roupas mais confortáveis, de sandálias baixas ou chinelos.
Para Carvalhal, as vendedoras da loja são “formadoras de
opinião” e devem representar bem as “pessoas legais” que interes-
sam à marca. Mauss (2003) já nos ensinava que, por “imitação
prestigiosa”, costumamos tentar reproduzir em nossos gestos e
até em nossas “técnicas corporais”, desde crianças, os exemplos
bem sucedidos. Isso explica a mudança de comportamento nar-
rada por ele em Belo Horizonte e o sucesso da marca em outras
praças – a fidelidade ao “lifestyle carioca”.
Ainda na ideia do “estilo de vida” (Giddens, 2002), a Farm,
segundo Carvalhal, vem buscando parcerias com outras empre-
sas, como Converse, Havaianas e Pantone, que colabora no tin-
gimento dos calçados de acordo com sua cartela de cores. Criou
ainda uma série de produtos denominada “Linha Home”, onde é
possível encontrar, por exemplo, cortinas e estofados com estam-
pas floridas, típicas da Farm; e, mais recentemente, com a Lev,

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106 cultura e imaginação publicitária

para a venda de uma bicicleta elétrica exclusiva em suas lojas.


Tais parcerias obedecem a uma lógica simbólica de complemen-
taridade, que será melhor explorada mais adiante.
As vendedoras, por fim, as “meninas zona sul”, são as “me-
ninas da Farm” – ou “farmetes”, categoria nativa que denomi-
na as consumidoras fieis à marca –, como o próprio diretor de
Marketing faz referência, de maneira recorrente.6 Ele as descre-
ve como sendo “meninas, alunas da PUC, que ganham mesada
ou que estão no primeiro emprego”. Tais “meninas” são, portan-
to, muito jovens e precisam de um “produto legal e barato” para
comprar – mas não são quaisquer meninas:

A Farm procura manter a imagem de uma marca para meninas de


vinte e poucos anos, que morem em determinados bairros, que
tenham um determinado estilo. As mulheres mais velhas que com-
pram lá buscam o “espírito jovem” que a marca propõe (André
Carvalhal).

O “lifestyle carioca”, pode-se inferir a partir de seu discurso, é


jovial e tem um “espírito jovem”. É seletivo e “zona sul”.

Complementaridades e classificações:
um mapa e muitos significados

O mapa “Estilo de Vida Carioca”, usado pela Farm como


uma de suas apresentações institucionais, demonstra de que ma-
neira se estabelecem as relações e associações simbólicas entre as
marcas, os bens e práticas de consumo. Trata-se, usando o jargão
do marketing, um moodboard, uma espécie de colagem com dife-
rentes referências associadas a uma marca. Para a presente análi-
se, porém, toma-se este moodboard por um mapa simbólico que

6
Durante a palestra proferida na PUC-Rio, conforme mencionado em nota
anterior.

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cariocas não gostam de dias nublados 107

revela um código de classificação que sintetiza o que a “menina


Farm”, em seu modelo típico ideal, consome ou, pelo menos, te-
ria uma predisposição “natural” para consumir. Combinados, os
itens – unidades Diderot – que fazem parte deste mapa indicam
a complementaridade a que se refere McCracken (2003).
No mapa da Farm, estabelece-se um sistema de classificação
que considera as seguintes categorias básicas: 1. centralizando
todas as demais “unidades Diderot”, existem quatro subgrupos
de “meninas Farm”, quais sejam, a “patricinha”, a “descolada”, a
“praiana” e a “romântica”; 2. correlacionados a estes modelos tí-
picos ideais, é possível encontrar uma categoria que, neste texto,
chamaremos de “praia”, dentro da qual são reunidos os seguin-
tes itens: “biquini”, “calçadão – orla carioca”, “Sorvete Itália”,
“Matte Leão”, “Gula Gula”, “Praia do Rosa”, “Havaianas”; 3. em
oposição, encontram-se referências ao que aqui chamaremos de
“night”, ou seja, “vodka”, “chope”, “Botequim Informal Devas-
sa”, “Koni”; especificamente com relação a bens de consumo e
marcas, surgem, de um lado; 4. “Peugeot 206”, “iPod”, “Coca-
-Cola Light”, “All Star branco” às quais chamaremos de “marcas
de uso” e, do outro, 5. “gloss”, “blush”, “argolas”, “manicure”,
“Victoria Secrets”, “Zara”, às quais chamaremos de “marcas de
aparência”; 6. por fim, revelam-se também unidades associadas
ao que chamaremos de “pop”, como “Flamengo”, “funk”, “car-
naval”. Ainda outras “unidades Diderot” têm lugar no mapa,
como “PUC”, “Humanas”, “cinema”, “revistas”, “brigadeiro”,
“Itaipava”, entre outras. As unidades não são estanques, sen-
do possível serem pensadas em novos arranjos; assim, “blush”
e “manicure”, por exemplo, podem ser associadas ao contexto
“night”, dependendo da situação.
A partir destas categorias principais – “patricinha”, “descola-
da”, “praiana”, “romântica” – e das secundárias – “praia”, “night”,
“marcas de uso”, “marcas de aparência” e “pop”, e considerando

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108 cultura e imaginação publicitária

cada uma delas como representações de determinados estilos de


vida, no sentido dado por Giddens (2002), pode-se depreender
que o “estilo de vida carioca” proposto pelo mapa simbólico da
Farm se traduz no seguinte: ser carioca é ser plural (“patricinha”,
“descolada”, “praiana”, “romântica”; “praia” x “night”; “marcas de
uso/aparência” x “pop”); é valorizar e cuidar da própria aparência
(“patricinha” e “marcas de aparência”); é frequentar ambientes
abertos e ensolarados (“praiana”, “descolada”, “praia”); mas tam-
bém é estar na noite de uma forma mais descontraída (“night”).
O modelo estético que sobressai no quadro remete a um ima-
ginário de “beleza natural” e despojamento, como se o “char-
me” carioca ali apresentado não requisitasse grandes “produções”
voltadas a determinadas partes do corpo, como cabelos armados
ou maquilagem pesada. Ao contrário, o “encanto” da corporali-
dade se apoia na descontração gestual e em uma atratividade que
parece precisar de pouco esforço para se fazer bela. As marcas,
produtos e locais apresentados e correlacionados no mapa poten-
cializariam um tipo de “beleza natural carioca” preexistente.
A pluralidade encontra-se presente em cada “menina Farm”,
que pode, dependendo do contexto, acionar uma destas cate-
gorias associadas a determinados estilos de vida, como bem de-
monstra Giddens (2002). A mesma modelo vivencia no mapa
as múltiplas “personalidades”, mostrando como o consumismo
moderno incorpora uma exploração do self, na perspectiva de
Campbell (2006). Para o autor, a exposição a uma ampla gama
de produtos e serviços e a consequente construção do “nosso
gosto” a partir da escolha preferencial de determinados bens,
acaba por realizar um processo de reconhecimento e constitui-
ção do self.
Os produtos, marcas, lugares que “andam juntos” no mapa,
usando os termos de McCracken (2003), indicam que o estilo
de vida carioca implica em uma grande vocação e “competência”

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cariocas não gostam de dias nublados 109

para a diversão. O hedonismo presente nesse contexto se torna


mais intenso quando as peças do quadro apresentado são pensa-
das em seu aspecto complementar.
Assim como, em um plano geral, “tudo se completa”, indi-
cando uma maximização do prazer, alguns grupos de itens po-
dem ganhar contornos particulares, como o formado pelos itens
Flamengo, funk e Havaianas, aqui categorizado como “pop”.
Estas unidades conjugam um aspecto popular ao style de quem
soube reconhecer o lado cool de elementos originariamente iden-
tificados a contextos populares e que ganham novas trajetórias
no tecido social, segundo o efeito trickle-up (McCracken, 2003),
onde símbolos e estilos existentes entre subordinados são incor-
porados pelas classes altas. O imaginário da cultura carioca como
“lugar do encontro” e de aproximação de diferenças se evidencia
aqui como um dos aspectos do universo Farm.
A Farm, em sua própria política de co-branding, ou seja, de
associar-se a outras marcas e gêneros de produtos, sublinha o ca-
ráter de complementaridade encontrado em McCracken, esque-
matizado simbolicamente no mapa que acaba de ser analisado. A
marca constitui-se a partir de aproximações com outras marcas,
bens e práticas de consumo, com lugares, modos e modas – a
Farm é o que é a partir do que reforçam outras formas de “ser
carioca”, mas um “jeito de ser” que é Zona Sul e praia, e que, por
exclusão, distancia-se da Zona Norte, Baixada Fluminense e de
tudo aquilo que pode representá-las originalmente excetuando
para o que não lhe é próprio, como o funk, mas que é apropriado
e modificado para bem lhe servir na construção de seu style.
No mapa, aparecem locais situados fora da cidade do Rio
com diferentes significados – Itaipava, distrito da cidade de Pe-
trópolis na região serrana do Estado, se apresenta como uma das
opções de lazer para o estilo carioca apresentado; Praia do Rosa,
localizada no litoral de Santa Catarina, pode ser vista tanto como

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110 cultura e imaginação publicitária

destino de viagem como um local “sintonizado” com este estilo


de vida, em que se destacam os elementos praia, surf, natureza
deslumbrante e descontração. Enquanto que no texto de Santos
e Veloso (2009) “ser carioca” é algo que pode ser experimentado
e incorporado por pessoas que não tenham nascido na cidade,
mas que moram nela, no mapa, o “estilo de vida carioca” poderia
ser associado a locais como a Praia do Rosa, em Santa Catarina,
seja por um reconhecimento de similaridades entre as localida-
des, seja pela presença de cariocas que “encantariam” o ambiente
com a sua aura singular. Em relação a este ponto, fazendo uma
aproximação com os caminhos comerciais da empresa, vemos o
exemplo da expansão da marca em São Paulo, uma cidade que,
em termos de estilo de vida, costuma ser vista como oposta ao
Rio de Janeiro:

A marca abre sua 13ª loja, dessa vez em São Paulo, convidada
pelo Shopping Iguatemi. Em apenas um mês de funcionamento,
o espaço tem a maior venda por metro quadrado de moda jovem
feminina da história do shopping. Incrível, né?7

Mesmo com a expansão para outras cidades e até para outros


países, como a França, a Farm é uma marca que busca se manter
fiel às suas origens, a uma espécie de “essência” que a caracteriza
e que se traduz, exatamente, no “lifestyle carioca” que a define,
como afirma André Carvalhal numa entrevista, em 2008:

A Farm nasceu há dez anos, na Babilônia Feira Hype, um evento


de novos estilistas que acontecia no Jockey Club do Rio de Ja-
neiro. Desde o nascimento, o foco sempre foi a menina do Rio,
estudante, universitária, que gosta de consumir moda para ficar
linda. Hoje, a grife está presente em várias capitais do Brasil e, sem

7
Publicado em http://www.farmrio.com.br em 28/06/2012.

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cariocas não gostam de dias nublados 111

perder o foco, continua levando o frescor do comportamento e da


moda carioca a quem deseja.8

Aproximando a leitura do mapa com o discurso do executi-


vo de marketing, destacam-se dois pontos. Primeiro, conforme
Fry (1976) e Vianna (1995) já haviam notado, símbolos, há-
bitos e estilos criados no Rio de Janeiro costumam se difundir
pelo país de modo abrangente, passando a ser vistos, em alguns
casos, como elementos constitutivos da “identidade nacional”,
conforme aconteceu com o samba e a feijoada. Em segundo lu-
gar, a ideia de “frescor do comportamento e da moda carioca” se
disseminando, revela como os elementos corporais e atitudinais
aparecem entrelaçados. O “frescor” pode ser remetido tanto ao
tipo de beleza eleito pela marca quanto à jovialidade e ao espírito
criativo associados ao imaginário do que seja “ser carioca”.
Por fim, nos caminhos da análise do modo pelo qual a comu-
nicação da marca Farm propõe associações que concorrem para a
construção de sua imagem como um símbolo do Rio de Janeiro
e de um lifestyle típico da cidade, revelaram-se elementos de uma
constelação de consumo cuja força reside na complementaridade
entre “unidades” que contam em conjunto uma história particu-
lar, entre outras a serem narradas e investigadas.

8
Publicado em http://www.nosdacomunicacao.com.br em 28/06/2012.

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112 cultura e imaginação publicitária

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O Brasil é cool:
comunicação, consumo e o novo luxo da Osklen
Everardo Rocha
William Corbo

O Brasil na moda e a Osklen no luxo

O objetivo central deste trabalho é examinar uma das formas pe-


las quais o consumo é vivenciado na cultura brasileira e como
aspectos dessa cultura podem ser apropriados pelo discurso da
moda. De forma mais específica, vamos analisar certas imagens
empregadas pela marca Osklen, a relação que esta marca estabe-
lece com o imaginário brasileiro e a apropriação de parte desse
imaginário no processo de construção do fenômeno conhecido
pelo mercado como “novo luxo”.1 Assim, este estudo pretende
debater algumas dimensões do nosso estilo de vida, valores e cul-
tura para examinar as formas pelas quais uma marca específica
de roupas produz uma narrativa que pretende encaixar aspectos
desse imaginário com o consumo de luxo, usualmente vinculado
ao glamour da experiência urbana de cidades europeias e norte-
-americanas como Paris, Milão, Barcelona, Londres ou Nova Ior-
que. No caso da Osklen, entretanto, é o Brasil, seu imaginário e o
Rio de Janeiro, em especial, que são articulados com os produtos
da empresa para definir esta marca como uma roupa de luxo.
1
Na perspectiva do criador da Osklen, Oskar Metsavaht, o “novo luxo” é aquele
que é necessariamente nobre e sustentável. Ele é uma alternativa ao luxo tradi-
cional e passa por uma despretensão pelo status e pela valorização do processo
produtivo. Nesse novo modelo, a nobreza está em comprar em menor quanti-
dade e produtos que sejam de origem sustentável, mas que, além disso, tenham
linguagem de moda e sejam sedutores.

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O posicionamento nacional e internacional da Osklen en-


quanto marca de um “novo luxo” acontece em paralelo a uma
nova configuração política e econômica no âmbito internacio-
nal. Nessa configuração, o Brasil passou a ser um dos protago-
nistas, um dos famosos países componentes do BRICS,2 em es-
pecial após a crise global que faz recuar as economias dos países
europeus e a norte-americana na primeira década desse século.
Esse novo lugar ocupado pelo Brasil acontece pelo crescimento
econômico que, para os fins desse artigo, pode ser traduzido de
forma mais evidente através do aumento do poder de consumo
da população,3 do aumento dos gastos de brasileiros no exterior,4
e da escolha do Brasil como sede de grandes eventos mundiais
como a Copa das Confederações, a Jornada Mundial da Juven-
tude, a visita do Papa, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos
do Rio de Janeiro.
O Brasil se torna mais visível e a Osklen, possivelmente, sua
marca de roupas mais luxuosa no mercado internacional. Qual-
quer consumidor que entrar em uma loja da Osklen, fora do
país ou espalhadas em diferentes estados brasileiros, poderá fa-
cilmente constatar uma unidade de estilo tanto no espaço físico
das lojas quanto nas roupas e acessórios que são nelas vendidos.
Essa unidade de estilo de diversas maneiras remete ao luxo e
ao Brasil. As marcas brasileiras não costumavam ter relevância
internacional até o sucesso da Osklen. Hoje, o Brasil não só é
destaque na moda como tem seu imaginário transformado em
produto transportado para as passarelas das principais cidades

2
A sigla BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – foi cunhada pelo economista
Jim O’Neill (2001). Em 2011, a sigla se transformou em BRICS pela adição da
letra S referente à África do Sul.
3
“Consumo no Brasil será de R$ 3 tri em 2013.” Publicado em www.meioe-
mensagem.com.br em 15 de abril de 2013.
4
“Gasto de brasileiro no exterior sobe 11,5% e soma US$ 6 bilhões no 1º tri.”
Publicado em www.globo.com em 24 de abril de 2013.

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 115

do mundo e consumido internacionalmente. O caso da Osklen


é um exemplo inédito de uma marca de moda brasileira que
ultrapassou as barreiras da localidade e atingiu altos patamares
no mercado global do luxo, que é tradicionalmente formado por
grifes de origem norte-americana e europeia. Esse ineditismo
motiva a análise e incentiva reflexões que possibilitem o enten-
dimento dos fatores que diferenciam a Osklen das demais marcas
de moda e que podem sugerir como ela, se apropriando de certos
aspectos do imaginário brasileiro, conquistou reconhecimento
internacional enquanto representante do chamado “novo luxo”.
Perto de completar 25 anos de existência, a Osklen é
identificada como uma das pioneiras no que seria um novo
modelo de luxo global, ao aliar conceitos como estética, con-
forto, design, brasilidade e sustentabilidade. Identificando esses
conceitos presentes como “pano de fundo” no discurso da marca,
tomamos este trabalho como um esforço que visa compreender a
maneira pela qual a Osklen reinterpreta o imaginário brasileiro,
nosso estilo de vida, cultura e valores ao apresentar a ideia do
brazilian soul – o entendimento da marca do que ela chama de
lifestyle brasileiro – e como esse conceito seria, na perspectiva da
marca, o motor de uma nova forma de posicionamento, realiza-
ção e experiência de luxo.
A importância da Osklen na moda brasileira e no mercado
do luxo internacional pode ser notada na produção de mais de
1 milhão de peças em 2009 (Braga, 2010) e na presença de lo-
jas, showrooms, flagship stores e produtos da marca em uma série
de países ao redor do mundo. No Brasil, são mais de 60 lojas
espalhadas por cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo
Horizonte, Brasília, Florianópolis, Porto Alegre, Recife, Salva-
dor e Juiz de Fora. No exterior, a Osklen está presente com lojas
exclusivas em países como Estados Unidos, Itália, Japão, Argen-
tina, Grécia e Uruguai; com showrooms na Austrália, na França,

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116 cultura e imaginação publicitária

na Espanha e em Portugal; suas flagship stores estão no Rio de


Janeiro, em São Paulo, em Milão, em Nova Iorque, em Miami,
em Roma e em Tóquio.
A marca tem chamado a atenção de importantes veículos
de comunicação nacionais e internacionais em diferentes temas
como moda, arte, design, negócios, sustentabilidade e inovação.
A Osklen, seu lifestyle e seu criador, Oskar Metsavaht, já apare-
ceram em revistas de relevância internacional como a Forbes e
a Vogue, além do destaque dado pelo jornal The New York Ti-
mes à transação que envolveu a marca e o grupo Alpargatas. Em
2012, o grupo comprou 30% da grife com opção de compra de
mais 30% após o primeiro pagamento. Todavia, cabe ressaltar
que as negociações entre a Osklen e a Alpargatas foram além de
uma compra ou venda da marca. As transações deram origem a
uma nova empresa que pretende ser um conglomerado de “novo
luxo”, focado na aquisição e gestão de marcas identificadas com
a questão da sustentabilidade.5
A trajetória da Osklen, como via de regra acontece com as
realidades históricas ou mitológicas das grandes marcas, acaba se
confundindo com a vida do seu criador, o médico gaúcho Oskar
Metsavaht. Diz a lenda que a origem da marca se deu em 1986,
quando ele fez parte de uma expedição ao monte Anconcágua,
na cordilheira dos Andes, como médico responsável pela equipe.
Na ocasião, o médico criou roupas apropriadas para que os ex-
pedicionários resistissem às baixas temperaturas da região. Com
a exposição da aventura em grandes veículos de comunicação,
Oskar Metsavaht passou a receber constantes encomendas de ca-
sacos em seu retorno ao Brasil, possibilitando que o então médi-
co especialista em traumatologia do esporte abrisse sua primeira

5
“Depois da falada compra, Alpargatas cria com Osklen conglomerado de ‘novo
luxo’”. Publicado em www.colunas.revistaepoca.globo.com em 23 de outubro
de 2012.

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 117

loja em 1989, localizada em Búzios. Num primeiro momento, a


empreitada poderia causar certa desconfiança. Seria normal acre-
ditar que não era um bom negócio vender casacos de neve na
região litorânea do Rio de Janeiro, famosa pelas belas praias e o
clima tropical. Todavia, contrariando a expectativa, o empreendi-
mento deu certo. A Osklen conquistou os turistas de Búzios que
também viajavam para estações de esqui em outras temporadas e,
apenas dois anos após a abertura da primeira loja, Oskar Metsa-
vaht já inaugurava a segunda, dessa vez no Shopping Fashion Mall,
no bairro de São Conrado, na cidade do Rio de Janeiro.
A partir dos anos 2000, a Osklen iniciou um processo de
reestruturação interna e deixou de lado um modelo de gestão fa-
miliar para se profissionalizar. Nesse movimento, a empresa con-
tratou novos quadros e trabalhou na criação de equipes e depar-
tamentos, no lançamento de uma linha feminina e na abertura
de novas lojas no Brasil e no exterior. Foi a partir desse período
que a marca, já reconhecida por seus conceitos de esportes radi-
cais e espírito aventureiro, caminhou na direção do design e da
moda com a criação da linha Osklen Collection, em 2003. A linha
Collection conta com peças mais conceituais, feitas em quantida-
de limitada e confeccionadas a partir de materiais sofisticados e
com grande preocupação estética. Ela é a vanguarda da produção
de moda da Osklen, expressa a coleção a partir de suas formas.
Na Osklen, além da linha Collection, existem ainda a linha Ca-
sual e a Osklen Surfing. A primeira é formada por um sportwear
clássico, com camisas polo, vestidos, bermudas cargo, calças e
jeans. O preço é mais acessível, os materiais são outros e o design
também. A segunda linha é a linha praia, ligada ao surf, com
bermudas e t-shirts que buscam inspiração no tema. Nessa linha
também estão os lenços, os casacos e os produtos técnicos volta-
dos para o esporte. O preço é o mesmo cobrado na linha Casual.

