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Olavo de Carvalho, comentários sobre a carta do Papa ao diretor de La Republica.

Feitos em 23 de Setembro de 2013.

O melhor a fazer com o Papa Francisco é colocá-lo entre parênteses e aguardar novos
pronunciamentos, ou pelo menos o conhecimento dos detalhes da eleição, dos quais não
temos nenhum até agora. É um absurdo querer condenar o Papa como herético ou
apóstata sem primeiro conhecer com clareza a sua "forma mentis", mas também é um
absurdo ter de apostar em boas intenções e jogar a culpa na mídia cada vez que ele diz
alguma coisa perfeitamente insensata. Toda compreensão baseada em "intenções" é
puramente conjetural. Deveríamos nos ater à análise dos textos. Neste sentido, a carta
dele ao diretor do jornal La Republica, escrita de próprio punho, contém nos seus
trechos finais tantas afirmações escandalosas e, de fato, estúpidas (digo isto de um
ponto de vista lógico, sem nenhum pressuposto doutrinal), que, sem levantar qualquer
questão de "intenções", é impossível não concluir que Francisco é, no mínimo, uma
mente confusa, perigosamente confusa para alguém que ocupa a posição dele.
Escreverei mais sobre isto depois.

XXX

Primeiro trecho absurdo na carta do Papa ao diretor de La Republica:

“Você pergunta se o Deus dos cristãos perdoa aqueles que não crêem nem buscam a fé.
Dado que – e isto é fundamental – a misericórdia de Deus não tem limites se aquele que
pede por misericórdia o faz com contrição e com um coração sincero, a questão para
aqueles que não acreditam em Deus está em obedecer sua própria consciência. De fato,
ouvi-la e obedecê-la significa decidir sobre aquilo que se percebe como bom ou como
mau. A bondade ou malícia do nosso comportamento depende dessa decisão.”

Isso é totalmente autocontraditório. Alguém que “não crê NEM BUSCA A FÉ” é não
somente um ateu, mas um ateu convicto e satisfeito com a sua condição. Alguém assim
definido não pode jamais “pedir por misericórdia com contrição e com um coração
sincero”. Ninguém pede por misericórdia se não está nem mesmo buscando a fé.

Em segundo lugar, se o cerne da questão, para o ateu, está em seguir sua própria
consciência, não pode estar, ao mesmo tempo, em “buscar a fé”, principalmente porque
o ateu, no caso, já foi definido como alguém que não a busca. Se a consciência sem fé
basta para decidir da “bondade ou malícia do nosso comportamento”, é evidente que
alguém nessas condições é guia e juiz de si mesmo e não tem por que “pedir por
misericórdia com contrição e com um coração sincero”. Se o perdão de Deus é para
aqueles “pedem por misericórdia com contrição e com um coração sincero”, e se o ateu
acima definido não tem nem busca a fé requerida para isso, é absurdo sugerir que o
fundamental, “a questão", para esse indivíduo, seja apenas seguir a própria consciência
e não buscar a fé e pedir por misericórdia.

XXX
Segunda absurdidade na carta do Papa ao diretor de La Republica:

“Você pergunta se é um erro ou pecado a idéia de que nenhum absoluto existe, portanto
nenhuma verdade absoluta, apenas uma série de verdades relativas e subjetivas. Para
começar, eu não falaria, nem mesmo aos crentes, de uma verdade “absoluta”, no sentido
de que o absoluto é algo separado, algo a que falta toda relação. Ora, a verdade é uma
relação. Isso é tanto mais verdade, que cada um de vê a verdade e a expressa partindo de
si mesmo, da sua própria história e cultura, da situação em que vive. Isso não significa
que a verdade seja variável e subjetiva… A relação se dá entre duas realidades. Deus…
não é uma idéia, nem mesmo uma idéia sublime, o resultado dos pensamentos da
humanidade. Deus é uma realidade com ‘R’ maiúsculo… Deus não depende dos nossos
pensamentos.”

COMENTÁRIO MEU:

Se a verdade é uma relação, ela só pode existir quando os dois termos estão presentes.
Suprimido um deles, cessa a relação, portanto não há mais verdade. Tanto é assim que o
Papa prefere não falar de um “absoluto” enquanto separado e irrelacionado. Mas, se as
coisas são assim, não faz nenhum sentido dizer que Deus não depende dos nossos
pensamentos, que Ele é uma realidade subsistente de per si, portanto independente de
qualquer relação conosco. Ou a verdade existe em si, em Deus e para Deus, fora, antes e
acima não só de uma relação com os homens mas até da pura e simples existência deles,
ou, se ela é uma “relação”, ela só existe a partir do momento em que Deus cria os
homens e entra em relação com eles. Ou Deus existe de per si e tem em si a verdade, ou
a verdade é uma relação. As duas proposições serem verdadeiras ao mesmo tempo é
uma impossibilidade patente.

No mínimo, aparece aí uma confusão primária entre a ordem do ser (ratio essendi) e a
ordem do conhecer (ratio cognoscendi), ou, como diria Aristóteles, entre o “em si” e o
“para nós”. Na ordem do ser, Deus (a verdade) existe em si, por si e independentemente
de qualquer relação com os homens. Na ordem do conhecer, isto é, para nós, a verdade é
uma relação que estabelecemos com Deus. Nesse sentido, isto é, distinguidos os dois
níveis de predicação, as duas afirmativas aparecem compatibilizadas dialeticamente.
Mas quem está fazendo essa compatibilização sou eu, não ele. Na formulação que ele
deu ao problema, a via da compatibilização está fechada porque ele DEFINE a verdade
como relação e afasta como inconveniente a idéia de uma verdade em si, separada e
irrelacionada. Ou seja: ele dá um alcance ontológico à concepção gnoseológica da
verdade como relação, ao mesmo tempo que suprime a noção da verdade ontológica, da
verdade do ser independente do conhecimento humano – mas em seguida, como se nada
tivesse acontecido, afirma que Deus é uma realidade em si e “não depende dos nossos
pensamentos”. Aí não há mais compatibilização dialética possível, a coisa não tem mais
conserto. É o nonsense em todo o seu esplendor. Num improviso oral, isso poderia
talvez ser atribuído a deslizes verbais aparentes, mas, num texto escrito, falta de lógica é
falta de lógica.

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