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O QUE É REAL?
CHARLES FEITOSA
1. GRANDES AVENTURAS
A questão mais fundamental da filosofia interroga o sentido do real. Como saber se estamos
sonhando ou se estamos acordados? O que garante a veracidade das coisas que vemos? O que é
e como é a realidade? Essas perguntas parecem fáceis, mas não são. A realidade está por toda
parte e em lugar nenhum específico, ela está diante de nós e, ao mesmo tempo, fazemos parte
dela. Está tão próxima de nós que se torna quase invisível. Entretanto, embora seja muito difícil
responder à pergunta "qual o sentido do real?", cada um de nós já tem uma solução, mesmo sem
nunca ter explicitamente refletido sobre isso. Não sairíamos de casa de manhã, nem nos
envolveríamos em projetos profissionais ou afetivos se não confiássemos, ainda que
inconscientemente, na autenticidade do mundo. No capítulo l foi dito que fazer filosofia é exercitar
um olhar diferente - distanciado, admirado e lento, para que aquilo que parece evidente possa se
mostrar em toda sua complexidade. Pensar a questão sobre a realidade exige uma tal atitude.
Para o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), talvez o único critério disponível
para distinguir o sonho da vida cotidiana seja a conexão contínua dos fatos segundo a lei de causa
e efeito nessa última: "A vida e o sonho são páginas de um mesmo livro. A leitura continuada
chama-se vida real. Mas quando a hora habitual da leitura (o dia) chega a seu termo e aproxima-
se o tempo do descanso, então, às vezes, continuamos ainda, fracamente, sem ordem e conexão,
a folhear aqui e acolá algumas páginas: às vezes é uma página já lida, muitas outras vezes uma
outra ainda desconhecida, mas sempre do mesmo livro" (O Mundo como Vontade e
Representação [1859], I, § 5"). Isso quer dizer que, se sonhássemos todas as noites o mesmo
sonho, então não haveria mais garantia nenhuma da distinção. Se um pobre agricultor sonhasse
todos os dias durante doze horas ser um rei, viveria tão intensamente quanto um rei que sonhasse
todos os dias durante doze horas ser um camponês.

2. TEORIAS FUNDAMENTAIS DO REAL


Através da filosofia podemos fazer um mapa das principais teorias do real, descobrindo assim
seus pressupostos e suas conseqüências. Ou bem a realidade é única ou bem existem muitas
realidades. A primeira opção, chamada provisoriamente de "realismo", supõe que a realidade é
uma dimensão objetiva, concreta e absoluta (do latim absolutas = desligado de qualquer relação),
quer dizer, independe das interpretações humanas ou ainda do contexto histórico ou social em
que se vive. A lei da gravidade, por exemplo, é sempre a mesma, deve valer tanto no Brasil como
no Japão, tanto no século V a.C. como no século XXI. Na postura realista, as coisas têm
autonomia, subsistem em si e por si. Se algum dia a humanidade fosse erradicada da face da
Terra através de uma guerra ou de uma catástrofe, o mundo cultural (arte, religiões, política)
poderia também desaparecer, mas o mundo objetivo (pedras, árvores ou prédios) continuaria lá,
do mesmo jeito que já estava antes do aparecimento do homem. A explosão de uma estrela a
bilhões de quilômetros da Terra é um fato, mesmo que nenhum ser humano jamais tenha acesso
a ele. No realismo, as coisas são a medida única à qual nossas palavras ou ações devem se
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adequar para serem consideradas verdadeiras. Se digo "está chovendo agora", basta olhar para a
janela para testar a veracidade dessa frase. Tudo o que se mostrar inadequado ao real único e
absoluto será considerado erro e precisará ser corrigido.
A definição de verdade como adequação do discurso às coisas é antiga e remonta a
Aristóteles. Na Metafísica (Livro IX, 10), Aristóteles diz que um juízo é verdadeiro quando une, na
proposição, o que está unido na realidade, ou separa, na proposição, o que está realmente
separado. Uma coisa não é branca porque se afirma com verdade que é assim, mas se afirma
com verdade que é assim, porque ela é branca. A verdade é, assim, a adequação ou a
correspondência entre o juízo e as coisas. Essa definição pressupõe a crença em uma realidade
estática e homogênea.
A outra possibilidade genérica de responder à pergunta pelo real pode ser chamada de
"relativismo" e supõe que não existe uma realidade única e acabada, mas muitas e diversas
realidades. Não existe nunca um mundo em si, mas sempre variados mundos, cujos sentidos
dependem da relação histórica, espacial, cultural e social, enfim, das múltiplas interpretações que
o homem faz através do pensamento e da linguagem. No relativismo não existe uma medida única
para avaliar a veracidade de um discurso; é preciso considerar o contexto, as diferentes
perspectivas. "Não existem fatos, só interpretações", diz Nietzsche no parágrafo 481 de Vontade
de Poder (1911). Para o relativismo só haverá mundo se também existirem seres capazes de
compreendê-lo. Se uma estrela explodisse a um bilhão de quilômetros da Terra e a luz de sua
explosão nunca chegasse até nós, então é como se essa explosão nunca tivesse acontecido, não
fizesse parte de nosso mundo, a não ser como especulação ou ficção. A lei da gravidade não é
um elemento intrínseco da natureza, mas um modelo construído para explicá-la, podendo ser
corrigido ou até abandonado no futuro. Não há teoria ou interpretação que possa se justificar como
absoluta. A frase "está chovendo agora" pode ser correta em um determinado contexto e errônea
em outro.
Para um realista as frases do tipo "isso é belo" ou "isso é bom" são "juízos de valor", ou
seja, são proposições que atribuem valores às coisas. Valor é algo que não se encontra no
objeto, mas que lhe é anexado. Já as frases "isso é branco" ou "isso mede cinco metros"
seriam "juízos de fato", pois estariam descrevendo qualidades supostamente inerentes às
coisas, independentemente de apreciações subjetivas de gosto ou de fins. Para um relativista,
ao contrário, a distinção entre juízos de fato e juízos de valor é inválida. Dizer que algo é belo
ou útil equivale a dizer que algo é azul ou mede 22 metros. Em todos esses casos estamos
emitindo juízos de valor, já que as cores ou as medidas, tais como o metro ou o quilograma,
também são convenções criadas pelo homem, do mesmo modo que os critérios de beleza ou
de utilidade. A ciência acredita que opera exclusivamente com juízos de fato e por isso é
capaz de olhar para a realidade como um mero observador, alguém que se coloca de fora ou
diante de seu objeto, registrando-o de forma neutra. Para o relativismo, entretanto, a ciência é
apenas mais um entre vários modos de interpretação do mundo e não a única nem a sua
melhor descrição.
No realismo as coisas existem por si e são representadas, adequadamente ou não,
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através das palavras e das imagens. No relativismo as coisas só existem através da