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118 cultura e imaginação publicitária

A primeira década de existência da marca foi dedicada à cria-


ção do que pode se chamar lifestyle Osklen, enquanto, na segun-
da, o trabalho passou a ser a transformação desse lifestyle já con-
solidado em design e linguagem de moda. Logo, o objetivo na
segunda década de existência da marca era tornar a Osklen uma
grife de moda, de design de moda e linguagem de moda. Isso fica
evidente na preocupação de que a cadeia produtiva seja focada
na qualidade produtiva e no uso de materiais sustentáveis, como
destaca Ana Carolina Braga:

A cadeia produtiva da Osklen tem início nos departamentos de


criação (artes, design, compras), de onde saem os croquis dos
itens a serem produzidos. A próxima etapa é a produção de peças
piloto, feitas pelas cerca de 40 costureiras alocadas no ateliê do
escritório central. As peças piloto, juntamente com suas informa-
ções técnicas, servirão de orientação para os fornecedores (conhe-
cidos como “facções” ou “confecções”), que as reproduzem nas
quantidades pré-determinadas. As peças denominadas Premium,
entretanto, costumam ser produzidas internamente, em razão da
complexidade de seus acabamentos e do volume de produção.
São peças com tiragem limitada, distribuídas em determinados
pontos de venda da marca, e por isso não justificam a produção
terceirizada (Braga, 2010: 111).

Braga continua sua análise e mostra como a Osklen tem a


preocupação do bom relacionamento com os fornecedores e
como os produtos são centralizados em um centro de distribuição
que é responsável por destiná-los aos diversos pontos de venda.

A maior parte da produção da Osklen é, portanto, terceirizada por


meio de parcerias com fornecedores brasileiros. Para a produção
de bermudas, por exemplo, a empresa conta com um fornecedor
exclusivo, com o qual assina contratos temporários renováveis. A
parceria foi resultado da evolução da gestão do relacionamento com
fornecedores, já que durante anos a empresa sofreu com a pulve-

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 119

rização das atividades terceirizadas entre pequenos e incapacitados


fornecedores. Toda a produção é enviada, então, para o Centro de
Distribuição, também no Rio de Janeiro, onde serão separadas e
embaladas e posteriormente, enviadas para os mais de 200 pontos
de venda onde a marca está presente (Braga, 2010:112).

Um importante fator que sem dúvida influencia no conceito


e na construção criativa da Osklen é que ela surge em meio às
discussões ambientais sobre a sustentabilidade, que ganham for-
ça nas décadas de 1980 e 1990. As perspectivas ambientalistas
entraram em cena nesse período e permanecem vivas até os dias
atuais, estando presentes na política, na economia e na cultura.
No caso da Osklen, a marca transportou as questões ambientais
para a moda e foi pioneira no que pode ser identificado como
um “luxo sustentável”. Coincidência ou não, a marca é contem-
porânea à ECO 92 e foi peça importante na Rio+20 (evento
realizado em 2012 com nome que faz referência à ECO 92),
quando lançou a coleção A21, tendo a temática da sustentabili-
dade como inspiração a partir da alusão à Agenda 21, um instru-
mento para a construção de sociedades sustentáveis.
A visão do idealizador, proprietário e diretor de criação da
Osklen sobre o mundo, seus pensamentos, valores e ideias con-
tribui para o entendimento da concepção da marca brasileira.
Como afirma o próprio Oskar Metsavaht, não é possível falar
de uma marca ou até mesmo imaginar que tenha uma existência
significativa sem um idealizador responsável por pensá-la, pois é
preciso “personificar uma marca a partir do pensamento de al-
guém” (Robic, 2011: 101). Por força dessa visão, ele acredita que
essa pessoa é fundamental para que se entenda a marca de fato:

O que eu faço: como estilista, eu componho o estilo da Osklen, eu


trago, ao longo dos anos, venho trazendo, formas, cores, imagens,
sensações, percepções de emoções que vão construindo. Então,

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tem os elementos de estilo, hoje em dia, a gente tem lá, já sabe


quais são as cores, as formas, os ícones e essa composição é o estilo.
Eu ainda sou o diretor de criação, eu sei ler essa composição, e
ainda quando pego um conceito para uma nova coleção – porque
quando você olha as campanhas da Osklen, por exemplo, muda de
fotógrafo, muda de tema de coleção, mas se você olhar é sempre
Osklen, tem uma identidade muito linear. Isso é o que eu acredito
que é a construção de um estilo, que é a base e alicerce de uma
marca, e ela perpetua (Robic, 2011: 98).

É possível dizer que Oskar Metsavaht atua na moda pen-


sando no detalhe com cuidado e minúcia; ele destaca categorias
como sustentabilidade e conforto em um segmento onde tam-
bém há o caminho do fast fashion, colocado em prática a partir
da produção em massa e muitas vezes sem compromisso com o
desenvolvimento sustentável. Sua preocupação com os detalhes
de seus temas é a busca de oferecer uma significação ainda não
percebida onde não parece existir nada muito relevante. A atua-
ção de Oskar Metsavaht é reflexiva e passa pela observação do seu
comportamento e dos outros.
Como veremos adiante, Oskar Metsavaht, ao fazer moda,
reproduz uma postura atenta ao detalhe que aparece em temas,
objetos de pesquisa e atitudes intelectuais de alguns antropólo-
gos que estudaram a cultura brasileira (DaMatta, 1979 e 1985;
Barbosa, 1992; Rocha, 2003). Eles analisaram o Brasil a partir
da esfera da cultura e seus detalhes, dedicando-se às particulari-
dades brasileiras que podem ser percebidas em representações,
casos, fenômenos, histórias, eventos e atitudes cotidianas.
O criador da Osklen entende que a marca tem um consumi-
dor específico, ela pretende ser esse consumidor, compartilhando
seu estilo de vida, hábitos, práticas e sonhos. Sua criação é para
esse grupo, pois quando cria pensa em fazer para si mesmo e,
nesse processo, acaba por produzir também para as pessoas que

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 121

têm sensibilidades e gostos próximos do seu. O foco da Osklen


está na qualidade em todos os termos. Isso é fundamental para
legitimar a marca, para conquistar, encantar e ter aura. Oskar
Metsavaht acredita que “uma grande marca tem aura” (Robic,
2011: 101) e que, nos dias atuais, o desafio está em tornar o
intangível perceptível e legítimo.
Segundo o discurso oficial da Osklen, a marca “se inspi-
ra no dinamismo da metrópole e na exuberância da natureza
brasileira”.6 Esse retrato autoconstruído apresenta o conceito da
marca de maneira resumida, o que ela busca representar e onde
encontra inspiração. Incorporando e representando à sua manei-
ra o que há de particular no imaginário brasileiro, a Osklen tra-
balha na dualidade e na convivência da cultura contemporânea
entre a natureza e o urbano, o local e o global, o tecnológico e o
orgânico. Seu objetivo é mediar e expressar essas contradições do
tempo presente e, dessa forma, a marca acredita que define, pro-
duz e disponibiliza mais do que produtos, almejando ser criado-
ra e representante de um “estilo de vida autêntico e genuinamen-
te brasileiro, ao mesmo tempo contemporâneo e cosmopolita”.7
De fato, a Osklen atingiu um patamar inédito para marcas
brasileiras de moda. Seus produtos estão presentes em várias das
grandes cidades mundiais e a narrativa que faz sobre si mesma
pode ser entendida como uma interpretação particular do imagi-
nário brasileiro, definido pela marca como o brazilian soul. É essa
a curiosa e complexa mecânica da marca Osklen – reinterpretar
nosso imaginário, transformando nossa relação com a “natureza”
e o nosso jeitinho em fundamentos de um “novo luxo” alternati-
vo em relação ao mainstream do luxo internacional.

6
Frase retirada da página oficial da marca no Facebook.
7
Retirado da página oficial da Osklen no Facebook.

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122 cultura e imaginação publicitária

Os consumos e o consumo de luxo

Antes de aprofundar o estudo sobre a Osklen em sua rela-


ção com o imaginário brasileiro, é importante refletir sobre o
consumo e, com isso, entender um pouco mais certos aspectos
do mercado de consumo de luxo. Pensar sobre esse segmento
específico, passa por refletir sobre o consumo em sua estrutura
simbólica, seus significados e os usos dos bens, além de debater
as complexas relações desse fenômeno com a cultura, o poder,
o prestígio, a distinção social, a classificação, as identidades, o
ritual, a emoção e o pensamento mágico.
O consumo é uma das bases do mundo moderno ao lado da
produção. Ele é uma das pontas que possibilita a existência do
sistema econômico e sociocultural no qual vivemos. Contudo,
é curioso notar que, a despeito da centralidade do consumo na
modernidade, as ciências sociais observaram e estudaram muito
mais detidamente os assuntos que fazem parte do universo da
produção. Os estudos dos grandes pensadores dos séculos XIX e
XX se dedicaram a pensar a produção e os fenômenos, causas e
consequências ligadas a ela, como suas transformações técnicas,
o desenvolvimento das forças produtivas, seus múltiplos confli-
tos e as questões relacionadas ao trabalho. As reflexões se con-
centraram no eixo da produção, deixando de lado o consumo, a
outra ponta constitutiva da esfera econômica e da própria confi-
guração da modernidade. Esse quadro de pouca ou nenhuma re-
flexão sobre o consumo foi bem descrito por Grant McCracken:

É curiosidade para a sociologia do conhecimento que o papel


da revolução do consumo na “grande transformação” tenha sido
sistematicamente e por tanto tempo ignorado. É uma curiosidade
adicional que este período de negligência pareça ter terminado tão
subitamente com o surgimento não de um, mas de vários traba-
lhos substanciais dedicados a este tópico. Se a causa desta longa

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 123

negligência não o é aparente, suas consequências, entretanto, o


são. A história do consumo não tem história, não tem uma comu-
nidade nem tampouco uma tradição acadêmicas. É, nas palavras
de T. S. Kuhn, “pré-paradigmática”. Ou, talvez seria mais acurado
dizer, é “recém-nascida” (McCracken, 2003: 50).

Com exceção do estudo pioneiro A teoria da classe ociosa de


Veblen (1965), publicado em 1899, foi apenas a partir da se-
gunda metade do século XX que o consumo começou a ganhar
maior centralidade e passou a ser entendido como uma esfera
fundamental na sociedade contemporânea. A sugestão de Eve-
rardo Rocha (2006) é que produção e consumo são como duas
faces de uma mesma moeda, elementos articulados no qual um
termo só se completa pelo outro, pois, como afirma Marshall
Sahlins (1979: 188), “sem consumo, o objeto não se completa
como um produto: uma casa desocupada não é uma casa”. A
produção é uma “intenção cultural” (Sahlins, 1979), é a repro-
dução da cultura em um sistema de objetos que dialogam entre
si e com o todo, como explicaram Douglas e Isherwood (2009).
Em seu estudo sobre as relações entre o romantismo e o con-
sumo moderno, Campbell (2001) destaca a dimensão comple-
mentar ao que Weber (2007) analisou no seu texto clássico sobre
a ética protestante e o espírito do capitalismo. Para Weber, o
protestantismo contribuiu significativamente na consolidação
do capitalismo através da ideia de trabalho como finalidade de
vida e louvação a Deus; da noção de preguiça como sintoma
de ausência de estado de graça; da concepção de que o lucro
seria a representação da vontade divina; da possibilidade de co-
municação direta entre qualquer homem e Deus, sem interme-
diários. Todavia, Campbell indica que não seria suficiente para
a modernidade apenas a produção fortalecida e o ethos do tra-
balho, apoiados pelos ideais protestantes. Para a consolidação

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124 cultura e imaginação publicitária

do sistema capitalista era preciso mais, principalmente no que


diz respeito ao estímulo de gastos através do consumo. Assim, o
romantismo, e sua ideologia capaz de sustentar o consumo, foi
necessário para a complementação do processo. Ser romântico
implicou em consumo uma vez que se traduzia em ser diferente,
sonhador, imaginar, fantasiar, vestir roupas requintadas, possuir
objetos, animais, casas no campo e na cidade, frequentar cenários
maravilhosos, assistir peças de teatro, admirar música, acumular
saberes, exibir bom gosto, entre outras práticas e ideologias que
se traduziam em evidentes e variadas formas de consumo. Para
Campbell (2001), foi a ética romântica e o estilo de vida que
dela derivava que desenvolveu o gasto como um elemento cen-
tral, modelando a modernidade, sintonizando as esferas da pro-
dução e do consumo.
Assim, se por um lado a produção está articulada ao protes-
tantismo, por outro o consumo está articulado ao romantismo.
Dois processos culturais que, em certo sentido, moldam o uni-
verso econômico no seu formato capitalista. É exatamente isso
o que nos mostra Sahlins e, com um exemplo muito simples e
revelador, ensina que as escolhas humanas não são pautadas por
razões práticas, econômicas, utilitárias ou biológicas, mas pela
ordem cultural e simbólica:
O que determina que as calças são de uso masculino e as saias de
uso feminino não têm necessariamente conexão com suas caracte-
rísticas físicas ou com as relações que advêm dessas características.
É por sua correlação em um sistema simbólico que as calças são
produzidas para os homens e as saias para as mulheres, e não pela
natureza do objeto em si nem por sua capacidade de satisfazer
uma necessidade material – assim como é pelos valores culturais de
homens e mulheres que os primeiros normalmente se incumbem
dessa produção e as mulheres não. Nenhum objeto, nenhuma coi-
sa é ou tem movimento na sociedade humana, exceto pela signifi-
cação que os homens lhe atribuem (Sahlins, 1979: 189).

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 125

A centralidade do consumo como fenômeno cultural e sim-


bólico também está presente na análise de Douglas e Isherwood
(2009) que mostram como ele pode ser decisivo para a com-
preensão da experiência contemporânea. O consumo deve ser
entendido como um fenômeno coletivo, um sistema do qual os
bens e os seres humanos fazem parte e onde existem recíprocas
traduções entre eles que tanto igualam quanto diferenciam em
um complexo jogo de complementaridades, hierarquias e de-
pendência. Essa rede de comunicação dos bens e das pessoas faz
com que cada um e todos os bens de consumo adquiram seu
valor e significado em relação ao sistema, ao todo mais amplo no
qual se encontram e com o qual se articulam:

Nada tem valor por si mesmo: qual a vantagem de um sapato


sem o outro? Um pente para a calvície? Como o valor é confe-
rido pelos juízos humanos, o valor de cada coisa depende de seu
lugar numa série de outros objetos complementares. Em vez de
tomar um objeto de cada vez, e encontrar a informação que ele
transmite, como se fosse um rótulo indicando uma coisa, a abor-
dagem antropológica captura todo o espaço de significação em
que os objetos são usados depois de comprados. Toma a realidade
como dada e acredita que ela é socialmente construída (Douglas
e Isherwood, 2009: 41).

Para os autores, bens são neutros e têm usos sociais. Eles


atuam na criação de muros e pontes, servem para distanciar e
aproximar, além de, nesse processo, ligarem bens com bens, pes-
soas com outros bens e com outras pessoas. Portanto, os bens
podem ser usados tanto para a inclusão em ambientes e grupos
quanto para afastar indesejados. Eles estabelecem e mantêm as
relações sociais, representam o indivíduo na vida cotidiana, são
como palavras que quando articuladas com outras palavras pro-
duzem sentido.

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126 cultura e imaginação publicitária

No fenômeno do consumo, um tema em particular mere-


ce ser examinado mais detidamente nesse trabalho. Trata-se do
consumo de luxo, as características atuais desse mercado, sua
organização e o espaço ocupado pela Osklen no cenário global
do segmento. O estudo de Lipovetsky e Roux (2005) mostra
que, desde a década de 1980, o consumo de luxo passa por um
processo amplo de transformação. O luxo entrou no caminho
da democratização de massa, com a expansão de seu mercado
para além dos grupos de maior poder econômico, principalmente
aqueles de origem europeia e norte-americana. A diretriz é tornar
o inacessível acessível para um conjunto cada vez maior de con-
sumidores, objetivando potencializar os lucros. É nesse momento
que as grandes marcas passam a importar profissionais oriundos
do mercado de grande distribuição e formados nas principais es-
colas de negócio do mundo. Com essas ações, trazem o conheci-
mento e a capacidade de dialogar com um público mais amplo e
diferente dos tradicionais consumidores do segmento.
Nesse processo de mudança de perspectiva, o mercado do
luxo precisou se reinventar estruturalmente. Antes organizado
a partir de propriedades familiares, com produção de base arte-
sanal e capital fechado, o luxo entra de fato na lógica financeira
e abre espaço para os grandes investidores. A partir daí, são fre-
quentes as fusões e as negociações multimilionárias nas compras
das casas tradicionais pelos conglomerados financeiros – grupos
que compram e gerenciam marcas de luxo. É um movimento de
concentração no qual se reduz o número de grandes players desse
mercado num processo de transição de uma lógica “artística” do
luxo para outra de base essencialmente financeira.

Portanto, daí em diante o luxo tem a estrutura de uma verdadeira


indústria concentrada, em que estão ombro a ombro, de um lado,
poderosos grupos financeiros com recursos importantes e, de ou-
tro lado, pequenas empresas cujos capitais ainda são familiares.

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 127

Esse confronto, associado ao aumento dos custos das barreiras à


entrada internacional, levou desde então muitas casas a abando-
nar, de maneira deliberada ou forçada, sua independência, para
filiar-se a esses grupos ou para ser muito simplesmente absorvidas
por eles (Lipovetsky e Roux, 2005: 91).

Seguindo o caminho traçado, o mercado do luxo dividiu-se


hierarquicamente e criou um sistema baseado na diversificação.
Essa nova hierarquia é explicada por Allérès (2006) a partir da
existência de três segmentos de luxo: o luxo inacessível, o luxo
intermediário e o luxo acessível – aquele criado para estar ao
alcance de um público mais amplo. O que chama atenção nesse
quadro é que, apesar da manutenção da atividade de consumo
dos tradicionais consumidores de luxo, há o crescimento e o in-
vestimento significativo em consumidores ocasionais, principal-
mente aqueles que fazem parte das camadas médias urbanas e
vivem nos países emergentes. Para isso, as marcas de luxo rein-
ventam a publicidade do setor, midiatizam-se, aprimoram e ex-
pandem seus canais de distribuição (Lipovetsky e Roux, 2005),
incorporam o e-commerce e preocupam-se com as sensações pro-
porcionadas pelas lojas.
Analisando a comunicação do luxo, especificamente a pu-
blicidade, é visível que ela precisou se reinventar. O objetivo da
nova publicidade do luxo seria “recuperar a dimensão de desa-
fio, explorando a veia da transgressão” (Lipovetsky e Roux 2005:
63), através de signos ousados, de alusões ao sexo, à orgia, ao
lesbianismo, à masturbação e à liberdade. Não é qualquer um
que pode se qualificar para transmitir essas mensagens publi-
citárias. Assim, as mensagens publicitárias das marcas de luxo
são transmitidas pelos principais ícones da cultura de massa. Na
maioria das vezes, as campanhas das grandes marcas são estrela-
das por influentes nomes do cinema, da televisão, do esporte e
das artes. Os astros repassam credibilidade e peso simbólico para

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128 cultura e imaginação publicitária

os produtos ofertados, ampliando as possibilidades de acessar


um público maior, de diferentes classes sociais, grupos, hábitos,
comportamentos e valores. Essa estratégia traduz uma modali-
dade de “imitação prestigiosa” (Mauss, 1974), pretendendo que
consumidores reproduzam comportamentos, hábitos e corpos
daqueles que seriam os grandes seres prestigiados em seu imagi-
nário. No caso da sociedade moderno-contemporânea, os porta-
dores desse prestígio são profissionais ligados, principalmente, à
indústria do entretenimento e é através deles que se estabelece o
diálogo com um público cada vez mais diversificado.
Outro fator desse momento de expansão do luxo é o cres-
cimento do mercado em novas regiões do mundo. Tradicional-
mente focado nos consumidores norte-americanos, europeus e
japoneses, nos últimos anos as marcas de luxo caminharam na
direção dos “países emergentes”, sobretudo China, Rússia e Bra-
sil. Esse movimento acarretou localmente duas consequências: a
atração das grandes marcas para se estabelecerem nos países e o
crescimento de marcas locais, como o caso da brasileira Osklen.
O Brasil, em especial, é visto como uma importante área de in-
vestimento para o mercado do luxo. Um estudo recente da GFK
– consultoria especializada em luxo – mostrou que os brasileiros
gastaram mais de R$ 15 bilhões em artigos de luxo no ano de
2010.8 A matéria da revista Exame “Classe média: eles querem
(e compram) o luxo”9 trata do fascínio da classe média brasileira
por produtos de luxo e mostra, a partir de uma pesquisa do Data
Popular, que a classe média já representa mais da metade da po-
pulação brasileira, enquanto as classes mais altas somam 16%.
Outra matéria da mesma revista, destaca que o Brasil também

8
“Brasileiros gastaram mais de R$ 15 bilhões em artigos de luxo em 2010.” Publica-
do em www.epocanegocios.globo.com em 27 de maio de 2011.
9
“Classe média: eles querem (e compram) o luxo.” Publicado em www.exame.
abril.com.br em 4 de junho de 2011.

