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O QUE É CIÊNCIA
Charles Feitosa
1. TECNOFOBIA
A ciência tem em geral uma atitude realista, pois pressupõe um mundo objetivo, estável, com
regras e leis homogêneas, que servem de medida para todas as investigações. Parte do sucesso
da ciência advém justamente da capacidade de descrever eficazmente as regras e o
funcionamento das coisas. Essa eficácia foi reafirmada recentemente com o anúncio de
possibilidade de clonagem do homem. Parafraseando o filósofo alemão Walter Benjamin, que em
1936 escreveu sobre o surgimento da fotografia em A Obra de Arte na Era de sua
Reprodutibilidade Técnica, estamos adentrando também na era da reprodutibilidade técnica do
homem. Em breve veremos cópias de nós mesmos andando por aí. Benjamin dizia ser cedo para
julgar se a possibilidade de reproduzir um quadro ou uma sinfonia através de fotos e discos
deveria ser celebrada ou lamentada.
O processo de reprodução em série torna mais democrático o acesso à arte - posso ver a
fachada de uma igreja barroca na tela do meu computador sem ter que me deslocar para Minas
Gerais. Mas, por outro lado, as cópias destroem a "aura" da obra de arte, quer dizer, sua
singularidade, sua historicidade, seu contexto, seu pertencimento a uma tradição. Afinal, faz parte
da apreciação estética de uma igreja barroca suar alguns minutos subindo uma ladeira em Ouro
Preto e desfrutar sua visão no âmbito geográfico e social em que ela foi construída. Benjamin
levanta a dúvida se a reprodutibilidade técnica da obra de arte pode ou não provocar o fim da
experiência do belo tal como a conhecemos até agora.
Assim como Benjamin também não sabemos ainda se a clonagem humana é algo para se
celebrar ou se lamentar. Existem possibilidades fascinantes, tais como a produção de seres
humanos mais fortes, mais saudáveis, talvez até imortais. O princípio que move a ciência desde
seus primórdios é a busca da negação da morte. Entretanto, a clonagem traz também
possibilidades assustadoras, talvez seja o fim da imagem do homem tal como o conhecemos e um
surgimento de algo diferente, talvez monstruoso.
No livro Admirável Mundo Novo (1932), Aldous Huxiey (1894-1963) retrata uma
sociedade do futuro na qual os homens são condicionados por engenharia genética a ter um certo
destino. Por causa desse condicionamento, todos estão contentes com seu papel na sociedade,
seja para o trabalho bruto ou intelectual. Entretanto, eles sentem falta de liberdade para
administrar as suas próprias vidas. A explicação oficial é a de que a liberdade precisou ser
sacrificada em prol da felicidade. Serão ainda humanos os seres planejados geneticamente?
Na sociedade atual reina portanto uma certa tecnofobia (medo da técnica) em contraste
contra o otimismo tecnológico dos séculos anteriores Se antes as perguntas eram "o que posso
saber?" e "o que devo fazer?", agora as dúvidas mais importantes são "o que devo ignorar?", "o
que devo me abster de fazer?" Esse medo não é infundado, a ciência e a tecnologia estão
presentes em quase todos os setores da vida.
O crescente sucesso da ciência faz surgir o desafio de lhe impor limites. Mas como? E mais
importante, quem será capaz de realizar tal tarefa? Os cientistas, os políticos ou os homens
comuns? Sabemos que os cientistas possuem conhecimento especializado e que, em geral, eles
preferem não se envolver em discussões éticas ou políticas sobre o uso de suas descobertas.
Sabemos que os políticos têm voz e poder na sociedade, mas em geral nada entendem de ciência
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e, às vezes, muito pouco de ética. Finalmente, sabemos que os cidadãos comuns, os principais
interessados nessa discussão, não apenas não têm acesso completo às informações sobre a
maioria das descobertas científicas, como em geral nào costumam ser consultados, pois sua voz
tem pouca ressonância. Qual pode ser o papel e a tarefa da filosofia nesse debate?
No século XX, a ciência é considerada o discurso mais eficaz sobre a realidade, e a filosofia,
apenas uma ciência auxiliar, uma coadjuvante na busca do conhecimento. Todavia, nem sempre a
filosofia teve esse papel subordinado à ciência. A filosofia foi durante muito tempo ela mesma o
discurso mais completo e rico sobre o real. Já foi considerada como ciência, e não uma ciência
qualquer, mas a rainha de todas as ciências. A imagem dos primeiros pensadores, tais como
Tales, Pitágoras, Platão ou Aristóteles, coincidia com a dos cientistas, pois eles eram também
físicos, botânicos, químicos, astrônomos, etc. Fazer filosofia era a forma mais refinada de estudar
o mundo.
A lógica (do grego Lógos = palavra, pensamento) é a disciplina da filosofia que estuda o
modo correto de pensar. Aristóteles sistematizou no seu escrito Analíticos Primeiros (c. 350 a.C.)
os tipos perfeitos de silogismos: "discursos em que, dadas algumas coisas, outras derivam
necessariamente" (Analíticos Pr., 1,1, 24b). Os silogismos são raciocínios dedutivos, isto é, a partir
de uma ou mais premissas deduz-se a conclusão (sem precisar recorrer à experiência ou à
observação da natureza). O mais famoso exemplo de silogismo diz: "Todos os homens são
mortais [premissa I]; Sócrates é homem [premissa II]; logo, Sócrates é mortal [conclusão]". Para
investigar adequadamente o mundo era fundamental aprender o uso adequado do raciocínio,
evitando assim as falácias, discursos aparentemente lógicos, mas que levam a conclusões
paradoxais ou desagradáveis. As falácias podem ter um efeito cômico, como no seguinte exemplo:
"Deus é amor. O Amor é cego. Stevie Wonder (cantor norte-americano) é cego. Logo, Stevie
Wonder é Deus" As falácias podem ser perigosas quando procuram intencionalmente induzir ao
erro. Neste caso, são chamadas de sofismas e são muito comuns na retórica da mídia e da
política.
