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Ficha Técnica

Título: A CASA DAS MENINAS INDESEJADAS


Título original: THE HOME FOR UNWANTED GIRLS
Autor: Tiago Rebelo
Tradução: Helena Ruão
Revisão: Catarina Sacramento
Capa: Alexandra Rezende Costa
Imagem da capa: Kerstin Marinow/Arcangel Images
ISBN: 9789892343686

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Para a minha mãe
Para uma flor insignificante que floresce,
obscura, em terra inculta

...Apesar de pareceres uma erva daninha,


Selvagem e ignorada como eu,
Não deixas de ser uma querida filha da natureza,
E eu interrompo o meu passo para reparar em ti.

Muitas vezes, tal como tu, em retiro agreste,


Ataviadas num traje tão humilde como o teu,
há ervas daninhas que se revelam doces,
Tão doces como flores de jardim.

E, assim como tu, essas ervas daninhas


Florescem desconsideradas; assim como tu,
Descuidadas, perdem o viço,
Selvagens e ignoradas como eu.

– John Clare
PRÓLOGO

1950

Q uem planta uma semente planta uma vida. É uma frase que o pai de
Maggie repete várias vezes, citando os seus estimados Anuários de
Agricultura de 1940 a 1948. Ele não se limita a plantar sementes; dedica-se a
elas como um pregador se dedica a Deus. É conhecido na cidade onde vive
como o Homem das Sementes – um título pretensioso, mas que soa nobre.
Maggie adora ser a filha do Homem das Sementes. Confere-lhe um ar de
prestígio – ou, pelo menos, assim foi um dia. Tal como a província onde vive,
na qual os franceses e ingleses disputam perpetuamente o primeiro lugar, a
sua família também tem dois lados bem distintos. Maggie compreendeu
muito cedo que era necessário enterrar uma estaca, fazer uma aliança. Aliou-
se ao pai, e ele a ela.
Quando era ainda muito novinha, ele costumava ler-lhe passagens da sua
impressionante coleção de livros de horticultura. O preferido dela era o The
Gardener’s Bug Book1. Continha um poema na primeira página, que sabia de
cor. O escaravelho da roseira é uma praga na rosa; assim são aqueles que
veem o escaravelho e não a rosa. Enquanto outras crianças eram embaladas
com contos de fadas, as suas histórias de embalar eram sobre sementes e
jardinagem: sobre o pioneiro americano, Johnny Appleseed2, a levar as suas
sementes das prensas de sidra da Pensilvânia, a percorrer centenas de
quilómetros para cuidar dos seus pomares, a partilhar a riqueza das suas
maçãs com os colonos e os indianos; ou sobre Gregor Mendel, o monge
austríaco que plantara ervilhas no jardim do mosteiro, que estudara as
características de cada geração e cujas observações, dissera-lhe o pai,
constituíam a base do nosso conhecimento atual sobre genética e
hereditariedade. Triunfos de tal natureza, afirmara o pai, começam sempre
com uma única semente.
– Como fazes as sementes que vendes? – perguntou-lhe ela certa vez.
Ele fitou-a, como se ofendido, e respondeu:
– Eu não faço as sementes, Maggie. São as flores que as fazem.
É o potencial de beleza que ele mais admira: o caule gracioso que ainda
precisa de crescer, a forma da folha, a cor da flor, a abundância do fruto.
Olhando para a mais simples semente na palma da mão, ele entende o milagre
que se dará quando ela servir o seu propósito.
Ele também aprecia a previsibilidade das sementes. O grão de milho, por
exemplo, produz sempre uma planta madura em noventa dias. O pai gosta de
poder confiar em tais factos, embora, ocasionalmente, as plantas cresçam
imperfeitas ou deformadas e isso o incomode profundamente, provocando-lhe
insónias, como se a própria semente o tivesse traído.
As histórias do pai foram sempre uma fonte de conforto para ela, quando
criança, e agora têm ainda mais significado, enquanto tenta adormecer nesta
cama estranha, neste corpo estranho. Aos dezasseis anos, Maggie tem uma
semente a crescer dentro dela e está quase madura. O bebé mexe-se e dá
pontapés com força, empurrando-lhe as paredes da barriga com os pés e
cotovelos, recordando-a da terrível transgressão, da vergonha que causou e da
reviravolta que provocou na sua vida confortável.
Lá fora, o céu escureceu. Ela tinha subido para fazer uma sesta à tarde, mas
já devia ser hora de jantar e ainda não conseguira adormecer. Pousa a mão na
barriga e sente de imediato as acrobacias inquietantes na palma da mão. Pelo
menos, não está sozinha neste lugar.
A tia chama-a para jantar e Maggie espreguiça-se. Relutante, acende a luz,
sai da cama e desce para os enfrentar.
Uma travessa de carne assada é colocada na mesa para o jantar de
domingo, acompanhada de outras, com cenouras, batatas e ervilhas. Uma
garrafa de vinho é aberta para os adultos. Pão fresco, manteiga macia, sal e
pimenta. Os pais dela vieram de visita. Maggie está feliz por ver o pai. Sente
falta dele, mesmo que ele a trate de forma diferente agora. Percebe que está a
fazer um esforço, mas há uma sombra nos seus olhos azuis sempre que olha
para ela, o que não é frequente. Falta convicção à tentativa de perdão. Ele não
consegue superar o sentimento de traição.
Maggie vê o tio a afiar a faca com toda a cerimónia e cortar fatias finas de
carne rosada que sangra para a porcelana branca. As irmãs dela estão aos
segredinhos e risinhos, excluindo-a. Alguém pergunta se há rábano. Maggie
sente um jorro de líquido quente a escorrer-lhe por entre as pernas no exato
momento em que a mãe diz:
– Tabarnac 3, esqueci-me do rábano.
O vestido de Maggie está ensopado. As faces fervem de vergonha. Ela quer
fugir da mesa e correr para a casa de banho, mas o fluxo de líquido não
diminui.
– Eu fiz chichi – deixa escapar, levantando-se.
O líquido ainda lhe escorre pelas pernas, surpreendentemente inodoro,
formando uma poça no chão de madeira da tia.
Ela vira-se para a mãe, em pânico. As irmãs olham para o vestido
manchado com expressões perplexas. Por fim, a tia Deda exclama:
– Rebentaram-lhe as águas!
Nicole, a irmã mais nova, começa a chorar. A maman e Deda entram em
ação. Os homens afastam-se discretamente da mesa, sem dizer uma palavra.
Esperam com embaraço por instruções das mulheres.
– Ela entrou em trabalho de parto – diz a maman calmamente.
– Agora? – reage o pai de Maggie, olhando para o grande pedaço de carne
assada acabadinho de fatiar no centro da longa mesa de pinho. – Só estava
previsto para daqui a um mês.
– Estas coisas não têm hora marcada – riposta a maman. – É melhor ligares
ao doutor Cullen. Diz-lhe que vá ter ao hospital.
– O que está a acontecer? – pergunta Maggie. Ninguém a preparou para
este momento.
Deda apressa-se a colocar o braço rechonchudo no ombro de Maggie.
– Está tudo bem, cocotte – tenta tranquilizá-la. – O bebé só quer sair mais
cedo.
Nunca ninguém diz «o teu bebé». É sempre «o bebé». Até Maggie pensa
nele como «o bebé». Ainda assim, apesar de todo o caos que causou, ela não
está pronta para o deixar ir. Habituou-se a pensar nele como um aliado ou um
talismã, embora não exatamente como o seu futuro filho. É ainda muito
jovem e o conceito de maternidade é-lhe totalmente alheio. Mas também não
tem de o fazer. O bebé que nasce nessa noite só tem, na verdade, um
significado para ela: vai ficar livre da prisão na quinta dos tios e pode,
finalmente, ir para casa.
Sente uma contração e solta um rugido de dor.
– Está a chegar – diz a mãe. Está a chegar.
1 The Gardener’s Bug Book (O livro de insetos do jardineiro), 1946, da autoria de Cynthia Westcott
(1898-1983), patologista de plantas e especialista em rosas. (N. da T.)
2 John Chapman (1774-1845), mais conhecido como Johnny Appleseed (semente de maçã), foi um
viveirista americano que introduziu o cultivo das macieiras em vários estados norte-americanos. (N.
da T.)
3 Blasfémias como tabarnac (sacrário) ou calice (cálice) fazem parte do léxico francês específico do
Quebeque. Derivam de termos relacionados com a religião católica e são usados frequentemente para
enfatizar uma emoção. (N. da T.)
PARTE I

1948-1950

Controlo de Ervas Daninhas

O crescimento de ervas daninhas perenes, particularmente as


carnudas, pode ser desencorajado deixando-as crescer alegremente
até estarem prestes a desabrochar e, nessa altura, arrancando-as e
voltando a espalhá-las junto às raízes...

– Old Wives’ Lore for Gardeners


CAPÍTULO 1

1948

–A dmita, Homem das Sementes, votou no Duplessis!


Uma gargalhada sobe até ao sótão onde Maggie se encontra a
pesar e a contar sementes. O primeiro-ministro Duplessis acaba de ser
reeleito e a loja está em alvoroço. Ela põe um monte de sementes na balança,
esforçando-se para ouvir o que está a ser dito no andar de baixo.
– Vamos, Homem das Sementes! – troça um dos agricultores. – Não é
vergonha nenhuma!
Maggie abandona a contagem e acocora-se no cimo da escada para ouvir
melhor. Trabalha para o pai aos fins de semana desde que fez doze anos,
pesando e embalando sementes em pequenos envelopes de papel. É uma
tarefa enfadonha, especialmente porque as sementes maiores têm de ser
contadas individualmente, mas ela não se importa.
Adora estar na loja do pai; é o seu sítio predileto. Sonha em trabalhar no
piso de baixo da loja um dia e depois assumir o comando quando o pai se
reformar.
A loja chama-se Superior Seeds/Semences Supérieures e fica a meio
caminho entre Cowansville e Dunham, a pequena cidade onde vivem, situada
a menos de noventa quilómetros a sudeste de Montreal. O nome na tabuleta
pendurada do lado de fora da loja está escrito em francês e em inglês, porque
o pai diz que é assim que as coisas funcionam no Quebeque. Se alguém quer
prosperar nos negócios, não pode excluir ninguém.
Maggie desce mais algumas escadas em silêncio para se aproximar da ação.
A loja cheira a humidade e a fertilizante, o que ela adora. Quando entra ao
sábado de manhã, inala sempre profundamente e, às vezes, enterra as mãos na
terra fresca onde novas sementes germinam em pequenos vasos de barro, só
para que o cheiro da terra lhe fique nos dedos todo o dia. Para Maggie, é aqui
que encontra a felicidade.
A loja tem coisas básicas como fertilizantes e inseticidas, mas o pai de
Maggie orgulha-se de possuir uma impressionante seleção de sementes raras,
impossíveis de encontrar noutras partes da região. Embora se deixe levar pela
vaidade e pense em si mesmo como um dador de vida, redime-se pelo
absoluto empenho no trabalho. Consegue manter um ténue equilíbrio entre o
ridículo e o respeito, e os agricultores vêm ter com ele não só pelas sementes,
mas também pelo seu conhecimento especializado em assuntos rurais e
políticos. Num dia como este, a loja é tanto um local de reunião como um
negócio. A parede do fundo está coberta de filas e filas de pequenas gavetas
quadradas, todas elas cheias de sementes. Há enormes barris de milho, trigo,
cevada, aveia e tabaco para os agricultores. No chão, há sacos de estrume de
ovelha, Fertosan, farinha de osso e RAPID-GRO. Há ainda uma estante de
madeira para expor árvores e arbustos, ferramentas de jardinagem, aspersores
e mangueiras. As prateleiras estão carregadas com sacos de pós e latas de
DDT, Nico-fume, larvicida, pó de malatião, Slug-Em. Não há nada que um
agricultor ou um jardineiro não consiga encontrar.
– O dia em que eu votar na Union Nationale é o dia em que fecho esta loja
– declara o pai, cheio de bravata, as pontas do bigode viradas para cima
parecendo enfatizar a afirmação.
O pai tem um certo magnetismo pessoal. É atraente como uma estrela de
cinema, com os seus olhos azuis e o bigode à Hollywood. O cabelo é ralo –
tendo começado a rarear aos vinte anos –, mas a calvície dá-lhe um certo ar
condigno, fazendo salientar a sofisticação nos seus olhos. Usa fatos de linho
no verão e casacos de tweed com chapéus estilo fedora no inverno, e fuma
charutos House of Lords que empestam a casa com aquele cheiro paterno
maravilhoso. Até mesmo o seu nome, Wellington Hughes, soa imponente.
Wellington espeta o queixo para fora com teimosia e orgulho e refuta:
– Esse homem é um bandido e um ditador.
Fala francês fluentemente, sendo um grande defensor do bilinguismo como
ferramenta de negócios.
O pai de Maggie é um homem muito influente na comunidade agrícola, por
isso, seria de esperar que apoiasse qualquer político que valorizasse,
protegesse e promovesse a agricultura tal como Duplessis o faz. Mas é
também um orgulhoso anglófono. Despreza Duplessis e não faz segredo
disso. Acredita que Duplessis é o responsável por manter os franceses sem
instrução e a viver na ignorância. Atura as opiniões políticas dos clientes
apenas porque eles escolhem a sua loja para fazerem as compras e respeita-os
por serem clientes fiéis. No entanto, quando o nome Maurice Duplessis surge
na conversa, a cor inunda-lhe as faces geralmente pálidas e a voz sobe uma
oitava ou duas.
– Nós sabemos que votou nele, Hughes – provoca Jacques Blais,
pronunciando o nome Hughes como Yooz. – Precisa do crédito agrícola dele.
Se nós prosperarmos, o senhor também prospera, não é assim?
– O meu negócio passaria bem sem um egocêntrico como ele no poder –
afirma o pai de Maggie com veemência.
– Diz o roto do nu – resmunga Bruno Roy e todos os homens começam a
rir.
– Vocês, quebequenses, não sabem o que é ter lealdade a este país – diz o
pai, pronunciando a palavra «lealdade» com reverência, como se fosse a
qualidade mais nobre que um homem pudesse ter.
– Maudit Anglais – brinca Blais.
Nesse instante, a sineta da porta da frente tilinta.
Os homens viram-se para olhar e calam-se imediatamente quando
Clémentine Phénix entra na loja. Uma tensão inconfundível substitui
rapidamente o humor jovial.
– Preciso de DDT – diz ela, enchendo a loja com a sua voz rouca e
presença controversa. A maneira como ela diz «preciso» é mais um desafio
do que um pedido.
O pai de Maggie dirige-se para a prateleira onde guarda os pesticidas. Pega
numa lata de DDT e entrega-lha sem dizer uma palavra. Algo parece passar
entre eles – um olhar enigmático, uma comunicação secreta –, mas logo ele
vira costas e se afasta. Talvez não passe do velho rancor territorial.
A família Phénix vive num pequeno casebre no milharal que faz fronteira
com a propriedade de Maggie, um facto que desagrada muito ao pai. Ele
acredita que a sua terra perde consideravelmente valor pela proximidade com
o casebre. Os irmãos Phénix são donos do milharal, mas é tudo o que têm.
Ganham a vida com o cultivo de milho doce e de morangos no verão. No
inverno, o irmão de Clémentine, Gabriel, trabalha numa fábrica em Montreal.
Apenas os três irmãos moram juntos agora – Clémentine, Gabriel e Angèle –
e a filha de quatro anos de Clémentine, Georgette, fruto de um casamento que
terminou em divórcio. O resto da família – os pais e duas outras irmãs –
morreram num acidente de carro há vários anos.
Clémentine segue Wellington até ao balcão da frente, ignorando as
risadinhas dos outros clientes, algo a que já deve estar acostumada. O
divórcio fez dela uma pária na pequena cidade católica, onde o divórcio não é
apenas um pecado, mas também ilegal. Ela teve de ir a Otava para o fazer,
uma ofensa imperdoável aos olhos dos habitantes hipócritas como a mãe de
Maggie.
– Preciso de duas latas – diz Clémentine, cruzando os sólidos braços
morenos sobre o peito.
Está bronzeada e tem sardas, não usa maquilhagem e a longa trança
dourada cai-lhe pelas costas como uma corda de saltar. Maggie acha-a bonita,
mesmo despojada de todos os adornos femininos habituais. Consegue ser
feminina e simultaneamente maria-rapaz, o rosto desconcertantemente bonito
nem um pouco afetado pela expressão dura, pelos braços fortes e musculados
ou pelas jardineiras que lhe assentam como um saco de batatas, ocultando-lhe
qualquer vislumbre de curvas femininas.
Tem um ar que impressiona, observa Maggie, uma espécie de desafio
silencioso na forma como lida com os homens. Não possui nenhum dos
símbolos habituais que dão legitimidade às mulheres – marido, filhos,
dinheiro – e, no entanto, parece fazer o que é preciso para tomar conta da
família e garantir o seu sustento.
– A minha plantação está infestada de diabrótica – explica Clémentine.
Se está desconfortável com os olhos de todos postos nela, não o deixa
transparecer.
Wellington atravessa a loja novamente e volta com outra lata de DDT,
parecendo bastante agitado. De repente, a porta da frente abre-se e Gabriel
Phénix entra. Aproxima-se de Clémentine em passo gingão, desviando a
atenção de todos os agricultores para si.
Maggie não vê Gabriel desde o verão e sustém a respiração quando ele
entra. No outono anterior, era um rapaz quando partiu para Montreal –
Maggie recorda-o a correr pelo campo, as pernas esguias, os ombros magros,
o rosto redondo e angélico –, mas regressou um homem.
Deve ter dezasseis anos, agora. O cabelo loiro está penteado num
remoinho, os olhos cinzentos brilham como lâminas afiadas e tem as mesmas
maçãs do rosto pronunciadas e lábios carnudos que a sua irmã.
Ainda é magro o suficiente para que Maggie lhe consiga contar as costelas
através da t-shirt branca de algodão, mas os braços, agora musculados e bem
definidos, dão-lhe ao corpo a amplitude e a solidez de um homem.
Observando-o do seu lugar junto à escada, ela sente algo estranho dentro de
si, como a sensação na boca do estômago quando mergulha das rochas altas
no lago Selby. Não consegue tirar os olhos dele, embora não perceba porquê.
– Estás bem? – pergunta ele à irmã.
Clémentine assente e pousa a mão no peito do irmão, um sinal para ele se
afastar e esperar por ela. Ele obedece, de punhos cerrados e expressão séria e
desafiadora, como se à espera de saltar em defesa da irmã caso seja
necessário.
O pai de Maggie coloca as duas latas de DDT num saco de papel pardo e
faz tilintar a caixa registadora.
– Preciso de fiado – diz Clémentine.
Mais risinhos de troça.
– Fiado? – repete o pai com desdém.
Wellington Hughes não vende fiado. É a política da casa e as políticas dele
são como mandamentos. Não venderás fiado.
– A nossa colheita começa daqui a poucas semanas – explica ela. – Poderei
pagar nessa altura.
Maggie limpa a película de transpiração por cima do lábio. Pela primeira
vez, percebe como deve ser difícil a vida dos irmãos Phénix. A verdade é que
nunca pensou nisso antes, nem quando era amiga da irmã mais nova deles,
Angèle. Ouvira os pais falarem sobre eles – o divórcio e o alcoolismo do pai
já falecido –, mas nunca prestara muita atenção. Naquele dia, porém,
considera a coragem orgulhosa deles inspiradora.
– Se eu deixar que leves fiado – diz o pai no seu francês perfeito –, toda a
gente da cidade vai querer vir à minha loja no período de entressafra a
prometer pagar quando a apanha do milho começar.
Gabriel põe-se à frente da irmã e tira o relógio do pulso. Pousa-o no balcão
e empurra-o na direção do pai de Maggie.
– Tome – diz. – Fique como o maldito relógio como garantia. Era do meu
pai. É de ouro.
Com um torcer do lábio superior, Wellington empurra o relógio de volta
para Gabriel.
– Isto não é uma casa de penhores – resmunga Wellington, franzindo o
sobrolho.
Gabriel não faz qualquer movimento para pegar no relógio. Um momento
depois, o pai de Maggie empurra de repente o saco de papel pardo com as
latas de DDT pelo balcão em direção a Clémentine.
– Leva – diz ele. – Mas não voltes cá até seres capaz de o pagar.
– Obrigada – responde ela, sem baixar a cabeça ou os olhos de vergonha.
O pai de Maggie mostra um ar de repúdio. Gabriel ainda não fez um
movimento para pegar no relógio, mas Clémentine agarra nele e puxa Gabriel
em direção à porta. Antes de sair, Gabriel olha diretamente para Maggie,
como se soubesse que ela esteve ali o tempo todo. Os olhos de ambos
encontram-se e ela sente o coração acelerar. A expressão dele é desafiadora,
cheia de ódio. Os lábios dele curvam-se num sorriso indolente e Maggie
percebe, com certo choque, que o sorriso de escárnio é dirigido a ela.
Repara que o pai a olha com severidade. O mandamento é óbvio: não
namorarás com rapazes franceses.
CAPÍTULO 2

M aggie começou a esconder-se no milharal dos Phénix por dois motivos.


O primeiro é evitar ter de fazer as suas tarefas. O segundo é observar e
esperar que Gabriel repare nela enquanto trata do milho.
É agosto e a época de colheita do milho está em pleno andamento. Ela está
estendida no chão entre as filas de milho, a ler uma revista True Romance,
ignorando as formigas que serpenteiam ao longo das pernas nuas fazendo-lhe
cócegas na pele. Está feliz aqui, com o sol a queimar-lhe as costas entre as
plantas altas que a protegem da resmunguice da mãe. Consegue ouvir a voz
da maman que lhe chega vinda do quintal das traseiras. A vociferar sem
parar. A irmã, Violet, derrubou sem querer algumas roupas da corda onde
estavam estendidas a secar e a maman está furiosa. Pobre Violet, mas antes
ela do que Maggie.
– Outra vez aqui?
Maggie deixa cair a revista e olha para cima, fingindo sobressalto. Ele está
em pé sobre ela, protegendo os olhos do sol com a mão. Está sem camisa,
vestido apenas com calças de ganga. A pele é morena, tão escura como os
charutos do pai.
– Eu gosto de ler aqui – responde.
Gabriel agacha-se ao seu lado, fazendo-a prender a respiração. Uma gota de
suor escorre lentamente pelo pescoço dele.
– Tabarnac! – exclama ele, examinando uma espiga de milho. – As
lagartas-da-espiga estão a comer as barbas de milho.
– Já entraram para os grãos? – pergunta ela, pois aprendeu tudo sobre
infestações de insetos com o pai.
Gabriel sacode o folhelho de uma espiga.
– Esperemos que esteja solto o suficiente para proteger o milho. Não deve
haver problema, desde que os danos se mantenham à superfície.
– Talvez devesses tê-lo semeado mais cedo – diz ela, parecendo o pai no
tom condescendente e professoral.
Arrepende-se instantaneamente. Gabriel atira-lhe um olhar irritado e
levanta-se.
– Fica com as tuas revistas românticas e deixa a agricultura para mim –
troça ele.
Porque tivera ela de abrir a boca? A maman está sempre a dizer-lhe que ela
não sabe estar calada e tem razão.
Gabriel vira-lhe as costas e Maggie fica a observar, fascinada, a curva
saliente da coluna enquanto ele se move pelas filas de milho, dobrando-se
metodicamente para inspecionar as espigas. Enquanto o observa a trabalhar,
admirando-o e refletindo, envergonhada, sobre o que dissera, todos os outros
dramas e as obsessões da sua vida desaparecem como as bandeiras do milho
espalhadas à sua volta.
– Maggie!
Ela ouve a voz de Violet em pânico antes mesmo de a ver.
– Maggie! – chama Violet, afastando os pés de milho. – A maman quer-te
em casa imediatamente!
Maggie espreguiça-se como um gato, agindo como se não tivesse medo da
mãe, embora tenha mesmo muito medo. Todos têm.
– É melhor despachares-te, senão...
Senão ela bate-lhes com a colher de pau. Ou tranca-as fora de casa sem
jantar. Maggie vira-se para lançar um último olhar desejoso a Gabriel. Ele
apanha-a a olhar e ela acena, mas ele não reage. Violet observa o momento,
mas não faz comentários.
– Vamos – diz ela com nervosismo, agarrando a mão de Maggie e
ajudando-a a levantar-se.
Saem finalmente do milharal quando o Sol começa a pôr-se.
– É melhor corrermos – adverte Violet.
Mesmo que Maggie não goste de parecer uma lorpa como Violet, sabe que
a irmã tem razão. Têm de correr.
A casa fica no final de uma longa estrada ladeada por uma densa fila de
pinheiros imponentes, e elas correm todo o caminho de terra que sobe
abruptamente do milharal e serpenteia pela floresta. Quando chegam à
clareira onde a casa vitoriana de pedra cinzenta se situa, majestosa, como a
peça central da propriedade, Maggie e Violet transpiram copiosamente e
ofegam como cães. As portas de rede fecham-se atrás delas e ali está ela, a
maman, ao fogão com a colher de pau na mão.
– Où t’étais, Maggie? – pergunta, em tom suave, mas ameaçador. Onde
estavas?
Geraldine já anda a pôr a mesa, e Nicole, de dois anos, está no chão a
brincar com a sua boneca Ginny inglesa. Desde que o irmão mais velho,
Peter, foi para o colégio interno em Sherbrooke, esta é uma casa cheia de
mulheres.
Violet apressa-se a ir ajudar Geri, saindo da linha de fogo.
– Estava lá fora – responde Maggie.
– Eu sei que estavas lá fora. A fazer o quê?
– A ler.
Maggie tenta esconder a revista atrás das costas, mas é inútil. A maman
arranca-lhe a revista da mão e fica a olhá-la com ar irónico.
– O que diz aqui? – pergunta.
A mãe não sabe ler nem falar uma palavra de inglês. Ela é pure laine
francesa e nunca fez esforço para aprender sequer os rudimentos da língua
inglesa, nem pelo marido nem pela comunidade bilingue onde vive.
A região dos Cantões de Leste é composta, na sua maioria, por zonas
rurais, contendo nichos de franceses e ingleses que vivem em relativa
harmonia – isto é, em relação ao Quebeque, onde os franceses e ingleses se
toleram com precário civismo, mas não se misturam, como acontece noutras
comunidades mais homogéneas. O mesmo poderia ser dito sobre os pais de
Maggie, cuja união sempre a intrigou.
O pai obteve o diploma em horticultura aos dezoito anos e conseguiu o seu
primeiro emprego no horto Pinney’s Garden Center, no East End de
Montreal. Era o subgerente quando a mãe de Maggie apareceu um dia à
procura de uma planta para enfeitar o seu apartamento no bairro pobre de
Hochelaga. Ela era uma pobre empregada franco-canadiana que nunca saíra
do bairro de lata e ele era um anglo-canadiano, culto e letrado, mas
apaixonou-se por ela assim que lhe viu os lábios rubros e os caracóis pretos e
suaves naquele dia no Pinney’s.
Hoje em dia, o francês é a língua oficial em casa – um testemunho da
teimosia da mãe –, mas o pai venceu na questão da educação. Todos os filhos
frequentam a escola protestante inglesa, tornando o inglês a língua oficial do
seu futuro.
A primeira vez que Maggie ouviu inglês tinha cinco anos, no primeiro dia
de aulas. Quando confrontou o pai com essa reviravolta repentina da sua vida
– a mudança de uma infância em francês para a escola em inglês –, a resposta
dele foi:
– Tu és anglófona.
– A maman não é – observou ela.
– Mas tu és – insistiu ele. – O francês é uma língua inferior. É
imprescindível que tenhas uma educação em inglês.
– O que é que isso significa?
– Significa que falares só francês não te levará a lugar algum.
– Mas tu falas francês.
– É por isso que tenho sucesso. Nunca te deves esquecer do francês, mas
como segunda língua. É um meio para atingir um fim, Maggie, mas não faz
de ti francesa, compreendes?
Ela não compreendia. E quando as crianças da escola começaram a
chamar-lhe «Pepsi» e «rã4», ela ficou ainda mais confusa.
– Porque é que eles me chamam Pepsi? – perguntou ela ao pai uma noite,
sentada no chão do pequeno escritório atulhado.
O aposento tinha sido o quarto da empregada, mas rapidamente se tornara o
santuário do pai. Pouco maior do que um armário, é o sítio onde ele guarda os
catálogos de sementes que faz, livros, rádios feitos em casa, ferramentas,
anotações e desenhos do jardim que um dia pretende plantar no quintal.
Contém ainda uma velha escrivaninha de mogno e uma máquina de
escrever e o espaço cheira sempre a fumo de charuto. Ele tranca-se lá dentro
horas a fio, com a sua música, os seus charutos, uma garrafa de vinho,
entretido com qualquer que seja o projeto em que esteja a trabalhar de
momento. Mantém-no sempre fechado à chave, porque diz que um homem
precisa da sua privacidade.
Naquela noite, ele ergueu os olhos do livro de Dale Carnegie que estava a
ler e tirou os óculos de lentes bifocais. Estendeu a mão e pousou-a no joelho
de Maggie. A mão era quente e reconfortante.
– A Pepsi é barata e doce e é por isso que os franco-canadianos a bebem
em grandes quantidades e têm os dentes podres. Mas tu não és uma Pepsi. Tu
és anglófona, como o papá.
Depois disso, ela aprendeu inglês rapidamente, por razões de pura
sobrevivência. Nada era mais importante do que falar inglês perfeito – e não
apenas falar, mas ser anglófona.
Integrar-se na escola exigiu uma transformação completa, incluindo o
modo como se vestia. Trocou os vestidos folgados que a mãe preferia por
saias escocesas, camisas bem engomadas de renda brancas e mocassins que o
pai lhe encomendara pelo catálogo dos armazéns Eaton. Trocou a língua
materna por uma língua nova e mais elegante. Até que, por fim, começou a
sentir-se anglófona.
No presente, por medo e obrigação, ainda falam francês com a mãe, cuja
presença em casa é poderosa e inevitável. Mas a lealdade de Maggie vai para
o seu lado anglófono – o lado do pai –, porque ele raramente levanta a voz e é
a luz da razão numa casa imprevisível como a dela.
– O que diz aqui? – repete a mãe, a voz agudizando-se quando aponta para
a capa da revista de Maggie.
– Verdadeiro amor – murmura Maggie.
Violet ri-se baixinho.
– Verdadeiro amor! – troça a mãe, atirando com a revista para o lixo. –
Asqueroso.
– Ela finge que é ela e o Gabriel – revela Violet.
– O Gabriel Phénix? – diz a maman, com interesse.
Violet olha para Maggie com um lampejo de culpa e responde à mãe,
confessando:
– É por isso que ela vai para o milharal. Para o ver.
Maggie olha, furiosa, para Violet, numa ameaça silenciosa de que irá fazê-
la pagar por ter revelado o segredo.
– Nunca pensei que serias tu a apaixonares-te por um de nós – diz a
maman, com um grande sorriso.
– O que é que isso significa?
– O teu pai vai dizer que o Gabriel não é um bom rapaz para ti por ser
francês – responde a mãe. – Mas eu fui boa o bastante para ele. Lembra-te
disso.
Afasta-se com uma expressão satisfeita e vira-se para o fogão.
Lá em cima, no quarto, Maggie trata do seu pequeno jardim interior. Planta
sementes nos velhos frascos de conservas da mãe desde criança. Mantém-nos
organizados em fileiras na escrivaninha debaixo da janela, permitindo que
tenham muita luz de sul e calor do radiador por trás da mesa. Ao longo dos
anos, muitas das suas anuárias de maior sucesso – girassóis, zínias,
malmequeres, rabanetes – foram transplantadas para vasos de barro e ainda
crescem no quintal das traseiras durante todo o verão.
Quando era pequena, o pai costumava tratá-la por Joanie Appleseed5 e,
embora a alcunha tivesse acabado por cair no esquecimento, a sua paixão
pelas plantas nunca diminuiu. É o sentimento de posse que todo o processo
lhe dá, desde a escolha e apanha das sementes, a limpeza, a semeadura e,
depois, o constante carinho para as conseguir levar ao maravilhoso fruto.
O seu mais novo empreendimento, começado no ano anterior, é uma série
de limoeiros, que ela espera virem a dar frutos daí a dois anos. Gosta dos seus
rebentos de limoeiro – alguns até dez por frasco – e de observar os
intrincados sistemas radiculares a prepararem-se para os limões.
Também tem algumas sementes de flores silvestres plantadas nos frascos,
que exigiram muito mais esforço e dedicação do que ela contava – um tempo
de secagem muito mais longo e uma limpeza rigorosa para as deixar
perfeitamente estaladiças para a semeadura –, mas que ainda não deram
grande recompensa. Teve de usar o rolo da massa bom da mãe para esmagar
as duras cápsulas, uma infração pela qual pagou caro quando a mãe
descobriu. Examinando agora as sementes de flores silvestres, não consegue
evitar sentir-se dececionada com o ritmo de crescimento. Colheu as sementes
em maio, apesar de o pai a ter avisado de que aquele tipo de sementes era
muito teimoso e temperamental, e, tal como ele previra, a maioria ainda não
germinara.
Enquanto rega cuidadosamente a terra nos frascos, olha pela janela para o
milharal. Gabriel ainda lá anda, iluminado pelo sol poente a arrancar barbas
de milho. O peito dela está repleto de sentimentos maravilhosos, observando-
o lá fora na terra dele.
Quer agarrar-se a essa determinação otimista, a esse novo motivo excitante
para abrir os olhos pela manhã, quando ouve a voz da maman a bradar o seu
nome ou sente aquelas mãos duras e calosas a acordá-la. Os pais dizem que
ela é voluntariosa; que, quando cisma com alguma coisa, não cede. Cuidado
com o Démon Noir, costuma adverti-la a mãe.
Gabriel arranca as barbas de uma das espigas de milho e espalha-as pelo
chão. Maggie toca na terra de um dos frascos para ter a certeza de que está
húmida o suficiente. Não quer afogar os seus preciosos rebentos de limoeiro.
Comprime a terra suavemente e depois limpa as mãos à saia, sem nunca tirar
os olhos de Gabriel.
4 «Frog», em inglês. Este e outros insultos xenófobos, como «Pepsi», «Peasoup», etc., são, ou foram,
usados como referência a membros de uma determinada etnia de forma pejorativa ou insultuosa. (N.
da T.)
5 Referência a Johnny Appleseed. Ver a respetiva nota de rodapé. (N. da T.)
CAPÍTULO 3

O verão acabou de forma tão rápida e normal como o respirar. As noites


tornam-se frias e a escola recomeça. Maggie começa o nono ano na St.
Helen’s High School. É uma escola só para meninas, o que combina bem
com ela, porque é péssima em desporto e não há rapazes para a gozar quando
está a dançar a quadrilha ou a jogar ao mata. A divisa da escola é Loyauté
Nous Oblige e está escrita no emblema da sua bata.
– Quem sabe dizer onde é que Napoleão sofreu a sua primeira derrota
militar? – pergunta Mrs. Parfitt, lançando uma olhadela ansiosa lá para fora.
Chove torrencialmente e o vento sacode as janelas.
Alguém exclama:
– Na tomada da Bastilha!
Mrs. Parfitt solta um suspiro cansado.
– Maggie?
Maggie gosta de história porque é sobre factos, não interpretações. É
possível confiar em factos, tal como nas sementes.
– Na Campanha do Egito, em 1798 – responde ela.
Audrey rabisca Menina da professora na testa da fotografia de Napoleão no
manual escolar de Maggie.
Maggie senta-se ao lado de Nan e Audrey, as duas melhores amigas desde
a terceira classe. São ambas anglófonas loiras e muito bonitas, nada parecidas
com ela. Maggie tem cabelos negros e olhos negros, herdados dos seus
ancestrais huronianos.
Nan dá-lhe uma cotovelada discreta no braço e sussurra-lhe para ela olhar
lá para fora. Algumas raparigas, mais ousadas, já estão à janela, a gritar e a
apontar. Num instante, o céu escurece e torna-se negro. A chuva cai em
grandes lençóis e o vento bate contra o vidro como punhos. O mundo lá fora
é um borrão distorcido.
Preocupada, Maggie pensa como irá levar as irmãs para casa em segurança,
sabendo que a mãe vai responsabilizá-la. É o fardo de ser a irmã mais velha e
ter uma mãe que não valoriza o bom senso.
– É um furacão! – grita alguém.
– Não é nada um furacão – tranquiliza Mrs. Parfitt, mas a voz fica
submersa pelo som de duas dúzias de meninas a gritar e a professora fica ali,
impotente, a ver a sala de aula descambar em anarquia. – Acalmem-se,
meninas.
Depois de mais alguns minutos de pandemónio, as alunas são dispensadas
mais cedo. Maggie detém-se na sala do sétimo ano, para ir buscar Violet.
A mãe de Maggie não conduz e o pai não pode sair da loja, por isso, ela
sabe que ninguém vai aparecer para as ir buscar. É responsabilidade diária de
Maggie ir buscar Geri à escola primária e levar as duas irmãs para casa. Hoje
não será diferente.
Quando chegam à porta principal, Mrs. Parfitt já lá está.
– Como ides para casa? – pergunta, cobrindo a cabeça com um lenço de
plástico.
O hálito dela cheira a caramelo, dos rebuçados que chupa o dia todo.
– O meu pai deve estar a chegar – mente Maggie, demasiado orgulhosa
para dizer a verdade.
Mrs. Parfitt assente, abre o guarda-chuva e sai, sendo rapidamente engolida
pela tempestade.
Maggie e Vi seguem-na. A chuva assola-as, os leves e soltos casacos de
sarja incapazes de as manter secas. A força combinada do vento e da chuva
quase as atira ao chão. Agarram-se uma à outra, os braços unidos, as cabeças
baixas contra a tempestade, mas é inútil. Em segundos, o guarda-chuva frágil
parte-se e elas ficam completamente encharcadas. Olham uma para a outra e
desatam a rir, impotentes, rasgando o caminho o mais depressa possível
através da tempestade.
Mantêm-se agarradas uma à outra, tentando aguentar a fúria do vento e da
chuva que as açoita enquanto avançam cegamente. Quando chegam, por fim,
à esquina da rue Principale, parece que viajaram quilómetros. Maggie sente o
corpo da irmã a tremer debaixo do frágil casaco de sarja. Preocupa-se com a
possibilidade de Vi apanhar uma pneumonia ou tuberculose, por isso, puxa-a
para mais perto e tenta protegê-la com um braço. Quando estão prestes a
atravessar a rua, o som de uma buzina fá-las recuar.
Com uma súbita esperança, Maggie procura na rua o automóvel Packard
do pai. A chuva intensa obscureceu completamente a estrada e ela não
consegue ver os carros. Tem de cerrar os olhos com força para os ir
limpando. Uma pick-up surge de repente ao lado delas e estaciona junto ao
passeio. Desiludida, Maggie vê que não é o pai. Alguém abre a janela e ela
vislumbra o rosto de Clémentine Phénix. Gabriel está no banco do passageiro
e Angèle entre os dois.
Maggie não os vê desde o verão. Ocasionalmente, vê Gabriel a trabalhar no
campo. Procura-o todos os dias, à noite, antes de ir dormir, e assim que
acorda de manhã. Sabe que ele vai partir em breve para Montreal e o
pensamento de não o ter por perto provoca-lhe um sentimento palpável de
medo.
– Entrem! – ordena Clémentine. – Viemos buscar a Angèle e vimos as duas
aqui de pé...
– Eu tenho de ir buscar a Geraldine!
– Apanhamo-la pelo caminho. Havemos de conseguir levar todos.
Maggie entra primeiro e Violet sobe atrás dela. É uma carrinha de caixa
aberta Chevrolet de 1939 com uma única fila de bancos.
Angèle sorri para Maggie e esta retribui o sorriso, sentindo uma onda de
carinho. Foram melhores amigas um dia, até Maggie ter ido para a escola
inglesa e ter deixado para trás, não só Angèle, mas tudo o que fosse francês.
Secretamente, Maggie está felicíssima por estar espremida contra Gabriel,
os ombros de ambos encostados. Consegue lançar alguns olhares discretos e
admirar-lhe o perfil, tentando absorver o máximo que puder... o ângulo do
maxilar, a forma do nariz, a curvatura das longas pestanas escuras. Ele vira
ligeiramente a cabeça e baixa os olhos cinzentos para ela.
– Porque é que o teu pai não veio buscar-vos? – pergunta Gabriel a Maggie
depois de irem buscar Geri à escola primária.
– Por causa do trabalho – responde Maggie. – Ele não pode sair da loja.
– Quem vai comprar sementes num dia como este? – comenta Clémentine.
O pai dela diria que não se pode fechar a loja a meio do dia. E se alguém
vier de Granby ou de Farnham de propósito e encontrar a porta fechada? A
loja tem de estar aberta, faça chuva ou faça sol. Essa é a natureza do
comércio: o cliente é a pessoa mais importante do mundo. Além disso, estão
na época de catálogo.
O pai trabalha até tarde durante os meses de outubro e novembro, a
preparar o catálogo de vendas para ser enviado a tempo das encomendas da
primavera. Faz tudo sozinho. Começa em setembro, recortando
meticulosamente as fotografias que recebe dos fornecedores, experimentando
vários tipos de apresentações dos produtos e depois escrevendo descrições de
cada semente. Este ano, vai introduzir um novo tipo de relva, a Prévert, que
ele próprio inventou após vários anos de diligentes experiências. Passou a
maior parte do verão anterior a testá-la no Jardim Botânico em Montreal, e
agora a Prévert está pronta para ser comercializada. Peter diz que o nome
parece «pervertido». Peter está a fazer as ilustrações para ajudar, mas deixou
bem claro que não tem interesse nos negócios do pai. Ele quer ser arquiteto,
não um «lojista», como ele diz.
– Há inundações por todos os cantões – diz Clémentine. – Ouvimos na
rádio.
Uma veia azul-escura pulsa na testa de Gabriel. Ele mantém os olhos
postos na estrada. Os nós dos dedos estão brancos da força com que cerra os
punhos ao passarem por vários carros tombados em valas ao longo da estrada.
Todos ficam em silêncio. Maggie recorda que M. e Mme. Phénix e duas
das filhas morreram naquele mesmo troço de estrada. Pergunta-se se Gabriel
e Clémentine terão tido o mesmo pensamento.
Não se vê a estrada à frente deles. Os limpa-para-brisas balançam para um
lado e para o outro, completamente irrelevantes. A estrada aparece um
segundo, voltando logo a ser engolida. Clémentine começa a rezar baixinho.
Quando ela vira cautelosamente para a Bruce Street, Gabriel estende o
braço pelo encosto do banco e pousa a mão no ombro da irmã, numa carícia
fraternal.
– Bravo, Clem – diz ele, sorrindo e revelando covinhas de derreter o
coração.
É a primeira vez que Maggie o vê sorrir. Há uma ternura entre ele e a irmã
em nada comparável à relação que Maggie tem com Peter.
Quando se aproximam do cimo da colina, Clémentine trava de repente e
todos são arremessados para a frente. Geri começa a choramingar.
– A estrada está inundada – diz Gabriel. – É praticamente um lago. Vamos
ter de ir a pé.
Saem todos da pick-up e formam um grupo coeso, Geri no meio de Maggie
e Vi. O céu ainda está negro e a terra parece dissolver-se num lago lodoso. A
água chega-lhes aos tornozelos. Gabriel pega no braço de Maggie e segura-a,
guiando as três meninas com todo o cavalheirismo em direção a casa.
Maggie imagina que ele é um bravo soldado na frente de batalha, como
Napoleão Bonaparte. Apesar do frio que lhe enregela os ossos, sente-se
aquecida por dentro estando tão perto dele.
O aperto dos dedos no braço dela fá-la sentir uma espécie de formigueiro.
Não quer chegar a casa, não quer que ele a solte. Preferia afogar-se na sua
companhia do que separar-se dele.
Gabriel solta-lhe o braço quando chegam à porta de entrada, tendo o bom
senso de evitar a mãe. Maggie vira-se para ele, levantando a mão para acenar.
– Obrigada! – diz, mas as palavras, absurdamente insuficientes, são
varridas pela tempestade.
A porta da frente abre-se e a maman espreita do vestíbulo.
– Mandaram-nos para casa mais cedo por causa da tempestade – explica
Maggie, ainda sentindo o formigueiro do encontro com Gabriel.
A maman franze o sobrolho, mas nem ela consegue estragar a alegria de
Maggie.
Entram para a cozinha, onde Nicole está sentada em frente à lareira com a
sua boneca. A maman fecha a porta com a brusquidão habitual e começa
rapidamente a tirar-lhes os casacos molhados.
– Porque estás a sorrir? – pergunta-lhe a maman.
– Não estou a sorrir – responde Maggie, tirando as meias.
– Tabarnac – resmunga a maman, não sem irritação. – Estão todas
encharcadas. Subam, tirem a roupa toda e vistam os combines que estão a
aquecer no radiador.
Maggie e as irmãs entreolham-se, perplexas, e correm para o andar de cima
antes que a mãe se lembre de lhes ralhar. Três pares de ceroulas compridas
estão pousadas sobre o radiador do quarto delas, que a maman ali deve ter
posto, à espera do seu regresso encharcado. Maggie tira a roupa molhada,
atirando-a para o cesto, e veste o pijama por cima das ceroulas quentinhas.
Não consegue parar de tremer. Os dentes das três irmãs batem em uníssono.
– A mãe não parece zangada – comenta Violet.
– Porque é que ela não gritou connosco? – pergunta Geri.
– Não te preocupes – diz Maggie. – Ela vai encontrar uma maneira de nos
culpar pela tempestade.
Todas riem. Já no andar de baixo, amontoam-se em frente à lareira da
cozinha envoltas na manta de lã que a maman fez com retalhos dos velhos
fatos do pai. Entrega a cada uma delas uma caneca de leite morno e está
constantemente a verificar se têm febre com um toque brusco nas testas.
Revelou-se um dia perfeito, pensa Maggie, saboreando o leite morno e o
calor do fogo, a lembrança de Gabriel sentado tão perto dela no carro, e
depois agarrado a ela no meio da chuva.
– Eu disse ao vosso pai para vos ir buscar – resmunga a mãe baixinho.
Os testos das panelas tilintam enquanto ela prepara o jantar. Traz um
avental por cima do vestido azul e branco com flores estampadas e uma fiada
de botões à frente, de cima a baixo, como a bata de um médico. É deselegante
e dá-lhe um ar desleixado. Desde que Nicole nasceu, ela parece ter deixado
de se preocupar com a aparência.
Está sempre a reclamar que a maternidade lhe destruiu a beleza. Culpa os
filhos pelas brancas no cabelo, pelos dois molares de trás que tiveram de ser
arrancados e especialmente por ter perdido a cintura. Ela era bonita – há
fotografias que provam –, mas deixou de o ser. Resignada ao seu destino, ou
melhor, dedicada a ele, a transformação foi rápida. Começou com um
penteado curto e pouco lisonjeiro que ela divide para o lado e penteia sobre
as orelhas, depois as batas às flores e os casacos de malha sem graça, e,
finalmente, a renúncia total à maquilhagem como se fosse uma espécie de
protesto.
– Porque me surpreende que ele vos tenha deixado lá? – continua a mãe,
incansável como a chuva.
Violet revira os olhos e Geri solta uma risadinha.
– Mas está tudo bem – intervém Maggie, tentando acalmar os ânimos. –
Estamos aqui. Ele não podia simplesmente fechar a loja a meio da tarde.
A maman despeja uma lata de ervilhas na panela de ferro fundido e vira-se
para encarar Maggie.
– Ele fez-te uma lavagem ao cérebro, Maggie. É claro que devia ter
fechado a loja e ido buscar-vos.
– Não me fez uma lavagem ao cérebro – desafia Maggie, surpreendendo-se
a si mesma. – O pai preocupa-se tanto com o negócio porque se preocupa
connosco.
– Não adianta falar contigo – diz a mãe, metendo a panela de estufado no
forno a lenha e fechando a tampa com força. – Não és capaz de pensar pela
tua cabeça. Só Deus sabe porque o veneras tanto.
A maman encosta-se à porta do forno e tira um cigarro do bolso do avental.
Acende-o e inala languidamente, observando Maggie.
– Um dia verás quem ele é – continua ela, agitando o cigarro. – Ou talvez
sejas mais estúpida do que eu pensava.
O rugido de um trovão parece abanar a casa. Nicole começa a chorar e Geri
grita de alegria. Maggie tem a agradável sensação de conforto e segurança
junto ao fogo.
– Maggie, Violet – brada a maman. – Ponham a mesa.
As duas levantam-se e obedecem, fazendo caretas atrás das costas da mãe
enquanto colocam os pratos e os talheres. Ouve-se um barulho vindo do
vestíbulo e todas levantam os olhos.
Uma porta bate. O pai chegou.
CAPÍTULO 4