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cresce em número de ricos, já que, em 2011, o país somou 165


mil novos milionários,10 sendo, junto com a China, o país que
mais cresceu nesse grupo. O potencial do Brasil para o luxo é des-
tacado ainda em projeções da Fundação Getúlio Vargas (FGV),
que apontam um crescimento de 29% na população das classes
A e B entre 2012 e 2014.11 A relevância do Brasil para o merca-
do de luxo não se esgota nessa capacidade de consumo. A moda
brasileira também ganha espaço internacional e a Osklen, por
exemplo, se destaca no segmento do luxo também no mercado
norte-americano e europeu. A marca, como dissemos, representa
um “novo luxo” que é global e pautado pela preocupação com
a sustentabilidade, o cuidado com a produção, a atenção aos
detalhes de acabamento e design e, principalmente, na releitura
que a marca faz do imaginário brasileiro, a partir do chamado
brazilian soul. Assim, para entender melhor a estratégia narrativa
que pretende tecer uma relação consistente entre o imaginário
brasileiro e o mercado de luxo, é importante começarmos por
debater certos aspectos de nossa cultura e vida social tal como
identificados em trabalhos das ciências sociais que tiveram como
objeto a análise da cultura brasileira.

O Brasil traduzido em luxo

Para debater a forma pela qual o imaginário brasileiro é apro-


priado pela Osklen é preciso recorrer a uma tradição de estudos
que tem como preocupação entender nossa cultura, os significa-
dos que damos às nossas vidas, nossas imagens e representações,
experiências coletivamente compartilhadas, nossas ambiguida-

10
“Número de milionários cresce no Brasil e chega a 165 mil.” Publicado em
www.exame.abril.com.br em 20 de junho de 2012.
11
“País terá 118 milhões na classe C até 2014, prevê FGV.” Publicado em www.
globo.com em 7 de março de 2012.

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des e paradoxos. O Brasil, enfim, tal como se revela através de


suas ideologias, seus detalhes, seus dramas sociais. Vamos exami-
nar, portanto, as reflexões que indicam a centralidade do dilema
brasileiro e o lugar nele ocupado por temas como cordialidade,
mistura, natureza, dualidade, entre outros.
A discussão dos dilemas e ambiguidades do Brasil pode ser
localizada em textos clássicos como Casa grande e senzala, de
1933, e Sobrados e mucambos, publicado em 1936, ambos de
Gilberto Freyre; além das contribuições de Sérgio Buarque de
Holanda em Raízes do Brasil, também de 1936, e Visão do paraí-
so, de 1959. Ainda mais recentemente nos estudos de DaMatta
como Carnavais, malandros e heróis, de 1979, e A casa e a rua, de
1985; assim como em trabalhos de outros antropólogos (Barbo-
sa, 1992; Rocha, 2003).
Também a ideia de “natureza” em nosso imaginário come-
ça, em certo sentido, a ser elaborada muito cedo com a própria
carta de Pero Vaz de Caminha que descreve a terra descoberta
como um lugar “em que se plantando tudo dá”. Desde o des-
cobrimento uma percepção da “natureza” como abundante, ge-
nerosa, de riqueza infinita, dádiva divina encantou portugueses
que viram aqui uma espécie de paraíso, um “Jardim do Éden”,
com geografia extraordinária e recursos naturais infinitos. É essa
imagem que aparece nas observações dos primeiros estrangeiros
que pisaram em solo brasileiro, como mostra Sérgio Buarque de
Holanda em Visão do paraíso:

E é quando muito à guisa de metáfora que o enlevo ante a vege-


tação sempre verde, o colorido, variedade e estranheza da fauna,
a bondade dos ares, a simplicidade e inocência das gentes – tal
lhes parece, a alguns, essa inocência que, dissera-o já Pero Vaz de
Caminha, “a de Adão não seria maior quanto à vergonha” –, pode
sugerir-lhes a imagem do Paraíso Terrestre (Holanda, 2000: 7).

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O paraíso terrestre infinitamente generoso é uma represen-


tação bastante presente no imaginário brasileiro e que, muitas
vezes se traduz em desperdício, em sensação de que a água, o
sol, a terra, o mar, o verde, tudo é abundante como um recur-
so infinito. Nada jamais poderá acabar. Assim, a representação
de uma “natureza” de absoluta abundância marca o imaginário
brasileiro. Nossa colonização, desde a madeira que nos deu o
nome, foi voltada para a exploração indiscriminada da nature-
za. Nosso hino ensina que cada um de nós está “deitado eter-
namente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu
profundo”, pois somos “gigantes pela própria natureza”, além
de belos, fortes e impávidos colossos temos um “formoso céu,
risonho e límpido”, uma “terra mais garrida” e nossos “lindos
campos têm mais flores, nossos bosques têm mais vida”. No
Brasil, abundância e prodigalidade são bem vistas e é triste a
figura do “pão duro”, “zura”, do “sovina” e do que “poupa”.
Nossas festas populares são também festas de abundância,
onde é comum o excesso e o exagero de um estilo dionisíaco
no qual a regra é fartura total e despojamento. A representação
de uma “natureza” infinitamente abundante se traduz em com-
portamentos concretos de desperdício experimentados no dia
a dia: ar refrigerado ligado e portas abertas, cantar e meditar
nos banhos e o uso excessivo da água se articulam como nossa
noção de higiene – afinal, temos um oceano imenso e o maior
rio do mundo em volume d’água –, necessitamos de múltiplos
barulhos – televisão, rádio, computador, música, tudo ligado
ao mesmo tempo – para nos sentirmos acompanhados e em
“casa”. Podemos gastar ao infinito, pois nossa bandeira garante
que o verde representa as florestas vastas, o azul é do céu infini-
to e o amarelo do ouro que nunca faltará. Todas essas práticas
cotidianas são sustentadas por essa grande representação que
nos ensina sobre a infinitude da nossa “natureza”.

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132 cultura e imaginação publicitária

Mas, esse “paraíso terrestre”, essa “terra da abundância” re-


cebe uma sociedade que desde sua colonização experimenta di-
versos antagonismos. Como indicou Gilberto Freyre (1975), a
sociedade brasileira vive, desde sua formação, uma série de pa-
radoxos de economia e de cultura – o bacharel e o analfabeto, o
jesuíta e o fazendeiro, a cultura europeia e a africana, a africana
e a indígena, o senhor e o escravo –, evidenciando que a dua-
lidade, as divisões e dilemas são partes fundamentais da nossa
cultura. No entanto, indica também a existência de uma busca
do equilíbrio entre eles, sugerindo uma mistura positiva onde
os antagonismos devidamente equilibrados contribuiriam para
a manutenção de uma cultura saudável. Assim, os antagonismos
tornam-se positividade enriquecida, de um lado, pela emoção,
espontaneidade e imaginação e, por outro lado, pela apropriação
que a elite faz da ciência, da técnica e do pensamento europeu.
No Brasil haveria “o encontro, a intercomunicação e até a fu-
são harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de
cultura” (Freyre, 1975: 52). Para ele, nossa cultura transforma
ambiguidades e antagonismos em harmonização dos contrários,
numa convivência de metades que contribuem com experiências
e valores opostos e, assim, fazem com que a completude não seja
obtida pelo sacrifício de uma parte ou outra.
Na perspectiva de DaMatta (1979), o que vemos na cultura
brasileira não é uma fusão harmoniosa de antagonismos, mas a
operação simultânea de éticas opostas que formam o paradoxo
brasileiro. De um lado, a esfera pública com suas leis, mercados
e indivíduos e, do outro lado, o mundo privado dominado pelos
amigos, compadres e familiares. São essas instâncias da “casa” e
da “rua” que estruturam nossa ambiguidade e nos fazem viver
entre a tradição e a modernidade que se atualizam caso a caso.
No Brasil o ditado ensina “aos inimigos a lei, aos amigos tudo!”
e, assim, adversários recebem o tratamento impessoal do rigor

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da lei, a eles cabe sua aplicação, sem qualquer atenuante. Mas,


quando tratamos de amigos tudo é possível, até mesmo transfor-
mar a lei em algo maleável para que não se aplique “contra” os da
“casa” na “lógica de uma sociedade formada por ‘panelinhas’, de
‘cabides’ e de busca de projeção social” (DaMatta, 1979: 168).
Temos, portanto, uma alternância entre realidades opostas.
Uma baseada em leis gerais, códigos burocráticos e pela ideia
de impessoalidade e igualdade, outra composta por relações
pessoais, o jeitinho e a malandragem. No primeiro caso, o foco
principal está no Estado e no indivíduo enquanto, no segundo,
está na sociedade e na relação, o que importa é a “consideração”,
o “favor”, o tratamento diferenciado. Convivemos, portanto,
com duas vertentes, na alternância de experiências ambíguas – o
jeitinho e a regra, o indivíduo e a pessoa, o malandro e o Caxias,
a “casa” e a “rua”. Diante do dilema insolúvel, o sistema produz
um terceiro termo que DaMatta (1985) chama de “outro mun-
do”, onde impera a ética da renúncia diante da impossibilidade
de sintetizar os outros dois códigos.
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda relaciona
nossa formação e características com a influência da colonização
portuguesa. No Brasil, a manifestação de respeito se traduz “no
desejo de estabelecer intimidade” (1995: 148).

O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja


ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da
vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com fa-
cilidade. (...) Um negociante da Filadélfia manifestou certa vez a
André Siegfried seu espanto ao verificar que, no Brasil como na
Argentina, para conquistar um freguês tinha necessidade de fazer
dele um amigo (Holanda, 1995: 148 e 149).

Em outras palavras, dar um jeitinho de transformar relações


comerciais em afeto. Barbosa (1992) mostra que existem duas

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visões sobre o jeitinho: uma negativa e outra positiva. A negativa


liga sua prática à corrupção, enquanto a positiva valoriza as ca-
racterísticas como “quebrar um galho”, a malandragem, o “jogo
de cintura” e a ginga. O uso do jeitinho evidencia a capacida-
de do brasileiro de agir em diferentes situações, improvisando e
criando caminhos diferentes dos preestabelecidos pelas normas
legais ou institucionais. No sentido positivo, o jeitinho é uma
forma muito particular de solucionar problemas, situações com-
plexas ou proibidas; uma eventual saída criativa e inusitada que
não segue necessariamente as regras estabelecidas. Há no jeitinho
brasileiro um tom de habilidade, de conciliação e de esperteza.
Ele aparece no imprevisto, em situações adversas do que se quer,
exatamente para solucioná-las através de mecanismos eficientes
(Barbosa, 1992).
O jeitinho também pode ser visto como capaz de humanizar
as relações. Sem ele tudo seria muito rígido, imperariam a frieza
e a impessoalidade. Essa perspectiva entende que a vida não é
fria e “certinha”, portanto, o jeitinho existe para atuar nas even-
tualidades cotidianas. Para Barbosa, “esses fatores são percebidos
por meio de uma perspectiva claramente relacional, em que a re-
ciprocidade e a complementaridade são aspectos fundamentais”
(1992: 171). O jeitinho é uma espécie de identidade-símbolo,
uma maneira através da qual percebemos a nós e a nossa vida
social que privilegia aspectos relacionais em detrimento dos ins-
titucionais, enfatizando a vertente da “casa” na cultura brasileira.
Certos aspectos do jeitinho se refletem também nas represen-
tações do futebol na cultura brasileira. Rocha (2003) analisou as
imagens das seleções brasileiras nas Copas do Mundo, identifi-
cando que as mais lembradas e queridas são aquelas que melhor
expressaram nosso “verdadeiro futebol”, baseado em uma genia-
lidade do improviso e na estética do espontâneo. Nessas ideali-
zações da seleção, o futebol brasileiro negaria o jogo planejado,

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 135

estável e esquemático que caracterizaria uma ética da “rua” e, de


forma significativa, remeteria para a ética da “casa”, ao enfatizar a
inventividade, o drible, o futebol solto, natural, moleque, rebel-
de, criativo, no qual o jeitinho traduz a genialidade do jogador.
Planejamento, organização, treinamento, obediência a esquemas
táticos da equipe, comando e o próprio treinador seriam menos
importantes do que a “habilidade natural” e o “talento mágico”
do brasileiro para o futebol. Nosso estilo de jogar futebol é uma
oposição ao que seria a maneira europeia vista como organizada
e de força física, algo sem muito valor, pois seria fechado, preso,
duro de cintura, esquemático e planejado. Por isso, mesmo pas-
sadas décadas, a derrotada seleção da Copa de 1982 permanece
como um dos mais amados times da nossa história idealizada
do futebol. Por outro lado, a seleção campeã mundial em 1994,
jogando um futebol focado no esquema tático e na organização
em campo não é tão privilegiada. Na mídia esportiva e nas ruas,
os discursos mostravam, na época, a insatisfação com aquele fu-
tebol jogado em 1994 – pragmático, “fechado” e “retranqueiro”,
com mais cara de Europa do que de Brasil (Rocha, 2003). Isso
indica que, na imagem da seleção brasileira de futebol, o viés
dominante é de que nosso “verdadeiro” jogo deveria acontecer
muito mais pela magia do talento, pelo nosso jeitinho do que
pela organização ou planejamento.
Assim, como vimos, jeitinho e “natureza” correspondem a
representações e práticas importantes no imaginário brasileiro.
Ambas são fortemente ambíguas como retratos que são de uma
estrutura cultural presa no paradoxo de ser “casa” e “rua”, tradi-
ção e modernidade a um só tempo. É interessante notar que no
caso da Osklen o que chamam de brazilian soul é o esforço bem
sucedido de reunir, e interpretar pelo melhor lado, essas duas
representações. A Osklen delas se apropria e as transforma em
narrativas e produtos de “novo luxo”, ao aliar jeitinho e “natu-

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reza” com práticas e conceitos como responsabilidade, estraté-


gia e organização empresarial. O que vamos examinar a seguir,
são os mecanismos simbólicos através dos quais a marca toma
nossa representação da “natureza” – com suas ideias de beleza e
abundância e suas práticas do desperdício – e a transforma em
sustentabilidade e responsabilidade ecológica e toma o jeitinho
brasileiro – com sua plasticidade criativa e seus desdobramentos
destrutivos – e o transforma em despojamento, ar tranquilo, es-
tilo cool contemporâneo e cosmopolita.

O jeitinho é cool, a “natureza” é séria

As narrativas produzidas, em múltiplos planos, pela Osklen


– anúncios, sites, visual das lojas, atendimento, produtos, entre
outros – para criar seus significados de marca e com eles envol-
ver seus produtos passa por uma certa visão e uma interpretação
particular do imaginário brasileiro. Assim, duas representações
e experiências centrais da nossa cultura – jeitinho e “natureza” –
recebem uma releitura que as transforma em signos de produtos
de luxo. Mais ainda, um tipo de luxo sobre o qual se pode dizer
que é alternativo ao mainstream internacional, tradicionalmente
baseado em padrões europeus e norte-americanos, e por isso crian-
do um conceito que pode ser chamado de “novo luxo”. Vamos ver,
através da visão do seu criador Oskar Metsavaht e de elementos
como o marketing, o site oficial e as coleções, como o imaginário
da cultura brasileira é transformado em uma narrativa utilizada
pela Osklen para se construir enquanto marca forte desse “novo
luxo”. Será essa narrativa que irá transformar nossas experiên-
cias ambíguas da “natureza” e do jeitinho em termos, referências
e sensações contemporâneas, elegantes, politicamente corretas,
socialmente responsáveis como preocupação ecológica e susten-
tabilidade, em um caso, e estilo cool e ar despojado, no outro.

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A primeira noção importante para nossa análise aparece


no discurso de Oskar Metsavaht. Em palestra realizada no TE-
DxRio, em 2011, o criador da Osklen define que durante o sécu-
lo XX o american dream – o estilo de vida norte-americano – era
uma espécie de guia de comportamento, indicando um único
caminho a ser seguido para a realização dos sonhos. A cultura
norte-americana pregaria a importância da vitória, o foco em ser
competitivo, melhor e mais forte. Na visão de Oskar Metsavaht,
vivemos na década de 1990 um período em que tudo que vinha
do exterior era considerado superior e, naquele momento, os
brasileiros empenharam-se em viver – nesse caso, consumir – o
american dream. O que era estrangeiro carregava um significado
positivo, moderno, inovador e acima do que tinha origem local.
Diante desse processo de desvalorização do que era brasileiro, a
Osklen apresentou a ideia do brazilian soul, caminhando contra
a corrente ao afirmar que o Brasil é cool, que o lifestyle brasileiro
tem muito a falar para o mundo e que nosso jeito de ser se tra-
duz numa experiência de estilo de vida que encanta e conquista.
A valorização do brazilian soul podia ser vista nas estampas das
roupas da Osklen em expressões como “cool and brazilian” ou
“brazilian soul”. Como disse Oskar Metsavaht:12

Eu acho que isso foi uma das coisas mais legais que eu fiz para a
sociedade brasileira. Colocar a autoestima do que nós somos, os
nossos valores, dentro de uma linguagem de expressão de moda,
como a europeia e a americana. Não é só a roupa não, é a campa-
nha e toda a comunicação. A cultura midiática europeia e ameri-

12
Todos os depoimentos de Oskar Metsavaht nesta parte do trabalho, salvo
indicações explícitas, foram retirados do capítulo cinco “Osklen por Oskar –
as entrevistas” da Tese de Doutorado de Luciane Robic que, generosamente,
diz: “As entrevistas (...) foram transcritas aqui praticamente na íntegra, com o
objetivo de permitir ao leitor imergir também no universo da marca e, assim,
aprofundar seu conhecimento, tirar suas próprias conclusões e, caso desejado,
estender novos estudos a partir desse material” (Robic, 2011: 97).

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cana são fortes porque elas são boas! Mas eu vou escrever a nossa
essência, o que tem por traz disso, que eu chamo de brazilian soul
e que é inatingível.

Na visão do criador da Osklen, quem vem para o Brasil vem


para ver a natureza e conhecer o povo brasileiro. Todos voltam
para seus países falando como nossa natureza é bela e como o
povo brasileiro é alegre, feliz, bonito e sensual. Oskar Metsavaht
avalia que “o gringo não vem aqui pra visitar galerias, como nós
fazemos lá fora. Eles vêm pra andar de chinelo, usar a fitinha do
Senhor do Bonfim, tomar água de coco na orla” e de fato viver
nosso estilo. É através da captação e da operacionalização dessa
imaterialidade dos sentimentos transmitidos pelo Brasil que a
Osklen transforma “natureza” e jeitinho em produto e narrati-
va de um “novo luxo”. De fato, encantar e seduzir são uma di-
mensão do “homem cordial”, do “verdadeiro futebol brasileiro”,
da positividade do jeitinho e também da “natureza” abundante,
vasta e bela.13 Nesse sentido, o que procuramos mostrar é que a
Osklen parte do mesmo princípio. A marca se utiliza dessas in-
terpretações específicas de certas imagens do Brasil para seduzir
consumidores e, para isso, ela reinventa uma série de caracterís-
ticas do “encanto” brasileiro. Outra vez, nas palavras de Oskar
Metsavaht:

A missão da Osklen é “encantar” as pessoas com nosso estilo, de-


sign e serviços. É isso: “encantar”. A pessoa quando entra aqui
pode até ter comprado alguma coisa, mas não adianta só comprar,
tem que sair encantada. É minha forma de seduzir, minha forma
de compartilhar tudo isso que a gente quer passar. O intangível

13
Essa capacidade brasileira de seduzir e encantar também tem destaque na
reflexão de Sérgio Buarque de Holanda (2000) sobre as percepções e avaliações
dos primeiros estrangeiros que pisaram em solo brasileiro na época do desco-
brimento.

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está muito visível para mim, é uma linguagem que eu domino,


está muito presente para mim.

O que a Osklen chama de brazilian soul, o lifestyle no qual


investe, parece estar em sintonia com as experiências pelas quais
temos que passar como parte do acervo da existência contempo-
rânea, o nosso tempo presente, marcado por constantes e pesa-
das alterações do “eu” que Anthony Giddens chamou de “mu-
dança maciça” (2002: 79) que tem como componente central
a pluralidade de escolhas identitárias. Estabelecemos relações
com uma ampla variedade de escolhas, pois as culturas dispo-
nibilizam séries indeterminadas de padrões de comportamentos
possíveis entre os quais temos que optar. Assim, cada estilo de
vida reproduz um conjunto de representações e práticas que um
indivíduo introjeta e que não são planejadas para preencher ne-
cessidades baseadas no utilitarismo, mas principalmente para dar
materialidade à narrativa que define sua auto identidade. Estilo
de vida supõe escolhas em um repertório disponível cultural-
mente e diante do qual não temos maiores compromissos de
escolher esse ou aquele modelo, apenas temos uma incessante
pressão, no limite obrigação, de escolher algum modelo, pois
“nas condições da modernidade, não só seguimos estilos de vida,
mas num importante sentido somos obrigados a fazê-lo” (Gid-
dens, 2002: 79).
Construir um estilo de vida, disponibilizar um modelo, a par-
tir da interpretação da positividade contida em duas representa-
ções centrais da cultura brasileira, como nossa “natureza” e nosso
“jeito de viver”, tornam-se as bases fundamentais no lifestyle da
Osklen – o brazilian soul. Com criatividade, organização e estra-
tégia, a marca transforma essas representações em “novo luxo”,
incorporando elementos como estética, legitimidade, espirituali-
dade, glamour, sensualidade e modernidade. A Osklen transforma

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“natureza” em ecologia e sustentabilidade, e o jeitinho brasileiro


em despojamento, ar descolado, surf, montanhismo, prática es-
portiva, contemporaneidade e cosmopolitismo. É nesse sentido
que a Osklen se diferencia das demais marcas e consegue espaço
próprio no mercado internacional de luxo, estabelecendo um
estilo singular e alternativo – o novo luxo. Isto se confirma nas
palavras do criador da marca:

Empresas de produtos e serviços que não tiverem a essência, não


terão esse diferencial. Hoje em dia, tem diversas empresas produ-
zindo bons produtos com bons serviços, divulgados por agências
de publicidade com talento para construir uma boa imagem. Isso
sempre funcionou, só que, hoje em dia, todo mundo faz imagem
boa, e todo mundo faz prestação de serviços boa, ou seja, você tem
condições de ter isso junto. Mas quem se diferencia são aquelas
marcas onde o intangível é perceptível. Para que ele seja perceptí-
vel, deve ser legítimo, para que seja legítimo, o consumidor quer
uma história imaginada que seja sua, e que isso seja uma coisa
desejada. Cabe à empresa transformar esse desejo no espírito da
marca, e aí é essencial ter um repertório.