linguagem. As palavras não representam as coisas, as palavras constituem as coisas. Sem
palavras e imagens as coisas seriam inacessíveis, seriam nada.

"A verdade é um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos,


enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo
sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu
que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais
como moedas" (F. Nietzsche, in: Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral
[1873]).

3. VANTAGENS E DESVANTAGENS DO REALISMO E DO RELATIVISMO


Vimos que realismo e relativismo são duas teorias fundamentais acerca da realidade. Ambas
têm suas vantagens e desvantagens, ambas têm seus argumentos e suas conseqüências. A maior
vantagem do realismo é que o universo ganha ordem e tranqüilidade. É possível acreditar que
haja um certo e um errado absolutos, atuando como referência para nossas decisões. O erro só
acontece quando não nos adequamos corretamente ao real, mas o real está lá, gerando garantia e
segurança para nossas dúvidas científicas ou existenciais. Em geral, as religiões são realistas,
pois pressupõem uma verdade inquestionável como fundamento da sua fé. A desvantagem do
realismo é que ele pode se transformar em um dogmatismo (do grego dogma = uma opinião que é
interpretada como verdade inquestionável). Todo discurso que for considerado inadequado ao real
deve ser corrigido, controlado, excluído ou, às vezes, até aniquilado. Tudo o que for diferente da
norma estabelecida pode ser visto como desvio ou loucura. Embora nem todo realismo seja
dogmático, todo dogmatismo é, em estrito senso, realista.
Em contraste, a vantagem do relativismo é a tolerância com a alteridade. Os discursos
diferentes não são classificados como erro ou desvio, mas aceitos como discursos da diferença. A
diversidade de perspectivas é uma característica inerente ao mundo humano. Nenhuma é mais
verdadeira do que a outra, somente mais apropriada segundo o momento histórico, o contexto
cultural, geográfico, etc. A arte moderna e contemporânea tende ao relativismo, pois aposta nas
múltiplas possibilidades de ampliar e alterar nossas percepções do mundo.
Uma das desvantagens do relativismo é que não há nunca um critério último que dê
garantia absoluta para as situações de impasse. Se existem várias perspectivas, todas com igual
direito de ser, então é necessário fazer escolhas baseadas apenas nas condições da situação,
assumindo os riscos de soluções de validade passageira. Tal atitude exige mais consciência e
mais responsabilidade, enfim, é mais trabalhosa. Infelizmente o ser humano parece preferir
sempre o mais leve e o mais fácil, na forma de certezas permanentes sobre o que é verdadeiro,
bom e belo. Devido à falta de uma medida absoluta, reina um certo medo de que a relatividade
das verdades transforme-se em uma indeterminação. Se não há fatos, nem coisas em si, então
todo discurso é verdadeiro, tudo vale, ou o que dá no mesmo, nada vale, nada é verdadeiro.
Qualquer afirmação, mesmo a mais disparatada ou a mais anti-social, ganha o direito de se expor.
Ideologias excludentes entre si, tais como a democracia ou o fascismo, parecem ter o mesmo
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valor. Trata-se, entretanto, de uma visão ingênua e simplificadora do relativismo. O fato de não
aceitar uma verdade absoluta não implica postular uma atitude niilista (do latim níhil = nada), a
negação radical de todas as verdades. Há limites para o relativismo, e um deles é a completa
recusa de todo discurso que arrogue para si o direito de ser o único, principalmente quando o
"nada" for o valor absoluto. Nesse sentido, o relativismo é um ato de resistência contra qualquer
pensamento homogeneizante, seja na política, na ciência ou na arte.