A maman ataca-o antes mesmo de ele entrar na cozinha. A expressão dele


assume imediatamente um ar de derrota, ainda antes de tirar o chapéu.
Quando Maggie começou a trabalhar na Superior Seeds, começou a observar
o humor jovial do pai com curiosidade. No trabalho, ele é mais animado e
otimista. Nada como quando está em casa. Naqueles primeiros tempos,
sentia-se privilegiada por poder ver o lado alegre dele, mas, com o passar do
tempo, começou a questionar se a personalidade no trabalho não seria um
pouco hipócrita. Porque é que a família não o fazia assim feliz? Porque é que
ele raramente se ria com a mulher e os filhos?
Inevitavelmente, Maggie acabou a culpar a mãe. Ela é quem destrói a
verdadeira natureza do pai, drenando-o diariamente com tantas queixas e
resmunguice. A infelicidade dela consegue esmagar até o espírito mais
animado. Todos eles têm de viver ao redor dela e lidar com o seu
temperamento imprevisível e o humor sombrio.
É difícil para Maggie entender por que razão ele a escolheu. Imagina que o
pai poderia ter tido qualquer rapariga bonita com lábios vermelhos e caracóis
suaves. Porque teve de ser alguém com uma vida tão miserável e que vivia
ainda tão zangada com isso?
Hortense cresceu nas favelas, numa casa com chão de terra e sem água
corrente que ficou reduzida a cinzas quando ela tinha onze anos. Foi o pai
quem ateou o fogo quando desmaiou embriagado com um cigarro aceso na
boca, matando a si mesmo e à prostituta com quem estava. Hortense, a mais
velha, teve de abandonar a escola e foi trabalhar como empregada doméstica
para uma família abastada inglesa, o que lhe plantou uma semente de
ressentimento contra todos os ingleses. Nas suas próprias palavras, casara-se
com Wellington na esperança de fugir à miséria, e, no entanto, o que
Hortense mais despreza nele hoje em dia é exatamente aquilo que a atraiu
primeiro: a boa educação, a ética de trabalho, a estabilidade financeira e o seu
orgulho.
– Porque não foste buscá-las à escola? – pergunta a maman ao pai,
espetando-o no peito com a longa colher de pau que os agricultores usam
para alimentar os porcos.
Wellington protege o peito com o braço.
– Deixa-me entrar, Hortense.
Fala num tom sereno, o que tem o efeito de a irritar ainda mais.
– Eu teria ido buscá-las depois do trabalho – diz ele. – Podiam ter esperado
até às seis.
Pisca o olho a Maggie. Ela sorri para mostrar solidariedade. No entanto,
mesmo tentando ignorar o súbito desconforto dentro dela, a acusação anterior
da mãe ecoa na sua mente: Ele fez-te uma lavagem ao cérebro.
– Não te preocupas com elas? – insiste a maman.
Enquanto o pai despe a gabardina molhada e o chapéu com uma expressão
de resignação, Maggie questiona, pela primeira vez, se realmente será
invulgar que ele não as tenha ido buscar no meio da tempestade.
– Não há necessidade de tanto dramatismo – diz ele.
A maman bate com a porta do vestíbulo. As crianças encolhem-se.
O pai deixa escapar um pequeno suspiro e acomoda-se à mesa, os ombros
levemente curvados e o desânimo evidente. Em silêncio, a maman serve-lhe o
estufado de carne e ervilhas. Ele empurra distraidamente a comida com o
garfo, separando as cenouras e ervilhas da carne. Serve-se de um copo de
vinho. A garrafa é só para ele. A maman raramente bebe. Quando o faz, é
apenas com os amigos e irmãos.
– Estou a tentar gerir um negócio – diz ele com cansaço na voz. – Não
posso simplesmente fechar a loja por um capricho.
– Um capricho?! – exclama ela. – Tu chamas àquela tempestade um
capricho?
– E se um cliente tivesse aparecido e a loja estivesse fechada? – argumenta
ele. – Imagina que tivesse vindo de propósito de outra cidade?
– Que idiota sairia para comprar sementes no meio de uma tempestade?
Geri solta uma risadinha. Maggie dá-lhe uma cotovelada de advertência.
– Bem, alguém apareceu? – pergunta-lhe a maman.
– Não.
A maman deixa cair a mão na mesa de pinho com força e atira a cabeça
para trás, com uma gargalhada vitoriosa. Violet e Geri acompanham a risada,
mas Maggie fica em silêncio.
– Maudit Anglais – murmura a maman. Maldito inglês. – Que tipo de pai
dá mais prioridade ao trabalho do que à segurança dos próprios filhos? –
continua, ainda não satisfeita. Falta-lhe o sentido inato da noção de quando
recuar.
– Não é só um trabalho – corrige ele. – É o meu negócio. É o nosso
sustento. Tenho uma reputação a manter.
– Oh, por favor, poupa-me.
– Os valores familiares são precisamente o que guia a minha ética de
trabalho – diz o pai, e Maggie deixa-se embalar pela sua eloquência. – Se eu
não me importasse com a minha família, fecharia a loja sempre que me desse
na veneta e correria o risco de perder a faturação de metade do dia.
Maggie olha para o pai e depois para a mãe. O argumento parece razoável a
Maggie. Certamente também fará sentido para a maman.
– Não podes separar uma forte ética profissional dos valores familiares de
um homem – continua o pai. – E vice-versa.
O pai de Maggie bebe um pouco de vinho e petisca o estufado. O garfo
tilinta na porcelana do prato.
– Com licença – diz ele, levantando-se abruptamente e saindo da sala com
o copo de vinho.
Logo depois, volta para pegar na garrafa e desaparece para o seu santuário
à saída da cozinha.
– Não podes esconder-te aí a noite toda! – grita a maman atrás dele.
Maggie levanta-se e escapule-se. No andar de cima, atravessa o corredor
até ao quarto dos pais e detém-se em frente à escrivaninha da mãe, olhando
para uma fotografia dos pais antes de se casarem. A mãe mantém-na numa
moldura de prata gravada pousada num paninho de croché ao lado da caixa
de pó de arroz da marca Yardley. Talvez seja uma recordação de dias mais
felizes, uma prova de que já usou batom vermelho e de que teve uma figura
delgada e curvilínea. Na fotografia, o pai de Maggie empurra-a num cortador
de relva. Ela está a usar um vestido muito justo branco, meio transparente, e
sapatos de salto alto brancos com tiras que apertam nos tornozelos. O corte
de cabelo é um estilo bob ondulado, os lábios formando um arco de Cupido
escuro e a cabeça atirada para trás numa risada. Parece linda e feliz. Maggie
procura algum indício de que realmente é a maman. A mulher captada em
sépia parece encantadora, propensa a risadas fáceis e esperançosa.
Terá passado demasiados anos com um homem que não ama? Ou terá sido
a infância trágica que a arruinou ainda antes de ela o conhecer? Embora a
maman tenha conseguido sair do bairro de lata e melhorar a sua situação de
vida, talvez uma infância trágica seja algo impossível de ser superado, tal
como a poliomielite. Deixa uma pessoa aleijada.
Maggie afasta-se e sai do quarto em pontas de pés, lembrando-se de como
se sentiu ao estar tão perto de Gabriel, de o ouvir respirar ao lado dela e sentir
a sua pulsação; do contacto das pernas de ambos, da mão dele no seu braço
quando a acompanhou até casa. Mal pode esperar para o ver novamente.
Enquanto enche um copo com água na casa de banho, pensa se os pais se
sentiam assim a princípio, ou se ainda o sentem agora. De vez em quando,
ouve os barulhos que vêm do quarto deles, quando vai fazer chichi a meio da
noite. Costumava pensar que estavam a discutir – que a mãe estava a bater no
pai –, mas Peter explicou-lhe que eles estavam a fazer sexo. Maggie ficou
chocada com a ideia de que eles fossem capazes de se odiar tanto num
momento e logo depois fazerem amor.
Fecha a porta do quarto e vai até à escrivaninha para examinar os rebentos
de limoeiro e as sementes de flores silvestres.
– Olá – diz ela, regando carinhosamente com água a terra nos frascos.
A fúria da tempestade ainda segue lá fora, e fica imensamente feliz por,
apesar do vento uivante e dos ramos partidos espalhados por todo o quintal,
as suas sementes estarem a germinar calma e silenciosamente no santuário do
seu jardim interior. Não há melhor lugar no mundo onde preferisse estar.
CAPÍTULO 5

N uma tarde de sábado do fim de outono, quando a maioria das folhas já


abandonou as árvores e o inverno começa a instalar-se nos cantões na
sua forma tipicamente irrevogável, Maggie olha pela janela do sótão na loja
de sementes, perdida em pensamentos.
O fumo sai das chaminés do outro lado da rua e ela imagina salas cheias de
famílias harmoniosas sentadas ao redor da lareira, a rir e a conversar com
ternura e respeito. Dentro de cada casa, exceto a sua, imagina, a vida
desenrola-se de maneira mais amável e civilizada.
A voz de um homem ao cimo da escada para o sótão interrompe-lhe o
devaneio.
– Calice – pragueja ele.
Maggie levanta o olhar das sementes que pesa, surpreendida ao encontrar
Gabriel ali parado, vestido com uma jaqueta de caçador xadrez, vermelha e
preta, com um gorro de lã. Parece alguém capaz de sobreviver sozinho na
selva, a matar ursos, a acender fogueiras com galhos e a viver do que a terra
lhe dá, pensa ela enquanto o vê tirar o gorro, sacudir o cabelo loiro e
encostar-se à mesa.
– Tens de contar todas essas sementes uma a uma? – pergunta ele.
– O que fazes aqui? – responde Maggie, com o coração acelerado. O pai
devia estar ocupado com um cliente e não ter visto Gabriel passar por ele;
caso contrário, certamente o teria proibido de subir. – A loja está quase a
fechar...
– A Clémentine veio comprar bolbos para o jardim.
Chegou aquela altura do ano, antes de a terra congelar e os agricultores
hibernarem, antes de a neve cair e as explorações agrícolas ficarem enterradas
e silenciosas, a altura em que toda a gente na região invade a loja do pai para
comprar bolbos de primavera para os seus jardins.
– Deve ser um tédio pesares essas malditas sementes o dia inteiro –
comenta ele.
– Não me importo – responde ela. – Gosto do trabalho.
Ele fita-a com estranheza, mas Maggie não dá mais explicações. Como
explicar que, para ela, significa muito mais do que apenas pesar sementes,
tarefa que, reconhecidamente, se pode tornar um pouco enfadonha? É o lugar
em si que é especial: os cheiros maravilhosos, a conversa e as risadas lá em
baixo, estar com o pai nesse mundo encantado que ele criou.
Gabriel pega num punhado de sementes.
– Eu não teria paciência.
– Não é assim tão mau – diz Maggie, estendendo a mão. – Cheira isto.
Ele cheira as sementes na mão dela e encolhe os ombros. Ela não consegue
evitar uma risada.
Está feliz por ter vestido a saia de pregas xadrez e a blusa de renda. O
cabelo também está bem penteado: ondulado, com a risca ao lado e seguro
com um travessão. Ainda sente a cabeça a latejar de quando a maman lhe fez
as ondas esta manhã, não com ganchos, como a maioria das mães faz, mas
com o lado da mão, espetando implacavelmente o crânio de Maggie até
conseguir as ondas. Pelo menos, agora pode dizer que valeu a pena.
– Seja como for, eu não era capaz de estar aqui neste sótão quente o dia
todo – diz Gabriel.
Maggie olha profundamente para os seus olhos cinzentos e deixa-se perder
neles por um momento. As faces dele estão coradas do frio lá fora. Ele é
adorável.
– É uma boa preparação – diz ela.
– Para quê?
– Hei de tomar conta da loja um dia.
– Porque quererias fazer tal coisa?
– Quero substituir o meu pai – explica, como se devesse ser óbvio para ele.
– Ele não pode fazê-lo para sempre.
Gabriel está prestes a dizer alguma coisa quando os passos do pai nas
escadas silenciam os dois.
– Mr. Phénix – diz ele em francês. – Os clientes não podem subir para aqui.
Gabriel passa por ele na escada ao descer. Antes de desaparecer da vista de
Maggie, vira-se e sorri para ela. A felicidade invade o coração de Maggie.
O pai permanece no sótão alguns minutos sem falar, a simples presença
constitui advertência suficiente. Ele já avisou Maggie muitas vezes sobre os
rapazes franceses, recordando-a insistentemente de que são, na sua maioria,
pobres, não terminam os estudos e de que os seus dentes apodrecem antes dos
quarenta anos. Certo ano, em que o tio Yvon ficou tão bêbedo que atirou a
árvore de Natal pela porta da frente, o pai puxou-a para o lado e sussurrou-lhe
um aviso severo sobre os franco-canadianos e o álcool:
– É por isso que deves manter-te com os da tua espécie.
– Mas tu não o fizeste – lembrou-lhe Maggie, enquanto Peter e Deda
arrastavam a árvore de volta para dentro, deixando um rastro de enfeites
brilhantes e bolas de Natal partidas.
– Esse foi o meu erro. Não consegues mudá-los, Maggie. Lembra-te disso.
Nunca esqueceu essas palavras do pai. Não consegues mudá-los.
O pai recosta-se à mesa de trabalho com os braços cruzados sobre o peito.
Maggie sela um envelope de sementes de papoila-espinhosa com a língua e
deixa-o cair no monte.
– Chegou uma nova remessa ontem – informa o pai. – Há sementes de
astromélia, de lírio-tigre... já as viste?
– Ainda não cheguei a essas.
O pai olha para o relógio.
– Tenho contabilidade para fazer. Porque não vais indo para casa sem mim
hoje?
Maggie contempla a longa caminhada até casa sozinha.
– Prefiro esperar – responde ela. Gosta das caminhadas até casa com o pai.
Além disso, estar na loja é melhor do que estar em casa com a mãe. – Posso
começar com essas novas sementes?
Ele volta a olhar para o relógio.
– As astromélias valem uma verdadeira fortuna – diz com severidade. –
Tem muito cuidado quando estiveres a pesá-las. Vou precisar de cerca de
uma hora, sem ser perturbado.
Ela bate continência, na brincadeira.
– Sê precisa – reitera ele. – Sem pressas, Margueret.
Sem dúvida, o pai suspeita que ela calcula por alto quantas sementes
colocar em cada envelope, o que ela faz ocasionalmente, quando se atrasa.
– Se queres mais responsabilidade aqui na loja, não podes fazer batota.
Ela acena obedientemente, o rosto corado de orgulho. Não consegue
reprimir um sorriso. As escadas rangem quando ele desce.
– Maggie! – chama. – Com precisão, estamos entendidos?
– Sim, senhor!
Ela coloca um monte de sementes de lírio-tigre na mesa e começa a pesá-
las, prestando muita atenção à balança. Pesa e volta a pesar, não se deixando
desanimar pela quantidade de sementes diante dela. As de lírio-tigre são ovais
finas castanhas, cercadas por triângulos de papel. Parecem escamosas entre os
dedos. Maggie esmaga uma para ver como é. A asa de papel desintegra-se em
pó, deixando apenas uma semente do tamanho da unha do seu dedo
mindinho. Atira-a pela janela das traseiras, destruindo a prova do seu
desperdício. Se olhar para uma só semente durante tempo suficiente, pode
esquecer o que é. Pode até mesmo esquecer que é uma semente, tal como
quando se diz uma palavra várias vezes até ela perder o significado. A sua
mente faz coisas curiosas ali no sótão.
O tempo passa. As suas mãos movem-se habilmente enquanto os olhos
registam os números na balança, com a visão aparentemente desligada do
cérebro. Termina outro saco de lírios-tigre e, em seguida, despeja um saco de
astromélias. Olha para o relógio; precisa de fazer uma pausa para ir à casa de
banho. Há apenas uma na loja e é mesmo por baixo dela, escondida debaixo
da escada.
Quando chega ao andar principal, olha para o escritório do pai. A porta está
fechada, um sinal de que a contabilidade não está a correr bem. Ele
provavelmente precisa de ser animado. Talvez vá espreitar à porta e dizer olá.
O pai gosta quando ela o faz. Sempre sorri e diz na sua voz tremendamente
séria: «Pronto, Maggie, chega de palhaçada. Volta para o trabalho».
Entreabre a porta devagarinho, à espera de o ver debruçado sobre uma pilha
de papéis na secretária, os óculos bifocais equilibrados na ponta do nariz. Em
vez disso, vê-o de pé atrás da mesa, de costas para ela, as calças para baixo,
as nádegas pálidas nuas. Maggie percebe que ele não está sozinho; alguém,
que ela não consegue ver pela fresta da porta, está agachado à frente dele.
Fica a observar um momento, com horror e fascínio, até que o pai geme de
prazer e cai contra a mesa. Então a voz de uma mulher exclama:
– A tua filha!
Maggie solta um suspiro assustado. O pai vira-se; o rosto está corado e
suado. A outra pessoa, quem quer que seja, tenta esconder-se atrás da mesa,
mas a cabeça dela balança por uma fração de segundo e Maggie reconhece
instantaneamente as tranças douradas. Clémentine.
O pai puxa apressadamente as calças e olha diretamente para Maggie,
lutando para puxar o fecho das calças e apertar o cinto. Maggie, mais chocada
pela arrogância do que pela indiscrição em si, dá meia-volta e foge.
– Maggie!
Quando ele a chama, Maggie sobe as escadas. Ainda o ouve dizer a
Clémentine:
– Eu disse-te que era estúpido!
– Podias ter trancado a porta – sibila ela em francês.
A porta bate.
Maggie corre até ao sótão, pega num punhado de sementes e começa a
contar, sem prestar atenção ao que faz. As sementes escorregam-lhe das mãos
húmidas e trémulas; só consegue pensar na imagem do pai com as calças na
mão.
Mais tarde, Maggie ouve o pai nas escadas e contempla esconder-se
debaixo da mesa. Ele entra no sótão, o cabelo já alisado e a pele tendo
reassumido a palidez natural. Põe-se a andar de um lado para o outro atrás de
Maggie. Ela continua a contar as sementes, uma a uma. Oito, nove, dez, onze.
Ele mantém-se a andar de um lado para o outro, esfregando a careca com os
dedos, suspirando, num silêncio perturbado. Ainda assim, não fala. Catorze,
quinze, dezasseis.
– O que viste... – começa ele finalmente.
– Eu não...
– Foi um acidente.
– Um acidente?
– Hum.
– Eu não vi nada, na verdade.
– Não é... Não vai...
– Eu não vou dizer nada.
O pai respira fundo. Maggie não tem a certeza se é um suspiro de alívio ou
de remorso, ou se é um suspiro sequer. Continua a andar atrás dela
silenciosamente durante mais alguns minutos antes de se virar e descer as
escadas.
Ela deixa as sementes de astromélia deslizar por entre os dedos como areia.
*

Caminham juntos até casa em total silêncio. O pai de Maggie não faz
qualquer tentativa de leveza. Não há nenhuma das brincadeiras habituais,
apenas o peso da vergonha partilhada a pairar entre eles no ar frio. Quando
finalmente chegam a casa, Maggie corre para dentro.
A cozinha cheira a cravinho e a pimenta-da-jamaica. Ela vê três bolos de
açúcar alinhados no peitoril da janela. A mãe está ao fogão, a mexer uma
panela gigante de ragoût de boulettes. Uma tal quantidade de almôndegas
significa que vão ter visitas para o jantar.
– É melhor prepararem-se – diz a maman. – Devem chegar todos às sete.
– Quem são todos? – quer saber o pai.
– Eu disse-te que convidei os Dions e os Frechettes – responde ela,
impaciente, virando-se para lhe atirar um olhar de desaprovação.
Ainda não está a usar o corpete, o que deixa Maggie tão furiosa que tem de
desviar o olhar. Envergonha-se dos seios descaídos e da barriga flácida da
mãe, e deseja que ela tivesse feito um esforço maior para preservar a sua
beleza ao longo dos anos. O que aconteceu hoje na loja só pode ser culpa da
mãe.
– Não estou com disposição para festas – murmura o pai, evitando olhar
para Maggie. – Foi um dia muito longo.
– Põe a cerveja no frigorífico – diz a maman, ignorando-o. – Passaste por
ela no vestíbulo.

Horas depois, a casa está repleta de música e gargalhadas ruidosas. No


centro, está o pai, a fumar um charuto e a percutir um par de colheres no
joelho ao som da música Les Filles du Canada, a humilhação da tarde
aparentemente esquecida. M. Dion acompanha-o ao violino e as mulheres
batem palmas e cantam. A maman abre uma janela para deixar entrar um
pouco de ar fresco.
– Hahaha! – rugem eles. – Les filles du Canada!
O pai de Maggie bebe um longo trago de whisky Crown Royal. Tem as
faces rubras e com manchas, os olhos vítreos. Maggie normalmente adora
quando os raros momentos de bom humor dos pais coincidem. São raríssimos
os momentos em que o pai descontrai e se transforma numa versão mais
normal e desinibida de si mesmo e, ao mesmo tempo, a maman relaxa e se
esquece de ser infeliz. Quando isso acontece, Maggie sente que tem uma
família normal, afinal de contas, que não são menos felizes do que outras
famílias. Mas, nessa noite, o fardo de Maggie perdura, esmorecendo-lhe o
contentamento. Não consegue tirar da cabeça a imagem de Clémentine
Phénix escondida atrás da mesa do pai e as implicações disso nas suas vidas.
O pai deixa cair de repente as colheres na mesa, levanta-se e puxa a maman
para o meio da sala. Segura-a com firmeza pela cintura e fá-la rodopiar com
destreza, como se já o tivessem feito muitas vezes; depois inclina-a nos
braços, mesmo ali na sala de estar. Para surpresa de Maggie e de todos, a
maman levanta a perna e atira a cabeça para trás alegremente, rindo.
Todos aplaudem, inclusive Maggie, apesar do sentimento de perplexidade.
Talvez seja melhor não tentar entender algo como o casamento, conclui. Pelo
menos, ainda não. Seja como for, ela está num caminho diferente.
CAPÍTULO 6

–D á-me uma passa – diz Audrey, pegando no cigarro que estão a


partilhar.
Ela sopra quatro anéis de fumo perfeitos para o ar.
É início da primavera e o degelo começa em Dunham. Maggie e Audrey
estão sentadas nos degraus da entrada do edifício Small Bros, onde fazem o
equipamento para a produção de xarope de ácer. Maggie desabrochou durante
o inverno. A adolescência atacou-a em força. As pernas estão mais compridas
– já é mais alta do que Nan e Audrey – e, apesar de continuar magra, os seios
duplicaram de tamanho. Usa o cabelo preto mais comprido e, em vez das
ondas à volta das orelhas num corte estilo bob, cai agora sobre os ombros,
dando-lhe um visual mais sofisticado, ou, pelo menos, assim lhe parece.
Começou a usar batom vermelho, que põe depois da escola e tira antes de ir
para casa.
Audrey entrega o cigarro a Maggie, que dá uma longa passa.
– Vou encontrar-me com o Gabriel Phénix aqui – confessa Audrey.
– O Gabriel? Porquê?
Maggie não vê Gabriel desde o outono, exceto por um breve vislumbre,
quando ele veio a casa para plantar o milho.
– Ele convidou-me para ir ao lago Selby – diz Audrey, corando.
– Tipo um encontro romântico?
– Sim, um encontro romântico.
Maggie pestaneja, estupefacta.
– Tens um encontro amoroso com o Gabriel Phénix?
– Não contes a ninguém, está bem, Mags? – pede ela, sacudindo a cinza do
cigarro para a neve derretida aos seus pés. – Ele é um fofo, mas é francês. –
As longas pestanas agitam-se adoravelmente. – É embaraçoso.
Tudo em Audrey McCauley faz Maggie sentir-se falha, dos caracóis
dourados aos sapatos Oxford bicolores até à sua perfeita família branca
anglo-saxónica protestante. A última vez que Maggie esteve em casa dela, a
mãe de Audrey usava um vestido de tweed cor-de-rosa com pérolas e o pai, o
Dr. McCauley, estava a ler o jornal numa poltrona de orelhas junto à lareira.
A irmã mais nova de Audrey tocava piano ao lado dele. Todo aquele cenário
encheu Maggie de um inexplicável desespero. Devia ser tão simples ser um
deles, pensou Maggie naquele dia. Durante todos aqueles anos de amizade
com Audrey, nunca vira evidências de ninguém a escolher lados ou
oponentes, ou sequer de tendências ocultas de animosidade. São apenas uma
família com um único propósito comum: ser a família McCauley e, portanto,
fazer os outros sentirem-se inferiores. Para Maggie, ter perdido Gabriel para
Audrey torna a derrota ainda mais ofensiva.
– Ele vai trazer um amigo – diz Audrey. – Para ti.
– Eu não quero ir.
A voz de Maggie é abafada pelo rugido das motas. Audrey levanta-se de
repente. Gabriel e o amigo estacionam junto ao passeio. Gabriel olha Maggie
de cima a baixo, como se nunca a tivesse visto antes. A expressão dele não
revela nada.
– Olá, Maggie – cumprimenta-a.
Ela fixa os olhos nele.
– Este é o meu amigo Jean-François.
– Toda a gente me trata por JF – corrige ele, mirando Maggie como se
tivesse acabado de ganhar o primeiro prémio.
Ele não é feio. Tem os olhos escuros e um brilho azulado na poupa hirta de
cabelo preto. Mas, quando sorri, Maggie vê que lhe falta um dente de baixo.
Os Pepsis e os seus dentes podres, diria o pai.
– Vamos – diz Gabriel.
Audrey sobe para a parte de trás da mota e coloca os braços em volta da
cintura de Gabriel. Sorri estupidamente e Maggie tem vontade de a agarrar
pelos cachos dourados e de a puxar para fora da mota.
– Vens? – pergunta Gabriel a Maggie.
Audrey dirige-lhe um olhar suplicante. Pelo menos, se for com eles, vai
poder ficar de olho em Gabriel. Monta-se na mota de JF e repara que nem um
fio de cabelo da poupa azulada se mexe ao vento.
O pai de Maggie avisou-a sobre as possibilidades apocalípticas da grande
velocidade das motas nas estradas rurais: bater contra tratores, tombar para
valas, chocar contra postes de eletricidade. No ano anterior, uma rapariga da
escola St. Helen’s morreu quando seguia na traseira da mota do namorado.
Maggie fecha os olhos. Sente o vento frio no rosto, açoitando-lhe as faces até
magoar. Sente-se estranhamente eufórica, desejando que a cintura a que se
agarra fosse a de Gabriel.
O lago Selby fica no sopé do monte Pinnacle. Maggie já passou muitos dias
de verão a bronzear-se ao sol junto à água, a ler na varanda do refeitório, a
conversar com os hóspedes do Pinnacle Lodge. Há baile no salão todos os
sábados à noite e nesse verão ela terá idade suficiente para dançar até as luzes
se acenderem.
Estacionam em frente ao antigo celeiro abandonado de Selby. As casas
estão vazias e abandonadas. As únicas pessoas que restam após o Dia do
Trabalhador são os agricultores, que saem apenas para cortar gelo ou para
pescar no lago congelado. O sítio é cinzento e triste, e Maggie apercebe-se de
que nunca ali esteve no período de entressafra. Segue os outros e entra no
celeiro. Para além da janela, o céu apresenta-se em camadas de rosa e laranja,
cores tão vivas como o interior de uma abóbora.
– O que tens nos bolsos? – pergunta Gabriel a JF.
JF tira duas garrafas de cerveja Labatt Fifty e um longo pedaço de alcaçuz
preto. Atira uma cerveja a Gabriel.
– Tenho frio – diz Audrey.
Gabriel tira o casaco de couro e coloca-o nos ombros dela.
Audrey pega na mão de Gabriel e puxa-o para o sobrado. É um lugar
famoso para a marmelada e Maggie percebe com tristeza que Audrey e
Gabriel já estiveram ali antes. Gabriel deixa-se levar por Audrey. Ele olha
para trás para Maggie, mas ela vira costas rapidamente enquanto ele segue
Audrey até à escada como um cachorrinho.
Assim que ficam sozinhos, JF tenta beijar Maggie. Há uma expressão no
olhar dele que a faz lembrar um lobo, mas sustém a respiração e tenta
convencer-se de que é a única oportunidade que tem para fazer ciúmes a
Gabriel. Os dentes de ambos chocam; ela pensa no dente que lhe falta e tem
de reprimir o nojo que a invade. Ele consegue deitá-la no chão e ela fica
estendida de costas. O meu primeiro beijo.
JF desabotoa-lhe o casaco. Maggie não o impede porque não quer que ele
diga a Gabriel que ela é puritana. Além disso, quanto mais longe forem, pior
Gabriel irá sentir-se, imagina. Ele apalpa-lhe um seio com a palma da mão.
Ela fecha os olhos e resigna-se àquelas mãos sujas no seu peito.
– Ai! – reclama ela.
Ele massaja-lhe os seios, os dedos gelados na sua carne. Deixa-o apalpá-la
algum tempo até finalmente o empurrar.
– Então? – protesta, indignado.
– Para com isso, por favor.
– Maudite Anglaise – murmura ele. – São todas umas pudicas.
O hálito dele cheira a alcaçuz preto e a tabaco. Ficam ali sentados,
carrancudos e em silêncio, até Gabriel e Audrey finalmente descerem do
sobrado. Já está a escurecer, mas Maggie pode ver que as faces de Audrey
estão coradas. Está desgrenhada e com ar envergonhado. A expressão de
Gabriel é impassível. JF levanta-se e sai do celeiro a passos largos, numa
demonstração de desagrado. Nem sequer ajuda Maggie a levantar-se. Gabriel
não demonstra nem ponta de ciúme, o que significa que beijou aquele idiota
inutilmente. Segue Gabriel e Audrey, totalmente infeliz.
De repente, Gabriel vira-se para Maggie e diz:
– Eu levo-te a casa.
Maggie paralisa. Audrey parece perplexa.
– Ela é minha vizinha – explica Gabriel.
– E depois? – resmunga Audrey, com as mãos nas ancas.
– É mais fácil assim – responde ele. – Sobe para a mota, Maggie.
Maggie sente-se nas nuvens.
– Maggie! – protesta Audrey, zangada.
Maggie hesita.
– Nós vamos para o mesmo sítio, Aud.
E então sobe para a traseira da mota de Gabriel e encosta o peito às costas
dele. Ele liga o motor e arrancam, deixando Audrey e JF sozinhos, parados
em frente ao celeiro.
Maggie não sente o frio. O cabelo loiro e limpo de Gabriel agita-se ao
vento, como é natural que o faça. Ela abraça a cintura dele com mais força
ainda, inalando-lhe a curva do pescoço e sentindo-se aquecer por dentro.
Quando chegam à Bruce Street, ela entristece. O seu desejo é nunca mais
parar. Iria com ele até ao fim do mundo. Mas Gabriel para a mota e Maggie
sai, com relutância.
– Obrigada pela boleia – diz ela, tentando manter leveza na voz.
– O JF tentou alguma coisa contigo? – pergunta-lhe ele.
– Isso não é da tua conta.
Gabriel vira-se para a encarar.
– Eu gosto de ti, Maggie – confessa.
Ela não sabe como responder.
– Só queria que soubesses.
– E a Audrey?
– És tu quem eu sempre quis.
A boca dela fica seca. Terá compreendido bem?
– O teu pai disse-me para me afastar de ti – explica ele, puxando-a para si.
– Disse? Quando?
– Naquele dia em que eu fui ao sótão da loja falar contigo. Pouco antes de
partir para Montreal.
– Não sabia.
– E então, achas que devo? – pergunta ele.
– O quê?
– Afastar-me de ti.
– Não... isto é, não precisas.
Ele fixa o olhar incisivo no dela. O rosto dele está tão perto... Maggie
inclina-se ligeiramente, os narizes de ambos quase se tocando. As pálpebras
descem e Maggie sente os lábios dele nos seus, levemente, a princípio, e
depois com mais urgência. A mão de Gabriel desliza para a nuca dela, a outra
tocando-lhe o queixo. O beijo dele é maravilhoso. Este será o seu primeiro
beijo, decide Maggie, apagando qualquer memória da experiência bárbara
com JF.
– Maaaaaggie!
É a mãe. Afasta-se rapidamente de Gabriel e olha em direção a casa. A
janela da cozinha está aberta e pode ouvir a mãe a gritar o seu nome
projetando-o para o entardecer.
– Tenho de ir – diz Maggie.
– Encontra-te comigo junto ao edifício da Small Bros, amanhã depois das
aulas – diz-lhe ele.
Maggie concorda com um aceno e ele beija-a novamente. A língua dele
tem um gosto doce. Ela corre para casa, sem saber o que esperar, mas sem se
importar muito com isso.
CAPÍTULO 7

M aggie adora ver Gabriel a trabalhar no campo, a tratar do milho, a abrir


o folhelho ou a arrancar as barbas de milho. Quando o sol se torna
muito quente, ele tira a t-shirt branca pela cabeça e enfia-a no bolso de trás
das calças de ganga. Ela segue atrás dele, sorridente, sabendo que ele agora
lhe pertence, do mesmo modo que esta terra que tanto ama.
– Está com bom aspeto – diz Gabriel, aliviado. – Aquela vaga de frio não
matou muitas plantas.
Ele não precisa de lhe explicar as preocupações. Maggie sabe que o milho é
capaz de tolerar algumas geadas quando as plantas ainda são muito jovens,
mas que são mais vulneráveis quando a temperatura do solo cai abaixo de
zero. Nesse ano, o tempo frio arrastou-se até março, fazendo com que os
agricultores se afligissem muito com as plantações. Gabriel baixa-se num só
joelho e inspeciona as barbas de milho como cabelos pendurados das espigas.
Uma leve brisa varre o campo, polvilhando-o com pólen. O milho cresce.
– Vem – diz ele.
– Aonde?
Ele puxa-a pela mão e mergulham nas profundezas da plantação, até serem
completamente engolidos pelos pés de milho.
– E se nos perdêssemos aqui? – sugere ela.
Com a escola a terminar e o tempo finalmente quente, eles puderam passar
mais tempo juntos. O pai está sempre na loja e a mãe prefere que os filhos
estejam fora de casa o máximo possível. Depois de terminarem as tarefas
caseiras, a maman não quer saber aonde vão ou o que fazem, desde que
cheguem a correr no momento em que a voz dela ribomba pelo campo.
Maggie e Gabriel estão deitados de costas, lado a lado. Gabriel estende o
braço e ela pousa a cabeça no músculo do braço. A folha de um pé de milho
faz-lhe cócegas na coxa e ela vira o corpo para mais perto de Gabriel. Ele
enrola um caracol de cabelo dela nos dedos e quando acidentalmente lhe toca
a face com a ponta do dedo, ela estremece.
– Adoro estar aqui no campo – diz ela.
– Eu também.
Maggie soergue-se num cotovelo e fita-lhe o rosto. Os olhos dele são
prateados ao sol.
– Porque tens de ir para Montreal durante todo o inverno? – pergunta-lhe
ela.
Ele fita-a com estranheza.
– Por dinheiro – responde. – Que outra razão poderia haver?
Gabriel trabalha na fábrica de peças de aviões da Canadair, no período de
entressafra, desde os quinze anos. A ideia de ele passar o inverno inteiro em
Montreal incomoda Maggie. É-lhe difícil aproveitar o tempo que passam
juntos, sentir-se completamente presente, quando a partida se aproxima,
ameaçadora, ensombrando aqueles dias preciosos.
– Não podias arranjar um trabalho mais perto?
– Eu não me importo de trabalhar na Canadair – responde ele. – Para
trabalho de fábrica, não é dos piores.
– O que vai acontecer connosco no outono? – pergunta-lhe ela.
– Ainda estamos em junho, Maggie – diz ele. – Muita coisa pode acontecer
até lá. – Afasta uma madeixa de cabelo dos olhos dela e confessa: – És tão
bonita.
– Sou?
Ele ri.
– Nem fazes ideia do quanto. É por isso que te amo.
Ela fica estática, deixando-se inundar pelas suas palavras.
– Eu também te amo – sussurra ela.
Sem outra palavra, Gabriel rola o corpo para cima do dela e beijam-se
durante algum tempo. Maggie sente-o a endurecer contra a sua coxa. A
camisa dela está a abrir-se, o sutiã a ser desapertado. E é ela quem o faz.
É a primeira vez que vão tão longe. Ela sente o coração acelerado. Ele
puxa-lhe a saia para cima, mas hesita e é Maggie quem conduz a mão dele até
à sua coxa.
– Tens a certeza? – sussurra ele.
– Sim.
Naquele momento, não teme nada, não há preocupações. A dor é
excruciante, mas por baixo da dor, ou entrelaçada com ela, inseparáveis uma
da outra, a sensação de prazer é igualmente excruciante fazendo-a gritar a
cada investida. Quando ele termina, deixa-se cair sobre ela. As calças de
ganga e as cuecas estão descidas até aos tornozelos. As nádegas estão
húmidas de transpiração, assim como o cabelo. Ela abraça-lhe o torso. De
repente, Gabriel parece extremamente vulnerável.
Ficam assim muito tempo, ele ainda dentro dela. Sem razão aparente,
Maggie começa a chorar. Ele levanta a cabeça, alarmado.
– Porque estás a chorar? – pergunta. – Desculpa. Eu não devia ter feito isto.
– Não – contesta ela. – Eu queria.
– Então porque estás a chorar? – insiste ele.
– De felicidade.
– Acho mesmo que estou apaixonado por ti – diz ele.
Ela sabe que os rapazes mentem, especialmente por sexo. Mas acredita
nele. Os olhos de Gabriel não mentem. O coração acelerado dele não mente.
Ele baixa a cabeça, repousando-a no ombro dela. Maggie fecha os olhos e a
tarde esvai-se lentamente.
E então, como de costume, a voz da mãe estilhaça a quietude, ecoando pelo
campo.
– Maaaaaagggggggie!
Gabriel levanta-se de um salto e veste as calças.
– É melhor ires – diz ele, parecendo receoso. – Ela ainda nos mata com
aquela maldita colher de pau.
Maggie ri-se. Aperta o fecho do sutiã, abotoa a camisa, puxa as cuecas e
ajeita a saia, cobrindo as coxas manchadas de sangue.
Ele pega-lhe na mão e ajuda-a a levantar-se. Juntos, caminham com ar
solene voltando ao mundo real. O peso do que fizeram invade-a. Maggie fez
exatamente aquilo de que foi advertida desde o início da puberdade – não
apenas sexo, mas sexo com um rapaz francês. Entregou-se a ele e não há
volta a dar.
Vê a mãe a brandir a colher de pau de alimentar os porcos, fazendo gestos
selvagens à porta de casa, com ar ridículo.
– O que estás a fazer com ele? – grita a maman, embora Maggie ainda
esteja a meio caminho da colina. – Vas t’en! – diz a Gabriel, mandando-o
embora.
– Vai ter comigo ao campo amanhã às três – sussurra ele e o coração de
Maggie palpita.
A mota dele está estacionada numa clareira junto à estrada. Gabriel sobe
para a mota, acelera e vai-se embora. Nem têm tempo de dar um beijo de
despedida.
– Eu estava a ler no campo – diz Maggie, aproximando-se da mãe. – O
Gabriel estava lá por acaso. Ele é agricultor, lembras-te?
Consegue esgueirar-se para a cozinha. A sopa borbulha no fogão. O rádio
está ligado baixinho e reconhece a voz de Tino Rossi, um cantor que a mãe
adora. A manteiga, a farinha e o açúcar todos alinhados na bancada, à espera
de serem transformados em bolos, como a maman faz todos os sábados. Uma
cafeteira de café está pousada na mesa de pinho.
– A Violet diz que te viu na mota dele no outro dia – diz a maman.
– E depois?
Pum! Uma paulada com a colher de pau no traseiro de Maggie.
– Para com isso! – grita Maggie, sabendo que é demasiado velha para
aquelas sovas.
– Estás proibida de andar de mota, lembras-te? – diz ela, de braço no ar,
preparada para outra pancada.
– Tenho quase dezasseis anos – recorda-a Maggie. – Ele é meu namorado,
quer gostes quer não.
A mãe dá um passo atrás com uma expressão estranha no rosto.
– És igualzinha a ele – diz ela, abanando a cabeça.
– A quem?
– Ao teu pai. São ambos snobes ingleses que gostam de sexo com franco-
canadianos.
Maggie fica magoada com o comentário, o que ainda lhe dá mais força para
revidar.
– Eu amo-o – afirma, desafiadora.
– Amas? – repete a maman. – Quem pensas tu que és? Uma dessas
palermas das tuas revistas românticas?
O rosto de Maggie está vermelho como um tomate. Olha em volta, à
procura de algo para atirar. A maman observa-a, sabendo exatamente o que
poderia acontecer a seguir. Talvez sejam parecidas nesse aspeto, de pavio
curto e com mau génio. Os olhos de Maggie brilham quando se fixam na
cafeteira.
A mãe sorri. Atreve-te, desafiam os olhos escuros da mãe. Mas Maggie tem
contenção suficiente para não fazer o que a mãe faria. Em vez disso, corre
para o quarto, no piso de cima, e bate com a porta, já preocupada com a
eventual retaliação da mãe.
CAPÍTULO 8

E les percorrem quilómetros e quilómetros de tabuas amarelas que


crescem, selvagens, nas margens da estrada, enquanto o rio Yamaska
corre ao lado deles em perfeita sincronia com a velocidade da mota de
Gabriel. É o início do verão e, nesse dia, Maggie parece apreciar com um
novo olhar aquela paisagem que às vezes toma por certa: os celeiros com os
seus telhados de zinco enferrujados, os silos e as vacas, os intermináveis
milharais refulgindo de ouro ao sol. Tudo com Gabriel parece mais brilhante,
mais merecedor da sua atenção. Cada aroma é mais perfumado, cada cor mais
intensa. Adora aquele rapaz, a cujo sólido torso se agarra em segurança;
adora aquela estrada sem fim e o vento que lhe chicoteia o cabelo contra o
rosto. À sua frente estendem-se quilómetros e quilómetros de probabilidades.
Gabriel é muito mais do que a caricatura tacanha do pai acerca dos franco-
canadianos. Ele nunca será capaz de compreender a profundidade e a
complexidade do coração de Gabriel, a sua lealdade. Gabriel ama Maggie, as
irmãs e a pequena sobrinha com todas as forças. Faria qualquer coisa por
elas. Uns dias antes, bateu num tipo que insultou Angèle, dizendo que ela
parecia um macaco. Os seus olhos enchem-se de lágrimas sempre que fala do
modo como Clémentine o criou, da pobreza e dos maus-tratos que os
quebequenses sofrem na sua própria província.
Não tem sido fácil para eles serem um casal. Os amigos de Gabriel não
gostam de Maggie. Com as suas saias escocesas e mocassins e um pai
protestante anglófono, ela é o símbolo de todas as injustiças e humilhações
que já sofreram. No mundo deles, há dois lados distintos e ninguém pode
ficar no meio ou atravessar para o outro lado. Franceses e ingleses. Católicos
e protestantes. Maggie, de sangue miscigenado e religiões incompatíveis,
nunca poderá ser um deles.
Gabriel aponta para a placa de Sainte-Angèle-de-Monnoir e vira nessa
direção. Chegados à margem do rio, desliga a mota, vira-se para Maggie e
diz:
– A minha mãe nasceu aqui.
– Deves sentir falta dos teus pais.
– Sim, acho que sim – responde, ficando tenso.
Raramente fala dos pais. De vez em quando, menciona que o pai era muito
novo quando morreu, geralmente referindo-se à sua própria mortalidade, mas
nunca mais do que isso. Tudo o que Maggie sabe sobre o pai de Gabriel é
proveniente de mexericos dos habitantes da cidade.
Gabriel sai da mota e ajuda Maggie a descer. Ela entrega-lhe a mochila, de
onde ele tira uma manta e uma garrafa de vinho dentro de um saco de papel
pardo. Sentam-se de pernas cruzadas na manta. Ele serve vinho para os dois
em copos de papel.
– O que queres fazer quando fores grande? – pergunta-lhe ela, dando-se
conta de que nunca falaram sobre isso. – O que queres ser?
Gabriel olha-a como se não percebesse a pergunta.
– Ser? Não sei. Tomaria conta da nossa quinta, se a Clémentine não fosse
tão chata. É provável que acabe como encarregado na Canadair.
Maggie sorri, escondendo a deceção.
– Sei que não quero morrer sem nada – acrescenta ele. – O meu pai morreu
sem nada. E deixou-nos sem nada.
– Podias ser tudo o que quisesses – encoraja-o. – És suficientemente
inteligente.
Gabriel encolhe os ombros.
– Eu adoro trabalhar no campo – admite ele. – Mas a Clémentine é quem
manda e é muito autoritária. Trata-me como uma criança.
– Talvez pudesses ter a tua própria quinta – sugere Maggie.
Ele não responde.
– Seja o que for que decidas, sei que terás sucesso – conclui, colocando os
braços em volta do pescoço dele.
Fazem amor. Depois, descansam indolentemente ao sol durante muito
tempo, ignorando as formigas que lhes rastejam pelas pernas.
– Eu tirei antes do fim – menciona ele –, por isso, não precisas de te
preocupar.
Maggie olha para ele e sorri, aliviada.
– Estou tão feliz aqui contigo – diz ela.
– Hum... eu também.
Quando o Sol começa finalmente a pôr-se e o rosa invade o céu, voltam
para Dunham, silenciosos e contentes. Gabriel para na estação de serviço à
entrada da cidade.
– A mota está a fazer um barulho estranho – explica ele. – Vou deixá-la
aqui no mecânico para ver o que se passa.
Seguem caminho a pé, de mãos dadas. Quando se aproximam da esquina
entre a Principale Street e a Bruce Street, Maggie repara num grupo da escola
secundária Cowansville High em frente ao edifício da Small Bros. Agora que
as aulas acabaram, eles reúnem-se nas ruas, à espera que algo aconteça.
Maggie vê Audrey no meio do grupo e a sua animação desaparece. A
amizade perdeu-se desde que Maggie começou a namorar com Gabriel.
Audrey tem um novo grupo de amigos, assim como um novo namorado da
Cowansville High, embora tenha mantido a sua antiga atitude de privilegiada.
No momento em que Maggie e Gabriel passam, o namorado de Audrey, um
ruivo entroncado, diz alto o suficiente para Gabriel ouvir:
– Ora, se não é a Maggie Hughes a passear com o seu namorado Pepsi.
– Barney, deixa-te disso – repreende-o Audrey, fingindo-se zangada. –
Ignora-os, Mags.
Maggie olha nervosamente para Gabriel.
– O que é que me chamaste? – diz Gabriel, avançando um passo em direção
a Barney.
– Peço desculpa, eu não falo Pepsi – replica Barney, em desafio.
Os amigos dele juntam-se, incitando-o. Peasoup, Pepsi.
Os olhos de Gabriel assumem aquele brilho férreo perigoso e as mãos
fecham-se em punhos. Maggie recua. Antes de Barney conseguir ter um
pensamento de autodefesa, o punho direito de Gabriel acerta-lhe no maxilar.
Barney cambaleia para trás, chocado. Os rapazes da Cowansville High
cercam Gabriel e começam a socá-lo. Audrey e Maggie gritam, impotentes.
Gabriel, perigosamente em desvantagem, está a ser espancado. Agacha-se
para se desviar da saraivada de golpes e então alguém grita:
– O peasoup tem uma navalha!
Os rapazes de repente recuam e dispersam, deixando Gabriel sozinho na
rua, com a navalha do falecido pai na mão.
– O que se passa aqui?
Maggie vira-se e vê o pai a sair do carro e a caminhar, furioso, em direção
a eles.
– O que é que está a acontecer?
– Este meliante puxou de uma navalha! – exclama Barney.
O pai de Maggie olha para Barney e depois para Maggie, perplexo.
– Eles juntaram-se todos para lhe bater – explica ela.
– Ele deu-me um murro no queixo – queixa-se Barney, esfregando o
maxilar. – Os meus amigos só me ajudaram. Então, ele sacou da navalha.
O pai de Maggie volta-se para Gabriel, que não pronunciou uma única
palavra em própria defesa, nem parece com vontade de o fazer. Também não
tenta esconder a navalha.
– Entra no carro, Maggie – ordena-lhe o pai.
Ela olha para Gabriel, mas ele mantém o olhar desviado do seu.
– Imediatamente – comanda o pai. Então, voltando-se para Barney, diz
calmamente: – Rapaz, eu estou do teu lado, mas já devias saber que não se
provoca alguém como ele.
Arrasta Maggie para o seu Packard e empurra-a de forma a que entre no
banco da frente. Ela sente-se tão envergonhada – do fanatismo do pai, de
Gabriel por ter puxado da navalha, de si mesma por não ter feito nada – que
nem consegue forçar-se a olhar para Gabriel.
Porém, quando o pai arranca com o carro, ela observa-o, parado na rua, de
ar carrancudo, com a navalha ainda na mão. O nariz sangra, o lábio está
inchado, a t-shirt branca rasgada em pedaços. Ele mantém-se ali, até ela
deixar de o ver no espelho retrovisor.