“Uma história imaginada que seja sua” é o que se deseja de


uma narrativa para que ela resolva os problemas das escolhas
compulsórias contemporâneas entre os múltiplos “estilos de
vida” e “identidades”, como vimos com Giddens. A Osklen utili-
za fragmentos do imaginário da cultura brasileira sobre a nature-
za e emprega um discurso ecológico e sustentável. O “novo luxo”
seria essencialmente feito de materiais e práticas sustentáveis,
cuidadosas, dedicadas na criação, na produção e na perfeição
dos mínimos detalhes. Ele aparece como alternativa a partir do
momento em que algumas das grandes marcas de luxo euro-
peias e norte-americanas perdem parte da magia quando optam
pela produção em massa, de menor cuidado estético ou preo-
cupação com a sustentabilidade. A Osklen vai em outra direção,

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 141

trabalhando em parceria com uma série de cooperativas e com


o Instituto-E14 na pesquisa e no desenvolvimento de materiais
sustentáveis como algodão orgânico, látex e a captação sustentá-
vel do couro de peixes, palha de seda e fibras com os quais fabri-
cará seus produtos. Dessas pesquisas surgiram produtos como o
tênis Arpoador em palha de seda orgânica, a bolsa de couro de
pirarucu, uma série de camisetas e outras peças. Além disso, a
marca também busca inspiração nesse conceito – como pode ser
percebido na coleção A21, de 2012. Esse quadro é explicado por
Oskar Metsavaht da seguinte forma:

Na verdade eu percebi que havia um “gap”. Sustentabilidade an-


tigamente era o que era feito por comunidades carentes e se com-
prava para ajudar, por caridade. Esqueceram de qualificar o design.
Faltava uma gestão desse processo. E é isso que eu tento fazer:
qualificar a mão de obra, promover o Brasil como uma referên-
cia em desenvolvimento sustentável. Compramos o trabalho des-
sas comunidades, damos condições para que esse trabalho tenha
continuidade, para que não cause impactos ao meio ambiente e
elevamos a capacidade de percepção do consumidor para o que
realmente é luxo, o “novo luxo”. Chique mesmo é usar produtos
sustentáveis (Metsavaht, 2012).15

14
“O Instituto-E é uma OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público – que acredita que compartilhar informações é o primeiro passo para
promover o desenvolvimento humano e sustentável. A partir dessa concepção
e do desejo de inovar, recorre a uma linguagem alternativa e multimídia para
canalizar a energia da sociedade e direcioná-la para a defesa da nossa biodiversi-
dade, do direito à informação e à educação e do patrimônio histórico e cultural
do Brasil. O Instituto-E visa cumprir sua missão por meio da criação e gestão
de uma rede que potencialize sinergias entre diferentes iniciativas e agentes da
sociedade. O Instituto surgiu a partir do e-brigade, um movimento de ativismo
ambiental que transforma conceitos em atitudes. Sua atuação se concentra em
áreas que compõem o ideário dos seis “e”s: earth, environment, energy, educa-
tion, empowerment e economics” (www.institutoe.org.br).
15
“‘Se o luxo vem da Europa, o novo luxo vem do Brasil’, diz Oskar Metsavaht.”
Publicado em www.ffw.com.br em 15 de junho de 2012.

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Além de conferir sentido alternativo ao que é luxo – sus-


tentabilidade pode ser a dimensão positiva da representação da
“natureza” na cultura brasileira – ocupa um lugar significativo ao
atender uma importante demanda desse mercado. O Brasil tem
a maior floresta preservada do mundo, grandes matas, belezas
naturais incontáveis e atividades esportivas que estabelecem rela-
ção com a natureza no sentido de preservá-la, como é o caso do
surf. A sustentabilidade tem tanto glamour quanto viés politica-
mente correto e pode ser traduzida em preocupação com o outro
e com o planeta, além de inserida no jeito brasileiro de viver. O
oposto ao consumo exagerado:

O novo luxo é a despretensão pelo status de valores antigos que


todas as grandes marcas buscaram passar, mas acabaram se esque-
cendo de valorizar o que está por trás de todo o processo (..) O
que pode ser mais contemporâneo hoje em dia do que melhorar
a qualidade da vida de populações de baixa renda e melhorar a
relação de proteção da natureza. Isso é nobre, isso é belo, isso é
que é cool (...) Nobre é comprar menos coisas, mas produtos que
sejam bons e que saibamos a origem deles, com valores sustentá-
veis em toda a cadeia social e ambiental por trás da produção (...)
Você não precisa ter muita roupa, muita bolsa. Se a pessoa com-
prar várias baratinhas mal feitas, estará gastando rápido. E se elas
não forem de origem sustentável, estará prejudicando mais ainda
porque estará reforçando o antigo modelo industrial de produção
(Metsavaht, 2012).16

A Osklen é contemporânea e cosmopolita. No período em


que temos a decadência das velhas identidades mais fixas e o
surgimento de uma fragmentação e a possibilidade de várias
identidades na mesma pessoa (Hall, 2006), a marca brasileira

“Novo luxo é o que é nobre e sustentável, diz dono da Osklen”. Publicado em


16

www.globo.com em 18 de junho de 2012.

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o brasil é COOL: comunicação, consumo e o novo luxo da OSKLEN 143

define sua essência no brazilian soul, mas, ao mesmo tempo,


busca expressar-se a partir de uma linguagem universal, para ser
entendida nas diferentes partes do planeta e pelas mais distin-
tas pessoas e culturas. Dessa forma, ela consegue transitar em
diferentes grupos e, ao contrário das marcas que produzem em
larga escala e oferecem materiais em série, a Osklen segue sua
narrativa e sua prática de qualidade estética e origem sustentável
para vender não apenas produtos, mas sim um estilo de vida
brasileiro. Como diz Oskar Metsavaht:

É uma marca que sempre compreende várias tribos. É uma


pessoa que entende os símbolos, significados e estilos de vida de
cada tribo. Ela entende um “skatista”, ela entende uma mulher
que compreende moda, ela entende uma pessoa voltada à
sustentabilidade socioambiental, ela entende um surfista que já
esteve surfando no interior de uma ilha da Indonésia, consegue
falar com o maior editor de moda, se ele entrasse aqui, ele falaria:
“opa, tem alguma coisa diferente aqui”, é uma marca que fala
com várias tribos e fala bem, fala de forma legítima com cada uma
delas (...) A Osklen fala com qualquer cultura do mundo, a gente
está falando de um estilo de vida que “vende” Brasil, mas utili-
za para isso uma linguagem estética universal. Japonês entende a
Osklen, um árabe, se entrar aqui, entende, o europeu, se entrar,
ele entende, porque temos uma linguagem estética universal. Te-
mos qualidade internacional, e temos um espírito desse brazilian
soul contemporâneo.

Como vimos com Gilberto Freyre (1975) e Roberto DaMat-


ta (1979, 1985), é improvável entender a cultura brasileira sem
falar de mistura, dilema, ambiguidade. A Osklen se utiliza dessa
plasticidade brasileira – de fato um paradoxo – e a transforma em
cosmopolitismo, fazendo com que o brazilian soul seja uma pos-
sibilidade narrativa que pode ser experimentada no sentido da
vivência universal, da valorização da diversidade, fragmentação,

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trânsito em variados espaços sociais, facilidade com a diferença,


novos grupos e múltiplos valores. Uma espécie de tradutor privi-
legiado entre o local e o global – jeitinho brasileiro apropriado no
seu melhor sentido. É isso o que Oskar Metsavaht afirma:

O brasileiro é cosmopolita. Por isso que talvez seja de Ipanema e


do Arpoador, quando eu digo isso aí é São Paulo e Rio juntos, é
uma visão universal, do mundo todo, mas com um sabor, que são
os brasileiros interessantes. Não é o brasileiro que fica ali, só ali
no sambinha. Ele gosta de samba, mas que é legítimo nas coisas
do Brasil, ele sabe experimentar as coisas do Brasil, da Europa, de
tudo que é lugar. Esse é um personagem. A Osklen é uma marca
brasileira que circula em todo lugar, porque eu não faço roupa
para um país, para uma cidade, para um bairro, faço para um de-
terminado grupo de pessoas, de qualquer lugar ou parte do mun-
do. A Osklen levou o Brasil para fora, as pessoas veem nela um
Brasil jovem, novo, contemporâneo, moderno, porque eu escrevi
com uma linguagem universal.

A perspectiva de Oskar Metsavaht é de que as marcas de luxo


caminharam para a simples expansão sem preocupação estéti-
ca e sustentável. Nesse sentido, essas marcas passaram a investir
grandes quantias financeiras em marketing e publicidade – como
destacaram Lipovetsky e Roux (2005) –, deixando de lado a be-
leza que é tradicional no segmento do luxo. Com isso, esse “ve-
lho” luxo ganha ar esnobe, excessivo, com algo de desperdício. É
exatamente a isso que se opõe o “novo luxo”, trazendo de volta
beleza, glamour e nobreza que estariam sendo deixados de lado
nesse processo, como explica Oskar Metsavaht:

O estilo american dream e o american way já foi! Até o Obama já


não é mais o american dream. O american dream não é luxo. Já
as marcas europeias são de luxo, e quando começaram a querer
vender para os mercados emergentes ficaram esnobes, começaram

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a virar brilho demais, carrões, um status que é do dinheiro e não da


essência, da cultura, da arte, que vem do belo, que sempre foi da
Europa, então é meio esnobe usar uma marca europeia. O mundo
mudou totalmente, e o Brasil representa esse novo luxo que eu
falo, o Brasil representa esse novo intento, e a Osklen é isso. Pelo
menos essa é a percepção que eu tenho de dentro da Osklen.

As representações e experiências da “natureza” e do jeitinho,


sua positividade, também estão presentes nas coleções da Osklen.
Em 2007, o foco era Ipanema. As ruas, as belezas e o estilo de
vida do tradicional bairro carioca inspiraram o conceito e as pe-
ças da coleção. No ano de 2010, utilizou o samba que, como
mostra Vianna (1995), é um fenômeno do Rio de Janeiro que se
difundiu pelo país e passou a ser visto como parte da identidade
nacional. Já em 2012, a Osklen lançou a coleção Royal Black,
inspirada em quilombos e capoeira, sinalizando a presença da
cultura negra no Brasil. O que também é interessante destacar
é que até mesmo nas coleções de inverno, quando os temas são,
em sua maioria, inspirados em regiões, temperaturas e práticas
culturais que não são brasileiras, o brazilian soul não deixa de
estar presente. Afinal, ele é cosmopolita e se interessa por coi-
sas do mundo que vão além das particularidades brasileiras. O
brazilian soul é um estilo de vida que pretende ser universal ao
expressar a plasticidade advinda do jeitinho e a sustentabilidade
advinda da “natureza”.
O “novo luxo” seria despretensioso em relação aos valores
antigos e ao status, enfatizando os processos de sustentabilidade.
As marcas tradicionais de luxo deixaram de se preocupar com
autenticidade, cuidado na produção, estética e beleza. É diante
desse quadro que a Osklen apresenta uma alternativa, oferecendo
produtos de qualidade e com significados que vão além de uma
etiqueta privilegiada. Nas palavras de Oskar Metsavaht, isso só

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é possível a partir da criação de um “produto em que o design é


respeitado, a qualidade impecável, a estética universal” e a ori-
gem é sustentável.
Finalmente, para a Osklen, ser cool e sustentável e ainda se
articular com a “alma brasileira” se traduz em uma narrativa que
utiliza o nosso imaginário e o apropria para caracterizar um estilo
de consumo de luxo muito particular em relação ao mainstream
do luxo internacional. Ela absorve fragmentos desse imaginário
– sobretudo nossas complexas e ambíguas relações com a “natu-
reza” e com o jeitinho – para transformá-los em ideologia de ven-
da no mercado de luxo. A partir do brazilian soul, “natureza” e
jeitinho “vestem novas roupas” e passam a ser identificados como
sustentabilidade, ecologia, prática esportiva, qualidade de vida,
despojamento, contemporaneidade, estilo cool e cosmopolitis-
mo. A narrativa da Osklen, diferentemente de muitas de nossas
ambíguas experiências com a “natureza” e com o jeitinho, atuali-
za o imaginário da cultura brasileira nos termos de um mercado
de luxo global. A marca concilia uma leitura particular do Brasil
– a leitura das mágicas conciliações – com eficiência empresarial
e, assim, vende para o mundo uma narrativa sobre o que de mais
nobre temos a oferecer: as representações do nosso espaço e do
nosso estilo de vida.

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A forma perfeita:
o bem-estar e o modelo da mulher de revista
Everardo Rocha
Marina Frid

Ideologia do individualismo e representação social

A boa aparência com seus corpos perfeitos, atléticos e desejáveis,


bem como a vida saudável, produtiva e extensa de homens e
mulheres, ocupam, na cultura moderno-contemporânea, um lu-
gar destacado entre as representações e imagens produzidas pelas
mais diversas narrativas midiáticas. Não é por acaso que os meios
de comunicação parecem estar fortemente envolvidos em um
processo sistemático de preservação da saúde, da juventude e da
boa forma, que se traduz em diversas práticas – academias, cirur-
gias plásticas, exercícios, dietas etc. – que vemos rotineiramente
nos espaços urbanos. O objetivo desse artigo é, portanto, in-
vestigar algumas representações da mulher brasileira, sua beleza,
saúde e bem-estar, elaboradas nas narrativas midiáticas, particu-
larmente nas revistas, como uma contribuição para as discussões
em torno de certos significados que se articulam para formar um
dos eixos de sustentação do imaginário e das práticas de consu-
mo experimentadas na contemporaneidade.
Dessa forma, a intenção é entender saúde, juventude, beleza
e bem-estar como parte da elaboração de um modelo ideal do
feminino, tal como projetado na cultura de massa. Sendo assim,
propomos uma análise de materiais de comunicação impressos
que abordam direta ou indiretamente esses temas. Foram utiliza-
das três publicações voltadas para o público feminino, as revistas

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Claudia, Nova e Boa Forma, reunidas entre junho de 2011 e


maio de 2012. A escolha dessas revistas se deveu, principalmen-
te, à sua ampla circulação, pois estão entre as principais pro-
duções editoriais segmentadas para mulheres no mercado brasi-
leiro. Vale mencionar que cada uma segue uma linha diferente
de conteúdo, sendo as duas primeiras de temas mais variados,
enquanto a última dedicada especialmente aos cuidados com o
corpo. Neste trabalho, portanto, vamos investigar o discurso dos
meios de comunicação, a fim de demonstrar como esta “voz”
onipresente tanto constrói quanto reproduz um ideal de boa
forma, saúde e bem-estar, que todos nós, de uma maneira ou
de outra, com mais ou menos consciência, parecemos perseguir.
Esse ideal é moldado por representações que se vinculam aos
produtos e serviços, ao universo do consumo enfim, construindo
o que poderíamos chamar de um “mercado dos bens da saúde,
da beleza e da boa forma”.
Nesse sentido, vamos iniciar pelo debate da ideologia do
individualismo na modernidade, da noção de identidade e do
lugar das representações sociais em sua articulação com a cultura
de massa. É evidente que a complexidade das questões aí envol-
vidas ultrapassa os limites desse trabalho e serão aqui examinadas
apenas como suporte para a investigação da imagem midiática
da mulher perfeita e suas relações com o consumo.
Nas últimas décadas, as ciências sociais se debruçaram sobre
uma gama de eventos, relativamente recentes, para estudar a so-
ciedade e o indivíduo moderno-contemporâneo. Em retrospecto,
desde o século XVIII atravessamos uma série de revoluções – tec-
nológicas, sociais, científicas – e experimentamos uma sequência
de ideologias – iluminista, capitalista, socialista, feminista, entre
outras – às quais conferimos relevância histórica, de maior ou
menor peso. Além disso, um fenômeno que ganhou fôlego na
década de 1990, a chamada globalização, somou aos desafios que

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a forma perfeita: o bem-estar e o modelo da mulher de revista 151

se apresentavam às análises de um mundo recém “unificado”:


em 1989, ao assistir às cenas televisionadas da queda do muro
de Berlim, o capitalismo parecia, enfim, prevalecer. A lógica que
então se afirmava era o neoliberal “cada um por si”, alimentan-
do a máxima dos seres humanos como indivíduos autônomos e
capazes de “vencer” por meios próprios. Eventualmente, a crise
dos mercados de 2008 pode ter relativizado parte dessas certezas.
A tríplice combinação capitalismo, comunicação e globali-
zação é terreno fértil para reflexões de um mundo que, curio-
samente, tornou-se mais complexo, suscitando diferentes inter-
pretações sobre a questão das identidades e comportamentos.
Enquanto estudiosos, como Lipovetsky (2007), enfatizam o eixo
do individualismo para entender os atuais consumidores, outros,
como Hall (2006), focam o fenômeno globalizante e seu impac-
to sobre as identidades. Os autores sugerem assim, respectiva-
mente, os conceitos do “hiperconsumidor” e da “descentraliza-
ção” das identidades sociais como fruto dos novos tempos. De
fato, essas são ideias consistentes, porém nossa proposta aqui é
seguir a reflexão sob a perspectiva antropológica, especificamen-
te, na trilha do que Douglas e Isherwood (2004) sugerem como
uma antropologia do consumo.
A identidade social indica uma determinada posição no cru-
zamento entre os princípios da classificação e do valor. Em ou-
tras palavras, em uma dada estrutura, a classificação marca uma
posição específica a ser ocupada, enquanto o valor é o significa-
do que reveste tal posição. As identidades sociais se encontram,
portanto, na própria “(...) interseção entre a linha traçada pelo
eixo da classificação e a linha traçada pelo eixo do valor” (Rocha,
2006: 48). O consumo é uma das arenas onde valores são atri-
buídos e se realizam as classificações no mundo moderno-con-
temporâneo. Será através de mecanismos do design, marketing e
publicidade que produtos e serviços irão adquirir significados,

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que são amplamente difundidos pelos diversos meios de comu-


nicação – jornais, revistas, televisão, portais na internet, tablets,
smartphones, entre outros. Este processo possibilita ao consu-
midor identificar as ofertas disponíveis no mercado, diferenciar
produtos e serviços e optar por certas marcas. Finalmente, o con-
sumo apresenta o espetáculo das classificações sociais:
Os produtos e serviços escrevem as nossas identidades, visões de
mundo, estilos de vida. Nada é consumido de forma neutra. O
consumo traduz um universo de distinções; produtos e serviços
realizam sua vocação classificatória através do simbolismo a eles
anexado. O sistema publicitário atribui nomes, conteúdos, repre-
sentações, significados a um fluxo constante de bens. Muitos nem
fariam sentido se uma etiqueta não lhes desse a devida informação
classificatória (Rocha, 2006: 51).

O fenômeno do consumo é palco para as nossas represen-


tações na vida cotidiana. Conforme a análise sociológica pro-
posta por Goffman (1985), inspirada em princípios de “caráter
dramatúrgico”, todo indivíduo representa diferentes papéis no
seu dia a dia. A mulher, por exemplo, pode ser profissional, es-
posa, mãe, amante, dona de casa, entre outros tantos, conforme
a circunstância em que se encontra e a “plateia” para quem atua.
Segundo o autor, quando vamos ser apresentados a alguém, em
geral, colhemos informações sobre a pessoa que podem facilitar a
interação e nos ajudam a formar uma opinião sobre a mesma. Se
não temos tempo ou condições para fazer essa espécie de preparo
anterior, buscamos outras fontes, como o próprio ambiente (o
escritório), a ocasião (uma reunião) e as demais pessoas envol-
vidas (colegas de trabalho), que possibilitem fazer “inferências”.
Do mesmo modo que formamos uma “impressão” sobre alguém
após um encontro, buscamos, na situação contrária, “expressar”
da melhor maneira possível o nosso “eu” para impressionarmos
o “outro” adequadamente.