Para se fazer ciência na Antiguidade, era necessário pensar filosoficamente, quer dizer,
contemplar e refletir dedutivamente. Com o passar do tempo ocorreu um processo de
dogmatizaçâo, isto é, aos poucos a atividade de pensar foi substituída pelo mero comentário aos
escritos dos filósofos antigos, principalmente os de Platão e Aristóteles. Na Idade Média a busca
do conhecimento não podia entrar em choque com o Órganon (conjunto de textos aristotélicos) ou
com a Bíblia (conjunto de escrituras sagradas), ambos considerados fontes de verdades
absolutas. A assim chamada "ciência moderna" surgiu como um ato de resistência contra o
dogmatismo, contra a autoridade atribuída ao aristotelismo e à fé religiosa. Buscando maior
autonomia na investigação do mundo, instalaram-se um novo modelo de ciência e um novo
modelo de mundo, inaugurando o que se chamou revolução científica dos séculos XVI e XVII.
3. A CIÊNCIA MODERNA
a ciência moderna. A imagem religiosa que colocava o homem como o máximo da criação
começou a ser abalada. A nova ciência distíngue-se da antiga por uma mudança de método e de
objetivos. Fazer ciência a partir do século XVI implica agora não apenas descrever como as coisas
são, mas principalmente como as coisas funcionam. O mundo passa a ser visto como uma
espécie de mecanismo cuja estrutura pode ser decifrada através da matemática. Segundo Galileu
Galilei (1564-1642) - um dos fundadores da ciência moderna -, real é tudo aquilo que possa ser
medido e quantificado.
Outro progresso importante é a substituição do método antigo da dedução pela indução. Ao
invés de partir de leis gerais (do tipo "todos os homens são mortais") para os casos particulares
("Sócrates é mortal"), parte-se agora de casos particulares ("em dez experimentos a água ferveu a
100° C") e vai-se ascendendo até as leis de máxima generalidade ("A temperatura de fervura da
água é sempre de 100° C"). Serão considerados verdadeiros somente os discursos que possam
ser comprovados pela experiência.
A principal conseqüência da revolução moderna foi a separação da ciência frente à filosofia.
A filosofia clássica perdeu o lugar de destaque como rainha do saber e passou a ser considerada
como um obstáculo para o progresso da civilização. A ciência assume o posto de expressão
máxima da civilização. Trata-se de uma crise sem precedentes para a filosofia, que precisou
reavaliar seus pressupostos e suas metas. Já que não era mais possível dizer a verdade sobre as
coisas, afinal essa tarefa estava reservada agora para a ciência, então ao menos a filosofia
poderia fazer algo que a ciência não pode fazer: pensar os fundamentos da própria verdade.
Na modernidade a filosofia começou a se tornar epistemologia (do grego episteme = ciência),
quer dizer, teoria do conhecimento científico. Essa transformação se manifesta, por exemplo, na
obra do filósofo inglês John Locke (1632-1704). No seu Ensaio sobre o Entendimento Humano
(1690), ele realiza uma investigação sobre a natureza das idéias na nossa mente, afirmando que
elas não são inatas (não nascemos com elas), mas têm sua origem na nossa experiência sensível
com o mundo. A questão da filosofia não é mais buscar o conhecimento da verdade, mas buscar a
verdade do próprio conhecimento. Um pouco mais tarde, o filósofo alemão Kant estabelecerá que
filosofia não deve mais produzir saber, mas se tornar um saber do saber, instaurando uma espécie
de "tribunal da razão", "que tem por fim não o aumento dos nossos conhecimentos, mas a
retificação dos mesmos" (Crítica da Razão Pura [1781], Introdução, VII). O objetivo da filosofia
passa a ser então ajudar a evitar que o erro irrompa no trabalho do cientista.
Se a ciência moderna surgiu como um protesto contra a autoridade das velhas doutrinas, no final
do século XIX ocorre um novo processo de dogmatIzação, parecido com aquele contra o qual a
ciência moderna havia se oposto, só que dessa vez em torno dela mesma. Começa a crescer uma
crença na infalibilidade do método científico (assim como antes acreditava-se na infalibilidade
papal). A ciência arroga para si a pretensão de ser a única forma de descrição neutra e objetiva do
real. Surge o "positivismo", uma corrente filosófica em torno do filósofo francês Augusto Comte
(1798-1857), defendendo que o método científico deva ser estendido a todos os campos da
atividade humana, inclusive à arte e à religião.
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ser estudadas. Não podem ser substituídas por mágica, astrologia ou por um estudo das
lendas" (Contra o Método [1970], capítulo XVIII). Paul Feyerabend (1924-1994), filósofo
austríaco, foi um crítico radical da racionalidade científica e defendia uma espécie de
"anarquismo epistemológico" contra todo tipo de autoritarismo intelectual. Na passagem
citada ele denuncia o dogmatismo no modo como o ensino da ciência é praticado na
sociedade contemporânea.
5. A CIÊNCIA PENSA?