Mais tarde naquela noite, depois de todos se terem ido deitar, Maggie está
do lado de fora do santuário do pai. Observa o fumo do charuto que escapa
por baixo da porta e bate timidamente.
– Entra – diz ele.
Ela sempre adorou aquele espaço. É um mundo masculino, o retrato
perfeito do pai. Há peças de rádios na mesa e rádios feitos à mão – alguns
acabados, outros a meio da dissecção – espalhados pelo chão. Há um monte
de caixas de charutos vazias da House of Lords na estante que ele construiu,
ao lado de todos os seus livros: Manual para Jardineiros, Como Gerir um
Centro de Jardinagem, Árvores Autóctones do Canadá6, Como Deixar de se
Preocupar e Começar a Viver, de Dale Carnegie.
– O que te parece uma seleção de petúnias de várias cores para a capa do
catálogo da próxima estação? – pergunta-lhe o pai.
– Gosto.
– Lembras-te da capa do ano passado? – diz ele, entregando-lhe o catálogo
de 1948.
Ela abre-o e folheia as páginas.

COSMOS MANDARIN Novidade! Cosmos dupla alta variada. Estas


grandes flores de um laranja-vivo têm até 40 a 50 pétalas, tornando-as
verdadeiras flores duplas, mas ainda mais impressionante é a sua
folhagem.

Sessenta e quatro páginas com espaçamento simples. Ela segura o catálogo


com o tipo de reverência que se dedicaria a uma preciosa obra de arte,
admirando os diagramas desenhados pela mão de Peter de etiquetas de vasos
de madeira, estacas de cana de bambu, fios para amarrar plantas e bocais de
mangueiras.
– No próximo ano, estou a pensar usar fotografias verdadeiras – diz o pai. –
Moderno, não te parece?
– Muito – concorda Maggie, tirando da estante um dos velhos livros gastos
de tanto uso. – «Semeia com generosidade» – lê em voz alta. – «Uma para a
gralha, uma para o corvo, uma para morrer e outra para crescer». Lembro-me
de que costumavas ler-me isto.
Ela corre o dedo pela lombada do Guia de Cultivo de Flores Silvestres7.
– Consegues arranjar melhor do que um franco-canadiano – diz ele.
– Tu não arranjaste.
– É diferente – contrapõe ele, voltando a guardar o catálogo na estante. –
Não era a tua mãe que tinha de ganhar a vida. – O fumo da cigarrilha enche o
aposento. – Além disso, já reconheci o meu erro. Podes aprender comigo.
Maggie recorda-se das palavras que ele lhe dissera: Não consegues mudá-
los.
– Porque te casaste com ela? – pergunta-lhe.
O pai olha-a com ar penoso e suspira, respondendo-lhe com uma única
palavra de derrota em jeito de explicação.
– Luxúria – responde ele. – Ela sempre teve um estranho poder sobre mim.
Ainda tem.
Assim que ouve as palavras do pai, Maggie percebe o que Gabriel a faz
sentir. É a razão pela qual os pais são capazes de se odiar e de ainda quererem
dançar juntos e fazer sexo. Agora tem um nome. Luxúria.
– Estás proibida de voltar a vê-lo, Maggie. Estás a ouvir-me?
– Foram os rapazes anglófonos que começaram aquilo hoje.
– Ele é um delinquente. Não é um dos nossos e tu mereces melhor. Não foi
assim que te criei.
A mente dela parece sufocar com a hipocrisia do pai. Quer gritar: Então e a
Clémentine? Mas contém-se, demasiado amedrontada para quebrar a frágil
barreira de silêncio e negação que ambos ergueram tacitamente naquele dia.
É a única maneira de sustentar a relação.
– Eu não sou gado – diz ela. – Porque não me deixas ser feliz?
– Eu sei melhor do que ninguém que nunca serás feliz com ele.
– Ele não é a maman.
– Achas que não?
Maggie não responde.
– Não contraries a minha decisão, Margueret.
– Não podes dizer-me quem devo amar – desafia ela, pela primeira vez na
sua vida. – Tenho direito a amar quem eu quiser.
O pai sorri, estreitando os lábios até desaparecerem; ela tem o pensamento
fugaz de que as duas coisas que mais deseja no mundo – o amor de Gabriel e
a aprovação do pai – nunca poderão coexistir e que uma delas terá,
eventualmente, de ser sacrificada em função da outra.
6 Estes três títulos têm tradução livre. (N. da T.)
7 Tradução livre. (N. da T.)
CAPÍTULO 9

N a manhã seguinte, quando Maggie desce, repara numa mala junto à


porta das traseiras. A mãe está a fazer pão, trabalhando a massa com os
punhos.
– Quem se vai embora? – pergunta Maggie.
– Tu – responde a maman, socando a massa com força.
Maggie abre a mala e sente um baque no coração ao ver as suas roupas
cuidadosamente passadas a ferro e dobradas. Devia estar a dormir quando a
mãe lhe fez a mala.
– Para onde? – pergunta ela, entrando em pânico. – Para onde vou?
– Tens um emprego de verão na fazenda do teu tio Yvon – esclarece ela.
A tia Deda e o tio Yvon moram numa fazenda leiteira em Frelighsburg, a
menos de dez quilómetros de Dunham. Não os visitam com muita frequência
por causa do peso de Deda. É-lhe difícil movimentar-se. Alfreda – a quem
tratam por Deda – deve pesar mais de cento e trinta quilos. Todas as
lembranças que Maggie tem dela envolvem as suas formas elefantinas
atracadas a uma cadeira de madeira absurdamente pequena. Até os
movimentos mais insignificantes a deixam ofegante e exausta. A maman
raramente os visita porque Deda é demasiado gorda para fazer limpezas e a
casa é imunda. Apesar disso, Maggie gosta da tia. É carinhosa e afetuosa,
com uma risada vigorosa que emana das profundezas da sua enorme barriga.
O pai entra na cozinha e Maggie vira-se para ele, perguntando:
– Foi ideia tua?
– Acalma-te, Maggie – adverte o pai.
– Eu não quero trabalhar na fazenda do Yvon – protesta ela. – Quero
continuar a trabalhar contigo na loja de sementes...
– O Yvon vai pagar-te um salário muito melhor.
– Não quero saber do dinheiro! Quero ficar aqui!
– É só um verão.
A mente dela é um turbilhão de pensamentos. E o Gabriel? E se ele for para
Montreal antes de ela voltar?
– Por favor, não me obrigues a ir – pede ela.
Os pais não compreendem. Ela não pode ficar longe de Gabriel ou da loja
de sementes.
– O Yvon conseguiu um contrato para vender leite para a Guaranteed8 –
explica o pai. – É um grande negócio para eles. Como vês, não se trata de ti,
Maggie. Ele precisa de alguém para ajudar na fazenda e, para ser sincero, dá-
nos jeito o dinheiro extra.
– Eu tinha onze anos quando comecei a sustentar a minha família –
intervém a maman, limpando as mãos ao avental coberto de farinha.
– Não te preocupes, podes ficar com parte do dinheiro – promete o pai,
ajeitando o chapéu panamá. – Agora vai despedir-te das tuas irmãs.
– Eu não vou – insiste ela. – Não podem obrigar-me.
Mas assim que as palavras lhe saem da boca, sabe que já perdeu a batalha.
Tem quinze anos. O que pode ela fazer? Fugir com Gabriel e casar-se?
Viverem na pobreza no casebre ou no apartamento do tio em Montreal?
Subestimou os pais.
– Vai lá.
Maggie não se mexe. Olha desesperadamente para um e depois para o
outro, numa súplica silenciosa para que mudem de ideias.
– Eu disse vai – repete o pai, levantando a voz.
– Odeio-vos aos dois! – grita Maggie, saindo disparada.
Sobe as escadas lentamente, com uma sensação esmagadora de choque e
traição. Como foi ele capaz de lhe fazer aquilo?
Abraça e beija as irmãs, soluçando e agarrando-se a elas.
– Vais voltar? – pergunta Geri, com os olhos muito arregalados.
– No outono – responde Maggie. – Se eles me deixarem.
Dá um beijo na face corada e gorducha de Nicole uma última vez, pega em
algumas coisas que a mãe não se deu ao trabalho de pôr na mala – papel de
carta, caixa de lápis, maquilhagem, algumas revistas românticas – e torna a
descer para a cozinha com um sentimento de derrota.
– Eu sei que estão a fazer isto para me afastarem do Gabriel – afirma ela.
O pai termina o café e não responde. A maman vira-se ligeiramente, a
expressão inescrutável. Aproxima-se de Maggie e dá-lhe um beijo rápido na
cabeça.
– Não é para sempre – diz ela.
O exílio de Maggie é provavelmente a primeira coisa com que os pais
concordam há anos.
O pai leva a mala para o carro. Gabriel não tem telefone, por isso, ela não
pode ligar-lhe e dizer adeus. Corre lá para fora e esquadrinha a propriedade
de Gabriel, na esperança de o ver.
– Posso, pelo menos, ir dizer-lhe adeus? – pede ao pai.
– Não há tempo, Maggie – responde ele. – Tenho de levar-te a Frelighsburg
e ainda voltar a tempo de abrir a loja.
– Por favor!
– É demasiado cedo para tanto melodrama – corta ele. – Deixa de imaginar
que és a Julieta e entra no carro.
Fazem a viagem de quinze minutos até Frelighsburg em silêncio. Maggie
mantém o olhar fixo e sombrio na janela do carro.
– Está um lindo dia – diz o pai, alegremente.
Ela olha-o de esguelha, a ferver de raiva. Ele começa a assobiar. Assobia o
resto do caminho até à fazenda, enquanto Maggie compõe mentalmente uma
carta apaixonada a Gabriel.
Frelighsburg é uma pequena cidade situada no sopé de uma colina íngreme
e ensanduichada entre a igreja católica Saint-François-d’Assise e a igreja
anglicana Holy Trinity. O rio Pike corre pelo meio, marcando claramente os
limites da cidade: francês de um lado, inglês do outro. No cemitério atrás da
igreja Saint-François-d’Assise, as lápides estão gravadas com nomes como
TOUCHETTE, PIETTE, GOYETTE. No cemitério anglicano, há nomes como
WHITCOMB, BYRON, SPENCER. Mesmo mortos, os franceses e os ingleses
continuam segregados.
Quando chegam à fazenda, Deda já espera por eles cá fora, sentada numa
cadeira de baloiço.
Traz um vestido solto e enodoado e chinelos. Levanta-se com esforço e
vem ter com eles a meio do caminho, já corada e sem fôlego. O pai de
Maggie nem entra na casa. Tira a mala do carro, pousa-a na beira da estrada,
dá-lhe um beijo rápido na face e volta a entrar no carro.
– Não posso atrasar-me para o trabalho – diz o pai, abrindo a janela do
carro. – Cuida-te, minha Beleza Negra.
E então vai-se embora, os pneus levantando uma nuvem de cascalho ao
partir. Maggie fica a vê-lo desaparecer, sentindo-se abandonada e desolada.
Odeia-o, mas ainda assim anseia que ele volte para trás.
– Vem, cocotte – diz a tia, aparecendo ao lado dela e envolvendo-lhe os
ombros com um braço gordo. – Vamos ter com o teu tio.
A única coisa que Maggie agradece é o facto de os tios serem pessoas
tranquilas e divertidas – especialmente o tio Yvon. Até a maman se derrete na
presença dele, rindo das suas piadas e bajulando-o por ele ter estado na
guerra. Ainda usa o uniforme de soldado com o barrete verde-tropa em todas
as festas de família, embora tenha abandonado a vida militar há quase cinco
anos. Canta canções de guerra e cheira sempre a lã húmida, whisky e
brilhantina.
– Estás cada vez mais bonita – diz o tio, puxando Maggie para um abraço.
– Quantos anos tens? Dezasseis?
– Quinze – responde ela, mal o reconhecendo sem o uniforme.
Ele abana a cabeça, incrédulo. Tem uma massa enorme de cabelos negros
ondulados que se dividem naturalmente ao meio e lhe caem sobre as
pálpebras em forma de coração. É muito bonito, apesar da grande barriga que
agora lhe cai por cima da fivela do cinto.
Maggie olha em volta, lembrando-se da razão pela qual a mãe não gosta de
os visitar. A casa é escura e sombria. O triste mobiliário vitoriano é todo em
tons de castanho e Maggie nota que está tudo sujo. Há bolas de cotão pelo
soalho de madeira, teias de aranha nos cantos, botas sujas e sapatos
amontoados junto à porta, e jornais da Union des Producteurs Agricoles
abandonados no chão do átrio.
Deda repara no escrutínio de Maggie e diz:
– Vai ser bom ter ajuda. É-me difícil gerir tudo isto.
Maggie mal pode esperar para dar uma boa limpeza à casa. Deda corta uma
fatia de pão fresco e serve um copo de leite não pasteurizado a Maggie, o que
a faz lembrar o bolçado de Nicole.
– Tu habituas-te – diz Deda alegremente.
As duas sobem para ver o quarto de Maggie, que é tão escuro como o resto
da casa.
Há um pequeno candeeiro na mesa de cabeceira, que contribui pouco para
alegrar o ambiente.
– Importas-te que descanse um bocadinho, tia? – diz ela. – Estou cansada.
– Claro, cocotte.
Quando fica sozinha, Maggie deita-se na cama de ferro e puxa a colcha de
retalhos até ao nariz. É áspera e pesa quase tanto como ela. Tal como todas as
colchas da família da mãe, é feita a partir dos restos de lã dos fatos
masculinos – padrões em espinha, pied-de-poule, às risquinhas e tweed.
Cheira a cedro. Maggie chora baixinho. Tudo ali é estranho. A escuridão é
mais escura, o ar mais pesado. Sente falta do lindo papel de parede, dos
lençóis lavados que cheiram a sabão e dos corpos quentes das irmãs na cama.
Não consegue parar de pensar em Gabriel. Algum tempo depois, tira papel
de carta e um lápis e redige a carta que escreveu na sua mente pelo caminho.

28 de junho de 1949
Querido Gabriel,
Desculpa não ter podido despedir-me, mas não houve tempo. Fui
mandada para Frelighsburg, para trabalhar na fazenda de gado do
meu tio, sob o pretexto de a minha família precisar do dinheiro. Mas
todos sabemos que fui exilada aqui para me manterem longe de ti. Vou
escrever-te sempre que puder. Espera por mim, meu amor! Eles não
vão conseguir manter-nos separados!
Para sempre tua,
Maggie

Os dias desenrolam-se tranquilos, sem nenhuma das erupções tensas a que


está acostumada em casa. O trabalho de Maggie é ajudar com o «le train»,
que é o que os agricultores chamam à rotina matinal. Limpa as cortes das
vacas, vai apanhar os ovos ao galinheiro, lava e arranca penas de galinhas
mortas. Também ajuda Deda a cozinhar e a limpar, o que não é assim tão
mau, porque o seu trabalho árduo é sempre recompensado com elogios e
abraços. Se lhe escapa uma mancha de gordura no fogão, Deda nunca
percebe. Ela já fica feliz por ter um copo e um garfo limpos às refeições.
Quando Maggie cai na cama à noite, não tem energia para sentir pena de si
própria ou ficar acordada a lamentar a sua separação de Gabriel.
Simplesmente, dorme.
– Arranca as penas – instrui Deda. Está a ensinar Maggie a depenar uma
galinha. – Assim. Não tenhas medo de a magoar. Ela já está morta.
Estão sentadas lado a lado no alpendre, de olhos baixos para as barrigas
tenras e rosadas de duas galinhas que têm no colo. O suor escorre pelo lado
do rosto de Deda enquanto ela trabalha.
– Assim mesmo, Maggie – encoraja ela. – Depois deita as penas neste
barril. Eu guardo-as para encher travesseiros.
Maggie atira um punhado de penas para o barril. Uma brisa atravessa o
alpendre e algumas delas voam e aterram no cabelo de Deda. A tia solta uma
risadinha e abana a cabeça para as sacudir. Apesar de tudo, ainda há
momentos de alegria.
– Deves ter um namorado em Dunham – comenta Deda, pegando noutra
galinha. – Uma rapariga tão bonita como tu. Como é que ele se chama?
Prometo que não conto nada.
– Gabriel – confessa Maggie, mortinha por falar dele com alguém.
Enviou-lhe a carta logo no primeiro dia na fazenda e agora espera que ele
responda.
– Gabriel foi o anjo que disse a Maria que ela teria um filho que seria o
Salvador do mundo – explica Deda. – Suponho que seja da carta dele que
estás à espera?
Maggie desvia o olhar.
– Eu invejo-te – diz Deda. – Teres toda essa vida à tua frente. Ainda
poderes escolher o homem certo, alguém que te faça feliz.
– Mal posso esperar por voltar para casa – diz Maggie. – Eles não podem
manter-nos separados para sempre. Algum dia, terão de aceitar a nossa união.
– E ele vai esperar por ti?
– Sim, eu acho que sim – diz Maggie, soando mais confiante do que se
sente. Pousa a galinha e vira-se para a tia. – Acha que os meus pais são
felizes juntos?
Deda dirige-lhe um olhar perplexo.
– Tu vives com eles – responde ela. – Deves saber melhor do que eu.
– Eu sei, mas eles discutem muito. E então, dançam juntos...
Deda solta uma gargalhada.
– Lá isso é verdade.
Maggie espera que a tia diga mais, mas Deda fica-se por aí.

Na manhã seguinte, há uma carta para Maggie na caixa de correio.


Sou péssimo a escrever. Vou aí ver-te. Sábado ao meio-dia em frente
à igreja.
GP

No sábado, Maggie lava o cabelo e põe o vestido de domingo que a mãe


lhe colocou na mala. Diz a Deda que vai à cidade comprar selos e beber um
refrigerante ao Freshy’s. Deda sorri.
Gabriel já espera em frente à igreja de Saint-François-d’Assise quando ela
chega. Ele sai da mota e ela corre até ele. Gabriel abraça-a e inala o cheiro do
seu cabelo. Ficam os dois ali abraçados muito tempo, antes mesmo de ela
levantar a cabeça. Mal consegue olhar para ele, como quando não se é capaz
de olhar diretamente para o sol.
– Tenho tantas saudades tuas – diz Maggie, explodindo em lágrimas.
– Só passou uma semana – responde ele, acariciando-lhe o cabelo. Leva-a
para o cemitério atrás da igreja. – Não há pés de milho, mas serve.
– Não tenho muito tempo – diz ela. – Uma hora, talvez.
Sentam-se na relva e pousa a cabeça no colo dele.
– É difícil estar aqui sozinha – confessa. – Quando voltar para Dunham, no
final do verão, será altura de partires para Montreal.
– Posso ir a casa aos fins de semana para te ver. Ou talvez possas ir
comigo.
– Ainda ando na escola – lembra ela. – Tenho de terminar.
– Porquê?
A pergunta assusta-a. A resposta devia ser óbvia. Sente uma pontada de
desilusão, mas rapidamente a afasta, pois quer que o encontro dos dois seja
perfeito. Ele deita-se ao lado dela; os dois beijam-se e acarinham-se entre as
lápides durante algum tempo.
– Como é aqui? – pergunta-lhe ele.
– Solitário – responde ela. – Mas os meus tios são simpáticos.
– Os teus pais devem querer mesmo manter-te longe de mim.
– Depois do que aconteceu com o Barney...
– Achas que a culpa foi minha?
– Não devias ter sacado da navalha.
– E tu não precisavas de ter entrado no carro do teu pai e de me deixares
sozinho na rua.
Maggie desvia o olhar.
– És muito parecida com ele – afirma Gabriel, com a intenção de ser um
insulto, tal como a mãe o fizera.
– Bem, pelo que ouvi dizer, tu também és muito parecido com o teu pai –
replica ela, no mesmo tom.
– Eu não sou o meu pai.
Ela encolhe os ombros, querendo magoá-lo.
– Se queres saber, ainda bem que sou como o meu pai – diz ela.
Gabriel fica em silêncio uns minutos e quando ela pensa que ele já
esqueceu o assunto e vão poder deitar-se na relva e regressar aos beijos e às
carícias, ele diz:
– Achas que és melhor do que eu.
– Não, não acho.
– Detesto a maneira como olhaste para mim naquele dia na cidade.
– Que maneira?
– A maneira como o teu pai olha para mim.
– Isso não é verdade – contesta ela. – Só estás à procura de um motivo para
discutires comigo!
– Estavas com vergonha de mim.
– Não devias ter sacado da navalha.
Gabriel deita-se, puxando Maggie com ele.
– O teu pai acha que pode impedir-nos de ficar juntos – murmura ele,
deslizando a mão pela perna, pela coxa e subindo até entre as pernas dela.
– É disso que se trata? – pergunta Maggie, sentindo a mão dele aproximar-
se das suas cuecas. – Derrotares o meu pai?
Gabriel não responde. Então, Maggie sente o dedo dele invadi-la e solta um
gritinho. Vira a cabeça para o lado, ficando de frente para uma das lápides.
Fecha os olhos.

Ao entardecer, os vizinhos e trabalhadores agrícolas começam a chegar


para a festa de Deda e Yvon, que, como eles lhe disseram, acontece todos os
sábados. Os tios adoram uma boa festa. Talvez a música alta e o alvoroço
constante de pessoas em casa preencham o silêncio de não terem filhos.
À medida que o céu escurece, o violino é tirado do armário, o gin e as
cartas são colocadas na mesa e o chão começa a vibrar aos passos da
quadrilha. Yvon passa a garrafa de whisky Crown Royal a Maggie. Ela pega
na garrafa e dá um gole. Sente um ardor no peito e fica aquecida por dentro.
Yvon pega nela para dançar, rodopiando-a pela sala de estar.
Deda está sentada na sua cadeira a bater palmas ao ritmo da música. Os
braços de Yvon envolvem a cintura de Maggie. Ele olha-a com carinho.
– Eu sempre quis ter uma filha – grita-lhe ao ouvido.
O abraço dele é apertado enquanto dança com ela ao som do violino. A sala
está quente e parece girar.
Ela começa a sentir náuseas por causa do whisky e do aperto firme de
Yvon. Ultimamente, tem reparado na maneira como ele a olha enquanto ela
faz as tarefas mais banais – pendurar os lençóis, espremer limões, correr atrás
das galinhas. Até então, interpretou a sua atenção como carinho paternal,
nada mais. Mas algo na forma como ele pressiona o corpo contra o seu
naquele momento a faz ter vontade de fugir.
Quando a música termina, ela escapule-se para o quarto. Deixa-se cair na
cama, agarrando-se ao colchão e esforçando-se para não vomitar. Puxa a
velha colcha para tapar o rosto, esperando que o peso e o toque fresco sirvam
para manter a bebida dentro dela. Reza pela manhã, para que a náusea
diminua, para voltar a sentir-se normal.
Algum tempo depois – minutos ou talvez horas –, ouve um rangido no
corredor do lado de fora do quarto. A porta abre-se. Tenta sentar-se, mas o
seu corpo não responde. Fica ali deitada, paralisada, imaginando quem será
que entrou no seu quarto.
– Já está na hora de começar le train9? – murmura ela.
Um riso de homem. Yvon.
– Não, Maggie – responde ele. – São duas horas da manhã.
Ela geme. Quando ele se deita ao seu lado, ela fita-o, confusa. Está tão
embriagada que mal consegue mexer-se. Ele começa a murmurar-lhe ao
ouvido: Tão linda. Não paro de pensar em ti. Não consigo controlar-me
mais. Quero-te. Ela está lúcida o suficiente para saber que aquilo que ele diz
é errado. O seu corpo fica tenso. Quer gritar por socorro, mas nada lhe sai da
boca. Tenta virar-se para fugir, mas a perna dele em cima do seu corpo é
demasiado pesada. Sente o estômago a revirar-se.
Terá feito alguma coisa para o encorajar? Ele é tio dela. Sempre o adorou.
Ter-lhe-á dado a impressão errada?
A respiração dele é uma mistura de whisky e cigarros. Lembra-se daquela
tarde com Jean-François no lago Selby. A repulsa, o cheiro a alcaçuz na
respiração dele. Contorce-se enquanto Yvon lhe sussurra ao ouvido palavras
ordinárias e impróprias que a fazem encolher-se. Ele está quase em cima dela,
a perna imobilizando-a. O braço dele a envolvê-la, uma mão segurando-lhe o
rosto.
– Para – implora ela. – Mon’onc, por favor!
Quando os dedos começam a desabotoar-lhe o vestido, a bílis sobe-lhe à
garganta. As mãos dele apalpam-na, explorando-lhe partes do corpo que ela
julgava que apenas Gabriel iria conhecer. Ele pressiona todo o seu peso sobre
ela para que não consiga sequer levantar uma perna e dar-lhe uma joelhada na
virilha. As cuecas são retiradas. Maggie tenta contorcer-se, mas é impossível.
Ouve-se a chorar e a suplicar-lhe que não faça aquilo, mas Yvon não ouve.
Ou não quer saber. Talvez as palavras não estejam a sair-lhe da boca. Ela já
não sabe.
O tio obriga-a a tocá-lo, mas ela combate-o. Usa todas as forças que lhe
restam para resistir. Frustrado, Yvon desaperta o cinto e empurra as calças
para baixo. Respira com dificuldade, impelindo-se para dentro dela. Maggie
lembra-se de ter feito amor com Gabriel algumas horas antes. Da sensação
agradável e doce. Pensar em Gabriel agora é algo insuportável.
Ela concentra-se nos ruídos geralmente reconfortantes ao seu redor – os
grilos, os pios das aves, a música que se propaga do andar de baixo. Numa
noite normal, tudo aquilo a embalaria com o seu ritmo relaxante, mas,
naquele momento, o ruído é ensurdecedor.
Finalmente, Yvon deixa-se cair para o lado, de costas, ofegando como os
cães da fazenda depois de ajudarem a recolher as vacas.
– Tu já não és virgem – observa ele, de olhos postos no teto. O tom é uma
mistura de surpresa e deceção. – Rapaz sortudo, o da mota – conclui ele,
acendendo um cigarro.
Maggie observa o crepitar da ponta alaranjada enquanto queima. Rebola o
corpo para longe dele. O quarto gira à sua volta e ela agarra-se com uma mão
à cabeceira da cama para o manter estável. Aperta as pernas contra a dor.
8 A Guaranteed Pure Milk Company, fundada em 1900, foi a primeira fábrica de laticínios do
Quebeque.
9 Em francês, no original: a lida. (N. do E.)
CAPÍTULO 10

O s pais de Maggie aparecem de visita pela primeira vez no final de agosto


– não para a ver, mas para comemorar o aniversário de Yvon. Ela tem
estado em Frelighsburg todo o verão e, embora fale com os pais ao telefone
todos os domingos à noite, não os vê desde a manhã em que foi mandada
embora. As conversas são sempre tensas. Suplica-lhes com toda a calma que
a deixem voltar para casa, mas a resposta é sempre a mesma: depois do Dia
do Trabalhador.
Ela sabe que os pais estão à espera que Gabriel volte para Montreal. A
raiva que sente deles diminuiu ao longo dos meses e deu lugar ao desespero.
Já não tem energia para sentir raiva. Quando ouve as suas vozes ao telefone –
primeiro a da mãe, depois a do pai – a perguntar-lhe como está, tem vontade
de lhes contar o que aconteceu. Quer que eles saibam o que Yvon lhe fez.
Culpa os pais e acha que deviam partilhar o fardo com ela, mas não diz nada.
E se não acreditarem nela? E se o pai não a vier buscar?
Yvon veio ao seu quarto mais uma vez desde aquela primeira noite e tentou
enfiar-se na cama. Estava bêbedo e a resmungar algo sobre não ser capaz de
se manter longe dela, mas Maggie deteve-o, dizendo num tom frio e cortante:
«Não te aproximes de mim ou eu conto ao meu pai.» Sóbria, era um
adversário muito mais corajoso.
Não conseguiu ver-lhe o rosto na escuridão do quarto, mas, pelo silêncio
dele, adivinhou-lhe a surpresa. Ele subestimara-a. Naquela noite, saiu do
quarto a avisá-la para não fazer nada estúpido e não voltou à cama dela desde
então.
Gabriel voltou apenas uma vez desde aquela noite horrível com Yvon. Ele
soube que algo de errado se passava no momento em que a viu no cemitério
de Frelighsburg. Maggie mal conseguia olhá-lo ou tocá-lo. Estava quieta,
distante. Não fizeram amor. Ela teve de mentir e dizer que não se sentia bem
a fazer amor no cemitério.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou ele finalmente.
– Não – mentiu ela. – Só uma dor de estômago.
A ideia de qualquer homem a tocá-la ou a beijá-la revirava-lhe as
entranhas.
– Sabes o que dizem – disse ele. – Longe da vista, longe do coração.
– Não é isso – protestou ela.
Todavia, não tinha palavras para expressar o que sentia – como se barras de
ferro lhe tivessem envolvido todo o corpo – ou o modo como as próprias
emoções pareciam ter-se desligado como se tivesse havido um corte de
energia interno.
Ela tinha planeado pedir-lhe que a levasse com ele para Montreal, mas
quando o viu e o olhou nos olhos, descobriu que não conseguia fazê-lo. Sabia
que ele quereria saber a razão para ela ter mudado de opinião subitamente e
fugir com ele, e a ideia de lhe contar era insuportável.
– Tens a certeza de que está tudo bem? – insistiu Gabriel. – É por causa do
que conversámos da última vez? Porque eu saquei da navalha?
Por mais que o tranquilizasse, percebeu que ele não acreditava nela.
Gabriel tinha sensibilidade suficiente para saber que algo estava diferente. A
despedida foi tensa. Ele parecia perturbado, mas era demasiado orgulhoso
para a pressionar. Maggie sabia que ele nunca iria querer dar uma imagem de
desespero ou de submissão, por isso, foi-se embora com estoicismo, sem
saber o que se passava entre eles. E ela deixou-o ir. A vez seguinte que
Gabriel se propôs visitá-la, ela inventou uma desculpa sobre ter muito que
fazer na fazenda. Ele não voltou a fazê-lo.

O automóvel Packard dos pais estaciona em frente à casa e Maggie fica a


vê-los aproximarem-se com um sentimento de desapego. Está no alpendre,
sentada na cadeira de baloiço em vime onde depena galinhas com Deda.
Quando as irmãs – Violet, Geri e Nicole – correm para ela, percebe o quanto
sente a falta delas, mas sabe que os pais não vieram salvá-la. Vão comer
carne de porco assada, ter conversas de chacha e beber whisky em honra de
Yvon, e depois partirão sem ela.
Cumprimenta Vi com um abraço e ficam a olhar uma para a outra. Nunca
estiveram tanto tempo separadas.
– Vi o Gabriel no outro dia – diz-lhe Vi.
Maggie quer saber mais, mas os pais juntam-se a elas.
– Como tens passado? – pergunta o pai a Maggie.
– Bem.
– Pareces cansada – observa a maman, escrutinando-lhe o rosto.
Nesse dia, está bem vestida e a usar batom. Tem o cabelo penteado em
ondas e parece bonita, mais jovem. O seu perfume perdura no alpendre
depois de a porta de rede se fechar atrás de si.
Maggie vira-se para Violet e pergunta:
– Onde? Onde viste o Gabriel?
– No milharal.
– Falaste com ele?
– Eu disse-lhe que vínhamos visitar-te hoje.
– O que é que ele disse?
– Só disse para te mandar cumprimentos.
– Só?
Violet acena com a cabeça.
Entram em casa. O jantar já está na mesa. Maggie passou o dia a sentir-se
mal e nesse momento o cheiro a carne de porco provoca-lhe náuseas. Leva a
mão à boca e reprime o vómito.
– O que se passa contigo? – pergunta a mãe, num tom mais acusador do
que preocupado.
– Não me sinto bem – responde Maggie, deixando-se cair numa das
cadeiras da cozinha. Estar ali sentada fá-la sentir-se ainda mais enjoada. –
Tira daí a carne de porco – pede ela.
Então, empurra a cadeira da mesa e corre para a casa de banho, mas é tarde
de mais. A meio do corredor, vomita para a parede.
A maman aparece a correr, com Deda atrás, no seu passo bamboleante.
Assim que vê o vómito, Deda começa a sentir náuseas também. A maman vai
direita a Maggie, agarra-a pelos ombros e fixa-a nos olhos, como se
procurasse alguma coisa. Maggie vomita novamente, desta vez nos sapatos
Oxford castanhos da mãe. A maman solta-a e volta para a cozinha,
regressando uns instantes depois com um monte de trapos molhados.
– Vai para a casa de banho – ordena ela. – Ajoelha-te à sanita e não saias
de lá.
Maggie obedece. Quando finalmente está vazia por dentro e a náusea
passou, deita-se no chão frio e fica a olhar para o teto.
– Já acabaste? – pergunta a maman do lado de fora da porta.
– Acho que sim.
A mãe entra e fecha a porta atrás de si.
– Devo estar com uma intoxicação alimentar – diz Maggie.
– Intoxicação alimentar – escarnece a maman. – Tens vomitado muito?
– Hoje foi a primeira vez. Foi o cheiro a carne de porco.
A maman esfrega a testa, parecendo agitada.
– Tiveste relações sexuais com o Gabriel?
A pergunta é como um murro no estômago. Como é que ela sabe?
– Sim ou não? – insiste a maman com severidade.
Maggie não responde.
– Meu Deus! – exclama a maman num suspiro. – Tiveste, não foi?
Maggie sente-se subitamente encurralada.
– Mon Dieu! – murmura a maman, fechando os olhos e passando a mão
pelo cabelo. Põe-se a andar pela casa de banho como um animal enjaulado. –
Quando é que tiveste o período?
Maggie dá-se conta de que não tem a menstruação desde que chegou a
Frelighsburg.
– Não tive desde que estou aqui – admite ela, começando a ser invadida
pelo pânico.
– Tiveste relações sexuais com o Gabriel?
– Sim! – exclama Maggie. – Mas eu amo-o. Nós vamos...
A maman dá-lhe uma bofetada.
– Estás grávida! – grita ela.
Maggie abana a cabeça. Não pode ser. O Gabriel saiu antes do fim.
– Soube-o assim que te vi hoje – diz-lhe a mãe. – Estás pálida e com
olheiras. Exatamente como eu, quando estava grávida de vós.
– É só uma intoxicação – contesta Maggie, mas sem vigor.
– Não tens o período, minha idiota. E o cheiro a carne... é exatamente o que
acontecia comigo. Lembras-te? Quando eu estava grávida da Geri e da
Nicole? Em todas as gravidezes, não consegui cozinhar carne nos primeiros
quatro meses.
A boca de Maggie está seca. Sente um grande nó na garganta. Em seguida,
vem a horrível constatação. E se for do Yvon?
– Pode não ser do Gabriel – consegue ela dizer.
– Houve outros? – grita a maman, os olhos escurecendo perigosamente. –
Tabarnac!
– Não houve outros rapazes – esclarece Maggie, com a voz trémula.
Não tem a certeza se deve denunciar o tio – o que a mãe dela fará com ele,
o que ele fará com Maggie –, mas tem de proteger Gabriel.
– Quem, então?
A voz da maman é como gelo. Maggie esconde o rosto nas mãos.
– Quem?
– Mon’onc Yvon!
A mãe não reage. Fica ali, de olhar fixo em Maggie. Maggie espera uma
reação, mas nada.
– Maman?
– Ele não faria uma coisa dessas – diz a mãe, por fim.
– Mas é a verdade – insiste Maggie. – Logo quando vim para cá.
– Se é verdade, deves ter feito alguma coisa.
– Feito alguma coisa?
– Namoriscaste com ele ou seduziste-o.
– Não fiz nada disso!
– Não podes dizer uma palavra sobre isso a ninguém – ordena a maman. –
Nem à Deda, nem ao teu pai, nem às tuas irmãs.
– Eu nunca o faria.
– A Deda ficaria arrasada – diz ela. – Se for verdade.
– É verdade.
A maman abre a porta da casa de banho para sair.
– O que vamos fazer? – pergunta-lhe Maggie.
– Vamos fazer o que todas as famílias fazem nesta situação – responde ela,
de costas para Maggie.
E então a porta fecha-se e ela desaparece.
Mais tarde, os adultos reúnem-se à volta da mesa da cozinha e conversam
em sussurros abafados. Todos os outros são obrigados a ficar do lado de fora
da casa até que a mãe emerge, com uma expressão impassível. Puxa Maggie
à parte e diz:
– Vais ficar em Frelighsburg com a Deda e o Yvon até o bebé nascer. E se
te atreveres a ver aquele rapaz novamente... uma vez que seja, se eu souber
que te encontraste com ele na cidade ou que ele veio aqui... serás expulsa
desta casa e vais viver para a rua.
– Vais obrigar-me a ficar aqui com o Yvon? – grita Maggie, desesperada.
– Ele cuidou bem de ti.
Maggie abana a cabeça, desnorteada.
– Não temos alternativa – diz ela. – Isto é o Quebeque, Maggie.
– O que disse o Yvon? – pergunta-lhe Maggie. – Disseste-lhe que podia ser
dele?
– Claro que não – sussurra ela, segurando Maggie pelo queixo. – O teu pai
e a Deda não fazem ideia e esse assunto nunca será falado, estamos
entendidas? O Yvon vai deixar-te ficar aqui até teres o bebé. Devemos ser
gratos.
Maggie recua, afastando-se da mãe.
– Recuso-me a ficar aqui com ele – afirma ela. – Vou regressar a Dunham e
ter o meu bebé com o Gabriel.
– E onde vais viver? – questiona a maman. – Amontoada naquele pequeno
casebre? Os cinco a dormirem todos num quarto? E como vai ele sustentar-te,
a ti e ao bebé? A vender milho? Vão viver longe um do outro durante todo o
inverno enquanto ele estiver a trabalhar na fábrica em Montreal? A vida é
difícil para um casal de adolescentes pobres. Especialmente porque não vais
poder terminar os estudos. Foi o que aconteceu comigo.
Maggie cala-se.
– Não sabes o que é a pobreza, como eu – adverte a maman. – Pensa bem
nisso, porque ficarás sozinha, se quiseres ficar com esse bebé.
– O que diz o papá? – pergunta Maggie, enxugando as lágrimas.
– Ele diz o que eu digo. Está arrasado. Não podemos permitir que uma
criança ilegítima destrua a nossa reputação. Faz a tua escolha, Maggie. Nós
vamos voltar para Dunham agora.
– O que vai acontecer ao bebé se eu ficar aqui?
– Vai para um orfanato – responde ela. – Para onde vão todos os bebés
ilegítimos. Ninguém, além das pessoas nesta casa, jamais saberá a verdade.
– Porque é que a Deda não pode ficar com ele? – pergunta Maggie. – Ela
sempre quis ter filhos.
– Nós não vamos ficar com essa criança.
Nós, como se o bebé de Maggie já lhes pertencesse.
Maggie fica no alpendre, a ponderar as alternativas. Ainda ama Gabriel.
Podia regressar sozinha a Dunham, contar-lhe que está grávida e esperar que
ele se case com ela. Teria de abandonar a escola e desistir do sonho de gerir a
loja do pai...
Esse pensamento paralisa-a. A ideia de abandonar o futuro com que sempre
sonhou é algo que não pode suportar. A sua vida até àquele ponto foi
organizada em torno daquele objetivo; foi o que sempre lhe deu alento
quando tudo o mais era sombrio. Só de pensar em desistir desse caminho, fá-
la sentir-se vazia e inútil.
Subitamente, o exílio ali na fazenda parece menos insuportável. Talvez a
escolha mais acertada seja esconder-se, proteger a reputação de todos e
depois voltar à vida como era antes. Não era um conto de fadas, tinha as suas
dificuldades, mas, ainda assim, era uma vida boa.
– Maggie?
Ela vira-se e vê o pai atrás de si. Nem o ouviu sair.
– Sinto muito, papá...
– Nós vamos resolver isto – assegura ele. – Vamos conseguir encarreirar-te
novamente, Maggie.
Ela ergue os olhos para ele, surpreendida pelo tom meigo.
– Como? – pergunta-lhe.
O pai puxa-a para si e abraça-a. Ela sente o cheiro a cigarrilha na camisa e
deixa-se chorar enquanto ele lhe faz festas no cabelo. Maggie não merece
tanta bondade. Dececionou-o de todas as maneiras possíveis e, no entanto, ele
ainda a consola.
– Para começar – diz o pai baixinho –, estás proibida de voltar a ver o
Gabriel Phénix. Vais ficar aqui até tudo terminar e não terás contacto com
ele. E se o fizeres, se decidires vê-lo novamente, deixarás de fazer parte das
nossas vidas. Estamos entendidos, Maggie?
Maggie afasta-se e olha para ele, com os lábios a tremer.
– Não voltaremos a ver-te, não voltaremos a falar. Deixarás de ser bem-
vinda em nossa casa – sublinha ele. – E tens muita sorte de eu não o matar
com a minha espingarda.
Mais tarde, enquanto a família se prepara para partir, Maggie apanha Vi lá
fora e diz-lhe:
– Tens de dizer ao Gabriel uma coisa por mim.
– O quê?
– Diz-lhe que acabou tudo entre nós. Não tornarei a responder-lhe a cartas,
nem voltarei para ele.
Depois do último encontro, duvida que ele fique surpreendido.
– Mas porquê? – pergunta Violet, de olhos muito arregalados. – Quando
cheguei, estavas desesperada para saber o que ele tinha falado de ti.
– Não importa – replica Maggie. – Diz-lhe só que não vou voltar.
– Porque não? – insiste Violet, parecendo apreciar o drama.
– Em breve, saberás a verdade – responde-lhe Maggie. – Só tens de dizer
ao Gabriel que acabámos, está bem?
Violet concorda obedientemente com um aceno de cabeça e corre para o
carro. Maggie fica a vê-los partir e depois regressa para dentro.
CAPÍTULO 11

J antar de domingo. Os pais vieram. O tio afia a faca de trinchar. Maggie


está grávida de oito meses. Está no exílio há mais do que isso. Calculou
que tem de ficar mais dois meses. Depois de ter o bebé, vai precisar de perder
peso antes de voltar para Dunham, regressar ao trabalho, retomar a vida
anterior.
Tenta não pensar muito sobre o caminho que não seguiu – o caminho de
Gabriel e da maternidade. Teve muito tempo para fazer as pazes com a sua
decisão. Não foi a escolha romântica; foi a mais pragmática. Vislumbrou o
futuro como mulher de um fazendeiro pobre, uma mãe de dezasseis anos,
presa naquele casebre, a ficar gorda e amarga, tal como a mãe. Vislumbrou
uma existência sem a sua adorada loja de sementes ou sem o pai e concluiu
que, para ela, não era existência.
A maman tem razão: a vida não é uma revista romântica.
– Tabarnac, esqueci-me do rábano – diz a maman, no momento em que um
jorro líquido quente escorre por entre as pernas de Maggie e lhe ensopa o
vestido de grávida.
Maggie levanta-se. Todos olham para ela.
– O que está a acontecer? – pergunta Maggie.
– Está tudo bem, cocotte. O bebé só quer sair mais cedo.
Deda e a maman ajudam-na a subir, apoiando-a de ambos os lados. No
quarto que ocupa desde o dia em que veio morar com os tios, a maman
apressa-se a atirar algumas roupas de Maggie para uma pequena mala.
– Vai buscar algumas toalhas – diz ela a Deda.
Deda sai do quarto. Maggie ouve a porta do armário da roupa branca a abrir
e a fechar, a água a correr na casa de banho, os passos pesados de Deda a
fazerem ranger o soalho do corredor. Maggie tenta concentrar-se nas
minudências banais do que acontece ao seu redor, caso contrário é capaz de
desmaiar. É quando a primeira dor a trespassa, tão aguda e abrupta que a faz
cambalear.
A maman olha para o relógio na cómoda.
– Diz-me quando a próxima começar.
– A próxima quê? – pergunta Maggie.
– Contração.
Maggie senta-se na cama e espera. Deda observa-a, preocupada, enquanto a
maman trata da mala. Deda tenta limpar o vestido de Maggie com a toalha.
Cerca de dez minutos depois, outra onda de dor atravessa-a. Maggie grita e
salta da cama.
– Nove minutos – diz a maman.
Maggie tem de andar. Não consegue ficar sentada. As dores estão a ficar
cada vez mais intensas e mais prolongadas. Sempre que mais uma onda
surge, ela grita:
– Isto dóoooooi!
Deda tenta pegar na mão dela, mas Maggie sacode-a e agarra-lhe os
antebraços carnudos. Quando a próxima contração chega, aperta-lhe o braço
e, desta vez, é Deda quem grita.
A viagem para o hospital é um borrão na sua mente. Maggie contorce-se no
banco de trás do Packard, entre a mãe e Deda. O pai segue a toda a
velocidade para o Hospital Brome-Missisquoi-Perkins, em Cowansville.
Maggie é levada numa cadeira de rodas para um quarto particular. Assim que
se deita na cama, sente uma pressão súbita e excruciante ao fundo das costas,
cuja memória nunca esquecerá. Consegue sentir o bebé no baixo-ventre.
O Dr. Cullen aparece. Espreita entre as pernas dela, analisando a situação
da mesma maneira que ela viu o pai estudar as sementes e os insetos à lupa.
– Ela já está totalmente dilatada. Já se vê a cabeça – anuncia ele,
agarrando-a pelos tornozelos e encostando os pés dela às próprias ancas
sólidas. – Faz força – indica ele. – Empurra os pés contra mim e faz força.
Maggie faz como ele diz. Empurra até a dor se tornar insuportável e, então,
solta um grito que faz toda a gente recuar.
– Faz força, Maggie.
– Não consigo! – grita ela, perdendo as forças. – Não consigo!
– Estás a ir muito bem – assegura o Dr. Cullen. – Já vejo a cabeça do bebé.
Só mais um bocadinho. Está quase.
Ela empurra, grunhe e crava os pés na imutável fortaleza do corpo de Dr.
Cullen. Aperta a mão da tia até esta ficar mole na dela. Pode senti-lo. Aquilo.
O bebé.
Está a chegar. Empurra, desaba, empurra, desaba.
– Só mais uma – encoraja o Dr. Cullen. – Não desistas agora, Maggie. Está
quase.
E quando ela pensa que não aguenta mais um segundo daquela tortura, o
bebé sai. Depois de tanto arfar e ofegar, simplesmente sai e ela sente uma
explosão de alívio por ter terminado. Não consegue ver o bebé, mas consegue
senti-lo... escorregadio e a contorcer-se, como um réptil a rastejar de um
pântano. Deixa-se afundar no colchão, sentindo-se subitamente leve como
uma pena. Ouve o bebé a chorar do outro lado do quarto; parecem-lhe dois
gatos selvagens a lutar do lado de fora da janela. Sente o corpo estranhamente
vazio.
O Dr. Cullen leva o bebé para ser lavado. Deda e a maman afastam-se da
cama de Maggie, que tenta erguer-se nos cotovelos para ver melhor o que se
passa. O Dr. Cullen segura o bebé nas palmas das mãos, uma minúscula
criatura azulada e coberta de sangue.
– O cordão umbilical rompeu-se – explica ele, levantando-o para lho
mostrar.
Parece boudin, a chouriça de sangue que a maman cozinha para o jantar às
quintas-feiras.
Há sangue por toda a parte. A mãe olha para o bebé.
– É uma menina – diz ela, a voz sem emoção.
O bebé ainda chora quando o Dr. Cullen o entrega – a entrega – à
enfermeira. Maggie interroga-se se estará tudo bem. A enfermeira lava-a
metodicamente, sem afeição ou carinho. Maggie só consegue vislumbrar os
punhos agitados da bebé. Deixa-se cair no travesseiro. Uma menina. Pensa
em Gabriel e as lágrimas escorrem-lhe pelas faces. Não tem ninguém para
culpar além de si mesma. Um nome vem-lhe à cabeça então, o nome que teria
dado à filha. Elodie. Uma espécie de lírio cujos botões se abrem para revelar
várias camadas de pétalas cor-de-rosa: uma flor que sempre adorou e cujo
nome pode agora dar à filha que nunca conhecerá.
– Ela tem icterícia – diz o Dr. Cullen à mãe de Maggie.
– O que é icterícia? – pergunta Maggie da cama.
O médico e a mãe trocam olhares cúmplices. O Dr. Cullen aproxima-se
dela com uma seringa na mão.
– O que é isso? – quer saber Maggie.
– É apenas o crepúsculo para te ajudar a dormir.
– O nome dela é Elodie – diz-lhe Maggie quando a seringa lhe penetra a
carne. – Diz ao papá? Não se esquece de lhe dizer?
Ninguém responde.
– Elodie – repete ela, começando a adormecer. – Diga ao papá.