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a forma perfeita: o bem-estar e o modelo da mulher de revista 153

Sendo assim, os produtos e serviços que escolhemos dão


pistas de quem somos e do que estamos representando a cada
momento, em cada interação e em cada “cena” social. A moda,
as roupas ou os objetos servem dessa forma para caracterizar o
papel a ser desempenhado. Um médico é identificado como tal
segundo algumas características, como o jaleco branco, o estetos-
cópio no pescoço, o diploma na parede, a maca para atender o
paciente, entre outras. Mas, antes mesmo de conhecê-lo em uma
consulta, podemos formar uma opinião a seu respeito buscan-
do certas informações, como: qual a sua faculdade; o endereço
do seu consultório; os hospitais onde trabalha; os pacientes que
atende; os valores que cobra, e até a sua disponibilidade de agen-
da. Também ao encontrar uma pessoa conhecida na academia de
ginástica, espera-se que esteja em trajes esportivos para se exerci-
tar. Mas, se estiver de calça jeans ou roupa “social”, pode causar
estranhamento na interação. Essas e tantas outras identidades
são sustentadas pela mídia, que opera tanto na elaboração de
nosso imaginário coletivo, oferecendo elementos para classificar-
mos o mundo ao nosso redor, quanto inspira nossas atuações,
performances e representações (no sentido teatral) cotidianas.
Seguindo com Goffman (1985), eventualmente podem ocor-
rer “gestos involuntários” ou “acontecimentos acidentais” que
comprometem a representação, desviando a atenção da plateia.
Na sua seção sobre saúde, a revista Nova (ano 40, no4) lembra
algumas dessas situações embaraçosas e oferece dicas para lidar
com estes deslizes “biológicos”: “chega de vexame!” Não deixe
“seu corpo fazer você passar vergonha” justo “em uma situação
em que precise mostrar que é incrível”. Portanto, aprenda a dri-
blar a vontade de ir ao banheiro ao sentir que seu intestino “não
curtiu muito a comida tailandesa apimentada”. É claro, “está
fora de cogitação passar longos minutos no banheiro dele”. E se
de repente, na balada, “começa um acesso de espirros?” “Mergu-

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lhe o nariz em um copo d’água”. Já que “não há Louboutin que


salve pés fedorentos”, lave-os com “um copo de vodca” quando
“estiver com um gatinho na balada e sentir que a noite vai se
prolongar”.
Esta perspectiva sobre consumo, representação e identidade
social se afasta da visão intimista que alguns autores propõem às
escolhas dos consumidores contemporâneos. Lipovetsky (2007)
sugere o consumo como algo de foro íntimo, pois o final do sé-
culo XX marca a decadência dos desejos de distinção e status que
moviam a sociedade do consumo. A expectativa dos consumi-
dores deixa de ser a classificação em relação ao outro, pois agora
esperam “(...) sentir sensações, viver experiências, melhorar nos-
sa qualidade de vida, conservar juventude e saúde” (Lipovetsky,
2007: 42). É o “hiperconsumidor”.
Diante desta percepção sobre o “individualismo extremo”
como a motivação para uma nova forma de consumo, pode
ser construtivo abrir um parêntese dedicado ao individualismo
como conceito. As discussões sobre o consumo e a saúde pare-
cem mesmo sempre caminhar na linha tênue entre o privado e
o coletivo. Dumont (1993) foi hábil em colocar a ideologia mo-
derna em questionamento para uma reflexão atenta a respeito da
concepção que possuímos do individualismo. O autor estabelece
a importante distinção entre as sociedades holísticas e as indivi-
dualistas: quando o indivíduo figura como valor preponderante,
fala-se em individualismo; quando o valor preponderante reside
na sociedade como um todo, fala-se em holismo. Entre os estu-
dos que realizou acerca do tema e de sua elaboração histórica,
podemos recorrer à sua análise sobre a esfera religiosa, na qual re-
mete ao cristianismo da Idade Média e à visão do homem como
um indivíduo em relação a Deus. Dumont indica como este
preceito já reconhecia o valor do “indivíduo”, porém como um
ser que reside no mundo (humano) subordinado ao ser que está

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fora do mundo (Deus). Para ilustrar esta ideia, o autor imagina


uma figura de dois círculos concêntricos, o maior representando
o individualismo em relação a Deus, que compreende o menor,
simbolizando a aceitação às necessidades, deveres e compromis-
sos da vida social holística. Assim ficou clara a tensão entre o “in-
dividual” e o “universal” presente no pensamento cristão: o indi-
víduo recebe seu valor de Deus a quem deve servir. No entanto,
este dualismo foi perdendo espaço na modernidade, fragilizando
o holismo como categoria ideológica e o indivíduo em relação a
Deus para dar lugar à ideia do “indivíduo” moderno.
As chamadas sociedades holísticas são organizadas em hie-
rarquia, como Dumont (1993) esclarece, quando o valor pre-
ponderante compreende o valor em oposição. Por exemplo, a
subordinação do feminino em relação ao masculino em socie-
dades ditas machistas. Guillebaud (1999), em sua obra sobre a
moral sexual, analisa um momento de “revolução”, que atinge
seu ápice entre as décadas de 1960 e 1970, onde o objetivo últi-
mo era justo este da inversão da lógica dos valores que pautavam
o sexo na sociedade. Neste momento, o feminismo ganha força
na luta para colocar as mulheres em pé de “igualdade” com os
homens – o “compreendido” na busca por autonomia. O autor
então trilha uma investigação que revelou como as conquistas da
chamada revolução sexual eram, na realidade, muito mais difí-
ceis de sustentar do que se poderia imaginar na época. Na ques-
tão do sexo, como indica Guillebaud, o “fantasma” da Aids, na
década de 1980, pôs em cheque a “primazia do individualismo e
a liberdade sexual”. Subitamente, o clima permissivo dá lugar ao
preventivo, afloram os preconceitos de gênero, o medo começa a
retrair homens e mulheres, há pouco impetuosos. Fica estabele-
cido então o desafio de conciliar a nova moral ocidental com as
problemáticas sanitárias sociais:

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Tratava-se, antes de mais nada, de reaprender – projeto inédito


– a emparelhar a ideia de morte com a do prazer; de reintroduzir
o conceito de fatalidade, de infecção ou de morbidez no centro
mesmo do hedonismo amoroso; de promover uma prevenção ali-
cerçada na prudência sem afetar, por tal, o parti pris da fantasia e
da errância crítica, inseparável da ideia que se fazia da nova per-
missividade (Guillebaud, 1999: 87).

Conforme Dumont (1993), as hierarquias persistem na ideolo-


gia moderna, mas, porque é hostil a esta forma de estrutura, deve
dispor de instrumentos para neutralizar ou substituir estas rela-
ções. Para o autor, alguns dos principais pensadores do Iluminis-
mo reconheciam a dificuldade de conciliar individualismo com
autoridade, igualdade com diferenças de poder inerentes a uma
sociedade ou ao Estado. O paradoxo da modernidade, portanto,
já havia sido colocado por Rousseau: o ser humano como um in-
divíduo livre, porém, sem deixar de ser social (Dumont, 1993).
Nesse sentido, a questão do individualismo se torna muito mais
complexa do que pensar os seres humanos moderno-contempo-
râneos como pessoas que fazem escolhas autocentradas em busca
de satisfação pessoal. Ainda que “individualistas”, isto é, seres
(idealmente) autônomos, em posição de igualdade, mulheres e
homens em sociedade precisam conviver e ocupar seus devidos
espaços, estabelecendo-se em um mundo relacional, mesmo en-
quanto indivíduos.

Cultura e práticas de consumo

De fato, saúde, bem-estar, beleza e boa forma fazem par-


te dessa perspectiva do indivíduo moderno e, assim, são tanto
preocupações ideológicas essenciais quanto práticas sociais cons-
tantes nas culturas urbanas contemporâneas. Para estudar esse
fenômeno e, sobretudo, suas representações midiáticas, é impor-

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tante investigarmos algumas ideias-chave retiradas dos estudos


do consumo. Uma cultura pode ser pensada como resultado das
relações que seres humanos de um dado grupo estabelecem com
a natureza. Segundo Sahlins (2003), o objeto cultural é investido
de significados pelos humanos, adquirindo assim a sua finalida-
de, a sua existência, dentro de um sistema simbólico e histórico.
Por causa deste processo de atribuição de sentido e como resulta-
do de uma ação produtiva, uma “coisa” deixa de ser um simples
material para se tornar um “artefato”, um “bem”, algo que inte-
gra e, portanto, caracteriza uma cultura. Segundo o autor, uma
“canoa” é uma “canoa”, porque cada golpe na madeira, desde o
primeiro, está imbuído de significado. Como esclarece o trecho
abaixo, a madeira não é “simplesmente” cortada, pois há, por
trás do ato, um propósito significativo:

O problema é que os homens nunca “cortam madeira” simples-


mente dessa forma. Eles cortam toros para as canoas, esculpem as
figuras de deuses em clavas guerreiras, ou mesmo cortam madeira
para lenha, mas sempre estabelecem relações com a madeira de um
modo específico, uma forma cultural, em termos de um projeto
significativo cuja finalidade governa os termos da interação recípro-
ca entre o homem e árvore. (…) esse golpe e todos os golpes que o
antecedem, desde o inicial, dependem da intenção significativa. A
interação determinada de árvore-olhos-cérebro-etc. foi estipulada
por uma ordem simbólica; é um exemplo paradigmático da natu-
reza subordinada a serviço da cultura (Sahlins, 2003: 95).

Igualmente, um indivíduo não navega uma canoa, não se


senta à mesa, ou toca um violino, sem ter uma “bagagem” –
de costumes, habilidades, conhecimento – que o permita optar
por um meio de transporte, adotar certas regras de etiqueta e
ter um gosto musical. Como ensina Geertz (1989), a cultura é
pública, porque assim é o significado, propriedade coletiva, não

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individual, que possibilita, portanto, o estabelecimento de tro-


cas simbólicas. De acordo com esta ideia em que atos investidos
de sentido se transformam em sinais, podemos ampliar a discus-
são que se refere à passagem de matéria para artefato, de coisa
para bem de consumo. Douglas e Isherwood (2004) colocaram
a questão dos “usos dos bens” à luz da visão antropológica, suge-
rindo que o problema da abordagem da economia sobre o tema
é, justamente, a suposição que coloca o consumo como assunto
privado. Afinal, como acabamos de ver, não poderia ser, pois se
um bem só “existe” se repassado de significado, significado este
que é público e por isso permite trocas simbólicas, logo, enten-
demos que o consumo também não pode ser tratado na esfera
individual, e sim como propriedade coletiva.
Deste modo, se atribuímos sentidos a “coisas”, assim as
transformando em objetos culturais, também as relações que es-
tabelecemos com essas “coisas” – como necessidades, utilidades
e vontades – são próprias de nossa cultura. Conforme apontado
por Douglas e Isherwood (2004: 36), “Os bens são neutros, seus
usos são sociais; podem ser usados como cercas ou como pontes
(...)”. Por isso, o estudo do consumo se torna parte tão impor-
tante das pesquisas sobre a cultura moderno-contemporânea,
embora abordá-lo ainda seja um grande desafio. Como fenô-
meno que emerge na modernidade, o consumo está no centro
de debates cotidianos, sendo muitas vezes colocado como uma
espécie de vilão que a sociedade deve suprimir. Esta visão ma-
niqueísta é tentadora e aparece, com frequência, nas discussões
sobre problemas, supostamente globais, como as crises financei-
ras, a degradação do meio-ambiente, e a saúde, que falam em
“comportamentos de consumo”, porém, muitas vezes com um
olhar preconceituoso e pouco produtivo.
Em contraposição, a antropologia do consumo sugere seu es-
tudo sistemático como fenômeno cultural, porém, longe de uma

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abordagem que o restrinja a conceitos utilitaristas, maniqueístas


ou hedonistas. Os bens e seus usos podem “dizer” muito sobre
uma cultura. Portanto, analisar os significados de “o que”, “por
que” e “como” compramos pode ser fonte para melhor enten-
der e lidar com as questões da sociedade de hoje. O consumo
é central na ordem cultural, “(...) é a própria arena em que a
cultura é objeto de lutas que lhe conferem forma” (Douglas e
Isherwood, 2004: 102).
Se as investigações sobre o consumo têm papel importante
no entendimento da cultura contemporânea, consequentemente
a comunicação, isto é, aquele conjunto de narrativas que incide
sobre ele, também merece atenção neste projeto de pesquisa. Se-
gundo Geertz (1989), somos seres presos a teias de significados
que nós mesmos criamos. É neste sentido então que podemos
pensar sobre a mídia, como integrante deste nosso rico sistema
simbólico, oferecendo um vasto repertório de significados que
circulam, indiscriminadamente, entre os mais diversos grupos
sociais. Suas narrativas estabelecem um intenso diálogo com a
sociedade, imprimindo sentido ao nosso mundo ao reproduzi-lo
nos jornais, filmes, novelas, anúncios e websites:

Suas mensagens não fazem outra coisa senão dialogar com a socie-
dade, existindo articulada ao seu desenho ideológico. Sua signifi-
cação é fruto de uma inscrição na ordem social, mantendo com ela
uma relação de múltiplo e complexo rebatimento. Este destino –
reflexo e espelho da cultura – acontece em um jogo sistemático de
trocas, envolvendo valores, estilos de vida, emoções, heróis, rituais,
mitos, representações e o que mais se queira nela ver impresso (no
duplo sentido) e reproduzido (Rocha, 2002: 36).

Se o objeto cultural resulta da atribuição de sentido, a mí-


dia, e particularmente a publicidade, entra em cena como o
instrumento responsável pela operação de revestir a produção

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e disseminar os seus significados. No ciclo que inclui produção,


comunicação e consumo, a publicidade ocupa um lugar privile-
giado, pois tem como razão de ser posicionar produtos e servi-
ços no mercado. A produção industrial, seriada e indiferenciada,
precisa ser revestida de significados para ganhar enfim seu lugar
no campo do consumo (Rocha, 2006). No entanto, este proces-
so não se restringe à mensagem publicitária, estando presente
também em outras narrativas midiáticas, pois o consumo é algo
absolutamente central para sustentação dos vários sistemas de
comunicação. É, portanto, bastante recorrente a gramaticalidade
entre a publicidade e o jornalismo, como podemos observar na
revista Veja (ano 45, no17), na qual um anúncio publicitário para
margarina – “Comece a usar Becel hoje. Uma pequena mudança
cheia de sabor pode fazer uma grande diferença ao coração” – se
reveza com uma reportagem jornalística – “49% dos brasileiros
estão com excesso de peso. (...) O rápido alastramento tem feito
os especialistas considerarem, pela primeira vez na história da
medicina, uma mudança na longevidade por consequência do
acúmulo de gordura” – no processo de “educação” (e, evidente-
mente, de consumo) para a saúde.

Bem-estar e mulher de revista

Uma mulher de biquíni, pele bronzeada, deitada com um


chapéu ao lado, como se estivesse curtindo uma praia. A foto e
o título da matéria sugerem: “Se joga!” Fazendo uma correspon-
dência com as partes do corpo, são revelados os “dez melhores
conselhos de saúde que você sempre quis ouvir” selecionados
pela revista Nova (ano 40, no2). Assim, para a panturrilha “suba
no salto”, pois pode fazer bem “desde que tenha uns 4 centíme-
tros”. Coxas correspondem à dica “deguste chocolate”, porque,
conforme recomenda a nutricionista, “uma barrinha tem só 170

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calorias e possui substâncias antioxidantes”. Já na virilha, a lei-


tora ganha “mais uma razão para atingir o clímax: o orgasmo
diminui o stress e pode aumentar a criatividade no trabalho. Pois
é!” Mas, não é só porque o sexo é prazeroso. Neste momento, “o
corpo libera endorfina e oxitocina, hormônios que aumentam a
sensação de bem-estar”. Para o útero, “beba café”, pois cientistas
“descobriram que mulheres que tomam de quatro a sete xícaras
de café diariamente têm 25% menos chances” de ter câncer de
colo do útero. Se “está louca por aqueles óculos caríssimos”, você
“já tem motivo para sacar o cartão e correr até à loja”, porque
“o acessório (com filtro UV) é indispensável para a saúde dos
olhos”. Nos ouvidos, “lote o seu iPod”, pois a música pode aju-
dar o seu cérebro a lutar contra o envelhecimento”. Para o cére-
bro, “negocie prazos e separe tempo para relaxar: vale um cinema
depois de um dia cheio”. Afinal, “fazer hora extra e ficar em um
emprego em que a pressão é enorme ataca a sua saúde mental”.
Assim, seguem muitas das seções, reportagens, artigos e no-
tas relacionadas à saúde da mulher. Em geral baseadas em re-
centes pesquisas científicas e no discurso clínico de especialis-
tas, autorizam e desautorizam comportamentos, fazem alertas e
recomendações, esclarecem dúvidas e introduzem descobertas.
Duas das revistas pesquisadas, Claudia e Nova, não são voltadas
especificamente para o tema da saúde feminina. A primeira bus-
ca ser “completa, como a mulher tem que ser”, levando “inspi-
ração, reflexões e soluções” para a leitora; a segunda, “estimula
a ousadia e a coragem para enfrentar os desafios, a busca pelo
prazer sem culpa e a construção da autoestima e da autoconfian-
ça”. Ambas são publicações muito bem sucedidas e consolidadas
no mercado. Portanto, ao folhear as suas páginas com o olhar
atento, é surpreendente constatar como o conceito de saúde é
ostensivamente explorado, sendo abordado como gancho para
as matérias, conjugado a outros temas ou colocado implicita-

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mente em demais assuntos discutidos. Surpreendente, porque,


desprevenida, a leitora não imagina o quanto de representações,
ideologias e imagens, traduzidas em informação, existe sobre as
razões e os porquês de ser saudável ao ler uma única edição das
revistas. Admirável também se pensarmos que a expressividade
da questão da saúde nas páginas destas publicações é indício
de como estamos cada vez mais sendo imersos no tema. Como
aponta Lipovetsky (2007: 53):

Eis a saúde erigida em valor primeiro e aparecendo como uma


preocupação onipresente quase em qualquer idade: curar as doen-
ças já não basta, agora se trata de intervir a montante para desviar-
-lhes o curso, prever o futuro, mudar os comportamentos em rela-
ção às condutas de risco, dar provas de boa “observância”.

De fato, as preocupações que a mídia sugere relacionadas


à saúde são as mais diversas. Não é mais apenas uma questão
de doença física ou mental, no sentido clássico, é preciso um
constante estado de alerta com nosso corpo e nossas atitudes
em todos os momentos e aspectos da nossa vida cotidiana. Por
exemplo, “a ciência comprova e a Nova adverte: ovulação e sho-
pping center é uma combinação tão boa para esvaziar o bolso
como liquidação de 70% em seis vezes sem juros” (Nova, ano
40, no2). A reportagem oferece um novo motivo para o “vício”
feminino em compras: “não é pura loucura. É biológico”. Mas,
a dica para contornar o problema, além de manter o olho no
calendário menstrual, é se “gostou de alguma peça no shopping
ou em uma loja, não compre. Vá para a casa, pense e volte no dia
seguinte. Se ainda tiver vontade de comprar, então leve.”
Certamente, porém, uma das preocupações mais em evidên-
cia é o emagrecimento. São infindáveis os truques, dietas e re-
comendações para “chapar” a barriga, “afinar” a cintura, “secar”
a gordura, “perder” alguns quilos e “desenhar” o corpo. E não é

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pura questão estética, pois emagrecer deve ser sim uma preocupa-
ção de saúde, conforme indicado na revista Claudia (ano 51, no2):

É para ficar sequinha! Uma cintura fina supera o simples desejo


estético: é uma meta de saúde. Nessa parte do corpo, acumula-se a
temida gordura visceral, gatilho de doenças que a gente quer bem
longe. Com a dieta da barriga zero, em um mês você enxuga até 9
centímetros e vive melhor.