4. ADEUS AO REAL
A escolha entre o realismo e o relativismo não é óbvia, nem fácil, mas cada um de nós já fez
a opção. Essa escolha é condição de possibilidade de todos nossos atos e é, na maioria das
vezes, inconsciente. Tudo indica que vivemos em uma época de transição. O filósofo alemão
Martin Heidegger (1890-1976) expressa esse momento de passagem com a seguinte afirmação:
"Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser" (Da Experiência do Pensar
[1947]). Com essa frase enigmática ele queria dizer que é chegada a hora de dizer "adeus ao
real", mas estamos hesitando. Parece que perdemos a fé nas verdades absolutas (os deuses),
mas ainda não estamos preparados para lidar com o Ser, isto é, com a multiplicidade infinita de
interpretações do real. Como ainda não sabemos lidar com a pluralidade de sentidos do real,
passamos a considerar que nada é verdadeiro ou que a única verdade absoluta é o nada. Às
vezes sentimos até saudades da época em que acreditávamos ainda em uma realidade absoluta,
objetiva e única. O bombardeio de informações desconectadas através das mídias de massa nos
leva a desconfiar de que a realidade na qual costumávamos nos apoiar não tem tanta
consistência, mas, em vez de nos libertarmos da exigência de um terreno fixo, permanente e
sólido, começamos a buscar alguma outra verdade que sirva de substituto, chamada doravante de
"a verdadeira realidade", por trás daquela que se mostrou falsa.
Viver em um momento de "não mais verdades absolutas" e "ainda não verdades múltiplas"
pode ser tanto uma grande aventura como gerar uma forte angústia. Estamos espremidos entre o
niilismo (vontade de nada) e a nostalgia de um real sólido e seguro. Essa ambigüidade tem sido
retratada em diversos filmes norte-americanos recentes, todos do final do século XX, tais como O
Show de Truman (1998), Clube da Luta (1999) ou 13° andar (1999). Especialmente em Matrix
(1999) vemos o hacker Neo (Keanu Reeves) passar pela experiência de que o mundo que ele vive
é só uma ilusão produzida por uma rede de computadores dotada de inteligência artificial. Por trás
do mundo das aparências, Neo descobre que no mundo verdadeiro os seres humanos são
colocados em minúsculas cápsulas e usados como fontes de energia pelas máquinas hostis. -
"Bem-vindo ao deserto do real" é a frase de saudação do líder da resistência Morpheus (Laurence
Fishburne), como se o mundo verdadeiro tivesse sempre que ser triste e sem vida. Em outra cena
importante, um dos cyber-anarquistas, Cypher (Joe Pantoliano), trai seus companheiros e se
justifica com o seguinte argumento: mesmo sabendo que a carne que ele comia no almoço era
ilusória, ele preferia viver em um mundo falso, mas colorido e prazeroso, do que ser forçado a
perambular por um mundo verdadeiro, só que desértico. O primeiro episódio da série Matrix
segue, portanto, o princípio realista de que "as aparências enganam". Do ponto de vista do
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relativismo, ao contrário, o grande engano é acreditar que haja alguma coisa por trás das
aparências.
O filme Matríx, com todas as suas modernas e revolucionárias técnicas de efeitos visuais
nada mais é do que a reinvenção de uma história antiga, escrita há cerca 2.500 anos. Trata-se da
"Alegoria da Caverna", descrita por Platão (427-347 a.C.) no capítulo VII de seu livro A República,
uma investigação sobre a noção de justiça. Para contornar a resistência daqueles que insistem em
acreditar somente no que podem ver e tocar, Platão propõe uma cena trágica. Imagine que
diversos homens estão presos no fundo de uma caverna de tal maneira que só podem olhar para
o fundo. Na parede da caverna diversas figuras se movem, e os homens as tomam como coisas
reais, concretas. Discutem entre si as melhores teorias para explicar os comportamentos das
figuras, até que um dia um deles consegue se soltar e, com muito esforço, sair da caverna,
descobrindo que as coisas tidas antes como reais só eram sombras projetadas no fundo da
caverna. A verdadeira realidade estava do lado de fora. Esse homem fica maravilhado com o novo
mundo de descobertas e resolve voltar para a caverna a fim de contar para seus companheiros
que eles vivem em ilusão.
A todos é dada a escolha entre as facilidades do mundo das aparências e a difícil liberdade
que vem junto com a verdade. Tanto na "Alegoria da Caverna" como no filme Matrix é descrita a
experiência de alguém que descobre que o real pode ser posto em dúvida; mas ambos
permanecem realistas na medida em que supõem uma outra realidade (escondida) como sendo a
verdadeira. Falta coragem para dizer "adeus ao deserto do real" e saudar a chegada dos mundos
múltiplos. Admitir a pluralidade de verdades pode acarretar insegurança e exigir mais
responsabilidade, mas também traz consigo mais liberdade e alegria.

A escolha, como sempre, é de cada um.

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