Maggie acorda num silêncio absoluto. O hospital está estranhamente


quieto; o único som é o eco do choro da bebé dentro da própria cabeça.
– Onde está ela? – pergunta Maggie.
Deda levanta-se da cadeira e vai até ela no seu passo arrastado. Não há
mais ninguém por perto, mas, de repente, a mãe surge à porta.
– Uma das duas podia ter ficado com ela – soluça Maggie, olhando para a
mãe e depois para a tia. – Não é demasiado tarde!
– Isso destruiria o nome da tua família – explica Deda gentilmente. – A tua
mãe pode ter deixado de ser católica, mas ainda se importa com o que as
pessoas pensam dela. E o teu pai tem uma reputação a manter na cidade.
– Eu quero vê-la, então.
– Bebe isto – diz Deda, entregando a Maggie um copo de água. Tem
whisky, o que lhe dá vómitos. – Vai ajudar-te com a dor.
Maggie termina a água com whisky. Está exausta e dorida.
– Posso, pelo menos, vê-la antes de a levarem embora? – torna ela a pedir.
– É demasiado tarde – diz a maman, o tom suavizando-se. – Ela já se foi.
Não é tua, Maggie. Nunca foi.
E então, vira-se e sai do quarto sem mais uma palavra.
– Era bonita? – pergunta Maggie à tia.
– Era muito pequenina. Nasceu antes do tempo. Os bebés são todos feios
quando são assim tão prematuros.
– O que é icterícia?
– Não é nada. Não te preocupes.
– Para onde a levaram?
– Para o orfanato em Cowansville.
– Porque é que eu não podia pegar nela?
Deda senta-se pesadamente na beira da cama, que chia e cede sob o peso
dela.
– Isso torna tudo muito mais difícil – explica ela. – Isto é o que as pessoas
fazem nestas situações, Maggie.
– Eu queria dizer adeus.
Deda toca na testa de Maggie, a mão gorda roçando-lhe a raiz dos cabelos.
– O tio queria ver-te.
Maggie desvia o rosto para o lado, inchando de raiva.
– Não me sinto bem – murmura ela em resposta.
Deda beija suavemente a testa de Maggie, alisa-lhe o cabelo húmido e sai.
A porta fecha-se e Maggie fica sozinha. Sente-se completamente vazia, como
se as suas entranhas tivessem sido arrancadas e despejadas naquela bacia de
esmalte.
Os sentimentos assolam-na por ondas. Dor, alívio, vergonha, culpa. Ela
podia ter ficado com a bebé. Não é inocente naquela situação. Em troca, a sua
filha recém-nascida está prestes a ser atirada ao mundo, sozinha. Vai crescer
sem amarras, incompleta. Ambas ficarão incompletas.
Maggie começa a adormecer, embalada pela chuva que bate nas janelas.
Naquele lugar de semiconsciência, o nome vem-lhe à mente. Sussurra-o para
a noite. Elodie.
Hei de encontrar-te, pensa ela, sucumbindo lentamente ao sono. É uma
promessa que faz a si mesma e à filha recém-nascida. Hei de encontrar-te e
corrigir o erro.
PARTE II

1954-1961

Transplantar Fora de Época

Quando, por algum motivo, for necessário transplantar numa


época do ano demasiado fria, molhe as plantas com água quente
em vez de fria. Surpreendentemente, isso não danifica as raízes.

– Old Wives’ Lore for Gardeners


CAPÍTULO 12

Elodie

O s braços estendidos de Tata são o que ela vê primeiro ao abrir os olhos.


Instintivamente, ergue os braços e, num movimento rápido, a irmã Tata
tira-a do berço e pousa-a no chão.
– Frio! – queixa-se Elodie, saltitando de um pé para o outro, tentando
mantê-los longe do soalho gelado. Tata solta uma risada. Elodie adora o som
do riso dela.
Tata volta a pegar nela e pousa-a num dos berços vazios. «Falta pouco para
a Elodie se mudar para uma cama de menina crescida», diz Tata, tirando um
par de meias de lã da gaveta e calçando-as nos pés minúsculos de Elodie.
Tata pousa-a novamente no chão e leva-a pela mão. Juntas, descem para o
pequeno-almoço. Elodie já quase consegue descer as escadas sozinha, mas
ainda falta o quase.
Elodie tem quatro anos. Sabe disso porque ouve as freiras dizerem-no aos
visitantes durante todo o dia. Também as ouve dizer outras coisas, como:
«Ela é muito inteligente. Ela já fala. Ela vai ser uma beldade quando ganhar
mais corpo.»
As pessoas vêm ver as meninas para decidirem se querem levar alguma
para casa. Nesses dias de visitas, Elodie usa um lindo vestido. Só tem um.
Prefere usar o vestido feio para poder brincar e sujar-se, mas é muito
importante causar uma boa impressão aos visitantes, se quer algum dia ser
adotada. Tata diz que esse é o objetivo do orfanato: conseguir que todas as
meninas sejam «colocadas» em boas famílias.
Elodie é órfã, explicou Tata, o que significa que não tem mãe nem pai.
Quando Elodie lhe perguntou certa vez porque não tem pais, ela respondeu-
lhe sem rodeios: «Tu vives numa casa para meninas indesejadas porque
nasceste em pecado e a tua mãe não podia ficar contigo.»
O que significa que Elodie teve uma mãe, um dia, e agora não tem. Às
vezes, põe-se a pensar nessa pessoa, nessa mãe que a abandonou. Onde estará
ela agora? Para onde terá ido? O que significa nascer em pecado? E porque
chamam ao sítio onde vive casa para meninas indesejadas? Se vivem todas
ali, raciocina ela, certamente as freiras devem querê-las.
As freiras não respondem a esse tipo de perguntas. Ordenam-lhe apenas
que se comporte e que cause uma boa impressão às visitas, não se cansando
de a lembrar de que nada é mais importante do que ser escolhida por um casal
simpático para que possa crescer numa família normal e não num orfanato.
Ocasionalmente, os visitantes trazem outras crianças com eles e Elodie
observa-as com curiosidade: a maneira como pegam nas mãos dos pais, como
se agarram a eles e a pena com que olham para Elodie.
As freiras dizem aos visitantes, referindo-se a ela: «Sim, ela é pequena e
magrinha, mas é perfeitamente normal.»
Os visitantes parecem gostar das crianças gordas, com bochechas rosadas e
pernas rechonchudas. A irmã Tata está sempre a dizer-lhe: «Come, Elo.
Come. Tens de engordar, se queres que uma boa família te leve para casa.»
As freiras estão sempre a dizer-lhe: «És demasiado pequena. És muito
pálida. As visitas querem uma criança saudável.»
Mas Elodie é feliz ali. Não conhece outra vida. Além disso, há relvados
onde pode correr e brinquedos para brincar. E há a irmã Tata, que a faz
sentir-se segura.
CAPÍTULO 13

Maggie

–A
mercado.
quela não é a Angèle Phénix? – comenta Peter ao virarem para a
Ontario Street carregados com sacos de frutas e legumes frescos do

Maggie vive em Montreal com o irmão há vários meses. Tem sido uma
transição difícil da vida no campo e teve de se adaptar rapidamente.
Costumava pensar que a hostilidade entre franceses e ingleses era bastante
palpável na terra dela, mas ali, em Montreal, é algo volátil e em constante
fervilhar. Não há placas que esclareçam que língua deve ser falada onde; é
preciso ler nas entrelinhas e prestar muita atenção. Uma pessoa tem de
simplesmente saber para não ofender ninguém.
– Angèle! – exclama Maggie, genuinamente feliz por a ver.
Pousa os sacos no passeio e abraça a velha amiga.
– O que fazes em Montreal? – pergunta-lhe Angèle.
– Trabalho nos armazéns Simpson’s. Moro com o Peter.
Peter acena em cumprimento, com ar desinteressado.
– Vivemos em Lafontaine – continua Maggie. – Como é a escola de
enfermagem?
– Estou a adorar – responde Angèle. – Foi a escolha certa para mim. Eu não
teria dado uma boa freira. Estás com ótimo aspeto, Maggie.
Maggie agradece-lhe.
– Adoro a tua saia – elogia Angèle, admirando as flores de feltro que
Maggie colou no tecido. Ela pousa as compras no chão para tocar nas flores e
Maggie repara na primeira página do jornal La Presse que espreita do saco de
papel. A palavra «orfanatos» desperta-lhe a atenção.
Lê a manchete de onde está.
Orfanatos do Quebeque vão ser convertidos em hospitais psiquiátricos.
Maggie veio para Montreal para fugir ao passado. No entanto, ali está ele,
em parangonas na primeira página do jornal, só para a atormentar. Assola-a a
rapidez com que é atirada de volta àquele momento vergonhoso. Confrontada
uma vez mais com os segredos e escândalos que se esforçou tanto para
esquecer.
– Horrível, não é? – comenta Angèle, notando o olhar de Maggie para o
jornal. – Vinha a ler sobre isso no elétrico à saída do trabalho.
Maggie pega no jornal e passa rapidamente os olhos pelo artigo.
– Todos os orfanatos da província vão ser transformados em hospitais
psiquiátricos?
– Vai demorar algum tempo, mas, sim, é o que estão a fazer.
– É para não terem de educar as crianças – comenta Peter.
– Já sabias disto?
– Está em todos os noticiários.
– Vão começar pelas Sisters of Charity of Providence no próximo ano – diz
Angèle.
– Mas para onde vão todos os órfãos?
– O Duplessis está-se nas tintas para isso – responde Peter.
– Porque é que estão a fazer isto?
– Porque o Duplessis é um monstro – replica Peter. – Obviamente, o
governo federal dá mais dinheiro às freiras para tratarem de pessoas doentes
do que para cuidar de órfãos.
– É uma barbaridade – comenta Angèle, com estalidos de língua de
condenação.
Uma onda de pavor instala-se no peito de Maggie. Pensa naquele bebé
indefeso na palma da mão do Dr. Cullen e pergunta-se se a sua filha poderá ir
parar a um hospício. Sempre que Maggie se permitiu pensar em Elodie,
imaginou-a com uma mãe meiga e carinhosa e um pai presente e atencioso.
Pela primeira vez desde que a entregou para adoção, Maggie põe a hipótese
de a filha não ter sido adotada.
Sente os olhos de Peter nela e tem consciência de que ele sabe o que ela
está a pensar. Tal como todos os outros membros da família, ele cooperou no
encobrimento sub-reptício da sua gravidez.
– Como está o Gabriel? – pergunta Peter a Angèle, mudando de assunto.
As faces de Maggie coram à menção do nome dele, mas tenta manter uma
expressão neutra.
– Mudou-se para Montreal há uns anos – explica Angèle. – Teve um
desentendimento com a Clémentine sobre a gestão da fazenda e não voltou a
visitá-la desde então. É encarregado na Canadair.
Ele está aqui, pensa Maggie. Sabia que devia estar, mas a confirmação é
como uma descarga elétrica a atravessar-lhe o corpo.
– Está casado – acrescenta Angèle, sem olhar para Maggie.
Tudo fica em silêncio: o ruído da rua, a algazarra das crianças no beco, a
própria respiração. Maggie demora uns instantes a recuperar.
– Foi rápido... – consegue ela finalmente dizer.
– Ele está feliz – diz Angèle.
– Como se chama a mulher dele?
– Annie.
Annie. Um soco no estômago. Não tem ninguém para culpar além de si
mesma.
– Temos de ir – diz Maggie, dando a Angèle um abraço apático,
apressando-se a pegar nos sacos de compras e afastando-se.
– Esquece – aconselha Peter, alcançando-a.
Maggie olha-o, sobressaltada.
– Esqueço o quê?
– O Gabriel, a gravidez. A mãe e o pai fizeram um bom trabalho a encobrir
toda a situação. Estás aqui para recomeçares a tua vida.
Fazem o resto do caminho até casa em silêncio. Quando chegam finalmente
a Lafontaine, uma bonita rua do East End ladeada por árvores e escadas de
incêndio em ferro forjado, Maggie luta para conter as lágrimas ao subir as
escadas estreitas.
Moram no segundo andar de um tríplex, com outros inquilinos a viver no
piso de cima e no piso de baixo, cujos ruídos ela ouve a qualquer hora, cujos
odores ela sente assim que acorda. Começa a habituar-se; aprendeu a andar
de meias ou chinelos, nunca de sapatos, para que Mme. Choquette do andar
de baixo não bata com a vassoura no teto. O apartamento que partilha com o
irmão, pelo menos, é luminoso, com chão de madeira e muitas janelas. O
revestimento em linóleo da cozinha está a levantar em alguns sítios, mas os
eletrodomésticos são quase novos. O quarto de Maggie está praticamente
vazio, contendo apenas duas camas de solteiro em ferro forjado e uma
cómoda do Exército de Salvação. Quando ela se queixou por não haver
cortinas, Peter respondeu-lhe: «Não morres por causa disso.»
Deixou os frascos com as sementes plantadas e os rebentos de limoeiro em
Dunham, sabendo que a mãe as deitaria fora.
Pousa os sacos e vai direita à varanda. Acende um cigarro e sopra o fumo
para o horizonte constante da cidade. Há roupa pendurada nas cordas que vão
das varandas até aos postes telefónicos, ziguezagueando pelo céu, pares de
ceroulas e calças de trabalho unindo todo o quarteirão.
O que Peter disse é verdade. Ela tinha vindo para ali para começar de novo,
para se reinventar – não para se considerar um trágico fracasso e uma
desilusão para a família, mas como uma rapariga autónoma e trabalhadora.
Talvez até capaz de reconquistar o afeto do pai.
A maneira como se separaram deixou-a imensamente triste. Quando voltou
para Dunham depois de ter o bebé, Vi já a tinha substituído na loja de
sementes. Maggie entendeu que era o castigo por ter dececionado o pai. Sabia
que nunca poderia pedir o seu emprego de volta, muito menos uma
oportunidade de trabalhar na loja, a vender. Uma nuvem pairava sobre ela
naquele momento, uma nuvem que existiria sempre em Dunham,
especialmente em casa dos pais. Até a gaveta trancada do armário de arquivo
no escritório do pai, que ela sabia conter todas as informações sobre o
nascimento e o paradeiro da sua filha, era um tormento constante. Por fim,
concluiu que não tinha outra escolha senão ir-se embora.
No dia em que partiu, foi à Superior Seeds e ficou a olhar para a fachada,
com uma mistura de nostalgia e desespero. Tinha dezanove anos. Uma
mulher. No entanto, estar ali ainda a fazia sentir-se a menina que contava
sementes no sótão. Era o trabalho de Violet agora, um trabalho que Geri
assumiria um dia, e depois seria a vez de Nicole. Como a vida era simples
naqueles sábados na loja, os dias mais felizes da sua vida, com tantas certezas
de como seria o seu futuro. Agora era um legado do qual fora excluída.
O pai encontrava-se junto à caixa registadora, a dar um dos seus sermões
ubíquos a um jovem agricultor.
– Tens de pulverizar até ao verticilo com rotenona quando as plantas são
jovens – dizia ele com autoridade. – E experimenta atar as pontas das espigas
por causa das lagartas.
– Então e DDT? – perguntou o agricultor.
– Há muita controvérsia sobre os inseticidas – disse o pai. – Mas, na minha
opinião, é um inseticida extraordinário.
– Mas será mesmo o remédio para todos os males? Como é que afeta os
pássaros e os peixes... e a nós?
– Os pesticidas são a única solução para o problema dos insetos –
argumentou o pai. – Eles preservam as sementes.
Maggie não tinha a certeza se o pai estava triste ou aliviado ao vê-la partir.
Fosse como fosse, não tentou impedi-la. Ela entregou-lhe um ramo de rosas
amarelo-vivo.
– Apanhei-as para ti no caminho.
Ele pousou-as no balcão.
– Queres levar umas sementes de feijão-verde para começares a tua horta
na cidade? Sempre gostaste de ter o teu jardim.
– Claro – respondera ela, sabendo que não haveria jardim.
Ele entregou-lhe um saco de papel pardo.
– Eu sabia que este dia iria chegar – disse ele. – Sempre foste a minha flor
selvagem.
CAPÍTULO 14

É outono, e os cantões estão totalmente imersos num caleidoscópio de


laranja, vermelho e amarelo, com a migração das folhas das pontas dos
galhos para a terra. Maggie, Roland, Peter e a sua namorada, Fiona, estão a
caminho de Dunham para visitar os pais de Maggie. Será a primeira vez que
Roland conhece toda a família, apesar de ter sido o pai dela quem os juntou.
Roland Larsson era o gerente da filial do Business Development Bank em
Cowansville, onde o pai tem conta. Mas, quando foi transferido para
Montreal, o pai decidiu organizar o encontro às cegas com Maggie.
A primeira impressão que teve de Roland foi a de que ele era extremamente
inteligente e sofisticado. Fisicamente, é alto e de aspeto cuidado, com dentes
brancos perfeitamente alinhados e um queixo comprido. É meio escocês e
meio sueco, o que é algo que têm em comum: são ambos metades
combinadas num só. O cabelo loiro já começa a rarear e usa óculos bifocais,
que o fazem parecer muito mais velho do que é. Maggie dar-lhe-ia uns
quarenta, embora ele tenha apenas vinte e nove anos. Mas o que a atraiu nele
foi a sua inteligência. Já viajou muito, lê livros didáticos por prazer e conhece
factos interessantes sobre muitos assuntos diferentes.
No primeiro encontro, ele usou um fato e sapatos pretos bem polidos que
chiavam quando atravessou a sala para a cumprimentar. Cheirava a água-de-
colónia, um aroma adulto e paternal, e pareceu-lhe muito refinado e
sofisticado. O primeiro beijo foi um pouco desajeitado, mas provavelmente
foi culpa dela. Comparou-o com a maneira como Gabriel costumava beijá-la,
quando era uma simples adolescente, cheia de hormonas aos saltos e emoções
erráticas. E embora não seja muito mais velha em anos do que era quando
estava com Gabriel, é muito mais velha em espírito. Talvez seja uma coisa
boa Roland não ser nada parecido com Gabriel.
Depois daquele primeiro encontro com Roland, descobriu que tinha
esperança de haver um próximo. Sentiu que havia mais nele para explorar
debaixo da superfície – alguma textura interessante ou ferida à flor da pele
que lhe pudesse conferir um pouco mais de complexidade e intriga. Ficou
muito empolgada quando ele lhe ligou novamente e a convidou para ver um
espetáculo no Palace Theatre. Estão juntos desde então.
– Já te disse que abriu uma vaga para secretária no banco? – comenta
Roland, tirando os olhos da estrada para olhar para Maggie, sentada no banco
do passageiro.
– Eu gosto do meu trabalho – responde Maggie.
Ela trabalha na secção de lingerie feminina nos armazéns Simpson’s. É boa
vendedora, como sempre soube que seria.
– Mas podes preferir o trabalho de secretária – diz Roland. – E podias
eventualmente subir até operadora de crédito.
– Odiaria ficar sentada o dia todo a uma mesa a escrever ditados –
contrapõe Maggie. – Eu gosto de vender.
– Ajudamos as pessoas a criarem as suas próprias empresas – argumenta
Roland. – É muito gratificante, na verdade.
– Já alguma mulher criou a sua própria empresa? – pergunta-lhe Maggie.
– Que eu saiba, não – responde ele. – Pelo menos, não em Cowansville.
Infelizmente, um banco jamais daria um empréstimo a uma mulher sem
garantias, sem referências e sem fiador.
– Já estamos nos anos cinquenta – diz Fiona do banco de trás. – As coisas
melhoraram desde a guerra.
– Aqui nos cantões, mais parece os anos cinquenta, mas do século XIX –
ironiza Peter.
– Imagino que seja possível uma mulher conseguir um empréstimo – reflete
Roland em voz alta.
– É uma vida miserável, ser dono do seu próprio negócio – interrompe
Peter. – O nosso pai nunca tem um momento de sossego. Só preocupações e
stress. É um grande fardo, é o que é.
– O papá gosta de trabalhar – contraria Maggie. – Isso é muito importante.
Gostar do que se faz.
– O que hei de fazer com esta miúda e tanta ambição? – brinca Roland,
apertando-lhe afetuosamente o joelho e sorrindo. Ele tem dentes grandes e os
olhos mais azuis que Maggie já viu. – Eu acho fascinante.
– Eu só quero fazer mais do que cozinhar, limpar e mudar fraldas – diz
Maggie. – Quero dar o meu contributo.
Soube recentemente que Audrey está noiva. Em breve, ela será uma dessas
donas de casa – rabugenta e irascível, com o marido, Barney, a esconder-se
na sua oficina, a construir coisas e a fumar charutos para a evitar. Maggie
nunca diria a nenhuma das colegas no trabalho – que não falam de mais nada
além de bebés e maridos – que o seu desejo é, eventualmente, ser promovida
à secção de moda feminina no terceiro andar e, no futuro, chegar a gerente.
Jurou a si mesma que nenhum homem se trancará num quarto para evitar a
companhia dela.
– A maternidade é o maior contributo que uma mulher pode dar – afirma
Roland. – Não achas?
Maggie fica calada e evita olhar para Peter.
– Uma mulher não pode querer as duas coisas? – pergunta Fiona. – Um
emprego e uma família?
– Um ou outro acabam por ser negligenciados – declara Roland cheio de
certeza.
– Não com o homem certo para ajudar – diz Maggie.
Roland olha para ela com uma certa brusquidão.
– A maioria dos homens quer que as mulheres fiquem em casa a cuidar dos
filhos. E acho que a maioria das mulheres quer exatamente o mesmo.
– A minha mãe tem cinco filhos – diz Maggie, perplexa. – E é a mulher
mais infeliz que conheço.
– Isso não significa que tu sigas o mesmo caminho.
Maggie vira a cabeça e fixa o olhar na janela.

À chegada, Roland dá a volta ao carro para abrir a porta a Maggie e ajuda-a


a sair. Ela apoia-se nele, os calcanhares ficando presos no cascalho enquanto
os quatro se dirigem para a casa.
Ao entrarem no vestíbulo, Maggie sente o cheiro a carne e especiarias
vindo da cozinha. Encontra a mãe junto ao fogão, a tirar uma grande caçarola
de empada de coelho, uma das receitas da mãe de Rivière aux Rats. A
maioria dos cozinhados da maman são especialidades tradicionais de
Mauricie: cretons, carne de porco assada, perca de água doce, veado e
estufado de lebre. Em momentos de extrema tensão, já se ouviu o pai de
Maggie a resmungar: «Se não fosse tão boa cozinheira...»
A maman vira-se e corre para Peter.
– Tinha-me esquecido de como és bonito! – exclama ela com efusividade,
despenteando-lhe o cabelo.
Ela está sempre a gabar-se de o filho ter vencido o concurso Goutte de Lait
Healthy Baby por ser o bebé mais bonito da região; ainda guarda o recorte de
jornal amarelecido do Missisquoi Herald na carteira, embora já se tenham
passado vinte e dois anos.
Ela ignora completamente Fiona – aliás, detesta-a – e vira-se para Maggie.
– Que lindo vestido – comenta ela.
– É azul-turquesa – diz-lhe Maggie, chocada com o elogio.
A maman ainda cheira a sabonete Yardley, o que é, de certo modo,
reconfortante.
– Mas linho depois de setembro? – comenta a maman.
Maggie ignora a observação e entrega-lhe um maço de notas de dólar
amassadas.
– Toma. É para ti.
A maman mete o dinheiro, sem comentários, no bolso do avental.
– O teu pai está no cubículo – diz ela. – Continua tudo na mesma.
– Este é o Roland – anuncia Maggie, lembrando-se de Roland atrás dela, a
meio caminho entre o vestíbulo e a cozinha.
Ele traz vestido um blazer castanho aos quadrados adornado com um lenço
branco com monograma cuidadosamente dobrado no bolso do peito, que está
mesmo a pedir uma observação sarcástica de Hortense, seja na cara ou, mais
tarde, pelas costas.
Roland oferece-lhe um ramo de rosas de um cor-de-rosa claro e uma
garrafa de vinho branco Pouilly-Fuissé.
– Por tuá – diz ele, em péssimo francês.
A mãe de Maggie aceita as flores e o vinho sem sequer agradecer. Mira-o
de cima a baixo, provavelmente a desdenhar os sapatos com berloques
polidos, o caro relógio de ouro, a postura impecável e o perfume
pragmaticamente masculino.
As irmãs entram a correr na cozinha e Maggie distribui beijos e abraços por
todas. Só partiu há cerca de seis meses, mas parecem-lhe, de repente, tão
crescidas.
Nicole tem quase oito anos e usa o cabelo com ondas, tal como Maggie
costumava usar naquela idade. Geri é tão adorável como sempre, mesmo no
vórtice implacável da puberdade, com pernas magricelas e o corte de cabelo à
tigela que a maman lhe fez. Violet parece a mesma, apenas ligeiramente mais
taciturna. Maggie entrega a cada uma das irmãs uma sacola de papel pardo
cheia de cajus e chocolates belgas dos armazéns Simpson’s.
O pai sai finalmente do escritório envolto numa nuvem de fumo de charuto.
– Lembras-te do Roland? – diz ela, secretamente empolgada por o
apresentar como namorado.
Os dois homens apertam as mãos e a maman manda todos para a mesa.
Sentada entre Roland e o pai, ao jantar, Maggie não consegue parar de
sorrir.
– Nunca comi nada tão delicioso – delira Roland, limpando o prato.
O vinho flui e todos os adultos estão corados e alegres. Maggie traduz o
comentário para a mãe.
– É apenas uma velha receita de família – diz a maman, as faces
enrubescendo de orgulho.
– Eu cresci a comer haggis e arenque – explica Roland. – Isto é divinal.
Ele olha para Maggie, sorrindo. Provavelmente pensa que ela vai cozinhar
assim para ele um dia. Maggie sabe que ele está sempre a contabilizar os
aspetos positivos e a ponderar o casamento. Roland tem quase trinta anos. A
vontade de assentar é palpável. Causa uma impressão tão forte como o seu
cheiro a sabonete e os sapatos de berloques.
Enquanto a maman e Vi levantam os pratos, em preparação para a
sobremesa, o pai de Maggie e Roland iniciam uma discussão sobre as
eleições federais. Os liberais estão outra vez à frente, o que significa outro
mandato com St. Laurent.
– Ele prometeu igualdade de oportunidades para todas as províncias –
reclama o pai. – Onde é que ele esteve durante o reinado de terror do
Duplessis no Quebeque, hã?
Sempre que o nome de Duplessis é mencionado, Maggie sente o estômago
revirar. Não consegue evitar pensar no que ele fez a todos aqueles órfãos –
possivelmente à filha dela. Sente, mais uma vez, a vergonha que não a
abandona, como bílis na boca, estragando o que poderia ser uma noite
perfeita. Cerra os olhos com força para afastar os «ses» – se eu tivesse ficado
com ela, se eu conseguisse encontrá-la – e espera que mudem de assunto.
– Passamos mais tempo a falar do Maurice Duplessis do que de qualquer
outra pessoa – reclama a maman. – Sobre o que vão falar quando ele estiver
morto?
– Sobre o idiota que o substituir – responde o pai de Maggie, as faces
coradas da bebida, os olhos azuis brilhantes e alegres.
Sugere a Roland e Peter que vão indo para a sala de estar, levanta-se da
mesa e vai buscar a garrafa de gin. Com um sorriso malandro, aproxima-se
sorrateiro por trás da maman e agarra-lhe as duas nádegas, apertando-as com
força. Fá-lo à frente de Maggie, que cora. A maman enxota-o, não evitando
uma risadinha divertida.
– Querem que vos leve café? – pergunta-lhe ela, já sabendo a resposta.
– Basta-nos isto – responde ele, erguendo a garrafa.
Maggie junta-se aos homens na sala de estar, não prestando muita atenção à
conversa de Roland, de Peter e do pai a respeito de pequenas empresas, da
péssima programação da CBC, agricultura, arquitetura e caminhos de ferro.
Fiona lê uma revista de moda. Maggie começa a sentir as pálpebras pesadas
com o burburinho incessante de conversa pela noite dentro, mas fica feliz por
poder ficar apenas sentada e deixá-los entreterem-se. Não sente qualquer
obrigação de se responsabilizar ou de se esforçar para que gostem de Roland.
Pouco tempo depois, eles desaparecem para um whisky e um charuto no
santuário privado do pai e Maggie vai para a cozinha.
Encontra a mãe sozinha, a varrer o chão. As irmãs já subiram para se
deitarem. Senta-se na mesa de pinho e a mãe junta-se a ela. Sente-se
confortável ali, cercada pelos objetos da mãe. A maman gosta de ordem na
sua cozinha. Tem um lugar específico para cada utensílio, panela, pano da
loiça e ornamento. Quer se trate de um velho jarro de esmalte ou da
fotografia emoldurada de Peter em bebé, é compulsiva quanto a manter tudo
no seu devido lugar. O espaço é um testemunho dela – a fragrância, o estilo, a
limpeza, o perfecionismo. O chão reluz. O fogão brilha. As janelas estão
imaculadas. As cortinas das janelas estão tão impecáveis e engomadas como
no dia em que as pendurou pela primeira vez. O mundo dela é tão organizado
quanto o santuário do pai é caótico.
– Parabéns – diz a maman, servindo uma caneca de café a ambas. – Estás a
namorar com o teu pai.
Maggie bebe um gole de café, saboreando o travo amargo. Tinha-se
esquecido de como é bom o café da mãe.
– Ele também constrói rádios? – ironiza a maman.
– Modelos de aviões e de comboios.
– Não o amas como amavas o Gabriel Phénix.
– O Gabriel não era o homem certo para mim.
– Queres dizer que não era o homem certo para ele – corrige a maman,
apontando para o santuário do marido.
– Agora pões-te do lado do amor? – diz Maggie, com a raiva a tomar conta
dela. – Agora torces pelo Gabriel? É irónico, já que me afastaste dele.
– Eu não torço por ninguém – responde a maman. – Só estou a dizer o
óbvio.
– Eu amo o Roland – diz Maggie, rancorosa, como se a mãe tivesse
acabado de lançar um desafio.
– É certo que o teu pai o adora – conclui a maman. – Talvez seja suficiente.
CAPÍTULO 1

Elodie

1955

É uma manhã luminosa de setembro e o sol invade a sala de aula pelas


janelas abertas. Elodie está no tapete, a pintar. Usa os lápis de cera
partidos que a irmã Tata guarda numa velha lata de xarope de ácer para as
alunas mais novas. Elodie não gosta de livros para colorir, acha-os
aborrecidos. Prefere fazer desenhos de famílias. Desenha-se sempre a si
própria ao lado da mãe, de mão dada com ela e a sorrir; depois acrescenta
irmãos e irmãs até a página não ter mais espaço ou o tempo permitir, antes de
a irmã Tata tocar a campainha para as aulas.
Nos seus desenhos, a mãe tem sempre cabelos loiros como os dela. Elodie
não sabe por que motivo a mãe a deixou com as freiras quando ela nasceu,
mas acredita que deve haver uma boa razão. Sempre que pergunta às irmãs
porque mora no orfanato, elas respondem: «Porque nasceste em pecado e
ninguém te quer.» Outras vezes, dizem: «Porque nasceste em Escândalo.»
Elodie não faz ideia do que isso significa, ou onde fica esse Escândalo, mas
tem a certeza de que a mãe virá buscá-la um dia e que irá finalmente juntar-se
aos seus irmãos e irmãs. Gosta de imaginar nomes para todos eles – Claude,
Lucien e Lucienne (os gémeos), Linda, Lorraine e Jeanne. No cimo dos
desenhos que faz, escreve sempre MA FAMILLE, a minha família. A irmã Tata
– cujo nome verdadeiro é Alberta – ensinou-a a escrever as letras, e agora
elas encabeçam cada um dos seus desenhos. A irmã Tata diz que é um
milagre que Elodie consiga ficar sentada tempo suficiente para desenhar
famílias. Certa vez, desenhou uma família com dezassete crianças.
A sua melhor amiga, Claire, não a acompanha nos desenhos; prefere ver
livros ilustrados. Claire tem seis anos e já quase sabe ler. Cresceram juntas
em Saint-Sulpice, e se Claire ainda estiver ali quando a mãe de Elodie vier
buscá-la, vai perguntar-lhe se Claire também pode ir.
Por enquanto, Elodie é bastante feliz a viver ali, embora as freiras e as
pessoas que aparecem de visita chamem ao sítio Casa das meninas
indesejadas. Elodie não se sente especialmente indesejada. Tratam-na por Elo
e até a Mère Blanche a chama assim. Partilha um quarto com outras vinte
meninas, todas elas sem mãe, tal como ela. Costumavam ser dez ou doze
meninas por quarto – nunca mais do que isso –, mas recentemente
começaram a amontoar até duas dúzias. Há muitas, muitas regras em Saint-
Sulpice, mas Elodie encontra maneiras de as contornar. As irmãs dizem que
ela é indisciplinada, e é verdade que já recebeu uma boa dose de castigos por
refilar: ficar sem jantar, ficar proibida de ir lá para fora ou levar reguadas.
Mas gosta da escola e, em breve, vai aprender a ler. No seu aniversário
recebeu uma boneca, que foi doada por uma das famílias de Cowansville.
Chamou-lhe Poupée.
Hoje, uma batida na porta interrompe a rotina habitual. A irmã Tata bate as
palmas para chamar a atenção de todas.
– Voltem para as vossas carteiras – comanda ela com severidade.
– Mas eu não terminei – protesta Elodie, sem se levantar do tapete.
– Para a carteira, já !
O tom da irmã é suficiente para fazer Elodie levantar-se e ir sentar-se à
carteira. A irmã abre a porta e um homem entra na sala de aula. Estranho,
pensa Elodie, olhando para Claire. O homem usa um fato cinzento e chapéu,
que tira e pousa na mesa da irmã. Tem bigode e uma expressão carrancuda.
Elodie decide que não gosta dele.
– Este é o Dr. Duceppe – anuncia a irmã. – Ele vai fazer-vos algumas
perguntas. Respondam da forma mais clara possível. Cada uma será chamada
lá fora à vez. Enquanto isso, permaneçam sentadas às vossas carteiras, cabeça
virada para a frente e costas bem direitas, a trabalhar nas vossas lições. Pouco
barulho, se fazem favor.
Elodie levanta a mão e deixa escapar a pergunta antes de ter autorização.
– Que tipo de perguntas? – quer ela saber.
– Vais descobrir quando for a tua vez.
A irmã Tata chama a primeira menina. Elodie fica a vê-la caminhar até à
frente da turma e sair da sala atrás do homem de bigode. A porta fecha-se.
Elodie está mortinha de curiosidade.
Tem dificuldade em concentrar-se a escrever as letras. Deve copiar a letra
A de um lado para o outro da página, mas é chato e difícil manter os «A»
ordeiramente entre as duas linhas. Mal pode esperar pela sua vez de falar com
o médico.
Finalmente, é hora. Salta da sua carteira e sai da sala, onde o médico
aguarda. Segue-o pelo corredor até ao escritório de Mère Blanche, sem que
ambos profiram uma palavra.
– Senta-te, por favor – instrui o Dr. Duceppe, fechando a porta atrás de si.
Elodie senta-se na cadeira, de frente para a secretária. O médico senta-se
diante dela, na cadeira de Mère Blanche. Ela consegue ver algumas anotações
no bloco de notas dele. Elodie: 6-3-50. Há mais palavras, que ela não sabe
ler.
– Sabes o que é isto? – pergunta-lhe ele, mostrando-lhe um objeto quadrado
castanho que tem uma textura parecida com a da bola com que os meninos
jogam lá fora.
Ela estende a mão para tocar no objeto e descobre que ele se desdobra.
Dentro, há pedaços de papel retangulares com números. Ela encolhe os
ombros e responde:
– Não, monsieur.
Ele volta a pegar no objeto e rabisca qualquer coisa no papel.
– É uma carteira – murmura ele.
– Para que serve?
Ele ergue os olhos sem levantar a cabeça.
– Para guardar dinheiro – explica ele.
– E isto? – pergunta em seguida, mostrando-lhe uma imagem de umas
coisas prateadas com formas estranhas. E depois outra de uma grande
máquina que ela não reconhece.
– Não, monsieur. Não, monsieur.
– Chaves – esclarece ele. – Fogão.
– Sabes o que significa a palavra «comparar»? – pergunta ele.
– Não, monsieur.
Mais rabiscos.
– É tudo – diz ele, sem olhar para ela.
Elodie fica um momento parada, não querendo que acabe.
– É tudo? – repete ela.
– Sim, já podes voltar para a aula.
– Eu já quase consigo apertar os atacadores – diz-lhe ela.
Ele não responde. Ela volta para a aula. Claire olha-a com expectativa.
Elodie encolhe os ombros. Nada mais é dito sobre o homem de bigode.
Na manhã seguinte, quando chegam às aulas depois das orações, a irmã
Tata manda-as diretamente para as carteiras.
– Mas é hora do tapete – lembra-lhe Elodie.
– Hoje não há tapete – responde a irmã, deixando Elodie desapontada.
Pouco depois, mais duas irmãs entram na sala de aula, seguidas pela Mère
Blanche. Elodie olha para Claire. Algo se passa.
– Meninas – diz a madre, em pé no centro da sala, com as mãos
entrelaçadas e as costas direitas como uma tábua –, hoje é dia de mudança de
vocação – anuncia.
As meninas começam a chilrear. Elodie está animada. Dia de mudança de
vocação!
– É feriado? – pergunta ela em voz alta, sem se incomodar em levantar a
mão.
– A partir de hoje – continua a madre –, não haverá mais escola.
O entusiasmo de Elodie desaparece num piscar de olhos. Não há mais
escola?
– A partir de agora, o orfanato será um hospital – explica a madre.
Maggie olha para a irmã Tata e vê as lágrimas a descerem-lhe pelas faces.
Tem a cabeça baixa e não faz contacto visual com Elodie ou com qualquer
outra das meninas.
– O que significa isso? – pergunta uma das meninas mais velhas.
– Exatamente o que eu disse – responde a Mère Blanche com brusquidão. –
Agora, somos um hospital psiquiátrico. Acabou-se o orfanato e acabaram-se
os órfãos. Deste dia em diante, são todas atrasadas mentais.
Elodie olha em redor. Toda a gente está em silêncio. Algumas das meninas
mais velhas choram. Os ombros da irmã Tata tremem, a cabeça ainda baixa,
os olhos escondidos.
– O que significa atrasado mental? – pergunta Elodie.
– Significa que és deficiente mental – explica a madre. – Compreendes?
Passam a ser doentes mentais. É essa a nova realidade.
Sem mais uma palavra, gira nos calcanhares e sai da sala, deixando um
silêncio chocado e desgostoso.
Na manhã seguinte, três coisas importantes acontecem, que causam a
Elodie uma ansiedade de coisas terríveis por vir. A primeira é a barulheira
que a acorda muito mais cedo do que o habitual. Quando olha lá para fora, vê
trabalhadores a retirar todas as portadas das janelas e a substituí-las por barras
de ferro pretas.
A seguir, quando desce para o pequeno-almoço, vê que todas as irmãs
usam hábitos brancos em vez do preto habitual.
– Porque é que o seu vestido é branco? – pergunta ela à irmã Joséphine,
sentando-se para comer a sua tigela de papas de aveia.
– Este é o hábito que as enfermeiras usam.
– Desde quando é enfermeira?
– Desde hoje.
O barulho do lado de fora é ensurdecedor e algumas crianças choram e
tapam os ouvidos.
– Porque estão a pôr barras nas janelas? – volta a perguntar à irmã
Joséphine.
– Agora somos um hospital psiquiátrico.
– Mas não é uma prisão.
– De certa forma, é.
Elodie sente o lábio inferior começar a tremer.
– Vamos ficar trancadas aqui dentro?
– Sim – responde a irmã, sem a encarar. – É assim que funciona agora, por
isso, deixa-te de lamúrias.
– Porque é que isto está a acontecer?
– Porque nasceste em pecado.
Elodie morde o lábio e pestaneja para conter as lágrimas. Baixa o olhar
para a tigela de papas e concentra-se em não chorar à mesa.
– Temos lições hoje? – pergunta Claire à irmã Joséphine.
Elodie levanta a cabeça.
– Não – responde a irmã. – Hoje temos de nos preparar para os novos
pacientes. Amanhã começam todas a trabalhar.
– Porquê?
– Não há mais escola.
– Que novos pacientes? – quer saber Elodie.
– Para de fazer tantas perguntas.
– Que tipo de trabalho teremos de fazer? – pergunta Claire.
– Têm de ajudar a cuidar dos outros doentes mentais – responde a irmã
Joséphine, e Elodie repara que ela fez questão de acrescentar a palavra
«outros» a doentes mentais.
– Nós não somos doentes mentais – esclarece Elodie.
A irmã Joséphine pousa a colher e olha diretamente para Elodie.
– São, sim – declara ela, com a voz fria e o olhar firme.
Uma hora depois, enquanto as barras ainda estão a ser colocadas nas
janelas, um autocarro escolar amarelo estaciona em frente ao edifício de
tijolos vermelhos que Elodie sempre conheceu como lar.
– Os malucos chegaram! – grita alguém.
Os órfãos amontoam-se junto às janelas da sala da frente, em expectativa
nervosa, para verem os seus novos e estranhos colegas de quarto saírem do
autocarro, um a um. As crianças e as freiras soltam um suspiro coletivo ao
testemunharem o espetáculo que se desenrola diante delas: homens e
mulheres de idade, vestidos com pijamas, a arrastarem-se torpemente, alguns
deles a balbuciar e a cantarolar, outros num transe estupidificado.
– São velhos! – grita uma das crianças.
– E assustadores!
Este é o terceiro acontecimento inquietante do dia.
Elodie sente um nó de pânico apertar-lhe o peito. Tem idade e é inteligente
o suficiente para entender que a vida que conhecia acabou.
CAPÍTULO 16

Maggie

A caminho de se encontrar com Roland no restaurante L’Auberge Saint-


Gabriel, no bairro histórico de Montreal, Maggie não resiste a espreitar
mais uma vez para dentro do saco e ver o seu novo sutiã. Não é o sutiã que a
emociona, mas a conquista. Em cada trimestre, o gerente do departamento
dos armazéns Simpson’s oferece um sutiã à melhor vendedora e, desta vez,
Maggie foi a feliz contemplada. Mal pode esperar por contar a Roland.
Com o emprego nos armazéns Simpson’s e Roland a seu lado, a vida em
Montreal não lhe parece uma alternativa assim tão má, afinal de contas.
Juntos, estão a conseguir criar uma vida estável e gratificante na cidade, e
Maggie tem mais momentos de contentamento genuíno do que alguma vez
imaginou possível.
Roland já a espera à mesa, a beber um whisky. Há uma garrafa de vinho a
refrescar num balde de gelo para partilharem. Ela sorri e acena.
– Como foi o teu dia? – pergunta-lhe Maggie, desdobrando o guardanapo
de linho branco sobre o colo.
– Demasiado aborrecido para ser mencionado – responde ele. – Estou a
analisar um pedido de empréstimo para uma pequena empresa mineira
administrada por dois irmãos muito carismáticos e persuasivos. Conseguiram
criar um negócio viável, o que eu admiro. Se não lhes conceder o
financiamento, serão engolidos pela grande empresa mineira Noranda.
Detestaria ver isso acontecer.
Maggie acena com a cabeça em todos os momentos certos. A astúcia e
perspicácia empresarial de Roland ainda a deixam impressionada, mas não
pode dizer que ache interessante. Decide-se pelos escargots e suprême de
volaille para o jantar.
– Portanto, devo ter de ir a Rouyn mais para o fim do mês – conclui Roland
quando o empregado chega para tomar nota dos pedidos. – E tu? Como foi o
teu dia?
Ela pega no saco e puxa uma ponta do sutiã branco de renda para lho
mostrar, discretamente.
– Compraste um sutiã?
– Não, ganhei um sutiã – explica ela. – Fui a vendedora do mês!
Roland não comenta. Termina o whisky e pega num segundo copo, que
apareceu ao lado da cesta de pão.
– Parabéns – diz ele, por fim, de olhos fixos no copo.
Nenhum sorriso, nenhum sentimento oculto.
– Não estás orgulhoso de mim?
– Por venderes o maior número de sutiãs? Não tenho certeza de que seja
um sucesso comparável a, digamos, criar filhos.
Maggie pestaneja para conter as lágrimas, no momento em que o
empregado chega e pousa o ramequim de escargots. Ela sente o aroma a alho
e manteiga derretida, mas perdeu a vontade de o apreciar.
– Sou boa a lidar com os clientes – murmura ela. – Tenho os instintos do
meu pai...
– Vamos mudar de assunto.
– Eu quero continuar a trabalhar.
Roland pousa o garfo e encara-a.
– Queres dizer passar o dia a medir os seios das mulheres? Aonde é que
isso te leva, Maggie?
– À secção de moda feminina. A gerente de departamento. Talvez até a
uma loja minha, um dia.
Roland solta uma risada amarga.
– Desce das nuvens – diz ele, em tom depreciativo. – Não tocaste nos
escargots, querida. Estão deliciosos. Bem amanteigados, como tu gostas.
– Pensei que ficarias feliz por mim.
– Como posso ficar feliz se não tenho direito a ter opinião sobre o que
acontece no nosso casamento?
– O que é que isso significa?
– Um homem precisa de deixar a sua marca no mundo, Maggie. Caso
contrário, que sentido tem?
O empregado entrega o terceiro whisky a Roland e pergunta a Maggie se os
escargots não estão do seu agrado. Ela abana a cabeça e força um sorriso,
querendo assegurar que está tudo bem. Debica o resto da refeição, sem
saborear nada. Acabam a garrafa de vinho e Roland pede um café para ter
mais energia para a viagem.
Chegados a casa, ele vai diretamente até ao carrinho de bebidas na sala de
estar e serve-se de um último copo.
– Queres beber alguma coisa? – pergunta-lhe ele.
Ela faz uma careta, atirando os sapatos de salto alto. Repara que um dos
saltos ficou raspado pelas velhas ruas de calçada do bairro histórico de
Montreal. Ajoelha-se no vestíbulo e esfrega o raspão com o polegar.
– Quero que deixes de tomar o anticoncecional – diz ele, sentando-se no
sofá de brocado.
– Agora?
Roland recosta-se nas almofadas e cruza a perna.
– Sim. Agora. Quando, Maggie, se não for agora?
Ela sabia que aquele dia iria chegar, mas a verdade é que ainda não se sente
preparada. Ainda não esqueceu Elodie. As feridas não cicatrizaram o
suficiente para recomeçar.
– Não disseste nada até agora...
– Pois bem, estou a dizer agora – corta ele. – Pensei que ias eventualmente
trazer o assunto à baila, mas, aparentemente, não está no topo das tuas
prioridades.
– Estás a ser bruto.
– Disseste-me que querias ter filhos.
– Eu disse que queria esperar um pouco.
– E já esperámos um pouco! – protesta ele. – Estou pacientemente à espera
há quase três anos.
– Não me sinto preparada.
– Podes nunca vir a sentir-te preparada – diz ele. – Mas é como mergulhar
num lago. Simplesmente tem de ser feito.
– É fácil falares – resmunga ela, lembrando-se da náusea, do peso, da azia,
das contrações. Do sentimento de perda. – Nós temos uma boa vida juntos,
Rol. Somos felizes. Não precisamos de nos apressar a constituir família.
Ainda não.
– Não vou esperar até que eles te façam gerente de sutiãs – contesta ele. –
Pode levar décadas.
– Não gosto de ti quando estás embriagado – afirma ela.
Roland levanta-se, atravessa a sala até ao carrinho de bebidas e serve-se de
outro whisky.
– Engraçado – diz ele, colocando cubos de gelo no copo. – O meu pai
sentia o mesmo por mim quando ele estava embriagado. Não me suportava.
Fazia tudo para me evitar. Eu irritava-o, suponho. Especialmente quando ele
estava bêbedo. – Senta-se, agita o whisky em redor do copo e bebe um grande
trago. – Sempre que eu abria a boca, ele retesava-se. Certa vez, ouvi-o
confessar isso mesmo à minha mãe.
Maggie fica chocada com a inesperada confissão de Roland. Ele não tem o
hábito de partilhar histórias pessoais com ela, nem quando já bebeu.
– Fiquei mais surpreendido por ele o ter dito em voz alta do que por dizer
que não gostava de mim – continua ele. – Obviamente, eu sabia que ele não
gostava de mim. Uma criança sabe.
Maggie acena com a cabeça, pensando na própria mãe.
– Eu só quero ter oportunidade de fazer melhor – continua Roland com a
voz arrastada. – Quero tentar ser um bom pai, Maggie, compreendes?
As pálpebras dele começam a ceder e Maggie sente pena dele.
– Podemos falar sobre isso amanhã – responde ela. – Quando estiveres
mais sóbrio.
Roland responde com um ronco alto.
No piso de cima, ela senta-se ao toucador e penteia o cabelo. Talvez
Roland tenha razão.
Talvez tentar ser melhor do que a mãe seja terapêutico. E se ela pudesse
compensar cada beijo reprimido, cada carícia negada? Criar um filho que se
sinta acarinhado e amado?
A ideia começa a desabrochar enquanto se prepara para dormir. Um bebé
para amar, uma vida para moldar. Podia fazê-lo com amor e carinho, não com
agressividade; com uma voz suave, o bálsamo da aceitação e todo o estímulo
que permita a um ser vivo crescer forte e saudável. Podia até servir de
redenção para a filha que abandonou.
CAPÍTULO 17

Elodie

1957

–E stá quieta! – protesta Elodie, impaciente.