As capas de Boa Forma representam explicitamente este ideal


de beleza, agora também questão de saúde, que é o emagreci-
mento. A noção de que mulheres estão sempre precisando per-
der “alguns quilinhos” se confirma nas diferentes metas, dietas e
prazos sugeridos todos os meses para a grande conquista. Como
indica a revista, “perca 6 kg em 1 mês com o chá das 3 ervas” em
junho de 2011, “acelere o metabolismo e perca 4 kg em 17 dias”
em setembro de 2011, “perca 3 kg em 15 dias com a dieta do
macarrão milagroso” em março de 2012, e assim repetidamente
a cada edição, cobrindo mês a mês todo um ano de imperiosas
dietas, regimes e reformas corporais. O tema da gordura parece
ser particularmente significativo no caso das representações mi-
diáticas da mulher brasileira, que deve lutar a todo custo contra a
obesidade. É o que alerta, de forma extremamente preocupada, a
revista Claudia (ano 50, no8) ao indicar que “44,3% das brasilei-
ras estão acima do peso, um aumento de 6% em quatro anos (...)
em 13 anos teremos os mesmos níveis de sobrepeso e obesidade
dos Estados Unidos”.
Às vezes, o desafio a ser superado para emagrecer é a “autos-
sabotagem”. Outras vezes, a dificuldade de perder peso é sintoma
de outros problemas de saúde que precisam ser tratados, sejam
doenças, desequilíbrios ou consequências de hábitos desregra-
dos. Conforme exemplifica a Boa Forma (ano 27, no1), há pelo
menos “8 problemas de saúde que fazem você engordar”, mesmo

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164 cultura e imaginação publicitária

se esforçando em seus regimes dietéticos. São as “células inflama-


das”, que formam a gordura branca acumulada na barriga, bum-
bum e culote; as “emoções descontroladas”, já que “quando vem
aquele nó na garganta, quase nada funciona melhor para aliviar
a angústia do que comer”; a “tireoide em pane”, pois a mulher
com hipotireoidismo “ganha, em média, de 3 a 5 quilos em um
ano”; “stress demais” derruba o ritmo do metabolismo; a “pílula
errada” pode levar à retenção de líquido; “alergia a alimento”
também pode engordar; além de “hormônios desregulados”,
provocado por ovários policísticos ou “sono ruim”. E um endo-
crinologista da Unicamp adverte: “trabalhar à noite engorda”,
porque, em geral, provoca stress e “o organismo da pessoa que
sacrifica o sono e trabalha até altas horas perde a capacidade de
reconhecer os sinais de fome e saciedade”.
Atrizes, modelos e celebridades são sempre chamadas para
revelar seus segredos para o corpo perfeito – aos 50 anos, com
dois filhos, após a gravidez de gêmeos. A atriz Fernanda Souza
superou a doença: “venci o hipotireoidismo e perdi 4 kg”. A
jornalista Renata Ceribelli ganhou destaque em 2011 ao encarar
o desafio de emagrecer em rede nacional, no programa de televi-
são Fantástico. Em agosto, vitoriosa, estampou a capa da revista
Claudia, atestando que além de perder 9,5 kg de peso e 14 cm de
cintura, “melhorou a saúde, turbinou a autoestima e incentivou
milhares de brasileiros a se cuidarem mais”. Para a revista Nova
(ano 40, no6) ,“descobrir a dieta certa para o seu formato de
corpo é o caminho mais fácil para perder o peso extra que inco-
moda”. Ou talvez, se “você está mais para compulsiva, impulsiva,
emocional ou ansiosa?”, a mesma revista se pergunta se a receita
ideal não seria uma “dietaterapia” (Nova, ano 40, no4).
Trindade (2012: 84) indica que “O ato de comer manifesta-
-se como uma forma de conhecimento sensível sobre as cultu-
ras”. Segundo o autor, há uma interferência do discurso midiáti-

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a forma perfeita: o bem-estar e o modelo da mulher de revista 165

co de marcas de alimentos sobre as práticas discursivas e sociais


de indivíduos com relação aos seus padrões de consumo de bens
alimentícios. Neste sentido, é interessante observar as diversas re-
presentações presentes nas revistas examinadas que sugerem de-
terminados alimentos como os heróis, tanto do emagrecimento
quanto do combate e prevenção aos mais diversos problemas de
saúde, além de ser “o caminho (sem volta!) para o fim da celulite,
a barriga negativa, os músculos tonificados, o cabelo dos sonhos,
a pele hidratada” (Nova, ano 40, no2). Então, “para ter pele de
bebê”, coma caju; “um cabelo incrível”, pimentão amarelo; “para
emagrecer”, óleo de coco; “para dormir bem”, cereja; “para reju-
venescer”, kiwi, e “para exterminar a celulite”, uvas vermelhas.
Em dezembro de 2011, a revista Claudia elegeu os 25 “ali-
mentos top” do ano com poderes incríveis e medicinais. O cho-
colate amargo tem a ação anti-inflamatória do cacau e pode
atuar na prevenção de doenças do coração. A semente de chia
“age contra a prisão de ventre, aumenta a imunidade, previne
a osteoporose, reduz os níveis de triglicérides e ajuda a emagre-
cer”. A castanha-do-pará “recarrega os níveis de selênio, mineral
importante para uma vida longa e saudável, além de retardar
o envelhecimento e proteger o cérebro de doenças neurodege-
nerativas”. O gergelim pode ser “bastante energético” e ajuda a
“potencializar o apetite sexual”. Boa Forma (ano 26, nº10) indica
que os antioxidantes são os “aliados do peso certo e da beleza” e
adverte para alguns dos prejuízos que o descuido com a alimen-
tação pode ocasionar:

Atenção! Estamos comendo menos verduras, legumes e frutas do


que deveríamos! O alerta é de um novo estudo feito por duas im-
portantes universidades brasileiras. Isso afeta a saúde e favorece o
envelhecimento da pele, do cabelo e das unhas. Também ficamos
mais propensas a ganhar peso e celulite. Então, cor no prato!

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166 cultura e imaginação publicitária

Eventualmente, o discurso muda um pouco, como se en-


saiasse uma permissividade contrária a todas as demais regras di-
tadas no restante da revista. Na “receita do corpo perfeito”, não
é necessário abrir mão de certos prazeres, “desde que use o sutiã
exato, faça a pose certa na hora de tirar foto e siga outras dicas
que dispensam dieta” (Nova, ano 40, no4). Para satisfazer a ação
de seus hormônios, “devore um belo pedaço de bolo”. Além dis-
so, “beba refrigerantes tradicionais”, “prepare sua própria batata
frita” e “esqueça as calorias”. Lembre-se, “compre roupas para
você e não para a pessoa que gostaria de ser”. Seios fartos fazem
a cintura parecer mais fina, logo, “adquira um sutiã novo (e per-
feito)”. E “transe mais (e com mais vontade)”. Para aumentar
o desejo, pedale por 20 minutos, porque a atividade “melhora
a circulação sanguínea, o que é essencial para a função sexual”.
Aliás, o sexo vira, sobretudo, um elemento fundamental,
uma espécie de moeda de troca muito valorizada, para a saúde fí-
sica e mental, ocupando uma quantidade significativa de páginas
nas revistas femininas, inclusive em associação com a temática da
saúde. Mas, além de se estabelecer como uma prática saudável,
também para ter uma “vida sexual” de qualidade se faz necessá-
rio seguir uma série de recomendações, como dietas, exercícios
físicos e horários. São elaborados verdadeiros guias para as mu-
lheres aprenderem a conduzir seus parceiros e garantir “noites
de prazer ainda mais quentes e proveitosas” (Nova, ano 40, no5)
de acordo com os conselhos de especialistas. É recomendável o
sexo pela manhã, porque “a taxa de testosterona, hormônio se-
xual masculino, é mais alta” neste horário. “Invista no poder do
açaí”, pois um estudo descobriu que a fruta contém antocianina,
substância que “faz os vasos sanguíneos se expandirem”. Se não
vê a hora de partir para o segundo tempo, tenha calma, porque
o homem passa pela “fase de recuperação”. Segundo o médico,
pular essa etapa não faz bem para a “qualidade do sexo”. Outra

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a forma perfeita: o bem-estar e o modelo da mulher de revista 167

recomendação é maneirar no álcool. E mais, “transe de estôma-


go vazio”, ou pelo menos evite pratos gordurosos, por causa das
substâncias inflamatórias que vão parar nos vasos sanguíneos.
Para a mulher melhorar o seu desempenho, Claudia apresen-
ta uma espécie de “malhação íntima”. Com exercícios elaborados
por um médico americano para tratar pacientes com incontinên-
cia urinária, a fisioterapia ginecológica hoje é uma recomenda-
ção respaldada por médicos e terapeutas “para o pós-parto, con-
tra dificuldades ou apenas como pimenta boa” (Claudia, ano 51,
no4). Finalmente, levar em consideração tantos aconselhamentos
é importante, já que, como mencionado, o sexo faz bem para
a saúde. Trata-se de uma utopia da saúde sexual perfeita, que
todos podem aspirar. Uma “(...) percepção da sexualidade com
um quase-problema de saúde pública, fará, logicamente, nossas
representações do prazer deslizarem da liberdade para a obrigato-
riedade, da permissão para a injunção” (Guillebaud, 1999: 138).
Outra parte do corpo que também ganha cada vez mais
atenção é o cérebro, como mostra uma reportagem da revista
Claudia (ano 51, no4). A neurociência já “aponta o que fazer
para manter saudável o órgão mais nobre do corpo”. Embora
certos problemas sejam comumente associados ao envelheci-
mento, atualmente cientistas revelam que “uma pessoa saudável
não perde a memória, a lucidez e o raciocínio apenas porque
chegou a certa idade”. Porém, para envelhecer com um cérebro
saudável, é preciso seguir alguns conselhos, como a “malhação
mental” – ler, participar de jogos e aprender novas habilidades –
ao invés de passar o dia assistindo televisão. O dom feminino das
multitarefas não é recomendado – o saudável “é fazer uma coisa
de cada vez”. A prática regular de atividade aeróbica “estimula a
formação de células nervosas e libera substâncias protetoras dos
neurônios”, auxiliando “na associação de ideias, no aprendizado
e na fixação na memória”, além de combater a ansiedade e a

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168 cultura e imaginação publicitária

depressão. Certos “vilões” devem ser controlados, como o stress


crônico, o cigarro, o álcool, o colesterol alto, a hipertensão arte-
rial e o diabetes.
Como indica Boa Forma (ano 27, nº6), as mulheres luta-
ram pelo seu espaço no mercado de trabalho, “conquistaram
poder e dinheiro. Agora, querem resgatar bem-estar, equilíbrio
e saúde.” Em complemento à boa alimentação, ao sexo e aos
exercícios físicos, existem ainda mais opções. Atividades como
a ioga podem “ser um tratamento coadjuvante poderoso para
males como stress, depressão e mesmo a síndrome do pânico, que
hoje atinge 3,5% da população mundial – sobretudo mulheres”
(Claudia, ano 50, no12). Então “respire fundo”: isto “pode ser a
chave para uma vida saudável. E mais feliz.” Segundo Claudia
(ano 51, nº4), o conceito de “beleza de dentro para fora” está em
voga. No mercado, essa noção se traduz em uma ampla oferta de
produtos, como cápsulas, cremes, roupas, acessórios, alimentos,
“nutricosméticos”, entre outros, que chegam ao mercado com a
promessa de auxiliar consumidoras na busca pela prevenção, alí-
vio e cura. Para citar alguns: “conquiste um corpo mais bonito e
saudável com produtos Mundo Verde”. “Clear. Couro cabeludo
saudável, cabelo bonito da raiz às pontas.” “Ensure. Nutrição
completa e balanceada para a nova geração.” “Nivea Q10 Olhos
Roll-on. Experimente e descubra como é ter sua pele visivelmen-
te mais jovem e saudável.”
Os recortes examinados acima oferecem algumas pistas para
uma reflexão sobre a presença conspícua da temática da beleza,
da saúde e do bem-estar na mídia. Além das questões que se
sobressaem do emagrecimento, do regime alimentar e do sexo,
há também todo um desenrolar de narrativas sobre as lutas con-
tra doenças, as descobertas científicas na medicina, e as várias
formas de garantir uma vida longa e saudável. A apropriação do
discurso científico pela mídia gera um conjunto de representa-

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a forma perfeita: o bem-estar e o modelo da mulher de revista 169

ções que, como vimos no caso das revistas analisadas, tem por
objetivo central disciplinar os corpos e engendrar um sistema
de amplo consumo de produtos e serviços médicos para a saúde
e o bem-estar. Nesse sentido, Banet-Weiser e Portwood-Stacer
(2006) indicam a construção midiática de uma consumidora
pós-feminista que embarca em um projeto de autorrealização
através de cirurgias plásticas e diversos tratamentos de beleza, en-
fatizando ideias de escolha pessoal e individualização, ao invés das
tradicionais causas do feminismo de liberdade e mudança social.
Ao folhear as revistas, encontra-se um verdadeiro arsenal de
produtos e serviços para o bem-estar, prevenção e juventude,
tanto em publicidades quanto em reportagens jornalísticas. As
partes do corpo feminino nas representações midiáticas devem
ser destacadas e tratadas, uma a uma, com seus devidos remé-
dios, cosméticos, alimentos, técnicas e acessórios. São sugeridas
bebidas, comidas e suplementos alimentares, loções e cremes
para os dentes, corpo e cabelos, além de medicamentos, exames,
terapias, e tudo mais que se possa imaginar. Como Rocha (2006)
já havia observado, a individualidade feminina é traduzida nas
narrativas publicitárias principalmente como um ser em frag-
mentos, uma mulher aos pedaços, que entrega a propriedade de
seu corpo e suas partes aos mais variados bens de consumo que
tomam o lugar da sua subjetividade. Sendo assim, o corpo é o
bem essencial da mulher, que deve receber cuidados, realces e
adornos específicos para cada um de seus pedaços. O discurso mi-
diático então delega a saúde feminina para produtos e serviços ca-
pazes de satisfazer suas necessidades e anseios. A boa forma plena
e a beleza desejada só podem ser obtidas através do consumo de
tratamentos adequados ao corpo em cada um de seus fragmentos.
Finalmente, esse estudo buscou identificar traços significati-
vos na composição do ideal contemporâneo da saúde e do bem-
-estar da mulher. A análise do material selecionado revelou que

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170 cultura e imaginação publicitária

as narrativas midiáticas sistematicamente sugerem para as mu-


lheres temas como: a preocupação com peso, beleza, boa forma
e envelhecimento como modo de ser plena e feliz; a associação
de padrões médicos com determinadas ideologias e preferências
estéticas; a identificação de “vilões” como gordura, colesterol,
stress, bebidas alcóolicas, refrigerantes, cigarro, entre outros, que
agem contra a “qualidade de vida”, a “longevidade” e a “feli-
cidade”; a assimilação dos discursos de especialistas, celebrida-
des e “pessoas comuns”; e, por fim, a articulação, com extrema
plasticidade, das ideias de bem-estar e saúde com as diferentes
representações da mulher – sexy, profissional, independente,
companheira, mãe, esposa, entre outras. Tudo isso forma um
extenso inventário de regras de comportamentos e de consumos
para se adquirir saúde, beleza e bem-estar, que, enfim, norteia
as escolhas e práticas desse modelo feminino reproduzido nas
revistas. Procuramos mostrar que boa forma, bem-estar, saúde e,
no limite, a própria felicidade da mulher midiática, se traduzem
em um incessante projeto de consumo de produtos e serviços.
Nesse sentido, as representações de uma mulher saudável, que
possui “a forma perfeita”, se sustentam pela conquista e a posse
de diferentes bens e podem indicar uma perspectiva importante
para os estudos da comunicação e, em especial, para a pesquisa
das surpreendentes formas através das quais experimentamos o
consumo na cultura contemporânea.

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a forma perfeita: o bem-estar e o modelo da mulher de revista 171

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want to be me again! Beauty pageants, reality television and post-
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DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. Rio
de Janeiro: UFRJ, 2004.
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC,
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GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 10a ed.
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Templos e shoppings:
a sacralização do consumo na contemporaneidade
Everardo Rocha
Cláudia Pereira
Lívia Boeschenstein

O sagrado, o religioso, o mágico

Esse artigo tem por objetivo analisar a relação entre, de um lado,


o pensamento mágico e, de outro, as representações e práticas
do consumo. Para tanto, serão examinados certos materiais –
notícias, anúncios, comportamentos – sobre o consumo, que
parecem demonstrar que a experiência do sagrado se aproxima
ou mesmo se identifica com o universo das compras, dos shop-
pings, das marcas, das lojas, das grifes, do consumo, enfim. Três
instâncias, tanto no plano das atividades concretas quanto no
plano das narrativas, serão aqui investigadas. A primeira será a
narrativa jornalística, autodefinida e socialmente aceita como
produtora de um “discurso da verdade” e da “informação ob-
jetiva”, a fim de levantar um questionamento quanto ao uso do
vocabulário sagrado, mágico ou religioso para tratar de assuntos
relacionados ao consumo. Em seguida, será feita a análise da pu-
blicidade, a principal narrativa sobre o consumo de que dispo-
mos e que também permeia a esfera do sagrado, e cujo discurso
é predominantemente mágico. E, por fim, serão analisadas algu-
mas práticas rotineiras, banais, comuns e cotidianas de consumo
que parecem traduzir aspectos relacionados com as experiências
típicas da esfera do sagrado.

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174 cultura e imaginação publicitária

O consumo tem sido estudado pelas ciências sociais há mais


de 30 anos, desde que a famosa antropóloga Mary Douglas e o
economista Baron Isherwood marcaram esse campo de estudo,
criando a expressão “antropologia do consumo” no subtítulo da
obra O mundo dos bens, do fim da década de 1970. Além deles,
Collin Campbell, Daniel Miller, Everardo Rocha, Grant Mc-
Cracken, entre outros, contribuíram, ainda nos anos 1980, para
dar início a essa área de pesquisa e também foram, de alguma
maneira, pioneiros ao estudar o consumo pelo viés da antropo-
logia. Nos trabalhos desses autores, havia, obviamente, o inte-
resse comum pela pesquisa do consumo, além de entenderem
que era um caminho importante para conhecer nossa sociedade,
também estudaram o consumo com olhar de estranhamento, re-
lativizaram as visões moralistas e assumiram, ainda, o ponto de
vista do outro, o ponto de vista nativo em suas análises. Mas, é
muito significativo que, além desses, mais um traço em comum
os reunia, pois todos, mesmo que por ângulos diferentes, aproxi-
maram o consumo da experiência do sagrado. Parece haver nes-
ses autores uma constatação que não deve ser ignorada: a nossa
sociedade vivencia o consumo como uma espécie de magia reve-
lada em alguns de seus rituais, práticas e representações. De uma
forma ou de outra, todos eles indicaram uma intensa relação
que conjuga a experiência do consumo à do sagrado – Douglas e
Isherwood, além de McCracken, falam de rituais, (2001) de day-
-dream, Miller de sacrifício e Rocha de magia, quando realizam
suas investigações sobre o consumo.
Mary Douglas e Baron Isherwood, ao legitimarem a antro-
pologia do consumo como campo de estudo das ciências sociais,
foram os primeiros a estabelecer uma proximidade entre con-
sumo e ritual. Em seu trabalho, afirmam que “Os bens (...) são
acessórios rituais; o consumo é um processo ritual cuja função
primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos”

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 175

(2009: 112). Assim, consumir é uma forma de ritual e então o


que consumimos fixa o fluxo de acontecimentos, estabelecendo
alguns dos significados do que somos.
Outro bom exemplo é a personagem Lois Roget, citada por
McCracken, em Cultura e consumo (2003). Roget faz de sua casa
um museu composto por objetos de família, todos eles com va-
riados significados e de extrema importância para ela. Alguns
desses objetos possuem locais especiais, de destaque, que consti-
tuem algo como um pequeno altar. É o caso da lamparina (2003:
73) que, quando criança, ela levava para a cama e, anos depois,
passou a ser utilizada como um evocativo centro de mesa, como
um altar, para a época de Natal. Assim, nas refeições feitas em
conjunto com os familiares, as luzes eram apagadas, deixando to-
dos iluminados somente pela chama da lamparina – a memória
de um passado, um altar construído para ela que exigiu, ainda,
anualmente, uma espécie de ritual de família para contemplação.
Também Daniel Miller, em Teoria das compras (2002), ao
estudar os hábitos de consumo de donas-de-casa em supermer-
cados, identificou padrões de práticas que se assemelhavam a
pequenos sacrifícios rituais. Eram comuns os gestos de usar
escassos recursos financeiros para a aquisição de produtos es-
peciais para membros da família – um ato estruturalmente se-
melhante ao do sacrifício da dádiva divina, em que o seguidor
oferta um animal ou um fruto do seu trabalho para homenagear
alguma divindade.
Colin Campbell (2001) mostra como o day-dream, o deva-
neio, foi um elemento fundamental do romantismo e uma forte
contribuição para desencadear as práticas de consumo no século
XVIII. Segundo o antropólogo inglês, o consumo está no ato
de desejar e almejar um bem ou status social. Quando o bem é
adquirido e cessam-se os devaneios, cansa-se do bem e, nova-
mente, surgirá outro propósito capaz de provocar o devaneio. As

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176 cultura e imaginação publicitária

experiências de day-dream também podem ser traduzidas como


uma aproximação do consumo com a esfera do sagrado, indican-
do um dos movimentos iniciais de migração do sagrado para a
esfera do consumo, em um mundo que, na época, começava a se
tornar cada vez mais laicizado.
Finalmente, Everardo Rocha (1985), ao identificar a narra-
tiva publicitária ao sistema totêmico, percebe uma semelhança
entre ambos, na medida em que instauram e perpetuam sistemas
de classificação que permitem uma articulação das diferenças
entre os bens de consumo com as diferenças entre identidades
e grupos sociais. O autor também contribui para a aproximação
entre o sagrado e o consumo quando afirma que é na publicida-
de, narrativa privilegiada do fenômeno do consumo, que o pen-
samento mágico encontra seu lugar na racionalidade do mundo
moderno-contemporâneo. Não por acaso o livro em que discute
esses temas se chama Magia e capitalismo.
Antes de entrar em uma análise mais detida das narrativas
jornalísticas, da publicidade e das práticas de compra, que su-
gerem a relação entre as experiências do consumo e do sagrado,
é preciso discutir algumas ideias básicas dentro deste comple-
xo emaranhado de reflexões que envolve temas como sagrado,
magia, ritual, mito, religião, entre outros. Vamos debater um
pouco sobre o que essas questões podem implicar, uma vez que
são complexas, atravessam diversas tradições acadêmicas, são
polêmicas, de difícil apreensão e possuem múltiplas definições,
podendo configurar constelações de objetos. De qualquer forma
é preciso, dentro dos limites desse trabalho, discutir sobre os sen-
tidos que serão dados a esses termos.
Porém, deparamos de saída com uma constatação e um im-
passe, pois definições antropológicas precisas para estes termos
podem se mostrar insatisfatórias, tanto no nível da complexi-
dade e da amplitude teórica envolvida quanto no nível da sim-

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 177

plicidade que deveria ser obtida quando se recorre a dicionários


e enciclopédias de ciências sociais. Assim, trata-se de um terre-
no pantanoso, termos hesitantes de um tema tradicionalmen-
te escorregadio. Por isso, vamos apenas reter aqui a perspectiva
de Durkheim no clássico As formas elementares da vida religiosa
(2009) de 1912 na qual o termo central é o sagrado, sendo a ma-
gia e a religião duas modalidades possíveis para sua apropriação.
Embora o sagrado possa estar em uma infinidade de coisas, é
preciso, para distinguir do que é profano, que estejam presen-
tes certas características gerais de modo a diferenciá-lo do outro
polo. Em que pese aquilo sobre o qual incide o sagrado ser, via
de regra, classificado como superior, em dignidade e em poder,
quando contrastado com as coisas profanas, essa hierarquia não
é um distintivo absoluto que demarque esses dois âmbitos. Eis os
termos com que Durkheim se expressa:

(...) convém não perder de vista que há coisas sagradas de todo tipo
e que há aquelas diante das quais o homem se sente relativamente
à vontade. Um amuleto tem um caráter sagrado, no entanto o
respeito que inspira nada tem de excepcional. Mesmo diante de
seus deuses, o homem nem sempre se encontra numa posição de
acentuada inferioridade, pois muitas vezes exerce sobre eles uma
verdadeira coerção física para obter o que deseja (2009: 21).

Assim, tomar como base meramente um sistema de hierar-


quias é um critério que não se sustenta como distinção entre
sagrado e profano. Por isso Durkheim vai pela perspectiva da
heterogeneidade das duas esferas para, então, classificá-las e
discerni-las. O sagrado e o profano são domínios radicalmente
opostos e absolutos, hostis e rivais entre si, sem negociação, não
há meio-termo. Embora isso não impeça a existência de algum
tipo de transição, ou seja, que alguma coisa, um objeto profano,
eventualmente, se torne sagrado ou vice-versa. Para que tal pas-

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178 cultura e imaginação publicitária

sagem ocorra, exige-se que ele se retire completamente de uma


das esferas e passe a pertencer integralmente à outra. Os dois do-
mínios são rígidos, porém é possível o trânsito de coisas e pessoas
entre eles, mas é preciso ainda ressaltar que a fronteira é demar-
cada por interdições, ou seja, por regras de proibição. Nas pala-
vras do próprio Durkheim, “as coisas sagradas são aquelas que as
proibições protegem e isolam: as coisas profanas, aquelas a que se
aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das
primeiras” (2009: 24). Conforme veremos mais adiante neste es-
tudo, a sacralidade dos bens na sociedade de consumo obedece à
mesma regra da absoluta heterogeneidade. O trânsito dos bens é
possível, mas quando está em uma das esferas, tende a nela estar
de forma absoluta.
Durkheim passa, então, a tentar definir as crenças religiosas
como o conjunto de representações que exprimem a natureza
das coisas sagradas e as relações que elas mantêm entre si ou com
as coisas profanas. A religião é, portanto, um sistema dotado de
certa unidade, é constituído por um agregado de crenças e de
ritos correspondentes. Não obstante essa unidade, a religião per-
mite a pluralidade de coisas sagradas, com cultos variados e que
podem guardar alguma autonomia entre si. Diz ele:

Cada grupo homogêneo de coisas sagradas, ou mesmo cada coisa sa-


grada de alguma importância, constitui um centro organizador em
torno do qual gravita um grupo de crenças e ritos, um culto particu-
lar; e não há religião, por mais unitária que seja, que não reconheça
uma pluralidade de coisas sagradas. (...) Assim, uma religião não se
reduz geralmente a um culto único, mas consiste em um sistema de
cultos dotados de certa autonomia (Durkheim, 2009: 25).

A religião não é, contudo, a única via de sacralização.


Durkheim resguarda outra possibilidade de manifestação do sa-
grado: a magia. Esta é constituída por crenças e ritos e, assim

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como a religião, também possui seus mitos, dogmas e práticas.


O fato de ambas se hostilizarem torna insustentável a tese de
serem a mesma coisa e, ainda, na magia, a profanação das coisas
sagradas é recorrente.

Também a magia é feita de crenças e de ritos. Assim como a re-


ligião, tem seus mitos e seus dogmas; eles são apenas mais rudi-
mentares, certamente porque, buscando fins técnicos e utilitários,
a magia não perde tempo com especulações. Ela tem igualmente
suas cerimônias, seus sacrifícios, suas purificações, suas preces, seus
cantos e suas danças (Durkheim, 2009: 26).

E, um pouco mais adiante, falando sobre a tese de que a


magia estaria repleta de aspectos religiosos e vice-versa, explica:

Mas, o que torna essa tese dificilmente sustentável é a marcada


repugnância da religião pela magia e, em contrapartida, a hostili-
dade da segunda pela primeira. A magia tem uma espécie de prazer
profissional em profanar as coisas sagradas; em seus ritos, realiza
em sentido diametralmente oposto as cerimônias religiosas. Por
sua vez, a religião, se nem sempre condenou e proibiu os ritos
mágicos, os vê geralmente com desagrado (Durkheim, 2009: 27).

Magia e religião, nessa perceptiva, embora opostos e hostis,


são dois modos de apropriação da esfera do sagrado. Assim, em
primeiro lugar, o que é sagrado se caracteriza por ser oposto ao
que é profano. A magia e a religião são duas faces da mesma
moeda, dois modos de apropriação da esfera do sagrado e, tanto
uma como outra, são, em certo sentido, intrinsecamente tota-
lizadoras e marcadas como fenômenos coletivamente compar-
tilhados. Para os termos desse trabalho, vamos reter a oposição
entre sagrado e profano e assumir que, no caso de narrativas e
práticas ligadas ao consumo, a apropriação do sagrado pode ser
semelhante ao que acontece em uma ou outra das vias – má-

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180 cultura e imaginação publicitária

gica ou religiosa – identificadas por Durkheim. Entretanto, se


pode pensar que a apropriação realizada pelo consumo fica mais
evidente através da ideia de magia, quanto mais não seja pelo
que revela o próprio discurso nativo. Não por acaso, uma das
estruturas mais tradicionais e conhecidas dos anúncios publicitá-
rios é aquela que insere o produto no cotidiano do consumidor,
faz com que ele resolva algum impasse que a própria trama do
anúncio criou e conclui com o significativo bordão “it works like
magic” (Wagner, 1975).
As ideias acima sugerem o suficiente para iniciar o exame das
narrativas e práticas de consumo em nossa sociedade moderno-
-contemporânea e para perceber os modos pelos quais essa apro-
ximação se atualiza concretamente nos nossos atos de compra e
naquilo que nos dizem tanto o jornalismo quanto a publicidade.
Como veremos, no plano dessas narrativas bem como no das
nossas atitudes frente aos bens, existe uma evidente aproximação
do consumo com o sagrado, domínio que ali se traduz em ma-
gia, sistemas totêmicos, mitos, sacrifícios e rituais.

As notícias, os anúncios, as apropriações do sagrado

Na cultura contemporânea, em nossa assim chamada “so-


ciedade de consumo”, existem pelo menos dois discursos cuja
proposta é produzir a “verdade” e que desfrutam do prestígio e
do poder dela derivados. Discursos socialmente confiáveis com
garantia de serem ancorados na verdade, na realidade e na razão.
Um deles é o discurso jurídico que é muito antigo e dele a socie-
dade espera que produza uma verdade e que aponte culpados ou
inocentes sobre questões as mais diversas. Ele deve produzir uma
realidade palpável e se caracteriza exatamente por ser uma pes-
quisa da verdade, por ser dela um construtor (Foucault, 1973).
O outro é o discurso jornalístico que seria responsável pela infor-

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mação segura, por reproduzir fielmente a realidade e por noticiar


a verdade dos fatos. Um discurso sólido, supostamente balizado
por cânones profissionais como fontes confiáveis, descrição im-
parcial, isenção profissional, certeza da informação. Um bom
exemplo da credibilidade popular de que desfruta o discurso
jornalístico pode ser encontrado no enredo do famoso filme To-
dos os homens do presidente (EUA, 1976). Nele, jornalistas são
representados como profissionais devotados à obtenção e difu-
são da verdade, investigando e questionando, incessantemente,
tudo o que apuram para testar o grau de solidez. Nesse processo
de obtenção da verdade acabam por trazer à tona fatos objetivos
e informações verdadeiras que se revelam capazes de levar ao
impeachment do presidente norte-americano.
No entanto, ao tratar do consumo, o discurso jornalístico,
tão cuidadoso de seu tom imparcial, cioso da verdade, recorre a
um vocabulário, um repertório de termos, no mínimo, curioso
e, de fato, muito revelador. O jornalismo parece ter “certeza” de
uma “verdade”, possuir uma informação “fidedigna” e um dado
“factual” quando aproxima o consumo da experiência de sagrado
e do pensamento mágico.
Os exemplos a seguir, retirados da imprensa brasileira, ilus-
tram a recorrência dessa aproximação. Em matéria veiculada em
16 de junho de 2007, que traz a notícia de um investidor árabe
que possivelmente compraria uma rede varejista de roupas nor-
te-americana, o portal de notícias G1 se expressa “Árabes devem
comprar Meca do consumo americano”;1 o Estilo UOL, em 23
de novembro de 2010, ao narrar a inauguração de duas lojas de
famosos estilistas italianos no Brasil, diz “Instalam-se por aqui
mais duas grifes internacionais do panteão da moda”.2 Também

1
Publicado em www.g1.globo.com em 16/06/2007.
2
Publicado em www.estilo.uol.com.br em 23/11/2010.

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a Veja On-line, em 6 de outubro de 2011, ao falar da multidão


de fãs que foram prestar homenagens ao criador da Apple, Steve
Jobs, morto horas antes fala de uma “Peregrinação ao ‘templo’ da
Apple”.3 Ainda mais, a Exame, de 12 de novembro de 2011, ao
tratar de Bernard Arnault, presidente da LVMH, o chama de “O
papa da moda”, que seria o seu apelido dado pela imprensa mun-
dial.4 Na mesma linha, o jornal Extra, em 27 de novembro de
2011, em uma matéria que conta a história de uma igreja católi-
ca localizada no interior de um shopping center, afirma que “No
Shopping Via Brasil, em Irajá, uma porta de vidro é o que separa
o templo católico do templo do consumo”.5 Finalmente, o Brasil
Econômico, em 28 de agosto de 2012, ao narrar a felicidade de
muitos consumidores que não têm dinheiro para comprar obje-
tos de luxo nas lojas, mas o fazem em brechós especializados, diz:
“Classe C vai ao paraíso do consumo no brechó de luxo”.6 As
informações jornalísticas, os fatos sobre o consumo, são descritos
através de termos tais como: “meca”, “panteão”, “peregrinação”,
“papa”, “templo”, “paraíso”, “deus”, “milagre”, entre outros. Sem
falar nas inúmeras referências aos “fiéis das marcas”. É evidente
que todos apontam para um mesmo sentido – o sagrado. É evi-
dente também que a relação entre consumo e sagrado parece ser
uma “verdade” jornalística.
Os exemplos acima poderiam se multiplicar indefinidamente
e já aparecem nas narrativas jornalísticas há muito tempo. Desde
que surgiram os primeiros shoppings no Brasil eles são jornalis-
ticamente definidos como “templos de consumo”. Este é o caso
da matéria da Veja de 4 de novembro de 1981 que fala sobre a
Barra da Tijuca no Rio de Janeiro e a então recente inauguração
3
Publicado em www.veja.abril.com.br em 06/10/2011.
4
Publicado em www.exame.abril.com.br em 12/11/2001.
5
Publicado em www.extra.globo.com em 27/11/2011.
6
Publicado em www.brasileconomico.ig.com.br em 28/08/2012.

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do BarraShopping. A matéria tem como título “A ocupação do


paraíso” e, em seu subtítulo, diz “A Barra da Tijuca, o bairro que
mais cresce no Rio, ganha agora um novo templo do consumo”.
E o texto completa:

(...) Desde a semana passada, porém, a Barra da Tijuca ganhou no-


vos contornos. Mais precisamente, os contornos de 150.000 m2 de
área urbanizada – um investimento de 6 bilhões de cruzeiros –, que
sob o nome de BarraShopping trouxe à região 154 lojas de uma só
vez. A inauguração do BarraShopping – o maior paraíso de consu-
mo do país – transformou-se na última prova de que a Barra, en-
fim, é um lugar viável para se morar (Veja, no 687 de 04/11/1981).

Todas essas matérias jornalísticas apontam em um mesmo


sentido e mostram como o “discurso da verdade” identifica, com
uma natural certeza da informação sobre os fatos, o consumo
como um fenômeno pertencente à esfera do sagrado. Dessa for-
ma, realizam uma curiosa operação de condescendência, fazendo
coro e, como gostam os próprios jornalistas, repercutindo a nar-
rativa publicitária.
É muito provável que a matriz dessa aproximação entre con-
sumo e sagrado, que marca a chamada informação jornalística
e ecoa em outras produções culturais, se encontre na narrativa
publicitária, ou seja, na própria forma do consumo falar de si
mesmo, na maneira como se apresenta e naquilo a partir do que
se define, desde que começa a existir tal como o conhecemos na
cultura moderna. A função precípua da publicidade é fazer com
que produtos e serviços existam simbolicamente no imaginário
coletivo, pois é através dela que os bens adquirem sentido na pas-
sagem da esfera da produção para a esfera do consumo, fazendo
com que seres humanos e objetos se relacionem, se articulem
e se transformem em significados e distinções sociais (Rocha,
1985, 2005). A publicidade atribui valor aos objetos, classifica a

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184 cultura e imaginação publicitária

produção, envolvendo produtos e serviços em um dado sistema


simbólico. No mundo da publicidade, tudo é possível, a felici-
dade plena é uma constante, mas somente obtida pelo uso dos
anunciados bens de consumo. É um mundo perfeito e livre do
peso das explicações:

Nasce, pois, uma enorme curiosidade e um grande fascínio pelo


mundo da publicidade. Pelo mundo que nos é mostrado dentro
de cada e todo anúncio. Mundo onde produtos são sentimentos
e a morte não existe. Que é parecido com a vida e, no entanto,
completamente diferente, posto que sempre bem-sucedido. Onde
o cotidiano se forma em pequenos quadros de felicidade absoluta
e impossível. Onde não habitam a dor, a miséria, a angústia, a
questão. Mundo onde existem seres vivos e, paradoxalmente, dele
se ausenta a fragilidade humana. Lá, no mundo do anúncio, a
criança é sempre sorriso, a mulher desejo, o homem plenitude, a
velhice beatificação. Sempre a mesa farta, a sagrada família, a sedu-
ção. Mundo nem enganoso nem verdadeiro, simplesmente porque
seu registro é o da mágica (Rocha, 1985: 25).

A publicidade não é um poder coercitivo e sim persuasivo.


Sua temporalidade é totêmica, cíclica, seus eventos podem se re-
petir indefinidamente, ela dispensa o tempo linear, pois “fala do
eterno, suprime o tempo, recorta diferenças na série da produção
e as convertibiliza em diferenças na série do consumo” (Rocha,
2006: 50). Também é holística, porque no seu mundo, naquele
que é projetado pelos anúncios, todos se conhecem e estão, o
tempo inteiro, se relacionando uns com os outros – não existe
solidão na publicidade. Não é produtivista e os anúncios não
precisam mencionar nada sobre a relação fundamental entre bens
de consumo, dinheiro e obrigação de trabalhar e, inversamente,
é muito comum nos dizerem trivialmente “pegue”, “conquiste”,
“tenha”, “é seu”... Os personagens que aparecem nos anúncios
publicitários já têm os bens e já deles fazem uso ou, no limite, os

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terão e usarão nos instantes seguintes dentro do tempo interno


do próprio comercial. Para que isso sempre aconteça é necessário
o pensamento mágico e é através dessa apropriação do sagrado
que se sustenta a narrativa publicitária, em contraste com a ex-
periência cotidiana cada vez mais laicizada. Alguns exemplos vão
ajudar a ilustrar esse ponto.
A linha de perfumes pertencente à marca nova-iorquina
DKNY tem a maçã como inspiração para o design de seus frascos
– uma clara alusão à narrativa do Gênesis, ao pecado original –
e os anúncios das campanhas publicitárias da marca, reiterada-
mente, evocam referências bíblicas. Sobre perfumes e sagrado,
mas radical ainda é o que nos revela a matéria, publicada em 18
de dezembro de 2012 no Yahoo Notícias Brasil, intitulada “Bispa
da ‘Renascer em Cristo’ lança perfume com cheiro de Jesus”:

Qual será o cheiro de Jesus? Bom, a bispa Sônia Hernandez, funda-


dora da igreja evangélica Renascer em Cristo, parece saber. Ela lan-
çou no último sábado (15) uma linha com perfume, creme hidratan-
te e sabonete líquido. O kit “De bem com a vida” sai por R$ 79 e,
segundo a filha da religiosa, “exala o bom cheiro de Cristo”.
De acordo com a bispa, os produtos demoraram alguns anos para
chegar ao mercado brasileiro por conta das pesquisas e desenvol-
vimento das embalagens e foram testados pessoalmente por Sônia
e a filha Fernanda.
A bispa disse que essa linha de produtos vem da benção da Ceia
de Oficiais, que diz que sementes que você nem lembrava que
havia semeado iriam frutificar. O próximo passo é lançar a linha
de perfumes para homens, que será o kit do Apóstolo Estevam,
marido dela.7

7
Publicada em http://br.noticias.yahoo.com em 18/12/2012.

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186 cultura e imaginação publicitária

O anúncio do produto para tratar cabelos Argan Instant da


linha Argan Premium, promete rejuvenescimento instantâneo.
O anúncio mostra uma moça jovem e loira, com um frasco de
Argan Instant repousando na palma de sua mão. Ela está sobre
um fundo dourado repleto de pontos brilhantes. Na parte in-
ferior da peça publicitária, há uma faixa num tom de amarelo
dourado intenso com a frase: “Um toque de mágica para seus ca-
belos. Encante-se!”. No anúncio, um líquido que encanta quem
o aplica nos cabelos. É como uma poção que, magicamente,
transforma cabelos secos, quebradiços, em péssimo estado, em
cabelos macios e saudáveis. Como se o produto fosse ele mesmo
o próprio feiticeiro capaz de realizar alguma magia para recupe-
rar os fios maltratados.
A marca americana de cigarros Chesterfield possui um anún-
cio, veiculado na década de 1950, que traz a ilustração de uma
moça sorridente, levando uma xícara à boca, e com um cigarro
da marca apoiado entre os dedos. Acima dela há uma máquina
industrial que faz cair vários cigarros sobre o que está apoiado
entre os dedos, como se este também tivesse acabado de ser fabri-
cado. Ao lado, o seguinte título: “Chesterfield define um novo
padrão de qualidade com o Novo Milagre da Eletrônica! Accu-ray
traz-lhe um fumar mais suave e mais fresco que nunca antes fora
possível!” O “novo milagre”, conforme explica a caixa de texto
presente no anúncio, é “milagre científico”, que produz cigarros
de forma eletrônica e perfeitamente medidos. Este anúncio nos
mostra que a eletrônica operou um milagre para a fábrica de
Chesterfield, de modo que a produção de cigarros seja realizada
com absoluta precisão. A perfeição e a métrica são responsáveis
pela satisfação única dos cigarros Chesterfield. Então, é possível
concluir que o milagre métrico realizado pelo mundo da eletrô-
nica é a razão da satisfação única prometida pela marca. Mais
enfático que o “milagre científico” do Chesterfield dos anos 1950,

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 187

são os milagres recentes realizados pelos filmes publicitários da


Derty Devil vacuum cleaners que vende suas várias modalidades
de aspiradores de pó, utilizando o milagre de ressuscitar Fred
Astaire que, nesses comerciais, dança feliz com aspiradores no
lugar da Ginger Rogers, esta ainda não ressuscitada. Da mesma
maneira, a doce e sofisticada Audrey Hepburn, que em vida era
fortemente identificada com bens de consumo como bolsas Cha-
nel e joias Tiffany, agora, também pelo milagre da ressurreição
publicitária, pode comer chocolates Galaxy em aldeias italianas
à beira-mar. No filme comercial, após evidentemente encantar
a todos, a atriz ressuscitada consome seu chocolate enquanto o
anúncio, de um jeito como se diz, “very Audrey”, pergunta: “why
have cotton, when you can have silk?”. Como não poderia dei-
xar de ser, também na publicidade brasileira existe ressurreição
e, no nosso caso, quem recebe o milagre é o cômico Mussum,
trazendo graça e humor aos anúncios da Volkswagen. De fato, a
publicidade é mágica e o milagre da ressurreição é seu êxtase, seu
paroxismo, seu máximo acontecimento.