A Grande Abéline late como um cão e mastiga as gengivas como
se estivesse prestes a morder.
– Tu nem tens dentes, imbécile! – resmunga Elodie.
Mais latidos.
– Para de latir, ou chamo a irmã Louiselle – ameaça Elodie.
A irmã Louiselle é a freira mais cruel de Saint-Sulpice. Chegou com os
loucos, há dois anos, para cuidar dos doentes mentais e ensinar as outras
freiras – que até aí só cuidavam de órfãos – a administrar o sítio como
hospital.
A Grande Abéline rosna. Pesa mais de 110 quilos e poderia esmagar
Elodie, de sete anos, como uma formiga. Ainda assim, o trabalho de Elodie é
lavar Abéline antes de dormir, o que significa esfregar-lhe as costas, as axilas
e até mesmo as partes íntimas, o que Elodie nunca faz.
Com alguns dos outros malucos é mais fácil lidar. A Pequena Odette é, tal
como o nome indica, pequena, dócil e sempre cooperante. Tem olhos
murchos e uma maneira lenta de falar – Claire diz que é o resultado de toda a
medicação que toma –, mas Elodie não sabe por que razão ela está ali. A
Mam’selle Philadora é outra de quem Elodie não se importa de cuidar. Essa é
verdadeiramente retardada – não é louca, como as outras – e toda a gente
gosta dela. Está sempre a sorrir ou a rir, sempre feliz. Não parece saber onde
está nem se importa com isso. Gosta de dar abraços e mimos, algo que Elodie
não se importa nada de receber.
A Grande Abéline é a pior. Elodie detesta-a. Os latidos e os rosnados, as
coxas suadas sempre cobertas de assaduras, o cheiro insuportável.
– Porque é que ela ainda está aqui? – pergunta a irmã Louiselle, entrando
na casa de banho.
Abéline late-lhe.
– Ela não me deixa lavá-la – queixa-se Elodie.
– Vai para o dormitório – ordena a irmã Louiselle. – Faz as tuas orações e
deita-te.
Aliviada, Elodie sai e foge para o dormitório. Ajoelha-se e finge rezar. Faz
o sinal da cruz, algo sem significado para ela, desliza para debaixo do lençol
branco e puxa o cobertor de lã até ao queixo. As meninas mais novas já estão
a dormir, as mais velhas ainda estão a trabalhar. Elodie solta um longo
suspiro. Mais um dia chato que passou.
O quarto está frio para outubro. Ela costumava adorar o outono, mas isso
era quando ainda se entusiasmava com as coisas. Agora acabou-se o recreio
lá fora, cantar ou desenhar. Acabou-se o sol a aquecer-lhe a pele, as folhas
caídas, os livros, os lápis de cera ou a esperança.
Encosta a sua boneca, Poupée, à bochecha e fecha os olhos. O bom de
trabalhar o dia todo – seja dar banho aos malucos, fazer as camas ou lavar a
roupa suja – é que, quando se deita na cama à noite, está demasiado cansada
para pensamentos tristes ou sequer para pensar em todas as coisas que a
deixam furiosa. Mas nessa noite, no instante em que paira no precipício entre
o sono profundo e a semiconsciência, acorda, assustada, com uma sacudidela
brusca.
– Não! – queixa-se ela, virando-se de costas para o intruso.
– É hora de acordar.
Elodie pestaneja na escuridão, tentando orientar-se. Do lado de fora, está
escuro como breu.
– Ainda é noite – geme ela, reconhecendo a irmã Tata.
– Vais sair, Elo.
Elodie senta-se na cama, a confusão dando lugar à alegria.
– Vou sair daqui? – pergunta ela.
– Sim – sussurra a irmã, ajudando-a a sair da cama.
Elodie pousa os pés no chão gelado e estremece.
– A minha mãe veio buscar-me? – pergunta, a voz explodindo de
esperança.
– Claro que não – responde a irmã. – Levanta-te e veste isto.
– Isso não é o meu uniforme – diz Elodie, estudando o vestido que a irmã
Tata estendeu na cama.
– Não precisas do uniforme. Basta pores o vestido.
– Tem um cheiro esquisito – diz Elodie.
– Cala-te! – exclama a irmã Tata, exasperada. – Tu e os teus debates.
– Para onde vou?
– Para um novo sítio.
– Porquê?
– Porque estamos sobrelotados aqui.
– Onde fica esse novo sítio?
– Vais descobrir quando chegar a hora.
– E quando será isso?
– Não sei.
– Porque temos de ir a meio da noite? – quer saber Elodie, a excitação
dando lugar ao medo.
– Eu não tomo as decisões – responde a irmã Tata, atravessando a
passagem estreita por entre as camas e indo acordar outra menina, e depois
outra. – Agora vai lavar-te e vestir-te.
– Mas...
– Deixa-te de perguntas tolas!
Uma fila de meninas junta-se a Elodie na casa de banho para se lavarem e
trocarem de roupa. Quando regressa ao dormitório, conta seis no total, todas
alinhadas nos seus vestidos doados, tão sonolentas e desnorteadas como ela.
É quando percebe, com uma onda de horror, que Claire não é uma delas.
– A Claire não vai connosco? – pergunta Elodie, já em pânico.
– Não – responde a irmã, recolhendo algumas das bugigangas guardadas
das primeiras comunhões e crismas e atirando-as para uma maleta.
Elodie olha em volta para todas as outras meninas adormecidas com uma
ponta de inveja, não por ser feliz ali, mas porque é o único lugar que conhece
e começa a dar-se conta de que está a ir-se embora para sempre.
– Vamos, meninas. O comboio está à espera.
– O comboio? – choraminga Elodie, sempre pronta a falar. As outras
meninas são mais velhas do que ela, pelo menos, dois anos e sabem que
devem ficar caladas. – Para onde vamos?
A irmã Tata não responde.
– Tenho de dizer adeus à Claire...
– Não há tempo – sussurra a irmã. – E não deves acordá-la.
Elodie olha, suplicante, para o monte que é o corpo adormecido de Claire.
Como pode ela não dizer adeus? Têm sido inseparáveis nos últimos cinco
anos.
– Porque não posso dizer adeus à Claire? – choraminga, de lágrimas nos
olhos. – Ela não vai saber para onde fui!
– Para de choramingar, Elodie. Vais acordar as outras.
Elodie pega na boneca e abraça-a com força contra o peito.
– Não podes levar isso – diz a irmã, tirando-lhe a boneca. – Sinto muito.
Não são permitidas bonecas para onde vais.
– Mas, irmã...
– Despacha-te, Elo.
No momento em que a irmã Tata se vira para consolar uma das outras
meninas que não pode levar o fio de prata da mãe, Elodie agacha-se e pega
em todos os desenhos que já fez da sua família imaginária, que esconde
debaixo do colchão desde que o orfanato foi transformado em hospital. Mete-
os dentro dos calções que usa por baixo do vestido. Não quer deixá-los para
trás.
Com um último olhar para o quarto onde dormiu toda a sua vida, Elodie
arrasta-se pelo corredor, as lágrimas deslizando-lhe pelas faces. Adeus,
Claire. Adeus, Poupée.
O ar de mistério só aumenta a sensação de desgraça iminente em Elodie,
enquanto segue a irmã Tata e as outras meninas e desce as escadas, tremendo
no vestido fino. Quando chegam ao patamar, sente a mão de alguém a
envolver a dela. Olha para cima, e uma das meninas mais velhas – uma linda
ruiva de dez anos chamada Emmeline – pisca-lhe o olho e aperta-lhe a mão.
Lá fora, Elodie pode ver o vapor da sua respiração no ar. Uma carrinha
espera para as levar à estação de comboios. As seis meninas entram para o
banco de trás. A irmã Tata está sentada no banco do passageiro da frente,
segurando a pequena Bíblia de capa preta no colo. Há tantas perguntas que
Elodie quer fazer: Para onde vamos? Fica muito longe? Porquê nós? É um
orfanato ou um convento? Mas não se atreve a pronunciá-las em voz alta.
Parte dela está aliviada por sair do orfanato de Saint-Sulpice, pois nunca mais
foi o mesmo desde que foi transformado em hospital, mas sente uma
profunda tristeza pelas companheiras que deixa para trás. Elodie não é louca.
O lugar dela não é num hospital e supõe que finalmente descobriram o
engano. Resta-lhe esperar que Claire apareça em breve com outro grupo de
meninas.
Quando chegam à estação, alguns minutos mais tarde, saem em silêncio do
carro e seguem em fila atrás da irmã Tata até à plataforma. A estação em si é
um prédio de tijolos vermelhos ao lado de uma linha, algures no meio do
nada.
– Onde estamos? – sussurra Elodie a Emmeline.
– Farnham – responde ela.
A irmã Tata entrega alguns papéis a um homem com um estranho chapéu,
que os verifica com muita atenção, pedindo-lhes depois para embarcar.
– Bon voyage – diz ele.
Elodie senta-se ao lado de Emmeline, ainda agarrada à mão dela. Ficou no
lugar da janela e olha para fora com o nariz pressionado contra o vidro desde
o instante em que o comboio se põe em funcionamento com um ruído
prolongado até dar um solavanco para a frente e começar a afastar-se de
Farnham.
O Sol começa agora a nascer e Elodie tem a primeira visão do mundo fora
dos muros de Saint-Sulpice. O comboio passa por quilómetros de árvores
repletas de cores outonais, campos vastos, fazendas e vacas. Elodie fica
hipnotizada e pensativa enquanto observa aquela paisagem desconhecida,
tentando memorizar tudo o que vê. Todo o seu corpo é agora um formigueiro
de expectativa, de curiosidade, de espanto, até que, com uma súbita onda de
pavor, algo lhe ocorre.
– Irmã Tata! – chama ela.
– Fala baixo, Elo – ralha a irmã. – O que é?
– E se a minha mãe vier buscar-me? – pergunta, com lágrimas nos olhos. –
Eu não vou estar lá!
Uma das meninas no banco em frente a ela solta uma risadinha trocista e
Elodie estende a mão e dá-lhe um calduço.
– Elodie! – repreende a irmã.
– A minha mãe vai saber onde me encontrar? – quer saber Elodie.
– Sim, Elodie. Há um registo de transferência. Agora, sossega.
Aliviada, Elodie deixa-se cair no assento e encosta a cabeça à janela,
olhando para fora até a sua visão se toldar e passar pelo sono.
Quando dá por isso, alguém a puxa pelo braço, obrigando-a a levantar-se.
– Chegámos – diz Emmeline.
Elodie olha em volta, observando os edifícios cinzentos, as ruas de asfalto,
os carros, o lixo e os cheiros estranhos.
– Onde estamos? – pergunta ela, com ar desaprovador. – É feio e cheira
mal.
– Cala-te!
– É Montreal – explica Emmeline, baixinho. – Estamos na cidade.
A cidade. O coração de Elodie acelera. Outro carro espera por elas. É
novinho em folha, com as letras BUICK escritas na traseira. Elodie já sabe ler,
graças a Claire, que a ensinava sempre que tinham um bocadinho de tempo
livre.
A irmã Tata manda as meninas entrarem no Buick. O ambiente no carro é
pesado e a irmã vira-se para trás para as olhar com uma expressão
preocupada no rosto.
– Vai ficar connosco? – pergunta-lhe Elodie.
– Não posso, Elo. Tenho de voltar para Saint-Sulpice.
Elodie reprime as lágrimas, tentando não se portar como um bebé, mas o
lábio inferior não cessa de tremer. O carro atravessa as ruas da cidade em
silêncio, passando por edifícios muito altos e painéis chamativos que pairam
bem alto em cada esquina, abafando o resto da paisagem. BEBA PEPSI! PEÇA
LABATT! DU MAURIER, O CIGARRO DISTINTO.
Elodie consegue ver o movimento dos lábios da irmã Tata enquanto reza
baixinho. Elodie sente-se simultaneamente fascinada e repelida por tudo o
que acontece ao seu redor.
– Olha um comboio na rua! – exclama ela, apontando para a janela.
– É um elétrico – explica a irmã Tata.
Finalmente, o carro estaciona em frente a um imponente edifício de pedra
cinzenta com uma cruz no cimo da colunata central. A princípio, Elodie
pensa que é um convento, mas depois repara nas palavras esculpidas na
fachada de pedra: HÔPITAL ST. NAZARIUS.
– Outro hospital? – protesta ela. – O meu lugar não é num hospital!
A irmã Tata sai do carro. As outras meninas seguem-na, mas Elodie recusa-
se a sair.
– Sai do carro – ordena a irmã severamente. – Esta é a tua nova casa, quer
gostes quer não. Não ficarás pior do que estavas em Saint-Sulpice.
Elodie sai contrariada e arrasta os pés, infeliz, atrás da procissão de órfãos
mais obedientes, subindo a escadaria da frente. O que ela não daria para
regressar a Saint-Sulpice.
Assim que entram no átrio principal, outra freira abre uma pesada porta
dupla, trancando-a, em seguida, com um simples girar da grande fechadura
dourada e reluzente. Elodie dá um salto ao ouvir o clique e esconde-se atrás
de Emmeline.
A irmã Tata entrega a mala e alguns papéis à outra freira, uma mulher
baixa e forte com uma expressão azeda, os lábios finos e pequenos olhos
escuros de morcego.
– A mais nova tem sete anos – diz a irmã Tata, puxando Elodie para a
frente.
A freira olha para Elodie, inspecionando-a com os seus olhos arregalados
de morcego e franze o sobrolho.
– Vai ficar na enfermaria B com as mais velhas – diz ela com uma voz
gélida que faz Elodie ter vontade de se esconder debaixo das vestes da irmã
Tata.
– Muito bem – diz a irmã Tata, virando-se para as meninas. – Tenho de ir,
agora.
Elodie irrompe num pranto.
– Não nos deixe aqui! – chora ela, abraçando a cintura de Tata. – O meu
lugar não é num hospital!
A irmã Tata ajoelha-se e segura o rosto de Elodie nas mãos.
– Vais ficar com outros órfãos – sussurra ela. – Não refiles e vai correr tudo
bem.
Então, levanta-se, ajeita o hábito e toca o ombro de Elodie.
– Boa sorte, meninas – diz ela, e Elodie vê os olhos lacrimejantes da irmã.
– A irmã Ignatia é a responsável por vós, daqui em diante.
Todas se viram para olhar para a freira cuja postura sinistra, expressão
carrancuda e voz severa já lhes incutiu o terror nas almas.
– Boa sorte – repete a irmã Tata, destrancando a porta e desaparecendo na
noite.
A irmã Ignatia apressa-se a trancar a porta novamente. Clique.
– Sigam-me – comanda.
As meninas obedecem, seguindo atrás dela, subindo seis lanços de escadas
e depois atravessando em fila indiana um longo corredor misteriosamente
silencioso.
Onde está toda a gente? questiona-se Elodie, mas não se atreve a
perguntar.
No final do aparentemente interminável corredor, a irmã Ignatia detém-se e
destranca outra porta, na qual há uma placa que diz: ENFERMARIAS A – D.
No momento em que atravessam aquela porta, o lugar ganha vida, o cheiro
a lixívia invadindo-lhes as narinas, as idas e vindas de freiras em hábitos
brancos e uma cacofonia de lamúrias e gritos distantes assoberbando-as.
Seguem a irmã Ignatia até ela parar em frente a outro aposento misterioso.
– Este é o dormitório da Enfermaria B – anuncia, empurrando a porta para
revelar um enorme quarto com seis filas de dez camas brancas de ferro,
colocadas cabeceira com pés, deixando apenas espaço suficiente entre elas
para uma cómoda tosca praticamente do tamanho de um armário de arquivo.
Uma simples cruz está pendurada por cima da primeira cama de cada fila.
Dez cruzes, conta Elodie. Sessenta camas, sessenta cobertores de lã pardos.
Seis janelas com grades, viradas para um terreno deserto em cimento e um
céu cinzento a perder de vista. No canto do aposento, a presença imponente e
assustadora de uma estátua de Jesus na cruz parece estar de vigia, para
quando as freiras não podem.
A irmã Ignatia não lhes dá muito tempo para se ambientarem antes de as
conduzir, junto à parede do fundo, até à casa de banho.
– Têm de atravessar a casa de banho para chegar à sala comum – explica
ela, caminhando à frente deles em passos curtos, mas assertivos.
Abre a porta da sala comum e Elodie emite um suspiro chocado.
– O que se passa? – pergunta a irmã Ignatia, virando-se para ela com olhos
ameaçadores e narinas dilatadas. – Nunca viste um mongoloide?
Elodie engole o nó que se formou na garganta e acena com a cabeça. Havia
Philadora, mas ela era diferente; doce e inofensiva, não assustadora como
estes.
– É melhor habituares-te a eles – rosna a irmã Ignatia.
A sala é organizada de maneira semelhante ao dormitório, só que, em vez
de filas de camas, há dezenas de filas de cadeiras de baloiço, a maioria delas
ocupadas por raparigas pouco mais velhas do que Elodie, que balbuciam
baixinho ou rosnam como animais ou fixam a parede com estranhos olhos
sem vida. Todas têm o mesmo corte de cabelo. É difícil distinguir os
atrasados mentais dos doentes mentais; ali, na sala comum, estão todos
misturados. De certa forma, a visão de jovens doentes mentais é mais
aterrorizante do que a dos adultos de Saint-Sulpice.
– Porque é que alguns estão embrulhados daquela maneira? – pergunta
Elodie, apontando para uma estranha camisa branca com fivelas.
– É uma camisa de forças – responde a irmã Ignatia. – E se não te
comportares, há uma para ti.
Elodie recua, ainda escondida atrás de Emmeline, e repara numa menina
nua a choramingar a um canto. Está curvada de lado, os ossos da coluna
pálida proeminentes, os joelhos puxados contra o peito, e treme
violentamente.
Elodie mal pode acreditar no que vê. O pulso da menina está acorrentado a
um cano.
A irmã Ignatia não olha para a menina nem tenta explicar ou justificar a
razão para ela estar naquela situação. Tudo parece fazer parte da vida normal
ali em Saint-Nazarius.
Assim que a visita termina, é hora dos cortes de cabelo. Uma rapariga de
rosto redondo – uma das outras pacientes – corta o cabelo das novas meninas
a direito, acima das orelhas, e à frente uma grossa franja desigual. Quando
termina o de Elodie, ela olha-se ao espelho da casa de banho e franze a testa.
Agora, está igual às meninas malucas das cadeiras de baloiço.
– Elas são todas tão horríveis como a irmã Ignatia? – pergunta Emmeline à
rapariga de rosto redondo.
– Livraram-se da última supervisora da enfermaria B por não ser má o
suficiente. Caso não tenhas percebido, chegaste ao inferno.
Quando os cortes de cabelo estão prontos, as meninas são mandadas alinhar
para a inspeção. A irmã Ignatia volta a entrar e faz um exame rápido e
desdenhoso.
– Irmã?
Todas se viram para a menina que, com voz trémula, se atreveu a falar com
a irmã Ignatia. É Emmeline.
A irmã Ignatia aproxima-se dela com uma expressão curiosa.
– O que queres? – pergunta ela.
– Acho que houve um engano – diz-lhe Emmeline, enfrentando o olhar
gélido da freira. – Somos órfãs. Não devíamos estar num hospital como este.
Elodie tem vontade de bater palmas. Finalmente, alguém disse as palavras
que ela está mortinha por gritar desde que chegaram, naquela manhã. Aquele
sítio é um hospício. Um lugar para pessoas com atrasos mentais graves e
dementes, pacientes muito piores do que os idosos do orfanato.
– Não devias estar num hospital como este? – repete a irmã Ignatia, os
lábios curvando-se num meio sorriso ameaçador. – Onde devias estar, então?
Emmeline olha para o chão.
– Num orfanato – responde ela baixinho. – Ainda pode haver oportunidade
de sermos adotadas. Aqui ninguém vai encontrar-nos...
Sem qualquer aviso, o braço da irmã Ignatia atinge a lateral do crânio de
Emmeline. A pancada é tão forte que Emmeline cambaleia para trás e cai no
chão, atordoada.
– Este é exatamente o sítio onde pertences – diz a irmã Ignatia, parada
acima dela. – Todas nasceram em pecado, não foi?
Põe-se a andar na frente das meninas aterrorizadas.
– Nunca questionem se deveis ou não estar aqui. Já têm muita sorte por vos
darmos um teto e comida. É mais do que merecem. As vossas vidas são
inúteis e serão tratadas como tal.
Vira-se para Emmeline, que ainda está encolhida no chão.
– E tu – continua a irmã, espicaçando Emmeline com a bota preta –, tu vais
ficar na enfermaria D, com os epiléticos.
– Não, por favor – implora Emmeline. – Eu não digo mais nada.
A irmã Ignatia agarra um punhado do cabelo recém-cortado de Emmeline e
arrasta-a pelo corredor. Elodie tapa os ouvidos para abafar os gritos de
Emmeline e morde o lábio com força para não fazer barulho. Sente as outras
meninas ao seu lado a tremer, e quando espreita, vê as lágrimas a correrem-
lhes pelas faces.
Quase não se lembra do resto do dia. As refeições são intragáveis – carne
castanha e legumes empapados, acompanhados de uma minúscula porção de
melaço espalhada no prato como sobremesa. A tarde é interminável. As
meninas são deixadas na sala comum com a tarefa de balançarem as cadeiras
onde os zombies estão sentados. Ainda não lhes foram atribuídas as posições
onde irão trabalhar, por isso, não há nada a fazer além de olhar para as
paredes e tentar não dar nas vistas.
À noite, Elodie deita-se, grata, cobrindo-se com o áspero cobertor cinzento
e fecha os olhos. O sono será o seu único alívio ali; já sabe disso. No
momento em que perder a consciência, será livre.
– Senta-te.
Elodie abre os olhos, espantada ao ver uma das freiras de pé sobre ela.
– Abre a boca.
– Para quê? – pergunta Elodie, arrependendo-se imediatamente.
A freira dá-lhe uma bofetada.
– Abre a boca – repete ela.
Elodie abre a boca e a freira coloca-lhe um comprimido na língua.
– Engole – ordena, entregando a Elodie um copo de água morna. – É para
te ajudar a dormir.
Elodie volta a deitar-se e a freira aproxima-se da menina seguinte. Fica um
pedaço a pensar na irmã Tata e em Claire, imaginando o que farão. Será que
sentem a falta dela? Será que a Claire perguntou onde ela está? Será que
voltará a vê-las? Os pensamentos seguem para Emmeline e preocupa-se por
ela estar na enfermaria dos epiléticos. Nem sabe o que é um epilético, mas
parece aterrorizante.
E então, no silêncio fantasmagórico, ouve uma menina a cantar uma canção
de embalar do outro lado do quarto e pergunta-se se estará a sonhar. «Fais
dodo, bébé a maman; fais dodo...»
Elodie tenta virar a cabeça para ver quem é, mas não consegue; está
paralisada. Mal consegue ter os olhos abertos. O corpo parece flutuar e sente-
se estranhamente calma. A canção da menina é reconfortante, um instante de
leveza naquele lugar sinistro.
Ouve alguém murmurar: «Chiu, Agathe! A irmã vai ouvir-te». Mas a
menina continua a cantar. Elodie começa a adormecer. Sente a boca seca, a
língua grossa e um formigueiro nas mãos e nos pés. «Fais dodo, bébé a
maman; fais dodo...»
E tudo desaparece.
CAPÍTULO 18

Maggie

M aggie afunda as mãos na terra e sente o cheiro a terra molhada, um


cheiro que ainda associa à loja do pai. Parece ouvir a voz dele como se
estivesse ali, ao lado dela. Deixa lá o sacho e planta os bolbos de tulipas e
narcisos bem fundo, pelo menos, a vinte ou vinte e cinco centímetros de
profundidade.
Segue sempre as instruções dele à risca. A consequência disso é um jardim
que é o orgulho de Knowlton. A profundidade vai manter as raízes frescas e
húmidas durante a nossa primavera quente e seca. Depois, aduba a terra
com farinha de osso e fertilizante para bolbos.
Corre o ano de 1959 e Maggie está quase na nona semana de gestação.
Tendo já sofrido dois abortos espontâneos, ambos perto das oito semanas,
receia criar esperanças desta vez.
Os abortos parecem-lhe um castigo por ter abandonado a sua primeira filha.
Desde que começou a tentar engravidar, Elodie não lhe sai do pensamento.
Ela tem agora nove anos, já não é um bebé. É estranho imaginá-la a crescer
algures, talvez até nas proximidades, como uma completa estranha. Maggie
não consegue parar de pensar como será ela, com quem se parecerá. Com
Gabriel? Com Yvon? Loira ou morena? Rechonchuda ou magricela?
Otimista, encantadora, taciturna ou triste?
Depois do segundo aborto, Violet disse-lhe:
– Talvez algo tenha ficado afetado quando tiveste o bebé.
A mãe contrapôs:
– Talvez seja um castigo de Deus.
Ambas as hipóteses são plausíveis. A maternidade – que, até ao momento,
tem provado ser frustrantemente inatingível – parece ser a condição essencial
e única para se sentir valorizada como mulher ou ter qualquer utilidade para o
mundo. Se não o conseguir, é um caso perdido.
A sua vida presente é passada entre duas grandes casas – ambas lindamente
decoradas, ambas solitárias. Roland comprou a casa de campo em Knowlton
depois do primeiro aborto, com a esperança de que isso a animasse ou, pelo
menos, de que a ocupasse. Maggie ainda trabalha nos armazéns Simpson’s,
mas ainda não foi promovida.
Roland trabalha até tarde e Maggie fica sozinha a maior parte do tempo.
Mesmo aos fins de semana, ele vai para a cidade trabalhar no banco,
deixando-a sozinha a falar para as paredes da casa. Tenta ignorar o
ressentimento que se vai infiltrando, pois sabe que ele quer afastar-se da
tristeza dela, mas não resulta. Roland, apesar de todas as garantias e
promessas de compromisso no início da relação dos dois, revelou-se uma
pessoa dissimulada e inflexível.
Ainda de joelhos, Maggie pega na mangueira e rega as flores com todo o
cuidado.
A jardinagem é um momento de reflexão para ela. Nesta estação, plantou
pervincas, que treparam pelas rochas como um tapete cor-de-rosa. Plantou
flox de cores vivas, gencianas, gerânios e espetaculares morangueiros a
ladear toda a calçada de pedra. Não tem medo de experimentar coisas
inesperadas. Às vezes, excedem todas as expectativas; outras vezes, falham
miseravelmente. Aconteça o que acontecer, adora o seu jardim.
Há noites em que, muito depois de Roland adormecer ao seu lado, sai para
inspecionar o seu trabalho. Fica ali parada, com os pés descalços na relva
orvalhada, a admirar as suas adoradas plantas anuais e perenes. É o jardim
que o pai sempre sonhou fazer, assim que tivesse alguma folga do trabalho.
Ele registou todos os bolbos raros e deslumbrantes que plantaria; desenhos
pormenorizados que incluem bancos onde poderia sentar-se a admirar as
flores; planos elaborados para um bebedouro de pedra, uma fonte, um lago
cheio de rãs. O pai sempre sonhou com dias lânguidos nos quais não faria
mais nada além de tratar do seu jardim. O escritório dele ainda está repleto de
planos antigos, listas de possíveis flores – brilhantes flores azuis, campainhas
e neves-no-verão –, mas nunca teve tempo. Sempre ocupado com a loja, a
organização do catálogo e as encomendas por correio. Reclama que está
demasiado ocupado com os jardins das outras pessoas para ter o seu, mas
Maggie suspeita que ele tenha mais prazer com o planeamento e o devaneio
do que com o trabalho efetivo no maldito jardim.
Ao fim de uma hora de labuta na terra, Maggie levanta-se. As cãibras
começam nesse momento, obrigando-a a dobrar-se na relva. Sente o sangue
quente entre as pernas antes mesmo de o ver nos calções brancos.
Fica ali muito tempo, deitada na relva. Demasiado entorpecida para chorar,
demasiado devastada para se mexer. Roland chega finalmente a casa e
encontra-a a olhar para o céu.
– Maggie? Querida? – Ele acocora-se ao lado dela. – O que aconteceu? O
que fizeste?
– Eu não fiz nada!
– Estavas a fazer jardinagem? – pergunta ele, em tom acusador. –
Esforçaste-te demasiado? Sabes que devias ir com calma...
– Quem te ouvir, há de pensar que faço de propósito!
Os lábios de Roland estão apertados numa linha tensa.
– É só que tu devias ter... não devias fazer esforços...
– A culpa não é minha.
– Não, claro que não – apressa-se ele a corrigir. – É só mais um revés.
– Este é o terceiro.
– Vamos ao médico – declara ele. – Vamos tratar de ti. Não vamos desistir.
Palavras reconfortantes. Heroicas. Não vamos desistir! Pelo menos é algo a
que se pode agarrar.

Alguns dias depois, Maggie vê-se de olhos fixos no telefone. Quer fazê-lo
há meses, talvez anos. Com um súbito lampejo de coragem, pega no
auscultador e disca o número.
– Ligue-me ao orfanato de Cowansville, por favor – pede ela à telefonista.
– Um momento – diz a telefonista, a voz nítida e neutra.
Maggie acende um cigarro e exala, com a boca na caneca de café.
Segundos depois, outra mulher entra na linha.
– Irmãs do Bom Pastor – diz ela numa voz agradável. – Daqui fala a irmã
Maeve.
Nenhum som escapa da boca de Maggie. Olha para o bocal do auscultador
como se fosse um objeto estranho.
– Irmãs do Bom Pastor – repete a freira. – Está lá?
– Olá, irmã – consegue Maggie finalmente articular, com a devida
quantidade de humildade e respeito na voz.
– Como posso ajudá-la, minha querida?
Bondade. Maggie relaxa.
– Procuro informações sobre uma menina – diz ela.
– Sinto muito, mas não posso ajudar – responde a freira, mudando de tom.
– Mas trata-se da minha filha.
– Se teve uma bebé e ela está aqui, então, não é sua filha. Infelizmente, não
tem direitos nesta província, minha querida.
– Mas eu sou a mãe dela.
– O melhor é esquecê-la. Compreende que, se ela é ilegítima, a senhora não
tem direitos? Essa é a lei.
– Não estou a pedir que me diga onde ela está – diz Maggie. – Só quero ter
a certeza de que foi adotada...
– Os registos são confidenciais – explica a freira. – Ninguém aqui ou em
qualquer orfanato do Quebeque pode fornecer informações. Reze pelo seu
pecado, minha filha...
– Por favor, eu ficaria muito grata por qualquer coisa que me possa dizer –
implora Maggie, o auscultador a tremer-lhe na mão. – Só quero saber se ela
foi adotada, para poder parar de me preocupar se ela acabou num asilo...
Prende a respiração, esperando que a irmã Maeve lhe diga para esquecer o
assunto e seguir com a sua vida. A freira suspira.
– Sabe a data de nascimento?
A pergunta apanha Maggie desprevenida, pois, sinceramente, não esperava
conseguir nada.
– 6 de março de 1950 – diz ela, com a voz trémula.
– E o dia em que foi trazida para cá?
– O mesmo.
– Aguarde, por favor.
Maggie tenta acalmar-se. Respira fundo, respira fundo. O coração bate com
toda a força. A irmã Maeve fica longe durante muito tempo, pelo menos dez
ou quinze minutos.
– Nenhuma bebé foi trazida para cá nesse dia – diz ela, quando volta
finalmente ao telefone.
– E no dia seguinte? – pergunta Maggie, confusa.
– Não chegou nenhum bebé aqui em março de 1950 – diz ela. – Receio que
tenha ligado para o orfanato errado.
– Tem a certeza?
– Sinto muito.
– Há outro orfanato na zona? Perto de Frelighsburg?
– O mais próximo que conheço é o de Sherbrooke – responde ela. – E uma
grande quantidade de recém-nascidos indesejados vai para Montreal.
Recém-nascidos indesejados.
– Lamento não poder ajudar mais, minha querida. Deus a abençoe.
A linha cai.
Maggie fica paralisada durante muito tempo. Acende outro cigarro no
anterior. Deda disse-lhe que o pai levou a bebé para o orfanato de
Cowansville. Porque é que não há um registo da chegada de Elodie?
Num impulso, Maggie pega no telefone e liga para a loja do pai.
– Para onde levaste o meu bebé? – pergunta-lhe ela.
– Maggie?
– Acabei de falar com uma pessoa do orfanato Bom Pastor – continua ela, a
adrenalina a fervilhar-lhe no sangue. – A Deda disse-se que foi para onde a
levaste, mas não há registo da entrada de uma menina nesse ou em qualquer
outro dia de março.
– Disseram-te isso?
– Sim.
– É ilegal...
– Para onde a levaste, papá?
– Acalma-te – pede ele. – Não devias desenterrar o passado, especialmente
agora que estás grávida.
Maggie cerra os olhos para afastar as lágrimas. Não contou aos pais sobre o
último aborto espontâneo.
– Para onde a levaste? – insiste ela.
– Levei-a para o orfanato de Cowansville – responde ele, a voz subindo de
tom. – Tal como a tua tia te disse. O que não deveria ter feito, a propósito.
– E eu acabei de te dizer que nenhuma criança deu entrada nesse dia.
– Para onde mais poderia eu tê-la levado? – insiste ele. – Não tenho
interesse nenhum em mentir, Maggie. É o sítio para onde vão todos os bebés
ilegítimos. Não havia propriamente abundância de escolha.
– Não a levaste para Sherbrooke? Ou para Montreal?
– Eu não.
– Não faz sentido.
– Talvez tenha havido algum engano, Maggie. Duvido muito que os
registos deles sejam totalmente seguros. Seja como for, tens de deixar o
passado para trás. Tens sorte em estares tão bem na vida agora. – Ela ouve
vozes de homens ao fundo. – Chegaram clientes – diz o pai. – Tenho de ir.
Concentra-te no bebé que vais ter. O outro é um beco sem saída.
CAPÍTULO 19

Elodie

1959

E lodie tenta levantar a cabeça da almofada, mas está pesada como tijolos.
O comprimido que lhe dão à noite transforma-a em zombie no dia
seguinte. Raramente se sente acordada. O mundo parece desenrolar-se em
câmara lenta através de um filtro nebuloso. As freiras disseram-lhe que o
comprimido que dão a todos os pacientes se chama Largactil. Algumas das
meninas mais velhas da enfermaria B chamam-lhe o comprimido da
lobotomia. Embora Elodie tenha apenas nove anos, já sabe o que é uma
lobotomia; outra menina chamada Nora explicou-lhe. Nora foi transferida da
enfermaria dos epiléticos na primavera passada. Quando chegou à enfermaria
B, Elodie foi logo perguntar-lhe por Emmeline.
– Ela não fala desde a lobotomia – disse Nora com naturalidade.
– O que é uma lobotomia? – quis saber Elodie.
– É quando te espetam um picador de gelo na frente do cérebro para te
tornar menos violenta – explicou Nora. – Estão sempre a fazê-lo no bloco
operatório.
Elodie suspirou de choque, não acreditando que pudesse ser verdade.
Correu para a irmã Alice – a única freira semi-humana da enfermaria – e
puxou-lhe o hábito.
– É verdade que eles espetam picadores de gelo na cabeça dos pacientes
para não serem violentos? – perguntou ela, sem fôlego.
– Que disparates estás para aí a dizer, Elodie?
– A Nora disse-me que a Emmeline não fala desde que a lob... lob... aquela
coisa em que eles fazem um buraco na cabeça...
A irmã Alice suspirou.
– Uma lobotomia é uma operação perfeitamente legítima – explicou ela. –
Com os pacientes perigosos, não há outra opção.
– Mas a Emmeline não era perigosa...
– Se tratares da tua vida e não arranjares problemas – avisou ela –, não
precisarás de uma.
Naquela tarde, Nora foi acorrentada a um cano por causa da sua «língua
comprida». Culpou Elodie e nunca mais falou com ela, até ter sido transferida
para outra enfermaria.
Elodie está imóvel na cama, ainda grogue e de boca seca. De certa forma,
sente-se grata pelo Largactil. Embora deteste a forma como a faz sentir o dia
todo – lenta, confusa e estúpida –, atenua a dor antes de adormecer e ao
acordar. Naqueles meros minutos de estupefação dócil, quando os
pensamentos são um borrão e a mente quase inconsciente, consegue
esquecer. Tudo tem uma aura alucinatória: os outros pacientes, as freiras, a
desesperança do seu encarceramento. O Largactil, pelo menos, neutraliza o
desespero durante algum tempo.
Eu não sou louca, recorda a si mesma. Eu não sou louca.
As luzes acendem-se e as meninas levantam-se das camas. Arrastam-se até
à casa de banho, escovam os dentes e lavam a cara com água fria, tentando
livrar-se dos efeitos da droga. O melhor que se pode dizer dos dias de Elodie
em Saint-Nazarius é que não se importa com o seu atual trabalho a coser
lençóis na cave. O primeiro trabalho ali foi limpar as casas de banho de todas
as enfermarias femininas. Andar atrás de andar, casa de banho atrás de casa
de banho, durante quase um ano. Quando ouviu uma das outras meninas
comentar que havia trabalho na costura, mentiu e disse que sabia costurar. De
alguma forma, conseguiu safar-se. Ao observar as outras costureiras – e com
a ajuda de uma das veteranas, uma epilética chamada Marigot –, foi capaz de
aprender com rapidez suficiente para manter o lugar. Aparentemente, tem
jeito.
Depois do pequeno-almoço e das orações, Elodie desce até à cave – o seu
refúgio – e senta-se à máquina Singer. Não a incomoda ficar sentada horas a
fio sem intervalo; a dor nas costas é um luxo em comparação com as dores
que sentia no corpo por esfregar o chão e as sanitas. Além disso, há trabalhos
piores, como transportar os cadáveres para o cemitério atrás do hospital. Há
pacientes a morrer em Saint-Nazarius quase todos os dias – não apenas
idosos, mas também crianças. As notícias correm depressa pelas enfermarias,
passadas das raparigas mais velhas para as mais novas. Naquele lugar cheio
de segredos não há segredos.
Ela começa a costurar a porção da manhã – uma dúzia de bainhas de
lençóis por hora, duas dúzias até ao meio-dia – deixando a mente vaguear ao
sabor do zumbido da máquina. Perde a conta aos lençóis que costura, à
medida que se amontoam ao seu lado, mas, sem saber como, faz sempre a
quantidade correta. A sineta da irmã Calvert a soar junto ao ouvido arranca-a
ao devaneio.
É esta a rotina monótona dos seus dias. O almoço é uma espécie de carne
castanha afogada num molho grosso e coagulado. A sobremesa é sempre uma
pequena porção de melaço espalhada no prato.
Depois, regressa à cave, onde se espera que atinja a quota da tarde – a
ameaça de transferência é uma presença constante –, seguida de mais uma
papa indiscernível ao jantar e depois de volta para a enfermaria, para balançar
estupidamente nas cadeiras rangentes com os verdadeiros loucos.
À noite, quando a freira de plantão se detém junto à sua cama para
distribuir o Largactil, Elodie toma-o com uma mistura de medo e alívio.
Habituou-se a gostar do momento em que as pálpebras ficam pesadas e a
cabeça começa a flutuar, do exato momento em que a realidade se desvanece.
Nessa noite, o seu último pensamento consciente antes do abençoado
esquecimento é: Oh, ali está a Lua.
Acorda a tremer e desorientada, sentindo a cama molhada. Ainda é noite e
estão todos a dormir. Apercebe-se de um cheiro avinagrado e pungente. Leva
alguns minutos a perceber que fez chichi na cama.
Fica um grande pedaço deitada na própria urina, a pensar em como vai
navegar pelo labirinto de camas até à casa de banho. A fila de camas onde se
encontra é a mais distante e ela ainda está meio drogada. Quando finalmente
delineia uma estratégia, sai de mansinho da cama, tira os lençóis e enrola-os
numa bola.
Esgueira-se com toda a cautela pelo espaço estreito entre a parede e a
primeira fila de camas, mas ainda se sente muito grogue. As pernas não lhe
obedecem como deveriam – como se fossem macarrão cozido – e o quarto
parece girar. O Largactil é um imobilizante poderoso, mas ela usa a parede
para se apoiar. O que não contava era com a bota mal arrumada, a espreitar
debaixo de uma das camas.
A bota devia estar no cubículo à entrada do dormitório; cada menina tem o
seu cubículo – uma pequena prateleira por cima de um cabide onde podem
guardar os parcos e preciosos bens –, mas Elodie tem o azar de tropeçar numa
bota perdida e se espalhar ao comprido no chão do quarto. Se estivesse mais
alerta, poderia ter evitado cair de forma tão estrondosa; no entanto, para
evitar a queda, tenta agarrar algo e acaba por derrubar uma das mesinhas de
cabeceira metálicas. A mesinha de cabeceira e o candeeiro caem ao chão, o
vidro da lâmpada partindo-se.
Ouve algumas das outras meninas a acordar. O que aconteceu? Quem está
aí? A luz acende-se de repente cegando momentaneamente Elodie. Os
joelhos doem-lhe e vê que está a sangrar por causa da lâmpada partida.
Quando olha para cima, vê a irmã Ignatia de pé acima dela, com uma
expressão carrancuda. Embora seja baixa e atarracada, do ponto de vista de
Elodie no chão, a freira parece gigante.
– O que aconteceu? – ruge ela.
– Eu tinha de ir à casa de banho – murmura Elodie. – Não conseguia ver o
caminho.
– Pelo cheiro, parece que já foste à casa de banho.
Elodie tenta esconder os lençóis molhados com o corpo.
– Acordaste toda a gente.
– Foi um acidente – lamenta Elodie. – Tropecei numa bota.
– Estás a tentar arranjar sarilhos a alguém?
– Não, irmã. Foi um acidente.
– Devias ter mais cuidado.
Elodie não consegue conter um soluço que lhe escapa dos lábios.
– Vai para a casa de banho e espera lá por mim – manda a irmã Ignatia. – E
tira essa camisa de dormir suja.
– Mas eu não vi a bota! – choraminga Elodie, incapaz de se controlar. –
Não é justo!
– Justo? – repete a irmã Ignatia, os lábios retesando-se num sorriso
assustador. – Devo lembrar-te que és paciente do meu hospital? Eu sou o teu
juiz, e julgo não só as tuas transgressões de hoje, mas todos os teus pecados,
assim como os pecados dos teus pais. Agora vai e espera por mim na casa de
banho.
Elodie levanta-se, atabalhoada, e corre para a casa de banho. Tira a camisa
de dormir e coloca-a no lavatório, juntamente com os lençóis, abrindo a água
quente para ficarem de molho. Nua e a tremer, envolve o peito com os braços
e aninha-se para gerar algum calor corporal.
A irmã Ignatia entra na casa de banho trazendo um grande balde de gelo. A
postura dela é calma. Deita o gelo na banheira e empurra Elodie lá para
dentro. Elodie tenta ser estoica, mas está a congelar e desata a chorar.
A irmã Ignatia pega na grande escova de madeira que está por baixo do
lavatório – a que usam para limpar o chão – e esfrega as coxas de Elodie até
ficarem em carne viva.
– Assim já deve bastar – murmura ela com satisfação, segurando depois a
cabeça de Elodie debaixo da torneira. – Da próxima vez, tem mais cuidado.
Antes de sair, atira a Elodie uma camisa de dormir branca e limpa.
A porta fecha-se atrás dela. Finalmente sozinha, Elodie sai da banheira e
veste a camisa de dormir.
– Eu não sou louca – sussurra para o reflexo no espelho.
Se parar de o repetir, corre o risco de esquecer.
CAPÍTULO 20

Maggie

M aggie vê a mãe varrer um montículo de lixo para a pá e depois despejá-


lo do lado de fora da porta das traseiras.
– Aquelas criaturas nunca param de trazer lixo para dentro de casa –
reclama.
As «criaturas» são os filhos, os três mais jovens que ainda vivem em casa.
Maggie bebe um gole de limonada fresca e suspira de prazer. A limonada da
mãe é feita com limões frescos, montes de açúcar e um pouco de mel para
ficar ainda mais doce. O bolo de maçã derrete-se na boca, e os sublimes dotes
culinários da maman quase fazem Maggie esquecer-se de como era mau viver
com ela. Também ajuda o facto de a mãe a tratar melhor agora que é casada e
já não está sob a responsabilidade dela.
A maman serve-se de um copo de limonada, corta uma fatia de bolo e
senta-se à frente de Maggie. É domingo à tarde. Roland e o pai dela estão no
jardim, a beber e a fumar charutos ao sol.
– Como te sentes? – pergunta a maman. – Ainda tens enjoos matinais? Eu
tive durante vários meses. É terrível. Lembras-te?
Maggie tem temido este momento. Desvia o olhar e diz:
– Eu perdi o bebé.
– Outra vez?
– Sim – admite Maggie. – Mas, desta vez, fui ao médico.
Roland marcou uma consulta com um especialista em Montreal, o Dr.
Surrey. Submeteu Maggie ao procedimento de dilatação e curetagem,
alegando que, pelo menos, lhe limparia o útero.
– Há definitivamente resíduos no útero de um dos abortos anteriores – disse
ele. – O que explicaria o problema que teve com a última gravidez.
– Isso quer dizer que os resíduos do primeiro aborto podem ter causado o
segundo? – interveio Roland. – E assim por diante?
– Sem dúvida.
– Eu sabia que havia uma explicação – disse ele, muito satisfeito consigo
próprio.
– Os abortos são bastante comuns, Mrs. Larsson. Não significam
necessariamente que se passe algo de errado. No entanto, sem uma dilatação
e curetagem uterina para limpar todo o tecido, o risco de outro aborto
espontâneo aumenta.
O útero de Maggie já está limpo. O primeiro aborto – algo normal e fortuito
– provavelmente causou os seguintes. Não tem de se preocupar, assegurou o
Dr. Surrey. Agora só precisam de voltar a tentar engravidar. As perspetivas
de sucesso são excelentes.
– Provavelmente terás um neto no próximo verão – diz Maggie à mãe,
soando mais otimista do que se sente. – Ele fez-me uma dilatação e
curetagem uterina e disse que deveria ser suficiente.
– Como está o Roland a lidar com isso?
A maneira de Roland lidar com os problemas é fazer comboios em
miniatura, dedicando-se compulsivamente a montar peças minúsculas e,
principalmente, a trabalhar. Começou a sair de casa um pouco mais cedo de
manhã e a regressar mais tarde do que o habitual à noite. Muitas vezes nem
chega a tempo do jantar. Maggie sempre soube que ele se sente
desconfortável perto dela quando ela está deprimida. Os humores dela
assustam-no e melindram-no. Aprendeu isso sobre ele ao longo dos anos:
Roland precisa que tudo na sua vida seja organizado e agradável. Quer uma
mulher que seja alegre e complacente. Maggie tenta, mas descobriu que é
uma péssima atriz.
De certa forma, ele enganou-a, fingindo gostar da ambição dela quando, na
verdade, só queria que ela tivesse filhos. Ele é muito bom a fingir, algo que
ela foi descobrindo gradualmente no decurso do casamento, através de
pequenas migalhas de informação que ele deixa escapar, geralmente quando
bebe demasiado. O pai dele era um sueco insensível e severo que não gostava
do filho. A mãe tentou compensar e encobrir o desdém do pai, até ter morrido
e deixado os dois sozinhos. Roland tornou-se um mestre a criar um verniz de
alegria e normalidade, especialmente em ambientes tensos.
Maggie gostaria que pudessem voltar a ser como eram, antes de ficarem tão
obcecados em ter um filho. Roland é muito mais determinado do que ela, e
isso transformou-o como pessoa. Deixou sequelas na amizade e afetou a
qualidade do casamento de ambos – precisamente aquilo que ela mais
apreciava na sua vida juntos.
– Ele está a castigar-te – diz a maman, espetando o garfo no bolo.
– Quem?
– Deus.
– Talvez eu não deva ter filhos – diz Maggie. – Não tinha a certeza se
queria tê-los, a princípio.
– Ninguém realmente os quer ter – admite a maman. – Mas há outra opção?
– Não nos querias?
– Quem pensa em tais coisas? – diz a maman. – Nós simplesmente ficamos
grávidas. É o que fazemos.
– Porque não ficaste com a minha bebé? – pergunta Maggie à mãe. –
Podias tê-la criado como se fosse tua. Tu gostas de bebés.
A maman franze a testa, mas não discorda.
– Ela poderia ter ficado na nossa família.
– Imaginas o que as pessoas teriam dito? Tu desapareces durante nove
meses e depois, de repente, eu tenho um bebé? A imaculada conceção! Toda
a gente saberia.
– Provavelmente toda a gente soube.
– Seja como for, porque estás a falar disso agora?
– Talvez ela tenha sido a minha única hipótese de ter um filho.
– Deixa-te de autocomiseração.
– Eu pensei que podia esquecê-la – diz Maggie. – E consegui, durante
algum tempo, até engravidar novamente. E agora... não sei. Penso muito nela
ultimamente. Se não fosse pelo que aconteceu...
– Para com isso.
– Para onde é que o papá a levou?
– Havia um orfanato nas redondezas. Era o único sítio que conhecíamos.
– Nenhuma criança foi levada para lá em março.
– Como é que sabes? – pergunta a maman, estreitando os olhos.
– Falei com uma freira de lá.
– Nunca vais encontrá-la – afirma ela. – Acredita em mim. Eles não
querem que a encontres.
– Eles, quem?
– A Igreja. O teu pai. – A mãe termina o bolo e aconselha: – Tem outro
filho. As probabilidades são muito melhores.
Depois do jantar, Maggie sai de casa sozinha e vai direta ao milharal,
querendo perder-se por lá. Ali, a atravessar os pés de milho, é capaz de
respirar novamente. O ar tem o cheiro almiscarado do milho maduro, um
cheiro que instantaneamente a leva para um momento de romance e
possibilidades, quando o futuro lhe parecia tão ilimitado como os pés de
milho que pareciam crescer até ao céu.
Uma voz na noite sobressalta-a, trazendo-a de volta ao presente.
– És mesmo tu?
Por uma fração de segundo, ela pensa que está a sonhar. Ouve o milho a ser
esmagado pelas botas. As chaves a chocalhar. Fica muito quieta, à espera. E
então dá meia-volta, lentamente, e ali está ele, a encher o campo como uma
magnífica alucinação. Tal como nos seus sonhos.
– Olá, Maggie – cumprimenta ele.
– Gabriel?
Ele sorri-lhe como se ainda fossem adolescentes e se encontrassem ali em
segredo. A década de separação dissolve-se e são apenas os dois, o cheiro do
milho e do ar húmido e as cócegas das espigas e das barbas de milho nos
tornozelos.
CAPÍTULO 21

G abriel tem vinte e sete anos. Não resta praticamente nada do rapaz do
campo que era. O físico alterou-se – o maxilar é mais quadrado, os
ombros mais largos, os músculos mais definidos. Está mais pálido e o cabelo
loiro, antes grosso e comprido, está cortado à escovinha, tornando-lhe a
beleza mais marcante, mais angular. O peito e os braços também ganharam
volume, sem dúvida de anos a levantar peças de avião pesadas. Maggie tem
dificuldade em associar a imagem atual dele com a do rapaz de há uma
década, quando fizeram amor pela primeira vez naquele mesmo lugar.
Sente-se um pouco insegura e preocupada com a própria aparência.
– Como tens estado? – pergunta ele, o tom leve e sem nenhum sinal de
ressentimento.
Maggie procura no rosto dele uma réstia do que sentiu por ela um dia, mas
não há lá nada. Ele olha-a da mesma forma que qualquer outro homem. Nada
mais.
– O que fazes aqui? – pergunta-lhe.
– Isso pergunto eu – diz ele. – Estás no meu campo.
Ela sorri e ele sorri também.
– Vim visitar os meus pais – explica ela. – Ainda venho para o campo
sempre que cá estou.
– Eu sei.
Tê-la-á visto ali? Terá estado à espreita da janela?
– E tu? – pergunta ela. – A Angèle disse-me que vens pouco a casa.
– Isso foi há muito tempo – responde ele. – A Clémentine precisava de
ajuda na fazenda. É época de colheita.
– Isso quer dizer que fizeram as pazes?
– Sim, fizemos as pazes – diz ele.
– Ainda trabalhas na Canadair?
– Onde havia de ser? Na Bolsa de Valores?
Ela ri-se, mas a risada sai estridente. Não está certa de que ele pretendesse
que fosse uma piada.
– Também sou taxista à noite – acrescenta ele. – É dinheiro extra.
Gabriel não lhe pergunta mais nada sobre ela. Ficam de frente um para o
outro em silêncio, o que amplifica o volume dos grilos em redor.
– És casado? – pergunta ela, tentando parecer descontraída.
– Sim.
– Com filhos?
– Não – responde ele. – Não é coisa para mim. Não quero filhos.
Um milhão de coisas diferentes passam-lhe pela cabeça. Será que ele teria
querido criar o bebé há uma década – supondo que fosse dele – ou teria
fugido assim que soubesse que ela estava grávida?
– Queres ir beber um copo? – pergunta-lhe ele.
Gabriel ainda não lhe perguntou se ela é casada ou se tem filhos. Talvez
saiba pelas irmãs ou pelos mexericos da cidade. Talvez não queira saber.
Maggie olha de relance para a casa dos pais, pensando em Roland
enfurnado no minúsculo escritório com o pai.
– É melhor ir avisá-los – diz ela, de maneira vaga.
Volta para dentro e bate à porta do santuário do pai. Ele abre uma fresta da
porta e ela é imediatamente envolvida pelo fumo de charuto. O pai põe a
cabeça de fora, com ar aborrecido.
Maggie vislumbra Roland sentado na poltrona de couro, as pernas
estendidas, um charuto numa mão e um copo de whisky Crown Royal na
outra. No rádio, ouve-se Mario Lanza.
– Vou à cidade encontrar-me com a Audrey para uma bebida – informa ela.
– Queres que te leve? – oferece-se Roland num falar arrastado, pronto para
entrar no carro e levá-la aonde ela quiser ir.
É um bom homem, pensa ela, sentindo-se culpada. Se, pelo menos, ele não
tivesse mudado. Se ela o tivesse conhecido primeiro.
– Não estás em condições de conduzir – diz ela. – Ficamos cá a dormir esta
noite. Vou dizer à maman para preparar o antigo quarto do Peter para nós.
– Custa a acreditar que já passaram dez anos, não é? – comenta Gabriel
sobre um jarro de cerveja morna. – Gosto do teu cabelo assim.
Ele estende a mão e toca nele. Maggie fica muito quieta enquanto os dedos
dele deslizam lentamente pelas ondas naturais. Então, Gabriel recua e bebe
um gole de cerveja, como se a carícia fosse um gesto perfeitamente normal.
– E tu, tens filhos? – pergunta-lhe ele.
– Ainda não. Estamos a tentar. Tive alguns reveses...
Ele anui, mas não oferece qualquer comentário solidário ou encorajador
como a maioria das pessoas faz. Maggie enche o copo.
– O que faz o teu marido? – pergunta ele.
– É bancário.
Gabriel acende um cigarro e exala uma linha reta de fumo.
– O Homem das Sementes deve estar orgulhoso – comenta ele. – Ele é
inglês, obviamente?
– Ainda estás zangado comigo?
– Porque estaria? – ri-se ele. – Nós éramos crianças.
Maggie não acredita.
– Tens uma fotografia da Annie? – pergunta.
Está curiosa, como quem não consegue deixar de olhar para um acidente.
– Sabes o nome dela? – espanta-se ele.
Maggie cora.
– A Angèle mencionou-o. Ela deve ser bonita.
Gabriel encolhe os ombros. Terminam o jarro e ele pede outro. Maggie
pega num dos cigarros dele e ele acende-lho com o seu isqueiro Zippo, que
fecha com um gesto repentino da mão.
– Então, aqui estamos nós – diz ele. – Casados com outras pessoas.
Ela abre a boca para dizer alguma coisa, mas não sabe como resumir tudo o
que sente numa frase coesa. Fita-o e tem certeza de uma coisa: ainda o quer.
– Assim que te vi esta noite... – começa ele. – Ainda és tão bonita.
– Pareces desapontado.
– Esperava que tivesses engordado.
– Eu gostaria que não tivéssemos demorado dez anos a reencontrarmo-nos
– diz ela, subitamente dominada pelo desejo de confessar tudo: a gravidez, o
bebé, o orfanato, até mesmo Yvon. A embriaguez é quase suficiente para o
fazer, mas, num momento de lucidez, decide calar-se.
– E agora? – pergunta ele.
Maggie abana a cabeça e ficam a olhar um para o outro durante um longo
tempo, sem um piscar de olhos ou uma tentativa de os desviar. Maggie sente
uma centelha de esperança. Por um breve instante, tudo parece possível, mas,
depois, uma empregada passa e Gabriel faz um gesto a pedir a conta. A
esperança de Maggie afunda-se. Pega noutro dos cigarros dele e, num gesto
sedutor, inclina-se para que ele lho acenda.
– És feliz? – pergunta ela, segurando-lhe o pulso para manter a chama
firme.
– Que tipo de pergunta é essa? – revida ele, deixando algum dinheiro na
mesa. – Vamos.
Segue-o e ambos caminham em direção à Bruce Street. Sem dizer uma
palavra, ele pega-lhe na mão. O gesto não parece ilícito; parece natural e
certo.
– Gostava que o tempo pudesse parar neste momento – diz ela ao
aproximarem-se do edifício Small Bros.
– Porque não? – diz ele, puxando-a para o beco.
– O que estás a fazer?
Gabriel empurra-a contra a parede de tijolo. Sem aviso, beija-a. O que mais
a choca não é a presunção dele ou sequer a sua própria imprudência ao
corresponder, mas a excitação. Beijou-o tantas vezes antes, porém, é tão
excitante como da primeira vez.
Ele pressiona o corpo contra o dela, encostando-a à parede do edifício.
Maggie abraça-lhe instintivamente a cintura, deslizando uma mão por baixo
da camisa e subindo pelas costas lisas. Mas quando sente, subitamente, a mão
dele por baixo da saia e a subir até à coxa, afasta-o.
– Para!
Ele ignora-a.
– Para! – insiste ela, com a boca encostada ao ouvido dele.
Ele fita-a com surpresa.
– Não podemos fazer isto – diz ela. – O Roland deve estar preocupado, a
imaginar onde estarei.
– O Roland – murmura Gabriel, os dedos deslizando entre as pernas dela,
puxando-lhe as cuecas.
– Por favor, não – pede ela debilmente.
Ele afasta-se, encarando-a.
– Não é assim que eu quero que isto aconteça – afirma ela.
– Como queres que isto aconteça? – pergunta ele, irritado, ajeitando as
calças. – Nós somos casados com outras pessoas.
– Não com traições.
– Queres que eu deixe a Annie para te sentires melhor a foder comigo?
– Gabriel, não fales assim.
– Isso não é uma opção, Maggie. – Pragueja baixinho e depois, num
impulso, dá um murro na parede de tijolo atrás da cabeça dela. – Sempre a
mesma Maggie – diz, sacudindo a mão a sangrar. – Sempre a provocar, a
seduzir. Mas a verdade crua e nua é que não queres perturbar a tua vidinha
privilegiada, só queres saber se ainda podes ter-me. Volta para o teu maldito
bancário.
– Eu daria qualquer coisa para que tudo tivesse sido diferente! – grita ela, a
voz reverberando no beco estreito.
A verdade – lançada na noite daquela forma tão dura e inexorável – fá-lo
estacar. Ficam ambos ali, sem saber o que fazer.
– Desculpa – diz ele. – Estou bêbedo. Isto foi um erro.
As palavras penetram-na como facas afiadas. Gabriel acompanha-a até à
margem do milharal – o lugar onde se escondiam juntos, onde fizeram amor e
desapareceram juntos, se encontraram, se perderam e se encontraram
novamente. Ela inala profundamente, não querendo entrar em casa. O ar é
húmido e tem a fragrância do pico do verão, uma mistura de orvalho, flores a
brotar e adubo fresco. O céu está sem estrelas. Percebe que está a chorar, mas
Gabriel provavelmente não consegue ver-lhe as lágrimas na escuridão.
Talvez seja melhor assim, raciocina ela. A luxúria é apenas um
estrangulamento que torna impotentes o coração e a mente. Houve momentos
em que quase destruiu a vida dos pais. Está melhor com Roland, que é, ou
pelo menos era, seu amigo.
– Boa noite – despede-se Gabriel.
Sem dizer uma palavra, ela vira costas e começa a subir a colina.
– Ei! – chama ele. – Eu trabalho no turno de dia da Canadair até às três e
um quarto.
Um desafio lançado.
CAPÍTULO 22

M aggie desliga a televisão depois de um episódio da série Gunsmoke,


passada no faroeste, e sobe para o quarto. Despe-se, veste a sua camisa
de noite branca preferida com o peitilho em bordado inglês e senta-se na
beira da cama para pentear o cabelo. Olha distraidamente para o papel de
parede, em tecido estampado vermelho representando cenas bucólicas
francesas, e percebe que já está farta dele. Ainda gosta do quarto; foi uma das
principais razões pelas quais quis aquela casa. Tem uma lareira e tetos em
caixotões e uma vista deslumbrante para o jardim das traseiras.
Pode ouvir Roland a escovar os dentes e sabe o que a espera nessa noite.
Ele vai emergir nu debaixo do robe de veludo e afastar a colcha num
triângulo perfeito, apenas o suficiente para entrar na cama sem amarrotar os
lençóis. Depois vai inclinar-se na cama e dar-lhe um beijo mentolado e
utilitário nos lábios. Já quase consegue sentir o cheiro a Colgate na
respiração. Anos de relações sexuais obrigatórias e cheias de ansiedade, num
esforço para procriar, acelerou o desmoronar da sua vida sexual.
– O Duplessis está morto.
– O quê?! – exclama ela, em choque, erguendo o olhar para encontrar o de
Roland, que está em pé à porta da casa de banho da suíte.
– Acabei de ouvir na rádio – diz ele, em tom animado.
Na noite anterior, a CBC noticiou que Duplessis morreu na sequência de
uma hemorragia cerebral. Nunca tendo considerado que um homem tão
poderoso como Duplessis poderia ser vulnerável a tais inconveniências como
doença ou morte, Maggie está genuinamente chocada.
– Meu Deus! – diz ela.
Dominada por uma certa sensação de justiça feita, desce imediatamente as
escadas para ligar ao pai.
– O ditador está morto! – aplaude ele.
– Parece estranho, de certa forma, não achas? Ele tem sido o pano de fundo
da minha vida desde que me lembro.
– Foi preciso uma hemorragia cerebral para o tirar do poder, mas, graças a
Deus, o Quebeque é finalmente livre.
– E se o próximo primeiro-ministro não quiser saber da agricultura?
– Querida – diz-lhe o pai –, enquanto esta província se elevar, também a
Superior Seeds o fará.
Ele está extremamente alegre. Maggie já pode imaginá-lo no trabalho, no
dia seguinte, exultante e com o peito inchado de satisfação.
Volta para o quarto e encontra Roland debaixo da colcha de chenille, com o
rádio transístor no colo. Leva-o por toda a casa como um animal de
estimação.
Maggie vai diretamente para a casa de banho escovar os dentes. Quando
termina, olha-se ao espelho durante muito tempo, tentando ver-se tal como
Gabriel a deve ter visto na outra noite. O seu rosto é mais redondo do que
está acostumada – provavelmente ainda inchado da última gravidez. Ou
talvez o cinismo e a desilusão já estejam a minar-lhe a beleza pela qual tantas
vezes a elogiaram. Pode ter sido isto que aconteceu à mãe. Maggie lembra-se
da fotografia da maman no cortador de relva, de como era bonita aos vinte e
poucos anos. Como é diferente agora.
Maggie está mais perto dos trinta do que dos vinte. Fecha os olhos contra a
imagem do seu futuro eu – um clone da mãe, sem qualquer vestígio da jovem
adorável, exceto por uma única fotografia, emoldurada e pousada num
naperon no quarto, para fazer os futuros filhos refletir e admirar, perplexos.
Desliga a luz da casa de banho e junta-se a Roland na cama.
– Ainda não consigo acreditar – diz ele.
– Esta data devia ser feriado municipal a partir de agora.
– Já estava mais do que na hora – concorda Roland e pousa o rádio na mesa
de cabeceira.
Maggie aconchega-se a ele, descansando a cabeça no seu peito.
– O que vai acontecer agora? – questiona-se ela em voz alta.
– Só coisas boas, espero. Acreditemos que o substituto seja capaz de nos
levar pelo século XX adiante.
– É verdadeiramente o fim de uma era.
– O teu pai deve estar exultante – comenta Roland.
– Provavelmente fará um desfile.
Os dois riem e então Roland inclina-se para a beijar com todo o embaraço
de um adolescente na sua primeira tentativa. Maggie afasta-o com delicadeza.
– Ainda não, está bem?
Ele afunda-se contra a almofada e desvia o olhar do seu, parecendo
magoado.
– Pensei que íamos começar a tentar – diz ele. – O médico disse que depois
da lavagem das trompas devíamos começar imediatamente.
– Não estou preparada, Rol.
Roland suspira.
– Compreendo – diz ele, aceitando. – Mas em breve, está bem?
Ela beija-lhe o peito e sente o próprio corpo relaxar.
– Obrigada – responde, aliviada.

As férias vêm e vão sem grande alarde, seguidas por uma longa e profunda
hibernação de inverno, na qual Maggie passa muito do seu tempo livre
fechada dentro de casa, a pensar em Gabriel e no encontro onírico do ano
anterior. Aconchegada junto à lareira, dia após dia, com a mesma camisola de
lã e meias grossas de esqui, Maggie passa grandes quantidades de tempo em
fantasias ricas e pormenorizadas.
E então, uma tarde, pouco depois de o inverno ter terminado, Maggie vê-se
numa parte desconhecida da cidade. É como se tivesse sustido a respiração
todos aqueles meses e agora, de repente, não consegue prendê-la nem mais
um instante. Chegou uma nova década – os anos cinquenta acabaram – e o
sentimento de claustrofobia tornou-a inquieta, audaciosa. Precisa de respirar.
A Canadair fica perto do Aeroporto de Cartierville, em Saint-Laurent. Há
um autocarro que para na Sherbrooke Street e que a leva diretamente à
avenida Côte-Vertu. Caminha, resoluta, aproveitando o clima ameno de
março e os primeiros raios fortes de sol no rosto.
Quando era criança, a Canadair era muito conhecida pelo fabrico de aviões
durante a guerra. Muitos dos rapazes do campo, como Gabriel, viajavam para
a cidade e trabalhavam lá todo o inverno. Lembra-se de Gabriel, no final dos
anos quarenta, a gabar-se de quando a Canadair começou a fabricar os caças
F-86 Sabre, como se fosse ele a fazê-los. Ele costumava dizer que ajudar a
construir aviões para a Royal Canadian Air Force era um privilégio, mesmo
que só ganhasse quarenta e três cêntimos à hora e trabalhasse em turnos de
dezassete horas.
Todos estes pensamentos lhe ocupam a mente quando o autocarro se detém
na Côte-Vertu. Subitamente, dá-se conta da magnitude do que está prestes a
fazer e sente uma pressão no peito como quando os aviões aterram na pista de
asfalto de Cartierville.
CAPÍTULO 23

M aggie traça a tatuagem de flor de lis azul e branca no braço de Gabriel


com a ponta do dedo. Imagina que fazer amor com ele naquele
momento, como mulher, será muito diferente do que quando eram jovens. O
amor terno e hesitante de adolescentes – assim como os últimos anos de sexo
meramente formal com Roland – ensinaram-lhe muito pouco sobre sexo ou
sobre como se sentir no próprio corpo. O sexo com Gabriel naquele
momento, fantasia ela, será mais maduro e livre.
Mas ainda não. Desta vez, ela quer esperar. Por respeito a Roland e medo
saudável de repetir os erros do passado, disse a Gabriel que não vai dormir
com ele até terem a certeza de quererem assumir um compromisso.
– Quando fizeste isto? – pergunta-lhe ela acerca da tatuagem.
Estão no apartamento de solteiro do amigo dele em Papineau. Há garrafas
de cerveja e cinzeiros por toda a parte, ratos a correr corajosamente pelo chão
de linóleo e correntes de ar frias de janeiro a infiltrar-se pelas janelas. O
amigo que arrenda a casa nunca está. Maggie suspeita que ele mantém aquele
apartamento para dormir com amantes. Gabriel diz que não é nada disso, mas
nunca explica a razão.
– Há uns anos – responde ele. – Sabes o que representa a flor de lis?
– Está na bandeira do Quebeque.
– Foi a primeira bandeira da província do Canadá – esclarece ele. – Uma
das poucas coisas boas do Duplessis.
– Então fizeste uma tatuagem no próprio corpo disso?
– Tem significado para mim – diz ele. – É de um estandarte que foi levado
pelos soldados franco-canadianos, comandados pelo general Montcalm, na
vitória da Batalha de Carillon. – Acende um cigarro e pega num cinzeiro do
chão. – Provavelmente não consegues entender.
Depois de um longo silêncio, ela diz:
– Tu ainda não me perdoaste, pois não?
– Não te perdoei o quê? – questiona ele.
– Por ter acabado tudo entre nós daquela maneira.
– Éramos adolescentes.
– E se tivéssemos ficado juntos?
– Nunca teria funcionado – diz ele, com indiferença.
– Talvez isto tivesse sido o suficiente – murmura ela, aconchegando-se
mais a ele.
– Encontros secretos nesta espelunca?
– Estarmos juntos.
– És demasiado romântica.
– Sou? – diz ela. – O que é isto para ti, então?
– Não sei. Eu a tentar fazer sexo contigo.
Ela dá-lhe um murro brincalhão no ombro.
– E para ti? – quer ele saber.
– Espero que seja uma segunda oportunidade para nós – admite ela.
Ele passa-lhe a mão pelo cabelo e depois deixa-a cair no colo.
– Estamos ambos casados, Maggie. Achas realmente que temos um futuro
juntos?
– Se não temos, porque estás aqui comigo?
– Já te disse. Quero dormir contigo.
– E se eu me recusar?
Gabriel suspira, exalando ao mesmo tempo.
– Confesso que não sei – responde. – Mas sei que gosto de estar contigo. É
fácil. Tu conheces-me.
– A tua mulher não te conhece?
Ele encolhe os ombros.
– É diferente. Ela conhece uma parte de mim. O homem que me tornei
quando me mudei para cá definitivamente.
– E quem é o Gabriel que eu conheço?
– O rapaz inseguro que puxou da navalha a um par de rufias – diz ele. – O
filho do agricultor. O rapaz que se apaixonou por uma rapariga inglesa que
lhe partiu o coração.
Maggie estende a mão e toca-lhe o rosto.
– Mas tu decidiste por nós, Maggie, e não fui eu o escolhido.
Ela vira a cabeça, incapaz de o encarar. Está-lhe na ponta da língua deixar
escapar que foram os pais dela a tomar a decisão, ou melhor, o pai. Mas se o
fizesse, teria de contar a Gabriel sobre o bebé e ainda não está preparada para
ter essa conversa.
– Seja como for – continua ele –, é a melhor vida para ti.
– O quê?
– A vida dele. Aquela que estás a viver.
– De quem? Do Roland?
– Do teu pai.
– Não é assim tão simples.
– Ele sempre conseguiu fazer-te uma lavagem ao cérebro, Maggie.
– A minha mãe costumava dizer o mesmo.
– Não podes ter tudo, imagino – diz ele, num tom mais leve. – A casa
grande, o bancário, a aprovação do teu pai e eu.
– Isso é cruel – protesta ela, levantando-se para sair.
Gabriel agarra-a pelo braço, puxa-a de volta para o sofá e senta-se a cavalo
nela. Maggie sente-lhe a ereção, o que a deixa fraca.
– Temos de conversar tanto? – pergunta ele, a respiração quente contra o
pescoço dela. – Vamos parar de falar. Só nos causa problemas.
Beija-a nos lábios e toda ela se arrepia. Maggie toca-lhe ao de leve nas
costas, por baixo da camisa de flanela, lembrando-se daquela primeira vez no
milharal, quando Gabriel era apenas um rapaz. O suor na pele bronzeada, as
costelas salientes, a maneira confiante de percorrer para um lado e para o
outro as filas de pés de milho. E agora aqui está ele com as mesmas costas
esguias e fortes e o mesmo temperamento errático, incapaz de esconder a luta
interior entre o orgulho e a vulnerabilidade, entre quem ele era e o que
aspirava a ser. Foi isso que quis dizer quando afirmou que ela era a única que
realmente o conhecia.
– Vamos aproveitar este momento juntos – sussurra ele.
– Queres dizer fazer sexo.
– Claro.
Como pode ela aproveitar o tempo juntos quando a sua mente não cessa de
pensar no futuro, a planear e a sonhar, a desejar avidamente tê-lo todo para
si? Não quer ter de regressar a casa para Roland e para a sua cruzada de a
engravidar; não quer voltar para todo aquele fingimento e polidez, os sorrisos
e a falsidade. Gabriel é real e quer que a relação deles seja real. Não tem
interesse em embarcar numa espécie de romance ilícito, cheio de segredos,
culpas e incerteza. Não suporta a ideia de ele regressar a casa para junto de
Annie nessa noite, de dormir ao lado dela, das conversas íntimas normais dos
casais. Pergunta-se quantas vezes fará ele amor com ela, e se gosta, e mata-a
o facto de não poder perguntar-lhe.
Gabriel beija-lhe o pescoço e Maggie solta um gemido alto.
– E agora? – murmura ela, mas ele não responde.
CAPÍTULO 24

Elodie

1960

C erto dia, ao almoço, alguém diz a Elodie, casualmente, que Emmeline,


do orfanato Saint-Sulpice, está morta.
– Tu estavas lá com ela, não era? – pergunta a menina, enfiando um pedaço
de carne na boca. – Em Saint-Sulpice?
– Como é que ela morreu? – quer saber Elodie, perdendo o apetite.
– Uma sobredose de Largactil, pelo que ouvi dizer.
Elodie ferve de indignação. Está habituada a guardar a raiva dentro de si, a
desesperar em silêncio para não se meter em sarilhos, mas isto é mais do que
pode suportar. Nunca esquecerá a forma como Emmeline lhe segurou a mão
na noite em que chegaram, a maneira como falou por todas elas, dizendo à
irmã Ignatia que não pertenciam ali.
Emmeline não é a primeira a morrer e certamente não será a última. Elodie
é mais forte agora ou talvez o seu coração tenha endurecido. Já tem dez anos
e não se rala tanto com as coisas. A morte espreita em cada canto de Saint-
Nazarius, tão real e omnipresente como as próprias freiras, mas nunca chegou
tão perto dela.

Alguns dias depois, quando estranhas manchas vermelhas lhe aparecem por
todo o corpo, obrigando a irmã Ignatia a mandá-la para a enfermaria de
doenças infeciosas no terceiro andar, Elodie aproveita a oportunidade para,
finalmente, falar em nome de Emmeline e de todos os órfãos.
– Varicela – confirma o médico, avaliando rapidamente o pescoço e os
braços de Elodie. – Não deves coçar.
Elodie estuda-o com cuidado, tentando avaliar se ele é um deles ou alguém
que possa ajudá-la. Parece uma pessoa condigna. Os olhos são de um azul
muito vivo e ela gosta do bigode e do lenço no bolso da bata branca.
– Vou dar-te um frasco de loção de calamina – diz ele. – Não podes coçar,
menina. Vais ficar com cicatrizes.
Elodie quase dá uma gargalhada. Cicatrizes! Se ele pudesse ver as
cicatrizes que já tem de tantas tareias que levou. Acha que ela se preocupa
com cicatrizes de varicela? Ele não faz ideia.
Ele unta-a com uma loção cor-de-rosa que é fresca na pele e que acalma
instantaneamente.
– Também devias cortar as unhas.
– Doutor?
– Sim?
– Uma menina do sexto andar morreu no outro dia.
– Sim – responde ele, distraído. – Isto é um hospital. Acontece.
– Mas ela não tinha nada.
– Ela não estaria aqui, se isso fosse verdade.
– Eu também não tenho nada – informa-o Elodie. – E estou aqui. A maioria
de nós é perfeitamente normal. Somos apenas órfãos. Não somos loucos.
– A tua ficha médica diz o contrário.
– Que ficha?
– De quando foste transferida para cá – explica ele. – Nós temos a tua ficha
médica.
– O que diz a minha?
– Não estou a par dos registos da enfermaria psiquiátrica – diz ele. – Mas
garanto que deve haver uma razão para estares aqui.
– Eu sou normal – insiste Elodie, inflexível.
– Não coces – recomenda ele.
– Posso ver o que está escrito na ficha sobre mim?
– Claro que não.
– Eu não quero morrer aqui – diz ela. – Eles mataram a Emmeline dando-
lhe Largactil a mais. Ela veio comigo do orfanato Saint-Sulpice e estava
perfeitamente bem. Era normal e inteligente e eles fizeram-lhe uma
lobotomia.
– Pelos vistos, ela era uma menina muito doente.
– Mas não era. Não quando chegámos aqui. E agora eles mataram-na.
– Estás a ser muito dramática.
– Não é a única – continua Elodie. – No ano passado, outra menina
desapareceu a meio da noite. Ouvi dizer que o corpo dela foi atirado para as
traseiras e enterrado no cemitério. Tudo o que ela fez foi cantar.
Elodie ainda se lembra da menina que costumava cantar para dormir à
noite, da sua voz doce a flutuar pelo quarto. O seu nome era Agathe. Só tinha
cinco anos, mas a irmã Ignatia costumava bater-lhe para a fazer parar de
cantar. Certa manhã, quando Elodie acordou, alguém disse: «A Agathe foi-
se.»
A cama dela estava vazia e acabadinha de fazer, como se nunca ninguém
ali tivesse dormido.
Nunca foi dito nada sobre o que lhe aconteceu. Nenhuma explicação, como
se elas não fossem dignas de saber.
– Elas fazem-nos coisas terríveis – confessa ao médico. – Não pode ajudar-
nos? Alguém sabe o que fazem connosco?
– Acalma-te – diz o médico, franzindo o sobrolho.
– Os pacientes loucos da minha enfermaria já eram loucos antes de
chegarem aqui?
– Como é que eu posso saber?
– Vou ficar louca, se ficar aqui?
– Onde vais tu buscar essas ideias?
– Por favor, ajude-me – implora ela. – Nós fomos esquecidas lá em cima. E
as freiras... são cruéis. Torturam-nos. Por favor, não há nada que possa fazer?
O médico pousa uma mão no joelho dela e responde:
– Vou investigar isso. Acalma-te. Vou descobrir o que se passa.
Elodie acena, obediente, sentindo todo o corpo relaxar de alívio.
– Toma isto – diz ele, entregando-lhe a loção de calamina. – E espalha
sempre que tiveres muita comichão.
– Obrigada, doutor.
Ele pisca-lhe o olho e Elodie sai da sala, leve e feliz, como há muito tempo
não se sentia. Sorri para a irmã Calvert, que espera por ela à porta, e diz:
– Varicela.
– Pareces muito feliz com isso – resmunga a irmã, atravessando o corredor
no seu passo arrastado, acompanhado do restolhar do hábito.
Vários dias se passam e nada acontece. Elodie espera que o médico apareça
de visita. Ele prometeu que iria investigar o assunto. Talvez as freiras estejam
a dificultar-lhe a vida, conclui ela, e precisa de ser paciente. Não seria
extraordinário se ele expusesse toda a situação e o hospital percebesse que
tinha havido um erro terrível e as libertasse? As mandasse de volta para
Saint-Sulpice, onde, tanto quanto Elodie se lembra, era relativamente feliz?
Deitada acordada na cama à noite, cerca de uma semana depois da visita ao
médico, percebe que ninguém veio dar-lhe o Largactil. Talvez o médico
sempre tenha dito alguma coisa sobre a morte de Emmeline e os
tranquilizantes diários tenham finalmente sido banidos. Tem sentimentos
contraditórios sobre não tomar o remédio para dormir, mas uma onda de
excitação ao pensar na possibilidade de liberdade abafa todas as outras
preocupações.
Quando dá por isso, é acordada por mãos ásperas. Tenta sentar-se, mas
alguém lhe enfia uma fronha na cabeça, dificultando-lhe a respiração. Umas
mãos agarram-na, puxando-a para um lado e para o outro. O mundo é negro
dentro da fronha, mas consegue ouvir as fivelas da camisa de forças enquanto
tentam vestir-lha.
Debate-se, os gritos abafados pelo tecido, apavorada com a perspetiva de
sufocar.
– Calme-toi! – sibila uma delas e imediatamente reconhece a voz da irmã
Ignatia.
Elas lutam com ela agora, mas está a ser-lhes muito difícil apertarem as
fivelas.
– Está quieta! – diz a irmã Ignatia, impaciente, e dá-lhe um murro na
cabeça.
O corpo de Elodie amolece. A camisa de forças é apertada. A irmã Ignatia
brada ordens. Elodie percebe que as outras que a atacam são pacientes como
ela, dispostas a obedecer, aliviadas por não serem elas. Carregam-na em total
escuridão para outro quarto, onde é despejada de costas numa cama de metal
e depois amarrada a ela como um animal. Não há colchão e ela sente as
afiadas espirais de metal a cravarem-se-lhe nas costas, onde a camisa de
forças não cobre o corpo.
A fronha é-lhe retirada da cabeça e Elodie percebe, para grande horror, que
está numa cela escura e abafada, as janelas fechadas com tábuas. O calor é
sufocante.
– O que é que eu fiz? – implora ela à irmã Ignatia, em voz chorosa. –
Porque está a fazer isto comigo?
A irmã Ignatia não responde e o seu silêncio é mais assustador do que
qualquer coisa que pudesse ter dito.
– Por favor, não me deixe aqui! – suplica Elodie. – Por favor! Irmã...
A irmã Ignatia desliza um balde para debaixo da cama e Elodie entende
imediatamente que vai ficar ali algum tempo; que não será desamarrada, nem
mesmo para ir à casa de banho.
– Não vá embora – pede ela. – Está tanto calor. Por favor...
A irmã Ignatia vira-se bruscamente, a saia do hábito silvando aos pés, e sai
da cela, seguida pelos lacaios em silêncio.
Elodie pensa em gritar, mas rapidamente afasta a ideia. Sabe que ninguém
a ouvirá; mesmo se o fizessem, ninguém viria. Contorce-se na cama, tentando
desesperadamente encontrar algum resquício de conforto – uma posição
ligeiramente suportável, pelo menos –, mas é impossível com a camisa de
forças, o calor e o metal cravado na carne. O sono também não chega. Sem
um colchão, circulação de ar ou a capacidade de movimentar os braços, só
pode ficar ali, a lamentar-se por não ter tentado fugir há muito tempo.
Poderia tê-lo feito? Não aos sete anos de idade. Não depois de ter sido
trancada atrás das portas da enfermaria B. Agathe escapou. Emmeline
escapou. Talvez a morte fosse a única saída viável. Decide que nunca mais
vai lamentar a morte de qualquer outra menina de Saint-Nazarius. Porque
deveria? Elas estão livres, estão em paz, e ela, Elodie, é a única ainda no
inferno.

Elodie calcula o tempo pelas refeições que lhe trazem três vezes por dia –
uma mistura em puré de tudo o que foi servido no refeitório. A cela cheira a
urina, a fezes e ao próprio vómito. De vez em quando, por puro e simples
tédio insuportável, ela reza. Negoceia com Deus, pergunta-lhe como pode Ele
permitir que ela seja tratada daquela maneira, mas nenhuma resposta lhe
chega, apenas mais daquele Seu silêncio cruel, um vazio que deveria servir de
consolação. Ela odeia-O quase tanto como odeia a irmã Ignatia.
Depois de quase uma semana de prisão – exatamente dezassete batidos
hediondos – a porta abre-se e a irmã Ignatia aparece, com a sua expressão
arrogante. Em silêncio, tira as correntes a Elodie e desaperta-lhe as fivelas da
camisa de forças. Elodie encolhe-se assim que os braços ficam livres. Os
músculos estão rígidos, as articulações doem-lhe e os ossos estão fracos. Dói-
lhe cada centímetro do corpo. Quando tenta sentar-se, solta um grito e cai
para trás. O metal afiado nas costas era preferível à dor de tentar mexer-se.
A irmã Ignatia entrega-lhe um vestido, fazendo uma careta por causa do
fedor do balde que quase transborda, e tapa a boca e o nariz com a mão.
– É porque falei com o médico sobre a sobredose da Emmeline? – pergunta
Elodie.
Um lampejo de regozijo – vitória ou diversão – perpassa os olhos de
morcego da irmã Ignatia, mas não dá a Elodie a satisfação de uma resposta.
CAPÍTULO 25

Maggie

M aggie acorda de um pesadelo aterrorizante, com um grito tão alto que


acorda Roland. Inclina-se e acende o candeeiro com dedos trémulos. O
coração bate com toda a força.
– O que se passa, querida? – pergunta Roland, pousando-lhe a mão no
ombro.
– Sonhei que estava a afogar-me – responde ela, tentando acalmar-se. –
Estava grávida e estávamos os dois a afogar-nos, o bebé e eu. E eu só
pensava: «Não posso perder este também.» Oh, Roland, foi horrível!
Não menciona que o nome do bebé por nascer do seu sonho era Elodie.
Roland puxa-a para si e voltam a deitar-se juntos, deixando a luz acesa por
insistência dela.

No dia seguinte, ainda não completamente recuperada da noite mal


dormida, Maggie senta-se a uma mesa do café Fern’s e pede um café
enquanto espera por Audrey. Maggie já tem carta de condução e um Ford
Falcon que Roland lhe ofereceu como prenda de aniversário. Agora que
finalmente deixou de trabalhar nos armazéns Simpson’s, tem ainda mais
tempo livre, que gasta a refletir sobre a vida dupla que leva de momento, o
que, sem dúvida, é a razão dos seus pesadelos recentes. Uma dessas vidas
contém as suas duas adoradas casas, o seu precioso jardim no campo e o seu
casamento com um homem maravilhoso que nunca consegue amar o
suficiente; a outra – ainda na sua maior parte uma fantasia – contém Gabriel,
que acredita ser suficiente.
Não parou de pensar nele desde o encontro no apartamento em Papineau.
Ultimamente, tem tentado convencer-se de um monte de coisas, para
justificar a sua infidelidade emocional, mas a que parece apaziguá-la mais é a
de que deveria ter ficado com Gabriel. Acabou de o reencontrar, mas os seus
sentimentos são tão profundos e inabaláveis como sempre. Roland não lhe
exige muito. Trabalha muito e até tarde e está, de forma geral, feliz se ela
estiver feliz. A sua confiança e comodismo – ou falta de vontade de
aprofundar seja o que for – tornam a paixão por outro homem quase
demasiado fácil.
Acende um cigarro, ainda a pensar no modo como as coisas terminaram
com Gabriel quando foi ao apartamento dele no outro dia. «Manda
cumprimentos meus à Audrey», disse ele quando Maggie estava de saída.
O tom foi ligeiramente agreste. Ela cometeu o erro de lhe dizer que ia
encontrar-se com Audrey em Dunham. Obviamente, isso trouxe à baila o
incidente com Barney e a briga na rua, quando Gabriel sacou de uma navalha.
Não foi preciso dizer, mas percebeu-lhe a raiva, viu-a na cara dele à menção
do nome de Audrey. Maggie arrependeu-se imediatamente.
Não falaram enquanto Maggie pegava nas suas coisas. Uma tensão familiar
instalou-se entre eles e, num instante fugaz, ela pensou que talvez o amor não
fosse capaz de ser mais forte do que as raízes de alguém. Quer acreditar que o
amor é irreprimível, mas e se for incapaz de resistir ao que uma pessoa é, na
sua essência? Apavora-a pensar que teriam de desistir um do outro depois de
tanto tempo e ir cada um para seu lado, derrotados pelas complexidades da
língua e da classe.
– Posso ver-te outra vez na sexta? – perguntou-lhe ele.
– Eu não posso – respondeu ela. – O Roland gosta de ir ver um espetáculo
nas noites de sexta-feira.
– Qu’i mange d’la marde – resmungou Gabriel. Ele que vá à merda.
Maggie beijou-o e tocou-lhe a face. Os olhos dele eram de um cinzento
escuro, zangados.
– Outro dia – disse ela. – Qualquer dia, menos sexta-feira. Quero ver-te
outra vez.
Ele desviou o olhar. Ela fê-lo prometer que ligava. Foi assim que se
separaram.

Maggie levanta os olhos da chávena de café e vê Audrey a aproximar-se


num passo bamboleante. Audrey está grávida de sete meses do seu terceiro
filho, tem as faces rosadas do frio lá de fora e está mais adorável do que
nunca. O cabelo loiro está agora platinado, como uma estrela de cinema.
Mantiveram contacto ao longo dos anos, uma comunicação civilizada e à
distância, apenas o suficiente para ainda poder dizer que se conhecem.
Audrey gosta de enviar postais de Natal com fotografias da família,
acompanhadas de longas cartas autoindulgentes a contar
pormenorizadamente e com muitos pontos de exclamação todos os sucessos
da família. O Barney foi promovido! Finalmente, a Lolly já vai ao bacio
sozinha! O Davie venceu o concurso Goutte de Lait Healthy Baby! Também
gosta de se encontrar uma ou duas vezes por ano, para um café e uma fatia de
bolo, para poder gabar-se pessoalmente.
– Como te sentes? – pergunta-lhe Maggie.
– Menos mal – responde Audrey, deslizando o corpo desajeitado para o
banco corrido. – Estás linda. Ainda manténs a forma. Como te invejo!
Maggie sorri, mas sabe que Audrey não a inveja de todo. Audrey pede um
café e uma fatia de tarte de maçã e dá uma passa no cigarro de Maggie.
– Por onde começamos? – diz ela, juntando as palmas.
– Como vão as crianças?
– A Lolly é hilariante, e o Davie é um verdadeiro diabinho. Estou louca
para ter outra criança! Não sei o que farei se for outro rapaz. Ouve –
acrescenta ela. – Antes que me esqueça, quero saber como estás a lidar com a
situação, Mags?
Maggie inclina a cabeça.
– A lidar com o quê?
– Soube que estás a tentar engravidar há muito tempo – diz Audrey, a voz
adquirindo um tom solidário. Depois, baixa a voz e sussurra: – Os abortos.
Maggie sacode a cinza do cigarro no cinzeiro.
– Onde é que ouviste isso? – pergunta ela.
– Sabes como é Dunham – responde ela. – Acho que foi a Violet quem me
disse.
– Fiz uma lavagem uterina – diz-lhe Maggie. – O prognóstico é bom.
Audrey está obviamente a torcer para que Maggie entre no país dos bebés.
As pessoas parecem dar extrema importância a que uma mulher casada
engravide dentro do período estabelecido. É problemático quando isso não
acontece, como se algum contrato universalmente acordado tivesse sido
adulterado ou perturbado. Maggie sente de forma quase palpável a defesa
tácita em prol do sucesso dela na fertilidade e o pânico simultâneo no caso de
ela falhar.
A empregada traz a fatia de tarte de Audrey.
– Achas que...
– O quê?
– Não importa. Esquece – diz Audrey e mete uma garfada de tarte à boca.
– O quê?
– Bem, eu pergunto-me. Achas que... é possível ter havido algum dano na
tua... hã... primeira gravidez?
– Sim. Foi exatamente isso que o médico disse. Ficou tecido cicatricial
após o primeiro aborto...
– Não, Maggie – interrompe ela. – Não é essa a gravidez a que me refiro.
Maggie paralisa. Audrey esfrega a barriga, num gesto protetor, observando
Maggie.
– De que estás a falar? – consegue Maggie articular, com o coração aos
pulos.
– Oh, não te preocupes, Maggie. Eu sempre soube.
Maggie apaga o cigarro e acende outro. Os seus dedos tremem. Audrey
estica o braço sobre a mesa e toca-lhe na mão.
– Não precisa de continuar a ser segredo – diz ela.
– Como é que descobriste? – pergunta Maggie, tentando manter a voz
calma e conter a onda de vergonha que lhe sobe como náuseas à garganta.
Audrey engole outra garfada de tarte e arrota.
– Fico com uma azia terrível – diz ela. – Para ser sincera, sempre suspeitei.
– Como?
– Eu sei o que o Gabriel esperava – explica ela. – Eu não quis ir até ao fim
com ele e provavelmente foi por isso que ele me trocou por ti.
Maggie sente a alfinetada da observação e fuzila-a com o olhar.
– Como soubeste que eu estava grávida?
– Há uma razão pela qual as raparigas são mandadas embora durante um
ano – diz Audrey. – E agora acabaste de confirmar.
Os olhos de ambas encontram-se. Maggie fica subitamente confusa sobre a
razão por que Audrey quis estar com ela neste dia. Talvez Audrey tenha
esperado anos pelo momento certo para se vingar de Maggie por lhe roubar
Gabriel.
– Eu não estava grávida quando me mandaram embora.
Os olhos azuis de Audrey arregalam-se.
– Não?
– Não. Os meus pais mandaram-me embora para nos separar. O que disse a
todos era verdade.
– E foi visitar-te lá? Ele engravidou-te enquanto estavas lá? – Ela recosta-
se no banco, com ar muito satisfeito. – Não te chateies comigo por falar do
assunto. Só estou curiosa.
Maggie cala-se, tentando adivinhar os motivos de Audrey. Talvez ela esteja
apenas a procurar ser amiga. Antes de Gabriel, elas eram inseparáveis.
– Só quero que saibas que estou aqui, se precisares de alguém com quem
conversar – diz ela, arrotando para o guardanapo. – Sei que nos afastámos
quando comecei a namorar com o Barney, mas sempre senti falta da nossa
amizade. Sei que estás a passar por um momento difícil e quero ajudar-te, se
puder.
– Alguém mais sabe? – pergunta-lhe Maggie.
– Que eu saiba, não – responde Audrey. – O Gabriel sabe?
– Não – diz Maggie. – Ainda não. E, por favor, ninguém mais pode saber.
Eu quero contar-lhe quando chegar a altura certa.
– Já passaram dez anos.
– Só voltei a vê-lo recentemente.
– Então estás em contacto com ele novamente?
Maggie engole em seco, nervosa, desejando poder voltar atrás.
– Encontrámo-nos por acaso – diz ela vagamente. – Tínhamos ido os dois
de visita a casa. Eu vou contar-lhe. Em breve.
Audrey assente, com um sorriso solidário.
– Como foi? – pergunta ela. – Estar grávida e saber que tinhas de dar o
bebé?
– Não me lembro bem – mente Maggie.
– Sinto-me sempre tão ligada aos meus bebés quando os trago dentro de
mim.
– Acho que gostei da sensação dela dentro de mim.
– Dela?
Maggie acena com a cabeça.
– Uma menina? – diz Audrey com espanto, como se conhecer o sexo
tornasse tudo ainda mais trágico. – Vais tentar encontrá-la um dia?
– Dar informações à mãe biológica é ilegal – explica Maggie. – Por isso,
não vai ser fácil, mas sim, vou tentar. Já liguei para o orfanato para onde ela
supostamente foi levada.
Audrey ergue uma sobrancelha perfeitamente depilada e desenhada.
– Pensas muito nela?
– Todos os dias da minha vida – confessa Maggie, grata por finalmente
poder dizê-lo em voz alta. – Acho que se não fosse pelo que fiz, dar a minha
própria filha, mandá-la para o mundo sozinha, tudo estaria bem. Só acho
que... bem, é impossível sentir-me completamente bem, sabendo que ela está
longe. A culpa que sinto tem piorado muito desde as gravidezes e os abortos
espontâneos.
– Faz sentido.
– Talvez eu não mereça ser feliz ou ter outro filho.
– Que disparate! – exclama Audrey. – Como está o Roland a lidar com tudo
isso?
– Ele trabalha muito.
– Todos eles trabalham. Mas é um bom marido para ti.
A observação recorda a Maggie os seus dias nos armazéns Simpson’s. Ela
também costumava salientar pormenores, como o fecho resistente e a
espessura das alças. Este é um bom sutiã para si, dizia ela às clientes. Ele é
um bom marido para ti.
– Escuta, a outra coisa que te queria contar – diz Audrey, animando-se – é
que tenho um trabalho para ti. O meu tio é jornalista do Gazette e mencionou
que conhece um escritor franco-canadiano que acaba de publicar um livro.
Precisa de um tradutor para a versão em inglês. Eu disse-lhe que conhecia
alguém que poderia fazê-lo.
– Nunca traduzi nada antes.
– Não pode ser assim tão difícil – diz Audrey. – És perfeita para isso. És
bilingue. Não conheço ninguém tão bom em ambas as línguas como tu. E
sempre foste muito boa a escrever.
– Eu nunca conseguiria.
– Seria publicado, Maggie.
O coração de Maggie agita-se só de pensar.
– Não tenho qualificações para isso.
– Vai conhecê-lo – sugere Audrey. – O nome dele é Yves Godbout. O que
tens a perder?
O interesse de Maggie é, sem dúvida, despertado. Talvez seja uma
oportunidade de fazer algo útil, para variar.
– Está bem, aceito conhecê-lo – concorda ela, sentindo-se audaciosa.
– Oh, que bom – diz Audrey, pegando-lhe na mão.
Maggie sorri, agradecida, pensando que subestimou Audrey todos aqueles
anos.
CAPÍTULO 26

Y ves Godbout espera-a na Brasserie St. Regis, que fica no centro da


cidade. Está sentado a uma das longas mesas de madeira com um jarro
de cerveja e dois copos, um pacote de tabaco e uma carteira de mortalhas à
sua frente. A taberna é comprida e estreita, um lugar masculino, com soalho e
painéis de madeira nas paredes, as filas de mesas todas alinhadas como numa
messe. Há um barulho alto de louça da cozinha atrás deles.
Godbout parece andar pelos trinta e muitos anos. As raízes do cabelo
castanho são oleosas e, embora esteja calor lá fora, usa uma camisola
cinzenta rota nos cotovelos. Ele acena quando Maggie se aproxima, mas não
se levanta para a cumprimentar.
– Disseram-me que és meio francesa – diz ele, sem rodeios.
– A minha mãe é francesa.
Os olhos dele estreitam-se. Acende o cigarro que acabou de enrolar e o
fumo que chega ao nariz de Maggie provoca-lhe náuseas.
– De onde? – pergunta ele.
– Hochelaga.
– A minha mãe também – diz ele, relaxando ligeiramente. – Ainda mora no
mesmo barraco de papel alcatroado onde cresci.
Maggie não tem a certeza do que se espera dela. Quererá ele que ela se
lamente?
– Eu não tenho qualificações – diz-lhe ela.
– Qualificações? – Ele ri-se. – Achas que eu tenho uma licenciatura em
escrita criativa?
– Quantas páginas tem o livro? – pergunta ela, tentando parecer
profissional.
Ele lambe o rebordo da mortalha e sela um novo cigarro sem responder.
– Cerca de cinquenta mil palavras – diz, por fim. – A editora paga três
cêntimos por palavra.
Ela faz um cálculo rápido. O dinheiro não é muito aliciante.
– Então casaste-te com um anglo-saxónico – diz Godbout. – Larsson.
– Sim.
– Porquê?
– Porque ele me pediu.
Os olhos dele descem para o colar de pérolas e depois voltam ao rosto dela.
– Sabes, não há muito tempo, uma pequena editora inglesa não teria
considerado publicar um livro como este – diz ele, enfiando a mão debaixo
da mesa e pegando numa cópia do seu livro, segurando-a contra o peito,
sobre o coração.
– Mas as coisas começam a mudar – continua ele. – Com Duplessis morto,
haverá uma revolução nesta província. O meu editor sabe-o. Para um tipo
anglófono, é muito inteligente. Tem visão. Os anglófonos nunca quiseram ler
nada de um escritor quebequense, a menos que fosse da Gabrielle Roy.
Ele entrega-lhe o livro, cujo título é: On Va en Venir à Bout.
– Há um prazo de entrega? – pergunta ela.
– De preferência, antes de eu morrer. Acho que o meu editor quer que seja
traduzido o mais rapidamente possível, para aproveitar o fervor em torno da
morte do Duplessis. As coisas vão avançar rapidamente a partir de agora.
Cinquenta mil palavras.
– Não tens direito de assinatura – informa ele. – O que significa que o teu
nome não aparecerá na capa do livro, apenas na página de direitos de autor.
Ela olha para a capa e imediatamente sabe que título lhe dará em inglês.
Juntos, Triunfaremos.
– Eu leio-o – diz ela.
– Vou pedir ao editor para te ligar.
Despedem-se com um aperto de mãos e Maggie sai da taberna com um
sentimento de medo e de inexplicável excitação.