Os rituais, as práticas, os consumos

A vida social na contemporaneidade faz com que, frequen-


temente, as práticas de consumo sejam também elas envolvidas,
de alguma forma, pela esfera do sagrado. Há uma espécie de
intenção de sagrado que perpassa os espaços do consumo. Os
ambientes de shoppings, as temperaturas sempre idênticas, a ar-
quitetura das lojas, sua sonoridade, a exibição orgulhosa de bens
e marcas nas vitrines e a contemplação quase encantada daqueles
que por elas passam, a decoração suntuosa, os espelhos, os dis-
cursos e a gestualidade ritualizada dos vendedores, seus sorrisos,
a iluminação por vezes feérica, por vezes tênue que incide sobre
todos os ângulos – nesses espaços os nossos sentidos aguçados

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parecem induzir na direção de uma experiência fora da rotina e


do profano na direção do mágico e do sagrado. Vamos entender
como podemos sair da rotina desse mundo laico e profano para,
despretensiosamente, entrar nessa experiência do sagrado que
o consumo parece nos proporcionar para além do imaginário,
também nas nossas práticas.
Um dos textos seminais para os estudos do consumo, em-
bora este não seja o seu objeto em sentido estrito, é o “Ensaio
sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas”,
de Marcel Mauss (2003), publicado pelo l’Année Sociologique,
em 1923/1924. Ao analisar as relações que se estabeleciam entre
as tribos das ilhas da Polinésia e do Pacífico Ocidental, o autor
investiga dois rituais praticados através das trocas materiais, o
potlatch e o kula, respectivamente. Mauss percebe o papel dos
bens materiais na manutenção da solidariedade e a importância
da tradição e do ritual para sustentar o tecido social. Sobretudo,
demonstra que há na troca um fim coletivo que lhe é intrínseco.
Aqui cabe ressaltar que dádiva, troca e reciprocidade são ele-
mentos constantes que se misturam e se confundem em nossas
práticas de consumo. Esse texto de Mauss é, portanto, um exce-
lente ponto de partida para mostrar que a ordem cultural é deci-
siva para relativizar a prevalência da razão utilitária nas situações
de troca ou de consumo. Nas culturas diferentes da nossa – as
culturas do “outro” – os processos de troca são coletivos e asso-
ciados a rituais nos quais a circulação de riqueza é um simples
termo de um contrato permanente e muito mais amplo entre os
envolvidos. Esse contrato supõe como princípio a retribuição ao
outro daquilo que é dado, pois através do que é dado transita
parte do doador, de sua natureza e substância. A aceitação de
alguma coisa de alguém é a aceitação de algo da sua essência
espiritual. O dar e o receber assumem a forma de obrigações:
recusar a relação de troca é uma hostilidade que nega a aliança

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 189

e a comunhão. O prestígio é, sistematicamente, associado com


a doação e com a retribuição exata das dádivas recebidas, o que
faz a reciprocidade permanente ao devolver ao outro a obrigação.
Este sistema de trocas regulava a posição social de cada tribo ou
indivíduo e previa, ainda, casos como o potlatch cujo objetivo
era evitar a possível retribuição pelo dispêndio tão elevado de
riquezas que não haveria como retribuir, sendo desejo do doador
aumentar sua projeção social e a de seu grupo de referência.
Marcel Mauss mostra que a sociedade moderna revela prá-
ticas próximas destas regras, permanecendo, em algum sentido,
vinculada à atmosfera da dádiva, da obrigação e da reciprocida-
de. É o caso de muitas práticas de consumo nas quais nem tudo
se pode definir exclusivamente em termos de compra e venda
ou em nome da razão econômica ou utilitária. Os sentimentos,
os rituais, os presentes, as lembranças – dentre elas os brindes
promocionais tão disputados, via de regra, à revelia da qualidade
ou valor monetário envolvidos –, as gentilezas, as homenagens,
os espaços simbólicos, as posições classificatórias para manter o
nosso devido lugar são coisas fundamentais também no siste-
ma de trocas contemporâneo, pois é preciso retribuir as dádivas
aceitas. O consumo acaba sendo um instrumento básico para se
manter um lugar adequado no simbolismo das trocas e, para se
ter prestígio, é preciso, de preferência, oferecer algo compatível
– maior às vezes, igual no mínimo – ao que foi recebido. Por isso
vemos, com frequência, famílias de vida modesta, oferecendo
grandes festas – casamentos, aniversários, comunhões – ainda
que os gastos envolvidos apareçam como exemplos de irraciona-
lidade econômica (DaMatta, 1985). Nas trocas e no consumo
moderno, acontece muito mais do que poderia supor o racional,
o utilitário ou o econômico. Nossos espaços e práticas de con-
sumo são embebidos em um rigoroso simbolismo refratário à
razão e que pode se aproximar, assim como as narrativas sobre

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190 cultura e imaginação publicitária

o consumo se aproximam, da experiência do sagrado. Portan-


to, somos remetidos, de forma recorrente e desde sempre, a esse
mundo coletivo, tradicional e sagrado, pois a própria formação
do consumo moderno indica essa presença.
Os grandes magazines, as lojas de departamentos do século
XIX, propunham um novo espaço e refletiam uma experiência
moderna, criando um lugar especial, diferente, um novo local
onde as mulheres eram livres para circular (McCracken, 2003).
Até o surgimento e a legitimação desses novos espaços, não era
socialmente aceito que as mulheres saíssem sozinhas, além das
casas umas das outras e de locais sagrados como as igrejas. A
sociabilidade era restrita ao âmbito da intimidade das casas ou
do sagrado dos templos. As lojas de departamentos impactaram
pesadamente o consumo e, no mesmo gesto, acabaram por se
constituir em um espaço à parte logo ocupado principalmen-
te por mulheres e crianças (Rocha e Andrade, 2009). Espaço
que se revelou um terceiro termo, nem completamente privado
nem tradicionalmente integrado no antigo sagrado. Contendo
elementos dos dois, estabelecia-se, nesses grandes magazines, a
relativa intimidade de um em aliança com uma aproximação
significativa do outro, mesmo que essa aproximação não caracte-
rize, nos termos que vimos com Durkheim, a típica apropriação
do sagrado. Não por acaso, o teto da loja de departamentos Prin-
temps, em Paris, pode ser facilmente confundido com qualquer
abóbada de vitrais coloridos e mandala no centro, pertencente a
qualquer grande templo religioso. A fachada da Galeria Lafayette
também lembra uma catedral. Em ambos os casos, nota-se que
o projeto inicial desses empreendimentos já previa a ostensiva
aproximação com o sagrado.8 Assim, os grandes magazines se

8
A ideia de sagrado já aparece claramente nas descrições dos grandes magazines e do
próprio consumo no romance Au Bonheur de Dammes de Émile Zola, publicado
em 1882.

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mantiveram no tempo, foram fundamentais na formatação do


consumo moderno e assumiram outras ou novas formas como a
butique e o shopping.
Ao entrar em um shopping, em qualquer dia da semana ou
do ano, a iluminação sempre será a mesma, sem noites ou dias,
não se sabe as horas, perde-se a noção de tempo. Exceto pelo
fato das lojas abrirem ou fecharem. O mesmo ritual se repete
de forma ininterrupta. Eventualmente, dependendo do dia da
semana ou da época do ano, as lojas permanecem abertas por
mais tempo e o fluxo de pessoas varia de acordo com este movi-
mento. A liturgia deste ritual é sempre muito parecida. As coisas
dentro de um shopping são orgulhosas, atrativas e brilhantes. As
lojas, pessoas, vitrines e bens de consumo compõem um clima
envolvente que propicia uma espécie de encantamento, fascínio,
sedução que sugere algo próximo da experiência de sagrado. E,
assim como na narrativa publicitária, ali dentro, por exemplo, o
tempo é totêmico, cíclico e ritualizado. O calendário das práticas
de consumo consiste em eventos que ocorrem todos os anos,
em determinadas épocas, como em uma espécie de rotação dos
deveres que define as precedências, permite a revisão e a renova-
ção, como as coleções na moda. Os bens de consumo se tornam
assim marcadores de intervalos (Douglas e Isherwood, 2006)
nesse processo circular e repetitivo que se aproxima da regu-
laridade litúrgica. Todos os anos são exatamente... iguais a si
mesmos: nada muda, não há inesperado. Tal estrutura parece ser
relacionada à experiência sagrada.
Nesse sentido da ritualização e da proximidade com a ex-
periência do sagrado, vamos ressaltar dois episódios grandiosos
importados dos shopping holidays – como são chamados esses
eventos nos Estados Unidos da América, onde tiveram origem.
Um deles é a Black Friday, que acontece no mês de novembro,
não por acaso no dia imediatamente após outro momento sagra-

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192 cultura e imaginação publicitária

do no país, o Thanksgiving, dia de Ação de Graças. Trata-se de


uma grande promoção de “queima de estoque”, com descontos
nos preços dos produtos que vão além de 80%. As lojas abrem
em horários especiais, algumas a partir da meia-noite e outras
às 4 horas da manhã, por exemplo. É a abertura não-oficial da
temporada de compras natalinas e serve para que comercian-
tes esvaziem estoques de forma rápida, a fim de receber grandes
quantidades de novos produtos a serem vendidos antes do Na-
tal. Na segunda-feira seguinte ao Black Friday, acontece o Cyber
Monday que, basicamente, prossegue, agora on-line nas lojas vir-
tuais, com as ofertas do Black Friday. Um outro exemplo é o do
Boxing Day, que ocorre no dia seguinte ao Natal. O nome vem
da prática que varejistas de determinados países mantêm de pre-
sentear seus subordinados com os produtos à venda na loja, mas
sem enfeites ou embrulhos. O presente é entregue na caixa de
papelão padronizada que o protege. Em alguns países, porém,
o excesso de estoque é posto à venda para o público consumi-
dor. O Boxing Day aberto ao público é, sobretudo, uma grande
liquidação, visando desocupar espaço físico para os produtos do
ano seguinte.9 Black Friday e Boxing Day são chamados shopping
holidays nos países de origem10 e se beneficiam dos sacralíssimos
feriados dos dias anteriores – Thanksgiving e Natal – nos quais
as escolas não funcionam, assim como determinados serviços,
como bancários e públicos. Obviamente, isso faz aumentar a
quantidade de pessoas circulantes no comércio. Outro ponto in-
teressante é o próprio termo holiday que remete à ideia de um

9
Émile Zola, em mais de um momento do seu referido romance Au Bonheur de
Dammes, descreve as liquidações que assombraram a Paris do século XIX reali-
zadas pelo grande magazine que dá título ao livro.
10
A tradução para o Brasil não é muito adequada, ainda não faz muito sentido
em nossa cultura, mas seria algo como “feriado de compras” (piores ainda seriam
“Dia da Caixa” ou “Sexta-feira Negra”).

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 193

dia sagrado e eram “dias de observância”, ou seja, devotados a


alguma causa da esfera do sagrado.
Também nesse mesmo sentido de aproximar consumo e ex-
periência do sagrado, se pode destacar o curioso fato de que o
simples anúncio de algum novo produto da Apple provoca gran-
de comoção entre seus fãs. Assim que a data da venda de um
novo produto é anunciada, vários admiradores da marca come-
çam a acampar na frente das lojas onde podem adquirir a novi-
dade. Formam-se filas de jovens, muitos deles fantasiados e em
atitude comemorativa, com cadeiras de praia, sacos de dormir,
comida, baterias solares para manter seus smartphones e laptops
sempre ligados, a fim de permanecerem conectados durante a
espera. O intuito é um só: ter o privilégio de conquistar o alme-
jado lançamento e testá-lo antes da maioria. A espera ao relento,
em alguns casos, pode durar mais de uma semana.11
Algumas atividades mais íntimas, que não envolvem tantas
pessoas quanto nos eventos acima, porém não menos ligadas às
cerimônias e aos rituais, também acontecem nos espaços de con-
sumo, ratificando, ainda mais, sua relação com o sagrado. É co-
mum vermos famílias, casais, pequenos grupos de jovens ou de
idosos etc., que, semana após semana, repetem ritualisticamente
suas idas aos shoppings para os mesmos passeios das sextas-feiras
ou sábados e os mesmos jantares ou lanches de domingo. Essa
ritualização se processa nos espaços dos shoppings e nas práticas
da compra, seja nos simples rituais semanais ou nos magnífi-
cos eventos de liquidações ou lançamentos. O caráter sagrado e
o pensamento mágico parecem estar presentes nas relações que
mantemos com vários espaços, momento e práticas de consumo
e compra, seja em razão dos sacrifícios que eles podem envolver
(Miller, 2002), seja em razão de rituais e cerimônias que podem

11
Publicado em http://tecnologia.terra.com.br em 15/03/2012.

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a eles se agregar. Este é o caso, por exemplo, do casal Ting e


Ling que realizou sua cerimônia de casamento na Apple Store da
Quinta Avenida, em Nova Iorque, no dia 13 de fevereiro, véspe-
ra do feriado tanto litúrgico quanto romântico, de São Valentim,
o Valentine’s Day, que equivale lá ao nosso dia dos namorados
celebrado em 12 de junho. Ting disse que conheceu sua mulher,
Ling, na loja enquanto ela procurava um iPod para comprar.
O responsável pela cerimônia estava trajado de uma forma que
procurava imitar o fundador da Apple, Steve Jobs, com óculos,
gola rolê preta, jeans e tênis. Em uma declaração para um jornal
britânico, o noivo disse que costumava brincar que a Apple era
a sua igreja, pois nunca fora religioso e amava tudo da marca.12
Também no mundo on-line, nos infinitos blogs na internet, as
atividades e práticas de consumo são, incessantemente, definidas
como experiências sagradas ou, no mínimo, fortemente ritualiza-
das. Se não, vejamos: no blog Vintage Guide, em 4 de janeiro de
2012, a autora descreve sua ida ao salão de beleza: “Fiz minha
sagrada hidratação semanal,13 afinal cabelos descoloridos mere-
cem todo cuidado especial, não é mesmo?”. O também bloguei-
ro Augusto Paz relatou em seu espaço o que as famosas fazem
para ficarem sempre bonitas e uma delas revelou: “Vou ao salão
uma vez por semana, todo sábado, para fazer a unha”. No blog Au-
drey Copping, a autora descreve seus passatempos: “Compras –
todo sábado vou ao shopping; Cinema  –  quase toda sexta-feira
vou ao cinema; Ir ao Pub – seja com amigos ou Brett, eu sempre
vou ao pub, durante os dias de semana ou fim de semana; Arrumo
a casa – por incrível que pareça, eu acho que arrumar a casa nos
sábados de manhã é muito relaxante e uma ótima terapia”. No site
La Carne, a importância de uma ida ao bar é ressaltada: “Como

12
Publicado em www1.folha.uol.com.br em 23/02/2010.
13
Os itálicos nos textos dos blogs abaixo são nossos.

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 195

já tava meio tarde, nem chegamos a sair pra sagrada ida a um


boteco próximo”.
De fato, se o consumo se apropria da esfera do sagrado, a
recíproca também pode ser verdadeira. Esse encontro do sagrado
com o consumo é visto, entre outras, na teologia da prosperida-
de, uma forma contemporânea de proselitismo de algumas das
denominações evangélicas no Brasil e que pretende, entre diver-
sos objetivos, o sucesso financeiro e profissional de seus seguido-
res. Assim, em um texto encontrado na página do ritual “Nação
dos 318” no Facebook, podemos ver essa proposição explicitada
como “(...) o maior Congresso Empresarial do Brasil, a Nação
dos 318 tem por objetivo mostrar à pessoa a importância de ter
uma vida próspera. Quem já participa da Nação dos 318 tem
conquistado o sucesso financeiro e a realização profissional.” O
rito ocorre na Catedral Mundial da Fé, grande templo da Igreja
Universal do Reino de Deus e os pedidos dos fiéis são, muitas ve-
zes, por realização financeira e consecução de desejos de consu-
mo. O discurso proferido pelo pastor, líder religioso responsável
pela cerimônia, indica o desejo de sucesso no plano financeiro
e de uma vida mais abundante que se traduza pela obtenção e
posse de bens de consumo. Alguns trechos dessas falas podem
ilustrar esse ponto:

Não pode acostumar com a pia vazando, com o box quebrado, TV


com Bombril na antena. (...) Móveis velhos, roupas doadas, não
quero migalhas, não quero restos dos outros. (...) Vocês falam mal
do país? Vai a Ipanema, vai no Recreio... esse país tem tudo pra dar
certo. Não pode ficar esperando do governo não, tem que cada um
se esforçar (...) Entra lá no Shopping Leblon de chinelo de dedo,
colarinho puído, amassado, o segurança vai te chamar. Agora vai
com roupa bonita, bolsa da Victor Hugo, perfumadinho... eles
olham sempre pro sapato e pra bolsa. (...) Você tem que vencer, pa-
rar nesse estacionamento com carro blindado, você passa onde for,

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linha Amarela... nossa blindagem é Deus, mas você tem que ter
o melhor. Você é filho do Rei. (…) Tá entrando (na IURD) com
Fiat Uno e vai sair com um Corolla. (…) Você lá, numa cobertura
do Recreio, Barra, Leblon, fazendo um churrasco. – Ai pastor, eu
só quero uma casinha. Casinha quem tem é joão-de-barro, você
merece o melhor (Mattos, 2008: 13 e14).

No âmbito do catolicismo, durante a recente Jornada Mundial


da Juventude, encontro de fiéis com presença do Papa, realizada
no Rio de Janeiro em julho de 2013, foram gastos 1,2 bilhão de
reais nas mais diversas formas de consumo dos visitantes, geran-
do uma expressiva quantidade de recursos extras para a cidade.14
É o que atestam as seguintes notas da coluna “Negócios & Cia”:
“Peregrinos 1 – A JMJ foi boa pra malls da Ancar Ivanhoe. No
São Gonçalo Shopping, as lojas de roupas dobraram as vendas,
semana passada, sobre igual período de 2012” e “Peregrinos 2
– No Rio Design Barra, as vendas subiram 16%; no Boulevard
Rio, 7%. O Botafogo Praia teve alta de 31% no fluxo sobre a
semana anterior”.15 Nessa perspectiva do sagrado como forma
de consumo, são muito comuns também, a venda de livros,
Cds, Dvds, imagens, camisetas, bonés, objetos variados etc. que
são comprados pelos fiéis de todas as religiões. Os “peregrinos”,
como foram chamados os turistas brasileiros e estrangeiros que
lotaram, principalmente, a orla da praia de Copacabana durante
a semana do evento, comungavam dos mesmos signos materiais:
camiseta da JMJ e mochila com a marca do evento estampada.
Em numerosos grupos, caminhavam, invariavelmente, guiados
por bandeiras de seus lugares de origem, circunscrevendo seus
pertencimentos locais, porém, irmanados através dos mesmos
bens materiais que expressavam a marca da experiência, tanto

14
Jornal O Globo, edição de 30 de julho de 2013, página 14.
15
Coluna “Negócios & Cia”. Jornal O Globo de 31/07/2013, página 33.

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templos e SHOPPINGS: a sacralização do consumo na contemporaneidade 197

sagrada quanto de consumo. No Riocentro, espaço comumente


usado para grandes convenções, shows e eventos para multidões,
centenas de expositores vendiam, durante a JMJ, desde roupas e
símbolos carregados pelos peregrinos até paramentos de sacerdo-
tes, pendurados em cabides na frente dos estandes, exibindo um
duplo sagrado: o de sua própria natureza e o de bem de consumo.
Assim, considerando que somos uma autodenominada “so-
ciedade de consumo”, é relativamente óbvio identificar a cen-
tralidade desse fenômeno no imaginário coletivo. Centralidade
que, antes e ao longo da história, foi ocupada por diferentes fe-
nômenos sociais, entre eles com certeza, dado um tempo e um
lugar, a religião e a magia. De certo modo, desde meados do
século XX já se identificava essa relação entre o sagrado e o con-
sumo. Não foi por acaso que Horace Miner, precisamente em
1956, ao “inventar” os “Nacirema” – essa criativa e contundente
relativização do que somos – evidenciou a forma tanto “exótica”
quanto “selvagem” que estabelecemos com nossos rituais diários
de higiene, de beleza, de saúde, enfim, nossa “estranha” relação
com a cultura material e com os bens de consumo. De fato, o
consumo priva da intimidade, trava um contato próximo, possui
plena compatibilidade com a esfera do sagrado. Não é possível,
no entanto, dizer no que essa tendência irá se tornar, as formas
que irá assumir ou as sensibilidades que mobilizará. De qualquer
forma, existem indícios fortes que parecem sugerir que o consu-
mo é uma forma moderno-contemporânea possível de apropria-
ção do sagrado.
Conforme ensinou Durkheim, as formas antigas de apro-
priação do sagrado seriam as mutuamente excludentes religiosa
e mágica. A grande questão a ser pesquisada, no entanto, seria o
lugar da experiência do consumo nessa apropriação do sagrado.
Se é possível dizer que boa parte das nossas ações e pensamentos
cotidianos são sustentados e justificados pela razão prática e pelo

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utilitarismo, também – e os exemplos fazem legião, como vimos


– podemos dizer que quando se trata de algo tão central quanto
o consumo, tanto nas atitudes quanto nas narrativas, demons-
tramos um profundo gosto pelo sagrado. É como se o chama-
do pensamento mágico estivesse migrando na direção de áreas
como nossas compras, por exemplo, que tradicionalmente deve-
riam ser guiadas pela racionalidade. De uma forma ou de outra,
o sagrado se opõe ao profano e ao laico, e tanto a religião quanto
a magia são modos identificados por Durkheim de apropriação
desse sagrado. O que podemos ressaltar como a pergunta central
desse estudo é se o consumo reproduz algum deles ou ambos os
modos ou, de outra maneira, marcado pela singularidade do seu
tempo, pelas idiossincrasias da cultura moderno-contemporâ-
nea, ele acaba erigindo um estilo próprio, um modo alternativo
de se apropriar da esfera do sagrado.

Referências bibliográficas
DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.
DAMATTA, Roberto. Vendendo totens, prefácio prazeroso para
Everardo Rocha. In: ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
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FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro:
PUC-Rio, 1974.
MATTOS, Rosa. Consumo no templo. Rio de Janeiro, 2008. Relatório
PIBIC/CNPq Departamento de Comunicação Social, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientador: Everardo
Rocha.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify,
2003.

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WAGNER, Roy. The invention of the culture. New Jersey: Prentice-
-Hall, 1975.

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Sobre os autores

Everardo Rocha – Doutor em Antropologia (Museu Nacional/


UFRJ). Professor Associado do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação do Departamento de Comunicação Social
da PUC-Rio. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Coordenador do PECC.

Cláudia Pereira – Doutora em Antropologia (PPGSA/IFCS/


UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.
Pesquisadora Plena do PECC.

Carla Barros – Doutora em Administração (Coppead/UFRJ).


Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFF. Pesquisadora Plena do PECC.

Bianca Dramali – Mestre em Comunicação (PPGCOM/PUC-


-Rio). Gerente de Gestão de Clientes da Infoglobo.

Bruna Aucar – Doutoranda em Comunicação (PPGCOM/


PUC-Rio). Professora do Departamento de Comunicação So-
cial da PUC-Rio. Pesquisadora do PECC.

Marina Frid – Mestre em Comunicação (PPGCOM/PUC-Rio).


Bolsista de Mestrado do PECC.

William Corbo – Mestre em Comunicação (PPGCOM/PUC-


-Rio). Pesquisador do PECC.

Lívia Boeschenstein – Aluna de Graduação do Departamento de


Comunicação Social da PUC-Rio. Bolsista de Iniciação Cien-
tífica do PECC.

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