Menos de uma hora depois, está à porta da Canadair, de onde os homens


começam a sair após o turno de dia. Mal pode esperar para contar a Gabriel o
encontro com Godbout. Eles falaram-se algumas vezes pelo telefone, mas
não tornaram a ver-se. Descortina-o no meio da multidão, e o rosto dele
ilumina-se instantaneamente quando a vê. Maggie abre um sorriso. Será que
vai sentir-se sempre assim com ele? Aquela excitação com um toque de
perversidade e, simultaneamente, levemente aterrorizante?
Ele abraça-a, cheirando a lubrificante de aviões, não se importando com
quem os vê. A relutância dele em apegar-se a ela parece ter desaparecido tão
rápida e completamente como a década de separação. A queda para os
antigos sentimentos da juventude apanhou-os de surpresa, mas, ao mesmo
tempo, parece algo absolutamente certo e inevitável. Ambos reconheceram
em sussurros contagiantes ao telefone que não estarem juntos se tornara
totalmente inconcebível.
– O que te faz tão animada? – pergunta-lhe ele, caminhando de mão dada
com ela.
– Vou traduzir um livro francês chamado On Va en Venir à Bout...
Gabriel estaca e fita-a com olhos brilhantes.
– Vais traduzir o livro do Yves Godbout?
– Conhece-lo?
– Sei quem ele é. Eu li o livro. Conheceste-o?
– Sim, acabei de me encontrar com ele.
– Como é que ele é?
– Bem, tem os dentes castanhos, os dedos amarelos, o cabelo oleoso, a
roupa rota e foi extremamente condescendente, mas, tirando isso, é fantástico.
Gabriel solta uma gargalhada.
– Maggie, isso é incrível. Como é que aconteceu?
– Foi a Audrey que arranjou – responde ela.
– A Audrey? – diz ele, parecendo chocado. – Vais conseguir fazer-lhe
justiça?
– Não sei – admite ela. – Nunca traduzi nada oficialmente.
– Não é isso que quero dizer. Quero dizer, achas que consegues transmitir a
paixão pela causa?
– Espero que sim.
– Eu posso ajudar-te – oferece ele.
– A sério? Eu adoraria.
Gabriel puxa-a para um abraço.
– Vai ser bom para ti – diz-lhe ele.
– E para nós.
– Começamos assim que eu regressar – diz ele. – E quero conhecer o
Godbout.
Não há menção ao marido e à mulher que ainda estão no caminho de
ambos. Continuam de braço dado em direção ao carro dele.
– Estou entusiasmada – diz ela, mais para si mesma.
– Eu também.

– Eu quero estar contigo – diz-lhe ela, apercebendo-se de que nada é tão


verdade como nesse momento em que profere as palavras em voz alta. –
Quero finalmente começar a nossa vida juntos.
– Eu também quero.
– Queres? Mesmo?
– Claro. É contigo que estou preocupado – diz ele.
– Mas é contigo que eu quero estar.
– E tudo aquilo de que terias de desistir, pensas nisso? – lembra ele.
– Eu sou infeliz naquela casa imensa com todas as minhas coisas bonitas. O
Roland é um bom homem, mas o nosso casamento não é o que eu esperava.
Gabriel tira um maço de cigarros do bolso da camisa, oferece-lhe um e
acende os dois. Exalam o fumo ao mesmo tempo.
– Estás pronto para deixar a Annie? – pergunta-lhe ela.
– Estou pronto para deixar a Annie desde a noite em que te encontrei no
campo.
– Então, está decidido – declara ela. – Vamos dizer-lhes.
– Vamos esperar mais um pouco, está bem?
– Mais? Mas acabamos de concordar...
– Estamos a decidir o nosso futuro, Maggie. Trata-se de divórcio... – Ele
abre-lhe a porta do carro. – Estarias a desistir de muita coisa.
– Já te disse que não me importo com nada disso.
– Só quero que tenhas a certeza absoluta – insiste, saindo do
estacionamento. – Não quero que venhas a culpar-me porque não sou capaz
de te dar a vida a que estás habituada. Não quero esse fardo. Por isso, vamos
avançar muito devagarinho, combinado?
Maggie concorda com um aceno de cabeça, aceitando a sugestão dele. A
impulsividade sempre a meteu em sarilhos. Pela primeira vez, sente-se
confiante de que sabe o que quer e impermeável à derrota.
Quando chegam ao apartamento, Gabriel pede uma entrega de comida do
St. Hubert BBQ e fazem um piquenique no chão. Frango com molho de carne
e vinho tinto. Maggie está eufórica.
– Este é um dia magnífico – diz ela, tocando-lhe o rosto. – Amo-te.
– Eu também te amo.
Maggie estica-se por cima dos recipientes de comida e beija-o na boca.
Gabriel puxa-a para os seus braços e deita-se de costas, o corpo dela em cima
do seu. O momento não tem vestígios de ilicitude ou de duplicidade. Sabendo
que vão ficar juntos, tudo parece absolutamente perfeito e certo.
Gabriel tira-lhe a blusa pela cabeça e ela faz-lhe o mesmo. Depois,
desaperta-lhe o sutiã, que desliza para o chão de madeira. No momento em
que levanta a cabeça em direção ao seio dela e a ponta da língua roça o
mamilo, ela geme e é impossível voltar atrás.
CAPÍTULO 27

R oland pega no jarro de limonada e enche o copo. A testa brilha de suor e


as faces estão coradas. Maggie inclina-se por cima da mesa e limpa-lhe a
transpiração com o guardanapo de papel.
– Está muito abafado para maio – diz ele, pulverizando inseticida com
agressividade na direção de uma nuvem de mosquitos até ela conseguir senti-
lo em cada mordida do hambúrguer.
Roland começa a dobrar, uma e outra vez, o guardanapo.
– Passou muito tempo desde... – Fita-a com nervosismo. – Desde que
discutimos a nossa situação.
Ela não responde.
– Ainda não estás grávida – continua. – Começo a ficar preocupado. Talvez
não estejamos bem sincronizados, mas ainda assim...
Maggie não lhe disse que voltou a usar o diafragma. Esconde-o na gaveta
da roupa interior, por baixo dos muitos sutiãs de «melhor vendedora».
– Acho que devemos ir consultar o Dr. Surrey outra vez – diz ele. – Ele
estava muito otimista e pode ter alguma sugestão para nós.
Os pinheiros que cercam a propriedade começam a fechar-se sobre ela. O
Sol está a pôr-se, atraindo mais mosquitos.
– Roland, estás feliz? – pergunta-lhe ela.
– Com o quê?
– Em geral. Connosco. Com a nossa vida?
– Sim, claro – responde ele. – Obviamente, não tem sido fácil, mas acho
que o melhor remédio é começar uma família. Uma criança é justamente o
que precisamos.
Erguendo o olhar para o amplo jardim das traseiras, com os gerânios a
florescer em vasos de barro e o relvado bem tratado pronto para receber um
baloiço e uma caixa de areia, Maggie não consegue encontrar as palavras
para lhe contar a verdade.
– Sobrou alguma gelatina do jantar de ontem? – pergunta ele.
– Achas realmente que uma criança pode resolver tudo isto?
– Isto?
– Vou buscar a gelatina – diz ela, mudando de assunto e fugindo para
dentro de casa, para se recompor.
Volta momentos depois com um prato de vidro de gelatina verde.
– Lima. A minha preferida – diz ele, com um sorriso satisfeito.
– Acho que não consigo continuar assim – tenta ela novamente.
– Continuar o quê?
– Neste casamento.
– Desculpa?
– Sinto muito, Rol, mas não está a funcionar.
– E dizes-me isso agora?! – exclama ele, incrédulo. – Com essa
naturalidade toda?
– Sinto muito. Eu não sabia de que outra forma...
Roland parece confuso, os olhos ligeiramente desfocados. Enfia a colher na
gelatina e parte-a aos bocados.
– É óbvio que o teu problema de fertilidade está a causar-te muito stress –
declara ele. – Gostava que parasses de ser tão teimosa e me deixasses marcar
uma consulta com o Dr. Surrey.
– Não se trata do meu problema de fertilidade.
– Tudo voltará a ser como antes assim que constituirmos uma família –
afirma ele, cheio de confiança. – Vamos marcar a consulta na próxima
semana.
– Não vês o que nos aconteceu, Rol? Tudo se transformou num só ponto
central: ter um bebé. Não há mais nada.
– Isso não é verdade – defende-se ele. – A nossa vida em comum é mais do
que isso.
– Para ti, não é.
– Claro que quero constituir uma família – admite ele. – Eu quero ser pai. E
não vou pedir desculpa por isso.
– Nem devias – replica ela. – A questão é que isso não é tudo para mim. –
A emoção domina-a e ela limpa os olhos com um guardanapo de papel. –
Tenho tentado convencer-me de que estou preparada para ter um filho.
– Queres dizer-me que não estás?
– Tu sabes que eu adorava trabalhar – diz ela. – Fingiste apoiar a minha
independência a princípio, mas o facto é que não foste sincero.
– Eu não estava a fingir! – protesta ele. – Simplesmente não percebi que
isso excluía ter filhos.
– Não excluía. Não exclui. Receio que a nossa dificuldade em ter um filho
tenha exposto o problema maior.
– Que é?
– Não é óbvio, Rol?
– Para mim, não.
– Não há paixão entre nós – diz ela. – Talvez nunca tenha havido. Já nem
tenho a certeza se ainda queremos as mesmas coisas.
Roland desvia o olhar, escondendo o rosto.
– Tudo isso acabaria se tivéssemos um filho – murmura ele, obstinado. – A
paixão voltaria, os nossos objetivos para o futuro tornariam a alinhar-se.
– Achas que sim? – questiona ela. – Tu nem conheces os meus.
– Diz-me, então.
– Bem, para começar, eu adoro traduzir.
Roland solta um bufo exasperado.
– Tenho tentado com todas as minhas forças ser a pessoa que gostarias que
eu fosse – diz ela. – A tentar dar-te um bebé, a ignorar a pressão em que vivo,
a fingir não reparar que está lentamente a matar o respeito que temos um pelo
outro e qualquer atração que ainda reste entre nós. Eu quero mais, Roland. O
meu trabalho com o Godbout ajudou-me a reencontrar essa parte de mim.
Roland suspira e os ombros descaem-lhe. Parece cansado. Deve ser um
grande esforço o de negar as diferenças fundamentais que há entre eles,
talvez desde que se conheceram.
– Roland, tu casaste-te comigo porque eu apareci na tua vida no exato
momento em que querias constituir família.
– Isso é injusto.
– Eu sei que gostas de mim – admite ela. – Mas seres pai sempre foi a tua
maior prioridade no nosso casamento.
Ele baixa a cabeça. Maggie interpreta o silêncio como um triste
reconhecimento da afirmação dela.
– Tens outra pessoa? – pergunta-lhe ele, sem levantar a cabeça.
A pergunta apanha-a desprevenida. Não pensou que ele perguntaria e não
tinha planeado falar sobre isso, quanto mais não fosse para o proteger. Mas
não quer mentir. Ele não merece.
– Ah! – diz ele, adivinhando antes de ela encontrar a melhor forma de lhe
responder. – Então, nós somos esse tipo de casal. Eu sou o clássico cornudo.
– Não é isso.
– Quem é?
– Isso faz alguma diferença?
– Faz, sim – riposta ele. – Muita, na verdade.
– É o meu primeiro amor – admite ela. – Reencontrei-o em Dunham no
outono passado. Não passámos muito tempo juntos, mas os antigos
sentimentos ainda existem.
Ela omite a parte de ter dormido com ele uma vez. Roland teria ficado
destruído.
– Vais deixar-me por outro homem – diz ele. – Não vamos fingir que é por
causa de eu querer um filho e tu quereres traduzir livros.
– Nós não somos felizes há anos – diz ela suavemente. – Aquilo que sinto
pelo Gabriel pode ser o estímulo para terminar o casamento agora, mas não é
a razão.
– Certo. Tu queres ser tradutora a tempo inteiro.
– Estás a ser mesquinho, Roland. O Godbout incentivou-me a abrir as asas,
a ganhar alguma confiança. Eu gosto da sensação e quero continuar a
explorá-la.
– Com outro homem ao teu lado. O teu «primeiro amor».
– Sê honesto e diz-me se estás feliz nesta relação? – insiste ela.
– Quem é que é «feliz», Maggie?
– Eu gostaria de ser.
– Nós temos um casamento – declara ele com imponência, como se o
casamento fosse algo material, uma posse não muito diferente do carro ou da
casa. – Aguentámos este tempo todo e ultrapassámos algumas situações
muito difíceis. É uma pena desperdiçar tudo agora.
– Eu não quero apenas aguentar – diz ela, em tom exausto.
Roland fica calado uns momentos, com ar derrotado. O coração de Maggie
enche-se de carinho por ele.
– Tu és um bom homem – diz ela. – Inteligente, fiável e corajoso. Vamos
ser honestos um com o outro.
– Qual é o teu plano exatamente?
– Eu pensei que, por enquanto, podia mudar-me para a casa de Knowlton.
– Voltarias para os cantões sozinha? Ou com ele?
– Sozinha. Estaria perto da minha família. Tu quase nunca lá vais – diz ela.
– Não ias sentir falta.
– Eu podia vendê-la – lembra ele.
– Podias, é verdade – concorda ela. – Mas sejamos sinceros, Roland.
Mesmo que ficássemos juntos, eu estaria sozinha. Tu nunca cá estás.
– Isso mudaria se...
– Tivéssemos um filho – completa ela, exasperada. – Exatamente.
Ela levanta-se e leva os pratos para a cozinha. Roland segue-a para dentro,
mas vai para a sala de estar. Ela ouve-o a servir-se de uma bebida. Lava a
loiça e depois junta-se a ele.
– Desculpa – diz ela, sem saber mais o que dizer.
Sentada ali naquela sala enorme, cercada pela querida mobília sueca com o
estofamento de seda azul-claro, papel de parede de damasco, lareira de
mármore branco e vista para o amplo jardim através da janela panorâmica,
tem a certeza absoluta de que está a fazer a coisa certa.
– Não temos nada para mostrar da nossa vida conjunta – diz ele
tristemente.
Maggie senta-se ao lado dele e pega-lhe na mão. Repara nuns quantos pelos
grisalhos nos dedos e, por algum motivo, isso dá-lhe vontade de chorar.
– Mas tens razão – continua ele, surpreendendo-a. – Somos incompatíveis,
não somos?
Ela aperta-lhe a mão.
– Tentámos com todas as nossas forças. Valha-nos isso, pelo menos.
Roland concorda, e o que ela lê no rosto dele é alívio. Apesar da mágoa e
do orgulho, apercebe-se de que ele começa a entender o facto de que está
livre para recomeçar com alguém que queira exatamente o mesmo que ele:
uma mulher simples e fértil com iguais aspirações a ser mãe e dona de casa.
Essa, nunca seria Maggie. E, embora ele nunca o tenha admitido em voz alta,
ela sabe que interiormente ele está a chegar às mesmas conclusões.
CAPÍTULO 28

E la chega ao Motel Maisonneuve, na Ontario Street, sem fôlego de


emoção. Tem tanto para lhe dizer, a começar pela notícia de que vai
deixar Roland, que está tudo terminado e não há volta atrás. Também lhe vai
contar o que aconteceu com ela em Frelighsburg – a violação, a gravidez, ter
tido de dar o bebé. Quer livrar-se de todos os segredos e começar do zero esta
próxima fase da sua vida. O destino tornou a uni-los e Gabriel merece saber a
verdade. Já chega de mentiras.
Bate à porta, para o caso de ele já ter chegado. Sorri, só de pensar nele.
Tem uma garrafa de vinho na mala e está a usar uma nova lingerie de renda.
Gabriel abre a porta e senta-se imediatamente na cama sem a
cumprimentar. Sem um olá ou um abraço. Maggie entra.
O quarto é uma deceção. É sujo e cheira a mofo. As cortinas, de
serapilheira amarelo-mostarda, estão corridas. A cama tem uma cabeceira
simples de pinho, uma colcha de chenille gasta e o chão está coberto por uma
alcatifa verde-azeitona que precisa de ser aspirada.
– Eu pensei que teria melhor aspeto – diz ela, pousando a mala na mesa e
tirando o vinho.
Ele não diz nada, mantendo o olhar em frente e uma expressão estranha no
rosto.
Ela corre até ele, acaricia-lhe o cabelo curto e loiro e baixa-se para o beijar
na boca.
Gabriel desvia a cara.
– O que se passa? – pergunta ela.
– Fui a casa este fim de semana.
– Não me digas que a tua irmã te convenceu a não deixares a Annie? –
questiona Maggie, sentando-se ao lado dele. – Não dês ouvidos à Clémentine.
Eu já disse ao Roland que o vou deixar.
– Porque foste fazer uma coisa dessas? – responde ele, com rispidez, e há
algo na sua voz que a assusta.
– Porque não? – contesta ela. – Concordamos que é o que queremos.
Os olhos dele estão escuros, distantes. Alguma coisa mudou.
– O que se passa, Gabriel? – insiste.
– Não vai funcionar.
– Desde quando? – contesta ela, confusa. – Tu não amas a Annie. Já
conversámos sobre isso.
– A questão não é a Annie.
– O que é, então? Achei que tínhamos decidido, mesmo antes de ires para
casa, para Dunham. Nós ainda nos amamos. O que aconteceu?
– Nós quase cometemos um grande erro.
– Não compreendo. A Clémentine disse alguma coisa? Ou o meu pai?
– Acabou.
A cama por baixo dela parece instável.
– Não digas isso – diz ela, agachando-se à frente dele e abraçando-lhe as
pernas.
Ele empurra-a e fita-a bem fundo nos olhos, sem nenhum traço de carinho.
– O que é que eu fiz?
– Encontrei a Audrey McCauley em Dunham – anuncia ele, a voz
assustadoramente calma.
– Onde?
– Fui à missa com as minhas irmãs no domingo – explica ele. – Queria
agradecer à Audrey por te ter posto em contacto com o Godbout.
Ele sabe. Naquela fração de segundo, o mundo de Maggie desmorona-se.
– Ela falou-me da vossa conversinha íntima.
Maggie sente vontade de vomitar. O plano não era este.
– Ela disse-me que deste o nosso bebé – diz ele, levantando-se da cama e
movendo-se inquieto pelo quarto.
– Gabriel...
– Eu nem soube que estavas grávida.
– Que razão tinha a Audrey para te contar?
– Ela assumiu que eu sabia. Porque pensaria ela que me esconderias uma
coisa dessas?
– Porque eu lhe disse que tu não sabias! – grita Maggie. – E também sabia
que eu planeava contar-te.
– Quando?
– Hoje! Agora.
Ele ri-se, com ironia.
– Certo. Que coincidência.
– Ela fê-lo para te magoar e para me castigar.
– Não quero saber dela! – grita ele. – O problema aqui não é a Audrey.
Maggie cobre o rosto com as mãos. Como pode ter cometido um erro tão
colossal e confiar em Audrey?
– Eu disse ao Roland que ia deixá-lo – diz ela. – E que ainda estou
apaixonada por ti. Planeava contar-te tudo hoje para que pudéssemos
recomeçar do zero.
Gabriel solta outro riso, um ruído duro e raivoso que a enche de pavor.
– Então é verdade – diz ele. – Tu deste o nosso filho.
Ela percebe que nenhuma resposta lhe trará consolo ou, possivelmente,
salvará a relação. A verdade é insuportável. Passou demasiado tempo.
– Não tive escolha – tenta ela.
Ele anda para um lado e para o outro enquanto ela se mantém encostada à
cabeceira da cama, a observar e a esperar.
– Tu deste a minha filha, Maggie.
– Os meus pais obrigaram-me – diz ela. – Eles tomaram todas as decisões.
Não tive voto na matéria. Estávamos em 1950 e eu tinha dezasseis anos e o
meu pai ameaçou deserdar-me se eu voltasse a ver-te!
– E o que aconteceu nas últimas vezes em que estivemos juntos? – acusa
ele. – A noite em que nos encontrámos no milharal? Ou da primeira vez que
te levei ao apartamento em Papineau e conversámos durante horas? Ou no dia
em que fizemos amor lá?
– Eu vim aqui hoje para te contar – repete ela, desanimada. – Lamento que
tenhas descoberto antes de eu ter a oportunidade de to dizer.
– Lamentas? – Abana a cabeça, revoltado. – Ainda no outro dia, à porta da
Canadair, conversámos sobre o futuro e sobre a possibilidade de me divorciar
da Annie para ficar contigo e não te passou pela cabeça mencionares que
tivemos a porra de uma filha juntos?
– Não foi assim – diz ela. – A história não é só essa.
– Qual é então? – rosna ele.
– Eu quis contar-te tudo assim que te vi no campo naquela noite. Mas é
complicado. A história é mais complicada do que a Audrey te disse.
– Eu conheço a história – contesta ele. – Não querias ficar comigo e viver
na pobreza com um operário de fábrica franco-canadiano.
– Eu não tinha a certeza se o bebé era teu! – deixa ela escapar.
Ele cala-se.
– O meu tio Yvon violou-me quando eu morava com ele – diz ela. – Essa é
a história.
As mãos de Gabriel fecham-se em punhos.
– Eu ia contar-te, meu amor. Hoje.
Gabriel senta-se na beira da cama, desalentado. Ela espera, na expectativa
de que ele compreenda e a abrace e que os dois possam avançar com os
planos que tinham. Um longo tempo se passa, mas ele não faz qualquer
movimento. Fica apenas ali, a olhar para o chão.
– Gabriel? Diz alguma coisa. Por favor.
Ele levanta a cabeça, os olhos vermelhos.
– Sinto muito por ti – diz ele. – Acredita que sim. E se me tivesses contado
naquela época, eu teria matado o canalha. Talvez ainda o faça.
– Eu sei.
– Eu sei que tu sabes – continua ele. – Esse é o problema. Se me tivesses
dito a verdade naquela altura, podíamos ter conseguido. Podíamos ter criado
o bebé juntos. E é isso que eu não consigo ultrapassar. Tu não quiseste.
– Isso não é verdade – contesta ela, mas as palavras não têm convicção.
Há alguma verdade no que ele diz. Na altura, pesou as opções e o que mais
temia era perder o pai e a loja de sementes. Por essa razão, foi cúmplice da
decisão dos pais.
– Isso é o que dói mais – diz ele. – Tu sabias que eu cuidaria de ti, sem me
importar de quem era o bebé, mas quando o teu pai ameaçou deserdar-te, tu
escolheste-o.
– Eu era uma criança – tenta ela. – Não estava preparada para me casar. Por
isso, sim, escolhi a minha família. Tu terias feito o mesmo. Mas agora sou
uma mulher adulta.
– Eu não teria feito o mesmo – responde ele. – Seja como for, nada mudou,
Maggie.
– Não me castigues pela decisão que tomei há mais de uma década, quando
não passava de uma criança.
– Então reconheces que foi a tua decisão – diz ele, a raiva reacendendo-se
de repente.
Afasta-se dela e pontapeia a parede com a bota. O estuque desfaz-se, mas
ele não quer saber. Aproxima-se dela e agarra-a pelos ombros. Por uma
fração de segundo, Maggie receia que ele a atire ao chão, mas ele sacode-a
uma vez com força e depois interrompe-se.
– Eu ter-me-ia casado contigo – diz-lhe ele, destroçado.
– Casa-te comigo agora.
– É demasiado arriscado. Não mudámos o suficiente para que funcione.
– Nós crescemos, Gabriel. Somos adultos.
– Não consigo esquecer isto – contrapõe ele, libertando-a. – Podias ter-me
contado sobre a gravidez antes de eu ter de o ouvir da boca da Audrey
McCauley. Mas ainda estavas a testar-me, a tentar descobrir se podias ser
feliz no meu mundo. Se eu sou bom o suficiente para ti.
– Tu és o único que não te achas bom o suficiente para mim! – atira ela. – É
por isso que estás a fugir.
– Eu não estou a fugir. Estou a ir-me embora porque não confio em ti.
Levanta-se e afasta-se da cama. Ela segue-o, pondo-se à sua frente para
bloquear o caminho.
– Meu amor – diz ela. – Por favor, não vás.
Ele tenta esconder o rosto, mas ela vê-lhe a expressão. Em vez da
recriminação e desprezo que esperava, vê lágrimas a deslizar-lhe pelas faces.
– Não faças isto – implora ela.
Gabriel fita-a um momento, com uma expressão fria e resignada, e depois
passa por ela e diz:
– Acabou, Maggie.
– Ninguém é capaz de te amar como eu.
– Nem de me magoar tanto.
CAPÍTULO 29

M aggie está deitada na cama, a olhar para o candelabro de cristal que


Roland lhe ofereceu no segundo aniversário de casamento. Cada um
dos dez braços de ferro fundido tem uma bobeche de vidro talhado com
pendentes de cristal. Lembra-se do dia em que o eletricista o instalou por
cima da cama, como o quarto lhe pareceu elegante, como ficou feliz. Tinha
criado o seu espaço – foi assim que se sentiu. Agora parece provocá-la, a
cintilar à luz que entra pelas janelas de sacada, lindo e sem significado.
Está novamente grávida. O médico confirmou-o nesse dia. O bebé é de
Gabriel, disso não tem dúvidas. A única vez que teve relações sexuais sem o
diafragma estava no apartamento de Papineau há algumas semanas, a
primeira e única vez com Gabriel. Não esperava dormir com ele naquele dia,
portanto, não estava preparada. Na altura, ignorou a pequena voz de
advertência na própria cabeça. Não há problema, disse a si mesma. O que
quer que viesse a acontecer, não haveria problema.
E agora está grávida dele, um bebé que vai nascer em janeiro. Maggie não
fala com ele desde aquela noite no motel. Quis dar-lhe algum espaço, sentiu
que era essencial. Gabriel precisava de tempo – tempo para sentir falta dela,
tempo para refletir, tempo para descobrir que não pode viver sem ela. Tempo
para a perdoar. Ela não perdeu a esperança. Pelo menos, ainda não.
Está decidida a ter este bebé com ele. Ficar com Roland não é opção; ele já
saiu de casa e foi viver temporariamente para um hotel até ela se mudar para
Knowlton. Talvez a aceitasse de volta, se ela pedisse, talvez até criasse
aquela criança como sua, mas quando Maggie contempla essa possibilidade,
imagina um daqueles retratos de família em que todos fazem pose com lindos
laços e colarinhos brancos muito engomados, os sorrisos fixos num instante
de perfeição sincronizada, mas, por trás dos sorrisos, é tudo segredos,
separações e sofrimento.
Pega no telefone na mesa de cabeceira e liga mais uma vez para a casa de
Gabriel. O telefone toca uma e outra vez, até finalmente a mulher dele
atender e dizer com aspereza:
– Quem fala?
– Uma velha amiga de Dunham.
Annie fica em silêncio.
– Ele está? – pergunta Maggie.
– Porque está a ligar tão tarde?
– Preciso de falar com ele – diz Maggie, escolhendo as palavras com
cuidado. – É importante.
– Ele não está – responde Annie. – Pare de ligar para minha casa.
A chamada cai.
No dia seguinte, Maggie decide ir à Canadair e confrontar Gabriel à saída
do trabalho. Olha-se ao espelho e belisca as faces para lhes dar alguma cor.
Três e quinze da tarde. Os homens começam a sair do turno, uma
debandada de botas no asfalto, os isqueiros Zippo a brilhar ao sol. Maggie sai
do carro e espera. A multidão começa a dispersar. Os últimos retardatários
emergem do edifício, mas Gabriel não está entre eles.
Maggie vê um dos colegas dele do sindicato e aproxima-se.
– Onde está o Gabriel? – pergunta, dispensando saudações e soando bem
mais histérica do que pretendia.
– Foi-se embora – responde ele, tirando um maço de cigarros do bolso da
camisa. – Agora, está a conduzir um táxi a tempo inteiro.
– Ele saiu da Canadair?
– O horário é melhor e o salário também.
– Que empresa de táxis?
O homem encolhe os ombros.
– Não faço ideia – responde ele, parecendo irritado. – Não ando a vigiá-lo.
O céu escurece de repente e um trovão anuncia a tempestade que se
aproxima. Maggie conduz até ao apartamento de Papineau. Segurando a
carteira acima da cabeça para se proteger da chuva que agora cai com ímpeto,
corre até à porta da frente e vê que há um novo nome recém-manuscrito ao
lado da campainha. Mesmo assim, toca à campainha e uma jovem responde.
– Estou à procura do Gabriel ou do Pierre?
– O Pierre já não mora aqui – responde a mulher.
Encharcada, Maggie corre de volta para o carro e fica ali sentada durante
algum tempo, com a cabeça a mil, tentando conceber uma nova estratégia.
A chuva bate contra o para-brisas e ela começa a ficar preocupada por ter
de conduzir até casa na hora de ponta. Liga o carro e entra na via pública,
praticamente sentindo o cheiro do rapaz que Gabriel era naquele dia, na pick-
up, quando Clémentine a levou a casa no meio da tempestade. Suor e terra,
hormonas adolescentes ensopadas e o cheiro da chuva.

Alguns dias depois, Maggie vai a Dunham e bate à porta de Clémentine. O


casebre da família Phénix tem um ar ligeiramente menos dilapidado do que se
lembra. O telhado e as janelas parecem novos e a porta da frente foi pintada
há pouco tempo.
Clémentine aparece à porta, vestida nas suas eternas jardineiras.
– Maggie – diz ela, com ar surpreendido.
Clémentine afasta uma madeixa de cabelo solto dos olhos e sorri. Ainda é
bonita, naquele seu jeito natural e descomplicado. Não quer saber dos truques
que as mulheres usam para se sentirem desejáveis ou integradas. Abre mais a
porta e faz um gesto para que Maggie entre.
Maggie tem de esconder o choque. Não se lembra de alguma vez ter
entrado naquela casa, nem quando era amiga de Angèle. É do tamanho de um
quarto de motel e, ao observar o espaço à sua volta, pergunta-se como seria
possível que tivessem todos conseguido morar ali juntos. Se Maggie tivesse
ficado com o bebé e casado com Gabriel, seriam cinco pessoas a viver
naquele espaço.
Clémentine oferece um chá a Maggie. Ela não parece de todo
envergonhada com a sua situação de vida, e ocorre a Maggie que,
provavelmente, nem passa pela cabeça de Clémentine ter algo de que se
envergonhar. Traz uma bandeja com natas, açúcar e duas chávenas de chá
com rosas pintadas na porcelana. Um costume muito inglês, nota Maggie.
– Eu sou a favor da mudança – está Clémentine a dizer, pousando a
bandeja. – Desde que este novo Governo não se esqueça de nós, agricultores.
Maggie repara que ela tem na estante um exemplar do livro O Manual do
Jardineiro.
– Mas não me posso queixar – continua Clémentine. – Até agora, tem sido
um bom verão.
– Como vai a Angèle? – pergunta-lhe Maggie.
– Ocupada – responde ela, servindo o chá de Maggie. – Não para de ter
filhos.
Clémentine senta-se ao lado de Maggie e pega no açucareiro. Quando já
estão as duas acomodadas, o silêncio que têm adiado com conversa de
circunstância instala-se. Clémentine aguarda. Maggie pergunta-se se ela sabe
do bebé que Maggie abandonou aos dezasseis anos. Não tem a certeza se
Gabriel terá contado à irmã depois de descobrir ou se guardou segredo.
Maggie ainda se sente enjoada e o chá está demasiado doce, mas força-se a
beber alguns goles, pois sempre lhe dá algo que fazer.
– Eu vim por causa do Gabriel – começa ela.
– Eu imaginei.
– Sabes dele?
– Tivemos um desentendimento – diz ela. – Não tenho notícias dele há
umas semanas.
Maggie sente o pânico que conhece tão bem a apertar-lhe o peito.
– Sempre tivemos estas... fases problemáticas – continua Clémentine.
Nós também, pensa Maggie.
– Ele acha que eu tento ser mãe dele – confessa Clémentine. – Mas é ele
quem me trata como se eu fosse uma criança. Tentou convencer-me a vender
a fazenda...
– Vender a fazenda? – repete Maggie, sentindo mágoa por Gabriel
obviamente não partilhar do seu apego sentimental ao milharal.
– Está tudo bem, Maggie?
– Ele desapareceu – diz Maggie, a voz embargando-se. – Eu tentei a casa
dele, mas ele nunca lá está.
Clémentine fica quieta um momento, até que, finalmente, diz:
– Estás... outra vez com ele?
Maggie desvia o olhar.
– Ele deixou a Annie?
– Não sei.
– Eles nunca encaixaram bem – comenta ela.
Instintivamente, Maggie leva a mão à barriga. E se encontrar Gabriel e ele
não quiser ficar com ela ou com o bebé? E se ele não for capaz de a perdoar?
Chega agora à conclusão de que a sua esperança de reconciliação e de
viverem felizes para sempre como uma família pode ser uma ilusão
hormonal.
– Posso ligar à Annie e tentar descobrir o que ela sabe – sugere Clémentine.
– Farias isso por mim? – diz Maggie, alegrando-se.
Clémentine leva a chávena de chá para a cozinha. Maggie pousa a dela no
chão, cruza as mãos no colo e espera. Sente a saliva a acumular-se na boca e
sabe o que está para vir. O seu primeiro pensamento é correr para a cozinha e
pedir bolachas de água e sal, mas rapidamente percebe que não vai conseguir
lá chegar. Em vez disso, corre para a porta a tempo de vomitar por cima dos
lindos gerânios vermelhos à entrada.
Quando termina a primeira rodada – e há sempre uma segunda – endireita-
se e procura um sítio mais isolado. Desta vez, aponta para os arbustos,
projetando vómito por toda a parede de dirca.
Maggie ajoelha-se na relva para recuperar o fôlego. Sente-se vazia. As
costas doem-lhe.
– Estás bem?
Maggie vira-se e vê Clémentine de pé, acima dela, o cabelo brilhante à luz
do sol.
– Desculpa – pede ela, limpando a boca. – Os teus gerânios...
– Não te preocupes com isso – diz Clémentine, indo buscar uma mangueira
à lateral da casa; liga-a e dirige o jato de água para os degraus, limpando o
vómito. – Talvez lhes faça bem – brinca.
Voltam para dentro e Clémentine vai direta à cozinha, voltando momentos
depois com um prato de bolachas de água e sal.
– Obrigada – diz Maggie, enfiando as bolachas na boca como se não
comesse há dias.
Clémentine observa-a.
– Conseguiste falar com a Annie? – pergunta Maggie.
– Ele foi-se embora, Maggie.
– Embora?
– A Annie diz que ele partiu. Levou todas as suas coisas e ela não sabe dele
há semanas.
Maggie sente-se aliviada, mas agora fica sem saber onde mais o procurar.
– Eu devia ir antes de...
Clémentine assente com a cabeça e acompanha Maggie até à porta. O
Gabriel foi-se embora. A informação começa lentamente a entranhar-se nela.
Obviamente, não quer ser encontrado, certamente não por Maggie.
– Se ele te contactar, por favor, diz-lhe que preciso de falar com ele – pede
Maggie.
Clémentine anui e toca o braço de Maggie.
– Eu sei que não é da minha conta – diz ela. – Mas... tu ama-lo, não é?
Maggie não consegue segurar as lágrimas. Clémentine aproxima-se e
abraça-a, deixando-a soluçar baixinho encostada ao peitilho das jardineiras.
– Desta vez, perdi-o para sempre.
– Eu sei como te sentes – diz Clémentine, o peito subindo e descendo num
suspiro de solidariedade, e Maggie duvida que ela ainda esteja a falar de
Gabriel.
CAPÍTULO 30

Elodie

E lodie abre a porta para as escadas e apressa-se a descer o primeiro lanço


a caminho da cave. Está atrasada para o trabalho porque uma das
meninas do seu dormitório menstruou e tentou lavar secretamente o sangue
dos lençóis antes que alguém descobrisse. A irmã Ignatia apanhou-a e
escolheu dez meninas ao acaso para chicotear com a correia de couro.
Elodie, felizmente, não estava entre as dez eleitas, mas teve de ficar a ver
todas as outras meninas a serem alinhadas e amarradas, uma a uma.
Teve a sorte de não ser escolhida, mas Elodie só conseguia pensar em não
chegar atrasada ao trabalho.
Quando contorna a esquina e continua a descer o lanço de escadas seguinte,
de repente apercebe-se de passos atrás dela. Nervosa, acelera o ritmo sem
olhar para trás.
Tem a certeza de que é o novo enfermeiro que trabalha no turno da noite na
enfermaria B – um homem de meia-idade cujo rosto inócuo não lhe parecia
nem mau nem perigoso a princípio. Nunca pensou que ele poderia magoá-la –
esse era o domínio das freiras –, por isso, foi apanhada completamente
desprevenida quando ele se atirou a ela na casa de banho, a meio da noite.
Tapou-lhe a boca com a mão, empurrou-a para uma cabina de chuveiro e
puxou-lhe a camisa de dormir acima dos joelhos. O instinto dela foi morder-
lhe os dedos, descuidadamente perto dos seus dentes, e quando o fez, ele
gritou.
– Tabarnac! – praguejou ele e deu-lhe uma bofetada.
Ela gritou por socorro e, instantes depois, várias outras meninas
apareceram à entrada do chuveiro. Elodie estava apavorada com a hipótese de
a irmã Ignatia ouvir e vir ver o que se passava, mas, por algum milagre, ela
não apareceu.
O enfermeiro abriu a porta da cabina e fugiu da casa de banho.
– Que porco – resmungou uma das meninas, insultando-o.
– Ele tentou...
– Claro que tentou – disse a rapariga. – Ainda não te aconteceu?
– Não!
– Tens sorte. Todos eles o fazem.
– As freiras sabem? – choramingou Elodie, estupefacta.
As raparigas limitaram-se a rir.
Elodie conseguiu evitá-lo durante várias semanas, mas nesse momento
condena-se por não ter esperado por uma das outras meninas nessa manhã.
O coração dela acelera à medida que os passos se aproximam. Continua a
descer rapidamente as escadas, mas à medida que aumenta a velocidade, ele
também. Ouve-o a aproximar-se, as solas dos sapatos a chiar nas escadas de
cimento atrás dela.
– Estou atrasada para o trabalho! – diz ela muito alto. – A irmã Calvert vem
ver de mim!
Mas quando se vira para olhar para trás, é apenas um médico. Ele ignora-a
e passa por ela apressado, descendo as escadas com a bata branca a agitar-se
atrás dele como uma capa.
Elodie detém-se, tentando recuperar o fôlego.
– Graças a Deus – murmura, saboreando a sua boa sorte e até se
esquecendo de que não gosta nem acredita em Deus.
Depois de se acalmar, apressa-se a descer o resto da escada. A irmã
Calvert, embora não tão sádica como a irmã Ignatia, não tolera atrasos.
Elodie consegue esgueirar-se para o seu assento à máquina de costura
precisamente na hora certa e começa a trabalhar na bainha do primeiro lençol.
– Psst!
Elodie olha para o lado e vê Marigot a sorrir.
– O que é? – sussurra Elodie.
– Encontrei uma coisa.
– O quê?
A irmã Calvert passeia-se por entre as filas de máquinas, supervisionando o
trabalho das meninas e fazendo comentários aqui e ali. Está torto. Recomeça.
És muito lenta. Está uma fronha no chão.
Quando já não pode ouvi-las, Marigot estende o braço e abre a palma da
mão, revelando um pequeno quadrado castanho que Elodie não reconhece.
– O que é isso?
– É chocolate.
– Chocolate?
– Cheira.
Elodie olha para trás para se certificar de que a irmã Calvert ainda está
ocupada a repreender uma das outras costureiras e, então, cheira o
quadradinho, furtiva. Os olhos reviram-se de prazer. O cheiro é delicioso,
doce e agradável, parecendo despertar-lhe todos os sentidos.
– A irmã deve ter deixado cair – sussurra Marigot. – Toma. Depressa.
Marigot parte o pequeno pedaço em dois, mete uma metade à boca e
entrega a outra a Elodie, que o coloca na língua, fecha os olhos e saboreia-o
enquanto derrete.
– É doce, mas não como melaço – sussurra ela de prazer, apreciando a
maneira como se cola ao céu da boca enquanto derrete.
– Mam’selle de Saint-Sulpice? – chama a irmã.
– Sim, irmã?
– O que estás para aí a tramar?
– Nada, irmã. Só a costurar.
A irmã Calvert solta um resmungo e segue em frente. Não tem tanto
interesse em provocar ou torturar as meninas como algumas das outras
freiras. Não é amável ou amistosa, mas a sua severidade raramente se
transforma em maus-tratos. Só quer que o trabalho seja feito.
– Obrigada, Marigot – sussurra Elodie.
Marigot pisca-lhe o olho. Hoje é um bom dia.
CAPÍTULO 31

Maggie

A meio de uma noite húmida de outono, Maggie é despertada por uma forte
onda de náuseas. É a primeira noite que passa nos cantões como uma
mulher separada e optou por dormir na casa dos pais em vez de sozinha em
Knowlton. Apesar de estarem desiludidos com a decisão dela, os pais não lhe
viraram as costas.
Desce as escadas de mansinho e vai à despensa procurar bolachas de água e
sal. Pega num punhado delas, veste um dos casacos ásperos da mãe e vai lá
para fora. O pai está de pé na pequena horta, examinando-a como se fosse
perfeitamente lógico estar a fazer jardinagem à meia-noite, em outubro.
– O que estás a fazer, papá?
O pai vira-se e olha para ela, iluminado pelo brilho amarelo do holofote
acima da porta das traseiras. Os seus olhos demoram um momento a focar e
ela sabe que ele está embriagado.
– A ver as ervas da tua mãe – responde, com a voz arrastada.
– Agora?
– A lua está em quarto crescente – diz ele, inclinando a cabeça para o céu.
– É preciso semear sempre com a lua em quarto crescente, nunca em quarto
minguante.
Maggie senta-se numa cadeira de jardim branca em ferro forjado e inala o
ar fresco do outono.
– Os cientistas começam a descobrir os efeitos dos ritmos lunares nos
campos magnéticos da Terra – diz ele. – O que, obviamente, afeta o
crescimento.
Ele agacha-se e começa a cavar a terra, tirando uma pequena batata.
– Dizem que uma batata cultivada em laboratório continua a mostrar um
ritmo de crescimento que reflete as fases da lua.
Ele tenta levantar-se, mas cambaleia um pouco e tem de se agarrar à
cadeira para se firmar. Ela repara que as mãos do pai tremem e que todo o
corpo parece balançar à mais pequena brisa, como se não estivesse bem
assente no chão.
– Adoro o cheiro a tomilho – diz Maggie, inalando o aroma das ervas.
O ar está quente e abafado para outubro.
– Tenho de plantar salsa para a tua mãe – diz ele, mais para si mesmo. –
Também ajuda a dar mais aroma às rosas.
Maggie levanta-se e espreguiça-se.
– Estou cansada. Vou para a cama.
– Devias voltar para o Roland – diz-lhe ele. – Esse bebé é exatamente o que
os dois precisam.
O que os dois precisam. Como se fosse uma batedeira ou um aspirador.
Uma coisa. Foi assim que Roland o descreveu também.
– Estamos ambos a seguir com as nossas vidas, papá. A decisão foi mútua.
– Tu tens tudo, Maggie. Não te compreendo.
– Não compreendes que quero ser feliz?
– É preciso mais coragem para ficar.
– Não concordo – diz ela, cansada. – Lamento se isso te magoa.
Dá um beijo na testa do pai, que está húmida de suor.
Ele enfia a mão no bolso do casaco e tira um cantil de prata. Ela observa-o
a beber um gole e depois a guardá-lo no bolso.
– Boa noite, papá.
Ele não responde, o olhar fixo em frente, o rosto marcado pela exaustão e
pelo desgosto. O desespero nos seus olhos é tal que quase faz Maggie desejar
ter ficado com Roland, só por amor ao pai.
Maggie ainda não encontrou Gabriel e ele ainda não apareceu. O sonho de
ter aquele filho com ele começa a desvanecer-se. E, no entanto, apesar das
frequentes ondas de desespero, uma teimosa réstia de esperança – ou
possivelmente de ilusão cega – persiste. Não vai desistir dele, e é por isso que
enfrentará tudo sozinha, em vez de voltar a correr para Roland, em busca de
segurança. Acredita que, acima de tudo, seja um sinal de fé.
Deixa o pai ali com as ervas e o cantil e regressa para dentro. Passa pelo
santuário e interrompe o passo, reparando que a porta está entreaberta.
Enquanto viveu nesta casa, nunca o viu a deixar a porta aberta. Ou está mais
bêbedo do que o habitual ou simplesmente assumiu que todos estavam a
dormir e que não havia necessidade de a fechar.
Maggie empurra levemente a porta e entra. Fica ali um momento, a respirar
o cheiro do pai. O velho livro Como Gerir um Centro de Jardinagem está
aberto no capítulo intitulado «Como atrair clientes», o que significa que o
negócio da loja está fraco esta estação. Passa os olhos pelo resto dos livros,
pelas peças de rádios, pela confusão de papéis e projetos pendentes, pelo
armário de arquivo metálico cinzento no canto da sala.
Sem pensar, e antes mesmo de se dar conta do que faz, encontra a chave na
gaveta de cima da secretária, mal escondida numa caixa de charutos vazia.
Ajoelha-se em frente ao arquivo e abre-o. Folheia as pastas – na sua maioria
contas – até que a mão repousa num envelope grosso de papel pardo na
gaveta de baixo. Há um endereço carimbado no canto. Maggie pega no
envelope no exato momento em que o pai aparece atrás dela.
– O que julgas que estás a fazer? – brada ele.
Ela levanta-se de um pulo, largando o envelope. Só conseguiu ler o nome
Goldbaum, LLB antes de o pai fechar a gaveta com o pé. O instinto diz-lhe
que tem algo que ver com Elodie.
– O que é isto? – pergunta-lhe ela. – Porque contrataste um advogado?
Ele agarra-a pelo pulso e empurra-a para fora do santuário. Violência física
nunca foi uma característica do pai. O rosto dele está vermelho e as veias do
nariz parecem ter explodido de raiva. Fecha-lhe a porta na cara e tranca-a.
Maggie fica do lado de fora da porta durante vários minutos, chocada com
aquela explosão invulgar. Ouve-o a arrastar os pés e bater com coisas lá
dentro.
– Papá! – chama, mas ele não responde.
CAPÍTULO 32

Elodie

E lodie limpa o suor da testa e desvia o rosto do vapor. Este mês foi
destacada para passar os lençóis a ferro, uma tarefa ainda mais
entediante do que a costura. Também é muito mais doloroso para o seu braço
direito, que nunca mais foi o mesmo desde que foi amarrada àquela cama
sem colchão durante uma semana.
– Faz cinco minutos de intervalo – diz a irmã Camille. – O teu rosto está
muito vermelho.
A irmã Camille é nova. Não parece muito mais velha do que Elodie, mas
agora é a encarregada das costureiras. É demasiado gentil para um sítio como
Saint-Nazarius. Será uma questão de tempo até se livrarem dela.
– Porque está aqui? – pergunta-lhe Elodie, pousando o ferro no descanso. –
Não pertence a um sítio como este, tal como eu.
– Deus pôs-me aqui por um motivo – responde ela. – Embora, às vezes, eu
não consiga perceber qual.
– Acha que Ele me pôs aqui por uma razão? – pergunta-lhe Elodie.
– Claro – responde a irmã Camille com toda a certeza. – Nós nem sempre
compreendemos o que Ele faz ou porque o faz. Podemos nunca vir a
compreender, não nesta vida. É isso que significa ter fé.
– Isso não é reconfortante – murmura Elodie.
A irmã Camille aperta-lhe a mão, um gesto tão surpreendente que Elodie se
encolhe e retrai a mão.
– Essa é a pior parte de estar aqui – diz a irmã Camille com tristeza. – Ver
as crianças crescerem sem qualquer afeto. Não é normal. Detesto não poder
abraçar as pequeninas e confortá-las quando choram.
– Seria despedida – diz Elodie. – Ou pior.
– Fi-lo uma vez, quando comecei. Peguei numa menina que tinha sido
acorrentada a um cano toda a noite. Ela não devia ter mais de quatro anos.
– O que aconteceu? – pergunta Elodie, desejando que a irmã Camille já lá
trabalhasse quando Elodie era pequena.
– Fui apanhada pela irmã Laurence e banida para o refeitório. – Ela parece
envergonhada e acrescenta: – E depois para aqui para a cave. Não consigo ser
cruel como me dizem para ser. Simplesmente não consigo.
– Talvez isso mude.
– Claro que não vai mudar.
– Então porque fica aqui?
– Eu disse-te – responde ela. – É a vontade de Deus. Mas entre nós, que
ninguém nos ouve, ficarei feliz quando se livrarem de mim.
– Leve-me consigo, irmã...
– Gostava de poder – diz a irmã Camille, pegando Elodie pela mão e
levando-a para o corredor. – Escuta-me – continua ela, baixando a voz. – A
lei está a mudar.
– Que lei?
– A lei que te pôs aqui.
Elodie encolhe os ombros, confusa.
– O Governo está a começar a investigar estes hospitais – explica a irmã
Camille. – Eles sabem o que aconteceu aos órfãos e vão tomar medidas a esse
respeito. Eles sabem que não são doentes mentais.
As lágrimas saltam dos olhos de Elodie e ela atira-se contra o peito da irmã
Camille.
– Quando? – chora ela. – Quando é que eu posso sair?
– Os médicos já começaram a entrevistar as crianças.
Uma onda de pânico atravessa o corpo de Elodie.
– O que se passa? – pergunta a irmã Camille. – É uma coisa boa, Elodie.
– A última vez que um médico me entrevistou, eu acabei aqui –
choraminga ela, lembrando-se daquele dia no orfanato. – Eu falhei!
– Basta que sejas tu mesma – tranquiliza-a a irmã Camille. – Tu não és
retardada. Ambas sabemos disso. Estes médicos estão do teu lado.
Elodie está cética. Os médicos nunca estão do lado dela; apenas fingem
estar.
– Eles vão descobrir que a maioria das crianças que está aqui é de
inteligência normal – assegura a irmã Camille. – Quando muito, tendes
algumas perturbações devido ao confinamento e a todos os maus-tratos. Tu és
inteligente, Elodie, mas ignorante.
– O que é que isso significa?
– Significa que não sabes nada sobre o mundo. Coisas básicas. És
primitiva, só isso. Mas não és louca.
– Isso é verdade.
– Se todas as pobres meninas daqui não eram atrasadas quando entraram,
certamente serão quando saírem.
– Acha que vou conseguir encontrar a minha mãe?
– Tudo é possível, se acreditarmos em Deus – diz a irmã Camille, mas a
expressão nos seus olhos desmente as palavras.
Elodie não vê fé, apenas pena. Ou talvez seja a própria desconfiança de
Elodie, a sua ambivalência em relação a Deus.
– Para onde irei? – inquire Elodie. – Não conheço nada além deste sítio...
– As crianças mais novas provavelmente vão para lares de acolhimento ou
para verdadeiros orfanatos. As mais velhas serão libertadas, imagino.
– Libertadas?
A irmã Camille acena com a cabeça. E então, vendo o olhar alarmado de
Elodie, acrescenta:
– Não te preocupes, não tens idade suficiente para ficares sozinha.
– Acha que vão mandar-me de volta para o orfanato de Farnham?
– Não sei.
A mente de Elodie vibra de pensamentos. A possibilidade de escapar de
Saint-Nazarius – de nunca mais ter de ver a cara da irmã Ignatia – enche-a de
nova esperança, algo que não sentia há anos.
– Vais ter de ter paciência – avisa a irmã Camille. – Não vai ser coisa para
acontecer tão cedo.
– Mas vai acontecer?
– Eu acredito que sim. Já começou noutros hospitais.
Elodie sorri, sentindo todo o seu corpo vibrar de entusiasmo e alívio. Há
uma réstia de medo – ainda tem de convencer os médicos de que não é louca
ou atrasada mental – e uma certa apreensão acerca do local para onde será
enviada, mas nada que possa sobrepor-se à alegria.
CAPÍTULO 33

Maggie

M aggie chega à loja de sementes do pai com o pequeno-almoço para os


dois. A montra está decorada com neve artificial e uma faixa vermelha
brilhante de Natal que diz JOYEUX NOËL FELIZ NATAL. Não fala com o pai há
semanas. Tentou fazê-lo várias vezes, mas ele recusa-se a falar com ela.
Hoje, está decidida a redimir-se por ter mexido sem autorização no armário
de arquivo. Trouxe as provas tipográficas da sua primeira tradução como uma
oferta de paz. Juntos, Triunfaremos representa não só as cerca de cinquenta
mil palavras que conseguiu traduzir do francês para o inglês, mas também a
assimilação bem sucedida das duas metades, francesa e inglesa, que fazem
parte dela. O incentivo de Godbout ao longo de todo o processo tem-na
surpreendido e estimulado. Se não fosse por ele, teria desistido do projeto.
– Conseguiste captar a luta – disse-lhe ele quando reviam as primeiras
provas da tradução. – Eu acredito nas tuas palavras.
– Foste tu quem escreveu as palavras – desviou ela o assunto.
– Eu escrevi-as em francês, Larsson. Tu estás a escrevê-las em inglês.
Estava preocupado que a tua versão pudesse parecer inautêntica. Ou pior,
académica. Mas a tua escrita é honesta e real. Eu acredito.
– Obrigada – agradeceu ela, enrubescendo.
Ficou emocionada. Na ausência do apoio do pai, a aprovação de Godbout
foi profundamente reconfortante.
– Não somos muito diferentes, tu e eu – disse ele, enrolando um dos seus
cigarros. – Ser mulher num mundo de homens não é muito mais fácil do que
ser franco-canadiano num mundo anglófono, não é?
– Talvez tenhas razão – concordou ela, nunca tendo feito a comparação
antes.
Maggie aprecia que ele repare em tais coisas e que a elogie
sistematicamente pelo seu esforço e resiliência. Vê algo nela que poucos
homens veem e respeita-a genuinamente. Ela atribui esta generosidade de
espírito ao facto de ele ser um homem com uma profunda lealdade aos
subjugados e aos oprimidos de todas as classes sociais.
Ainda assim, apesar dos elogios de Godbout, preocupa-se com o que as
pessoas irão pensar do seu trabalho. Ainda dá muita importância ao modo
como as pessoas a julgarão. Pergunta-se se Gabriel tropeçará na sua tradução
numa qualquer livraria. Se irá comentar com alguém: Ei, eu conheci esta
mulher. Ou talvez pense que ela não conseguiu captar a paixão de Godbout.
Abre a porta e entra na loja. O cheiro da terra flutua à sua volta. Já não é Vi
a pesar as sementes; agora, trabalha como secretária na empresa Small Bros,
onde são feitas as panelas de evaporação para ferver o xarope de ácer. Soa
extremamente monótono, mas Vi nunca teve grande ambição. Ela mudou-se
para o antigo quarto de Peter, para não ter de dividir a cama com as irmãs, e
ainda não tem perspetivas de se casar. Agora é Nicole quem pesa as
sementes.
O pai de Maggie levanta os olhos de uma caixa de sementes e esconde
imediatamente a expressão amigável. Ainda está aborrecido com ela. Maggie
também tem razões para estar zangada com ele, mas, de momento, está mais
preocupada em obter respostas. Encontrou um advogado em Montreal
chamado Sonny Goldbaum, mas não conseguiu falar com ele por causa das
férias de Natal. Enquanto isso, está determinada a descobrir o que há dentro
daquele envelope pardo.
O pai parece mais magro e pálido. Está a ficar velho de mais para trabalhar
tanto, pensa ela, sacudindo a neve das botas.
– Trouxe-te uma coisa – anuncia Maggie.
O pai não responde e ela levanta um saco de papel manchado de gordura
que traz na mão e as provas na outra.
– O pequeno-almoço e... tcharam... o meu livro!
Ele oferece-lhe um sorriso débil e murmura:
– Parabéns.
– É uma oferta de paz – diz ela, estendendo-o para ele.
Com relutância, o pai aproxima-se e examina o livro.
– Bravo – diz ele, admirando o grosso manuscrito.
– O Godbout diz que aquilo que faz de mim uma inadaptada é exatamente
o que me permite fazer um trabalho tão bom.
– Inadaptada? – questiona o pai. – Nunca te vi dessa maneira.
Maggie segue-o até ao escritório e ele puxa uma cadeira para ela se sentar.
Ela entrega-lhe uma sanduíche de ovo frito.
– Como se está a dar a nova vendedora? – pergunta-lhe.
– Gosta de fazer descontos para conseguir fazer uma venda – reclama ele. –
Passo a vida a dizer-lhe que, assim, encurta muito a margem de lucro.
Maggie mordisca uma tira de bacon. Quando descobriu que o pai tinha
contratado uma mulher para vender na loja, ficou arrasada. Sentiu-se traída,
como se ele a tivesse enganado. Pelo menos, ter o livro de Godbout para
traduzir ajudou a suavizar o choque. Nessa altura, já estava muito
embrenhada na tradução, a trabalhar com tenacidade e um sentido de vida
renovado. No presente, as pequenas alfinetadas do pai só magoam se ela se
permitir cismar nisso.
– Os clientes parecem gostar muito dela – continua o pai. – Ela tem genica.
Maggie não diz nada. Olha para um slogan emoldurado por cima da
secretária dele, lendo-o com uma onda de saudade.
Se alguém conseguisse fazer crescer duas espigas de milho ou duas folhas
de erva num pedaço de terra onde antes crescia apenas uma, mereceria mais
da espécie humana e prestaria um serviço mais essencial ao seu país do que
toda a raça de políticos reunidos.
– Jonathan Swift
– O que posso fazer por ti? – pergunta o pai, tratando-a como se ela fosse
uma cliente.
– Eu só queria dar-te as provas – diz ela, entregando-lhas. – Fica com elas.
Tenho outra cópia.
O pai folheia as páginas, a expressão inescrutável. Ela pergunta-se se ele
está orgulhoso dela.
– Maggie – diz ele, levantando a cabeça e pousando as provas tipográficas.
– Acho que não pensaste bem na tua vida. Não podes criar essa criança
sozinha. Não é prático em termos financeiros nem para a criança.
– Eu terei a pensão de alimentos – diz ela. – E o que ganhar com as
traduções.
– Tenho a certeza de que o Roland voltaria para ti de bom grado.
– Vim aqui para falar do meu livro, não do meu casamento.
– Gostaria que fosses mais pragmática – implora ele. – Pela primeira vez na
vida, não é hora de ires contra a corrente. – Sempre foste a minha flor
selvagem. – Vais ter um filho.
– Porque tens aquele envelope de um advogado no teu arquivo? – pergunta-
lhe ela.
– Não devias ter mexido nas minhas coisas.
– Tu sabes porque o fiz – diz ela. – Porque tens aquele envelope de um
advogado?
– Eu sei que pensas que há um grande mistério por trás disso, Maggie, mas
não há.
O pai levanta-se, deita fora os restos do pequeno-almoço e vira-se para a
encarar.
– Patenteei a minha semente Prévert – diz ele, soando exasperado. – Foi
por isso que precisei de um advogado. Satisfeita?
Maggie perscruta-lhe o rosto, à procura de indícios de que esteja a mentir.
– Anticlimático, não é?
Maggie não consegue esconder a deceção. Esperava outra coisa.
– Leva uma flor-do-natal quando saíres – oferece ele. – Tenho demasiadas.
– Causam-me alergia – resmunga ela, saindo do escritório com a sensação
de que a relação deles nunca mais será a mesma.
CAPÍTULO 34

O escritório de Sonny Goldbaum fica num antigo prédio de apartamentos


em Queen Mary, nada parecido com os elegantes escritórios de advocacia
da St. James Street que ela imaginava. Maggie sacode a neve do casaco e
encosta-se ao radiador antes de tocar à campainha. Está muito ansiosa para
falar com ele, pois espera há quase dois meses que ele regresse da Florida.
– É Maggie Larsson – diz ela para o intercomunicador.
Ele abre-lhe a porta.
Maggie agarra-se firmemente ao corrimão, manobrando o seu corpo pesado
escada abaixo. O corredor cheira a urina de gato. Quando chega à cave,
Sonny Goldbaum está à porta.
– Não sabia que estava grávida – diz ele, como se fosse algo que devesse
saber. – E, ao que parece, prestes a nascer!
– Só mais para o fim do mês – responde ela, desenrolando o cachecol.
Goldbaum tem cerca de quarenta anos, bem mais novo do que esperava,
com cabelo escuro e encaracolado, óculos de armação preta e muito
bronzeado. É um homem baixo e entroncado, vestido com uma camisa branca
de poliéster, através da qual se vê a camisola interior branca, e calças
cinzentas apertadas por baixo da barriga.
– Entre – convida ele.
Ajuda-a a sentar-se numa das duas velhas poltronas aos quadrados
amarelos e castanhos da sala, que também serve como escritório. Há meia
dúzia de armários de arquivo em madeira alinhados na parede e uma
secretária entalada entre a kitchenette e o corredor, que está atulhado de
pastas de arquivo e pilhas de papéis.
– Encontrei o seu nome nas coisas do meu pai – começa ela, ainda com o
cheiro da urina de gato do corredor no nariz aliado a outro cheiro estranho. –
Só quero confirmar qual foi o serviço que lhe prestou.
Goldbaum recosta-se na cadeira.
– Ele disse-me que tratou de um pedido de patente? – continua Maggie. –
Para um tipo especial de relva que ele inventou chamada Prévert?
A expressão de Goldbaum é absolutamente impassível.
– Lembra-se de ter feito um pedido de patente para um homem chamado
Wellington Hughes?
– Hughes? – diz ele, ainda desconcertado. – Não reconheço o nome.
Maggie mexe-se na poltrona, tentando acomodar-se. As costas começam a
doer-lhe.
– Além do mais, eu não trato de patentes, Mrs. Larsson.
A desilusão de Maggie é imediata.
– Diga-me lá qual é a verdadeira razão para esta visita? – pergunta ele,
olhando-lhe diretamente para a barriga. Tira os óculos, baixa a voz e
acrescenta: – Porque eu já não me meto nesse tipo de negócios.
– Que tipo de negócios?
– No negócio dos bebés.
– Oh, não... Eu não estou...
A mão dela vai direta à barriga, onde sente o bebé a dar pontapés.
– Então, peço desculpa, mas não estou a compreender – insiste ele. – Eu
não trato de patentes e não me lembro do seu pai ou de qualquer tipo de relva.
Porque não me explica a razão por que julga que o conheço?
– Eu tive um bebé quando tinha dezasseis anos – esclarece ela. – O meu pai
deve tê-lo contratado para tratar da adoção. É isso que faz, certo?
– Era o que eu fazia, de certa forma.
– Eu pensava que o meu pai tinha levado a bebé para um orfanato, mas não
há registo de ela ter dado entrada lá – continua a explicar. – E então,
recentemente, encontrei o seu nome nos arquivos do meu pai.
– E ele disse-lhe que eu trabalhei num pedido de patente para uma espécie
de relva?
– Sim.
– Bom, nesse caso, ele mentiu-lhe.
– Foi o senhor quem tratou da adoção? – insiste Maggie.
– É possível.
– Então, deve ter algum tipo de registo – diz ela, olhando para trás para os
armários. – Foi em março de 1950.
– Eu tratei de muitas adoções – diz ele.
– Não pode procurar?
– De que adiantaria?
– Quero saber se ela foi adotada.
– Nesse caso, devia perguntar ao seu pai.
– Tenho melhores hipóteses de saber a verdade por si – argumenta ela. – Só
preciso de saber por descargo de consciência.
– Posso assegurar-lhe que, se eu estive envolvido no processo, a sua filha
foi adotada. Era isso que eu fazia. Colocava bebés nas mãos dos pais certos.
Portanto, se o seu pai me contratou, a sua filha encontrou um lar.
Maggie começa a relaxar. Já se sente mais aliviada.
– Pode só confirmar se ele o contratou? – pede ela, cada vez mais
esperançosa. – Não se importa de verificar nos seus arquivos, só para eu ficar
sossegada?
– A senhora assinou o contrato quando recebeu o pagamento – explica ele.
– Quando abdicou dos seus direitos de mãe e de todas as informações sobre a
criança.
– Quando recebi o pagamento?! – exclama Maggie. – Eu nunca assinei
nada. Nem recebi dinheiro.
– Calculo que estivesse no lar de mães solteiras? – pergunta ele, pegando
numa caneta e pondo-se a tamborilá-la na mesa.
– Não, não estava – responde ela, confusa.
– Oiça, peço desculpa, mas não me lembro – diz ele. – Havia muitos bebés
naquela altura. A maioria deles era proveniente do lar para mães solteiras no
East End. Eu sempre tratei dos casos com as freiras. Houve apenas alguns
casos em que lidei diretamente com as mães biológicas ou, no seu caso, com
os pais da mãe biológica. Mas estou de mãos atadas. Foi uma adoção
confidencial e os registos são, também eles, confidenciais.
– Não pode sequer confirmar se tem o nome do meu pai?
– É ilegal, Mrs. Larsson. Já tive problemas legais suficientes. Além disso,
não tenho qualquer registo anterior à celeuma de 1954.
– Que celeuma?
– A senhora é muito jovem – diz Goldbaum. – Alguns de nós, advogados
do negócio dos bebés, fomos investigados há uns anos.
– Porquê?
– O Governo não gosta que as pessoas vendam bebés – esclarece ele. – Os
políticos não se importam de os institucionalizar e de fechar os olhos quando
os padres e as freiras abusam deles, mas Deus os livre de vender um bebé a
uma família decente.
Vender um bebé? Maggie abre a boca para falar, mas ele interrompe-a.
– Mrs. Larsson, parece-me que voltou ao bom caminho – diz ele. –
Acredite em mim; se o seu pai tinha correspondência minha, é altamente
provável que tenha sido eu a tratar da adoção da sua filha. Nesse caso, ela
está em boas mãos e pode sair daqui com a sua vontade cumprida: paz de
espírito.

Maggie pega no carro e vai diretamente para a loja do pai. Espera por ele
do lado de fora, a andar de um lado para o outro até ele encerrar a loja. O dia
já escureceu e vê o vapor da própria respiração, mas o ar invernoso sabe-lhe
bem no rosto. Observa o pai a mandar embora os últimos clientes, os
retardatários do fim do dia, e depois as luzes apagam-se. Quando ele está
prestes a trancar a porta, Maggie bate no vidro.
O pai deixa-a entrar, intrigado.
– O que fazes aqui? – pergunta ele, trancando a porta atrás dela.
– Porque é que me disseste que levaste o meu bebé para o orfanato? – exige
ela saber. – Porque é que me mentiste?
Os ombros do pai descaem ligeiramente, o suficiente para que ela repare.
Continua com ar adoentado.
– Se falaste com aquele advogado – diz ele –, certamente já sabes porque
menti.
– Porque a vendeste.
– Não exatamente.
– O que é que isso significa?
– Era isso que íamos fazer – admite ele, esfregando a têmpora com o
polegar. – Como poderia eu contar-te uma coisa dessas? Era melhor que
pensasses que ela foi para um orfanato. Mas quero que compreendas,
Maggie, que a venda de bebés ilegítimos era uma prática comum.
– É horrível! – exclama ela.
– Não foi ideia minha. O Yvon sabia como tratar do assunto. Creio que ele
engravidou alguma rapariga.
Maggie bufa de nojo.
– Eu pensei que isso garantiria uma adoção – explica o pai. – E eu
precisava do dinheiro extra. Era uma situação vantajosa para todos, Maggie.
Mas, então, foi tudo por água abaixo.
– Porquê?
– A bebé nasceu doente. Deveria ter ido para um casal judeu de Nova
Iorque – explica o pai. – Estava tudo combinado. Eu ia entregá-la a uma das
freiras do Mercy Hospital...
– Freiras? – berra Maggie. – Elas estavam envolvidas na venda de bebés?
– Era um grande negócio – diz o pai. – Os advogados tratavam dos
documentos e depois davam o bebé a uma freira ou a um médico do lar para
mães solteiras. Estavam todos metidos nisso. O Goldbaum foi preso alguns
anos depois de eu ter tratado das coisas com ele. Apareceu nas notícias.
A celeuma de 1954. Goldbaum deu a entender que tinha sido injustamente
perseguido.
– Foi acusado de vários crimes – continua o pai –, entre elas falsificação de
certidões de nascimento. Mas ele escapou da primeira vez. Da segunda, teve
de pagar uma multa. Foi quando toda a história saiu nos jornais.
– Por quanto é que ias vendê-la? – quer saber Maggie.
– Por três mil dólares, mas as freiras iam receber a maior parte. Depois da
comissão do advogado, ficaríamos com quinhentos dólares. Metade disso
teria ido para o Yvon por ter deixado que ficasses na fazenda deles durante a
gravidez.
– A minha filha valia duzentos e cinquenta dólares para ti?
O pai não responde.
– O que aconteceu depois?
– O Goldbaum garantiu-me que eram boas pessoas que não podiam ter
filhos – continua ele. – Mas quando descobriram que o bebé era prematuro e
tinha icterícia, mudaram de ideias. Não queriam um bebé doente.
– Então, para onde a levaste? – insiste Maggie, limpando as lágrimas.
– Ela ficou no hospital. As freiras ficaram de a levar para o orfanato assim
que a icterícia desaparecesse e ela ganhasse algum peso. Tinha menos de dois
quilos.
– Então, simplesmente deixaste-a lá? – explode Maggie, não querendo
imaginar a sua pequena bebé abandonada no hospital.
– Deixei-a aos cuidados dos médicos e das freiras, sim.
– Então ela sempre foi para o orfanato, mas mais tarde? Talvez em abril?
– Talvez – responde ele. – Era prática corrente, Maggie. Tenho a certeza de
que ela acabou por ser adotada.
– Como podes ter a certeza? – acusa Maggie. – Não fazes ideia do que lhe
aconteceu. Não que te importes.
CAPÍTULO 35

N o caminho de regresso a Dunham, Maggie pensa obsessivamente sobre


o que fazer a seguir. Ir ao orfanato? Voltar a ligar para lá e tentar obter
informações sobre todas as meninas que chegaram nas semanas seguintes à
data de nascimento de Elodie? Começa a sentir pontadas de dor no ventre e
para o carro na berma para respirar fundo, à espera que a dor passe. Quando
isso acontece, volta à estrada, aliviada ao sentir o bebé a esticar-se dentro
dela.
Está quase a chegar a casa, quando sente algo quente entre as pernas. Olha
para baixo e vê que está toda encharcada. As águas. Ela lembra-se das águas.
De Yvon a afiar a faca para trinchar a carne assada. De alguém a
perguntar se há rábano e depois do fluxo quente de água entre as pernas, da
vergonha da própria ignorância.
Ainda lhe faltam três semanas para o fim da gravidez. Depois de outra dor
aguda, decide conduzir diretamente para o hospital. As águas continuam a
escorrer para o assento. Olha para baixo constantemente para se certificar de
que não é sangue. Por favor, sangue não.
Estaciona junto ao Hospital Brome-Missisquoi-Perkins e quase cai do
carro.
– Ela está em trabalho de parto! – grita alguém. – Vai buscar uma cadeira
de rodas.
Maggie regressa ao presente. Vê pessoas a rodeá-la. O vento e a neve no
rosto sabem bem.
– É muito cedo – murmura ela.
Ainda não terminou de dizer as palavras e sente mais uma contração, aguda
e brutal.
– O seu bebé não concorda – responde-lhe o estranho.
Estas coisas não têm hora marcada.
– Passa-se alguma coisa de errado? – pergunta Maggie.
Ninguém responde. O presente volta a esvair-se. Outra contração, outra
memória.
As ancas fortes do Dr. Cullen. A bacia de esmalte. O sangue. O cordão
umbilical rompido.
– Ela vai ficar bem? – pergunta Maggie novamente.
– Está tudo bem. Vamos levá-la para dentro.
É sentada numa cadeira de rodas e alguém – uma enfermeira – empurra-a
para dentro do hospital. Entre as contrações, consegue relaxar. Inspira
profundamente o ar frio e sente-se lúcida.
– Respire fundo. É só uma contração.
– Não me lembro de ser tão doloroso.
– Isso quer dizer que já passou por isto antes – diz a enfermeira. – Já é uma
profissional.
– É muito cedo – geme Maggie, acariciando a barriga, tentando manter o
bebé lá dentro. – Ainda faltam umas semanas...
– É tempo suficiente – garante a enfermeira. – Eu tenho uma prima que deu
à luz oito semanas antes do tempo e o bebé saiu perfeitinho. Minúsculo, mas
perfeito.
Maggie sente uma dor no fundo das costas, uma pressão forte que é
tremendamente desconfortável. É levada à pressa para a maternidade. Não há
quartos disponíveis, por isso deixam-na numa maca no corredor. Uma
enfermeira quer saber se deve ligar ao marido de Maggie.
– À minha mãe – grunhe Maggie no meio de uma contração.
Mesmo por entre a névoa e a confusão das dores do parto, não consegue
tirar Elodie da cabeça. Cada contração é acompanhada de uma forte pontada
de culpa pelo facto de ter abandonado a filha naquele mesmo hospital –
doente, sozinha e indesejada. Quando Maggie começa a chorar, não é de dor,
mas de remorso. Onde estará ela agora?
– Elodie... – soluça ela.
– Vai ficar tudo bem – tranquiliza a enfermeira. – Vamos dar-lhe uma
injeção para a dor.
Já não há espaço entre as contrações, apenas uma agonia intolerável e
implacável.
– Está a chegar! – geme ela, num estado semiconsciente. – Liguem para o
meu médico. Está a chegar...
Consegue sentir o bebé a abrir caminho para o mundo. Continua a entrar e
a sair do passado, um momento no presente, outro na altura dos seus
dezasseis anos.
– O médico já vem aí.
O Dr. Cullen aparece ao lado da cama. Já vejo a cabeça.
Ela está vagamente ciente de agarrar a mão de outra pessoa. A fazer força,
sempre a fazer força. A cabeça cai de volta na almofada. Uma enfermeira em
pé junto a ela. O uniforme branco.
Ela enfia os pés nas ancas do Dr. Cullen, apertando a mão da tia.
– Está a portar-se muito bem.
É outra vez a enfermeira. O uniforme branco.
«Só mais uma!», encoraja o Dr. Cullen. «O último empurrão!»
E então os gritos dela são repentinamente misturados com os gritos
penetrantes de um recém-nascido. O seu bebé, aquele com que pode ficar
desta vez. Tenta sentar-se, mas a enfermeira empurra-a gentilmente para
baixo.
É uma menina.
– Posso vê-la? – pede Maggie, meio delirante.
– É um menino, querida. Teve um rapaz.
Um raio de lucidez na neblina da analepse. Um rapaz. Passa os olhos pelo
quarto e vê que a mãe e Deda não estão ali. Nem o Dr. Cullen. Há uma
enfermeira de uniforme branco, um médico que nunca viu... e o filho dela.
O filho. No momento em que, depois de o embrulharem num fino cobertor
de algodão azul, lho colocam gentilmente no seu peito, ela não consegue
evitar chorar pela menina que abandonou. Chora e ri de alívio ao beijar-lhe a
cabeça dourada e húmida.
– É um menino saudável – informa o médico.
– Teria sido um parto muito difícil se levasse a gravidez até ao fim – diz a
enfermeira.
O bebé tem os olhos fixos em Maggie, surpreendentemente alerta. Ela toca-
lhe o nariz e beija-lhe ao de leve a testa. Procura Gabriel naquele rosto.
Aceitou a ausência dele na cabeça, mas não no coração.
A enfermeira inclina-se para pegar no bebé.
– O que está a fazer? – protesta Maggie, apertando mais o filho.
– Só quero levá-lo para o berçário.
– Por favor, ainda não.
Recusa-se a deixá-lo ir. Cometeu esse erro uma vez e nunca mais viu a
filha. Não vai deixar que este fique longe do seu alcance.
– Qual é o nome do bebé? – pergunta-lhe a enfermeira.
Maggie pensa um momento, e então, como se fosse uma decisão há muito
tomada, responde:
– James Gabriel.

Gabriel,

Fiz de tudo para conseguir contactar-te, mas todos os meus esforços


foram em vão. Sei que estás de relações cortadas com a Clémentine, e
a Angèle não responde às minhas cartas nem me atende o telefone. Ela
sempre foi ferozmente leal a ti. Deve estar tão desapontada comigo
como tu.
Uma vez que não consigo encontrar-te para te dizer tudo o que quero
dizer, vou escrevê-lo, para que, pelo menos, tenhas um registo. Talvez,
um dia, mande esta carta para a Clémentine, confiando que
eventualmente façam as pazes. Eu sei o amor que sentem um pelo
outro. Ainda me lembro daquela tarde durante a tempestade, em que
ela nos levou da escola para casa, da maneira carinhosa com que
falavam um com o outro, do afeto que era tão óbvio entre os dois.
Lembro-me da inveja que senti. Queria que falasses comigo da mesma
maneira. Eu já estava apaixonada por ti.
A razão pela qual escrevo é para te contar do nosso filho. Descobri
que estava grávida logo depois de terminares comigo e desapareceres.
Irónico, não é? Deixaste-me por causa da criança que abandonei e
acabaste por perder o nascimento da criança que escolhi manter.
O nosso filho, disso tenho a certeza.
Enquanto olho para o seu rostinho adormecido, não consigo decidir
de quem tenho mais pena: de ti, por não estares aqui para o ver,
abraçar e amar, ou do nosso filho, James Gabriel Phénix Hughes, que,
aparentemente, vai crescer sem pai. Mas não estamos completamente
sozinhos, não te preocupes. As minhas irmãs vêm todos os dias adulá-
lo como um príncipe. Ele até conseguiu derreter a parede de gelo que
envolvia o coração da minha mãe. O meu pai não o vê desde o dia do
nascimento, mas essa história vou guardar para quando te vir
pessoalmente.
Não passa um dia em que não pense em ti e lamente a forma como as
coisas acabaram ou me recrimine por ter estragado tudo. No entanto,
fiz uma coisa bem. Tive este bebé, este menino lindo e perfeito com
cabelos loiros como o pai e olhos azul-escuros. As pernas são como
duas salsichas brancas e os pés e as mãos rosadas tão minúsculos
emocionam-me. Cheira a pó de talco e a leite azedo.
Embalo-o até ele adormecer, o rabito na fralda branca espetado e a
bochecha rosada contra o meu peito. Canto-lhe canções de embalar ao
ouvido e faço-lhe festinhas nas costas. O corpo dele não é maior do que
uma bola de râguebi e encaixa perfeitamente entre os meus seios.
Quando está num sono profundo, sorri secretamente e a boca contorce-
se, como se estivesse a ter um sonho engraçado ou a falar com pessoas
de outra vida. Os gritos dele acordam-me de hora a hora, a noite toda,
e soam exatamente como uma cabra zangada.
É tudo o que me lembro por enquanto. Gostaria tanto que estivesses
aqui connosco.
E desculpa.

Com todo o meu amor,


Maggie
PARTE III

1961-1971

As Famílias das Flores

Os pássaros têm asas; podem viajar, encontrar outros pássaros e


estabelecer as suas populações... Porém, as flores estão enraizadas
na terra. São frequentemente separadas por grandes barreiras de
ambientes inadequados de outras «classes» da sua própria espécie.

– Guia de Cultivo de Flores Silvestres


CAPÍTULO 36

M aggie atende o telefone usando uma luva de forno. É a mãe, o que não
é invulgar, embora normalmente falem aos domingos à noite depois do
jantar.
– Porque estás a ligar tão cedo? – pergunta Maggie, empurrando o frango
de volta para o forno.
– Ele está doente – diz a maman.
– Quem é que está doente? – pergunta Maggie, o coração acelerando.
– O teu pai. Tem cancro.
– Cancro?
– Recusou-se a ir ao Dr. Cullen. Sabes como ele odeia médicos. Agora
espalhou-se por todo o corpo. Ele esperou demasiado tempo.
O pai de Maggie sempre teve um medo mortal dos médicos. Ela não se
lembra de uma única vez em que o pai tenha ido ao médico, nem para um
check-up, nem por causa de alguma indisposição ou doença. A estratégia dele
é lutar contra a doença sozinho e esperar pelo melhor.
– Há quanto tempo está doente?
– No ano passado reparou num pequeno caroço logo abaixo da orelha – diz
a maman. – Mentiu-me e disse que foi ao médico e que não era nada. Disse
que era só um quisto, por isso, ignorou-o até ser do tamanho de uma
almôndega. Foi quando eu lhe disse que tinha de ir removê-lo, que estava a
ficar tão grande como a cabeça dele. Eu mesma o levei e o Dr. Cullen
mandou-nos diretamente para o hospital. Maldito palerma! Nunca me disse o
mal que se sentia. E agora...
– Agora, o quê?
– Agora é demasiado tarde. Ele vai morrer.
– Deve ser possível fazer alguma coisa – diz Maggie, perturbada. – Há
sempre alguma coisa a fazer. Que tipo de cancro é?
– É raro – responde a maman. – O médico chamou-lhe o cancro do
jardineiro.
– Que diabo é isso?
– Por causa dos pesticidas, provavelmente.
Quantas vezes Maggie ouviu o pai defender os pesticidas diante dos
clientes? Eles são amigos da semente, meus senhores!
– Esteve a semana toda no hospital a fazer exames – continua a mãe. – Não
me deixou dizer a nenhum de vós. Pelo menos, até sabermos a gravidade.
Mandaram-no para casa para morrer.
Maggie leva uma mão à boca para reprimir o exalar de choque.
– Quanto tempo lhe deram?
– Meses. Um ano, no máximo.
– Eles não conhecem o papá – afirma Maggie, com a voz embargada. – Se
alguém é capaz de lutar e vencer uma coisa destas, é o pai. Ele não vai
desistir.
– Maggie. Isto não é um problema de negócios. É cancro.
Maggie encosta-se ao forno e chora baixinho. Não fala com o pai desde que
James Gabriel nasceu. Aliás, planeava não o fazer durante mais tempo, para o
punir pelo que fez a Elodie. Tem obrigado a mãe e as irmãs a virem a casa
dela visitar o bebé, em vez de ser ela a ir a casa dos pais. Agora está
devastada.
Ela sabia que o pai não estava bem. Há meses que parece não estar bem. Só
viu o neto uma vez, no hospital, quando veio visitá-lo à nascença, trazendo
charutos para quem quer que lá estivesse. Maggie não lhe disse uma palavra.
– Ouviste-me? – insiste a mãe.
– Não.
– Eu disse que ele pediu para te ver.

Quando ela chega, a mãe já a espera na cozinha, com uma aparência velha
e cansada. Só tem cinquenta anos, mas parece vinte anos mais velha.
Engordou ainda mais e passou a ter papada. A primeira coisa que faz é pegar
no bebé de Maggie. Olha para o rosto adormecido e sorri, um sorriso que lhe
ilumina os olhos escuros e suaviza as rugas fundas em volta da boca
geralmente carrancuda.
– Bonjour, mon p’tit choux – arrulha ela.
Maggie observa a mãe a embalar James Gabriel nos braços, murmurando
palavras sem sentido e olhando para ele em adoração, e pergunta-se se a
maman a embalou daquela maneira, se olhou para ela com aqueles mesmos
olhos enfeitiçados e lhe murmurou suavemente ao ouvido.
– Como está o papá? – pergunta ela.
– Está cheio de dores. Tem a morfina, mas não ajuda. O cancro já está no
fígado.
Maggie sobe as escadas. O quarto está escuro como breu e sinistramente
silencioso. Aproxima-se da cama e vê um pequeno monte sob a colcha de
chenille.
– Papá?
O pai mexe-se.
– Maggie?
Ela senta-se ao lado dele.
– Acende a luz – murmura ele.
Com a luz acesa, repara na significativa deterioração do pai. Tem de lutar
contra as lágrimas para não o alarmar. A raiva a que se agarrou ao longo dos
últimos dois meses esvai-se imediatamente. Ele parece um velho doente.
Esquelético, pálido, indefeso. O homem forte e fiável desapareceu. Não resta
qualquer vestígio da sua vitalidade, paixão ou arrogância.
– Maggie – ofega ele. Tem olheiras escuras e os braços são como ramos.
Tosse para um lenço e Maggie encolhe-se. – Como estás? – pergunta ele, a
voz a gargarejar de muco.
– Estou bem, papá.
Ele tenta um sorriso. Anos a fumar charutos amarelaram-lhe os dentes
inferiores.
– Agora tens um filho para criar – diz ele.
Maggie pega-lhe na mão.
– Se eu tivesse uma última vontade...
– Por favor, não digas isso.
– O menino precisa de um pai – continua ele. – O Roland aceitar-te-ia de
volta num piscar de olhos. Eu sei que ele ainda te ama.
Maggie fica em silêncio.
– A loja tem de ser posta à venda – diz ele.
– Eu sei. Posso ajudar com isso.
– Certifica-te apenas de que não acabe nas mãos de um francês, está bem?
Não quero que a Superior Seeds fique com má reputação depois de tanto
trabalho árduo para construir um negócio sólido e sério.
Ela solta uma risada. O pai sempre se achou superior aos outros.
– A menos que tu assumas a responsabilidade – acrescenta ele.
– Que fique com a loja?
– Sempre tiveste boa cabeça para os negócios – diz ele. – Tens de ser tu.
Podias geri-la. Mantê-la na família.
A mente de Maggie fervilha de ideias. Gerir a loja de sementes do pai era o
seu sonho de infância, mas agora tem o bebé e gosta de traduzir...
– Preciso de dormir – murmura ele. – Pensa nisso, hum?
Ela anui, sabendo que não será capaz de pensar noutra coisa.

A maman tira a caçarola de esparguete do forno, entrega-a a Vi para que a


ponha na mesa e depois atira algumas salsichas para uma frigideira. Ao
observar a mãe a movimentar-se com perícia pela cozinha, Maggie sente uma
onda de afeto. Ela sempre cuidou bem da família. Nunca o fez com carinho
ou ternura, mas sempre garantiu as necessidades básicas dos filhos. Eram
bem alimentados, bem vestidos e andavam sempre impecavelmente limpos; a
casa também sempre foi imaculada, bonita e confortável. É provavelmente a
única forma que a mãe conhece de amar alguém.
– Fizeste o prato preferido dele – observa Maggie.
Esparguete gratinado e salsichas.
– Depois de trinta e cinco anos – diz a maman, virando as salsichas na
frigideira –, é estranho não o ter à mesa.
James Gabriel agita-se na alcofa aos pés de Maggie. A maman põe as
salsichas na caçarola de esparguete e senta-se. Maggie, Vi e a maman comem
em silêncio. Os únicos sons vêm do tilintar dos talheres e da voz de Patti
Page a cantar na rádio.
– Os fazendeiros bem o avisavam – diz a maman, quebrando
repentinamente o silêncio. – Sobre aqueles malditos pesticidas. Eles sabiam.
Mas ele nunca deu ouvidos a ninguém. Sempre achou que sabia mais do que
os outros. Sempre com a mania de que ele é que tinha razão.
– Ninguém sabe ao certo se foram os pesticidas – diz Vi, ajeitando os
óculos no nariz.
– Aquele fantasma lá em cima – continua a maman. – Aquele já não é o
meu marido. – Faz uma pausa, refletindo. Ainda não tocou na comida. – Ele
costumava gabar-se do curso que tirou, dos planos de abrir a sua própria loja
de plantas. Estava tão cheio de si. – A mãe ri-se perante a lembrança. – No
dia em que o conheci, trazia vestido um colete de tweed irlandês. Fez questão
de me dizer que era irlandês. Como se eu me importasse com o maldito tweed
irlandês!
Solta uma gargalhada sonora. Maggie inclina-se e puxa o cobertor para
agasalhar James Gabriel.
– Ele fez um esforço – admite a maman. – Isso tenho de reconhecer. Ele
morava em L’Abord-à-Plouffe, mas viajava uma hora e meia no elétrico para
me ir ver com um ramo de flores acabadas de colher. Não parecia importar-se
nada que eu vivesse em Hochelaga.
A porta das traseiras abre-se de repente e Nicole aparece no vestíbulo, com
ar corado e exuberante. O cabelo escuro está cortado muito curto, no novo
estilo pixie, a imitar o da atriz Jean Seberg no filme O Acossado. É tão bonita
como Maggie, mas com mais confiança. Ela pega numa salsicha antes de sair
da cozinha.
– É uma dor de cabeça, aquela – queixa-se a maman.
– Não é de admirar – diz Vi. – Deixa-la fazer tudo o que quer e ainda nem
fez dezasseis anos.
– De que adianta tentar? – contesta a maman. – Nenhum de vós se tornou
aquilo que eu imaginei. Exceto o Peter, e foi o único a quem dei menos
atenção.
– A Geri está na universidade – lembra-lhe Vi.
A maman encolhe os ombros e levanta-se para tirar os pratos da mesa. Põe
café a fazer e alguns biscoitos caseiros num prato e traz três canecas para a
mesa. Quando o café está pronto, ela mistura um pouco de chocolate em pó
com umas gotas de leite no fundo das canecas e depois deita o café por cima.
– Só depois de o vosso pai e eu nos casarmos – diz ela, sentando-se à mesa
–, é que ele tentou mudar-me. De repente, deixou de suportar o facto de eu
ser francesa. Ele era assim. Odiava-se por querer estar com alguém como eu.
– Do que gostaste nele? – pergunta-lhe Maggie.
– Era bem-educado – responde a mãe. – Todos os outros rapazes com quem
cresci bebiam e diziam palavrões, mas o vosso pai tinha uma certa classe.
Talvez por isso gostasse de estar no East End com as raparigas francesas.
– Isso não faz sentido – diz Vi.
– O teu pai era muito inseguro – explica ela. – O pai dele morreu quando
ele era muito novo e foi criado pela mãe. Ela era uma completa snobe. Não
era rica, nem coisa que se parecesse, morava no campo, pelo amor de Deus,
mas agia como se fosse uma rainha. Tinha cá uma mania das grandezas!
A maman revira os olhos ao recordar a sogra.
– Para ela, tudo o que o vosso pai fazia estava mal – continua. – Ela queria
que ele fosse para a Universidade McGill, não para a escola de horticultura.
Queria que ele fosse médico ou bancário. Estava sempre a gozá-lo por ele ser
um «jardineiro», como ela dizia. Ele odiava.
A maman parte um biscoito em dois e leva um pedaço à boca.
– Ele não se tinha em grande conta quando o conheci – recomeça. – Mas,
no East End, era sempre o mais bem vestido e agia como se fosse melhor do
que todos nós. Era um rei nos bairros de lata. Usava aqueles fatos caros que
faziam as francesas adorá-lo. Ele adorava toda aquela atenção, mas tinha
medo dos outros da classe dele. A mãe incutiu-lhe isso. Toda a gente era
inferior a ela. Acho que ele se casou comigo para a castigar. Ou para fugir
das expectativas ridículas dela.
– Ele amava-te – diz Maggie. – Eu sei que discutiam muito, mas vocês
amavam-se.
A mãe agita uma mão desdenhosa no ar, mas as faces ficam coradas.
– Seja como for, a mãe deserdou-o quando ele se casou comigo – diz ela,
regozijando-se.
Maggie bebe o café, agridoce do chocolate, e fica impressionada com os
pontos comuns com a sua própria história: a rejeição de um progenitor e uma
vida inteira a tentar consertar os sentimentos subsequentes sem nunca se
sentir à altura.
– Ele tentou transformar-me numa boneca inglesa – continua a mãe. – Fez
o mesmo convosco, o que, claro, foi exatamente o que a mãe fez com ele.
– Não podes dizer nada de simpático sobre ele, uma vez que seja? –
protesta Vi. – Agora que o pai está a morrer, pelo amor de Deus, não podes
simplesmente dizer que o amas?
– Para falar a verdade, nunca pensei nisso – responde a maman. – Não
pensávamos nesse tipo de coisas quando cresci em Hochelaga, e ainda não
pensamos. Pensávamos em sobrevivência. Vocês, meninas, pensam
demasiado em amor. Sempre o fizeram.
– Tu e o papá devem ter ficado juntos por um motivo – intervém Maggie.
– Bem o ouvíamos do vosso quarto – murmura Vi, surpreendendo Maggie,
pois nunca conversaram acerca disso quando eram mais novas.
– Isso era apenas sexo – responde a maman.
– Bem, é mais do que a maioria tem.
CAPÍTULO 37

M aggie entra de mansinho no quarto e fica parada ao pé do pai, a vê-lo


dormir. Voltou a passar a noite ali e ainda não tem vontade de ir para a
sua casa de Knowlton. Tem receio de que, se sair, ele morra.
– Maggie – articula ele em voz rouca, sentindo-a. – És tu?
– Não queria acordar-te.
– Senta-te.
Ela senta-se na cama e o pai tenta elevar um pouco o corpo. Ela ajuda-o,
subindo a almofada atrás das costas. O esforço deixa-o exausto.
– Maggie, só quero que saibas o quanto lamento.
Ele aperta-lhe a mão e ela fica surpreendida com a força do aperto.
– Está tudo bem – responde ela.
– Não. Escuta-me. Desculpa por te ter proibido de ficar com o Gabriel
Phénix. Eu sei que o amavas.
Maggie limpa as lágrimas dos olhos e depois afaga o cabelo fino e húmido
do pai.
– E sinto muito pela tua bebé – continua ele. – Só te menti para te poupar a
sofrimento desnecessário.
– Eu sei disso.
– Nós tomámos a decisão de a dar para adoção para proteger o teu futuro,
Maggie.
– Eu sei.
– Eram outros tempos – justifica ele. – Era o que as famílias tinham de
fazer naquela época. Caso contrário, a tua vida e reputação teriam ficado
arruinadas aos dezasseis anos. – Faz uma pausa e aperta a mão da filha. – Nós
queríamos que tivesses melhores oportunidades. Vê no que se tornou a vida
da Clémentine e ela era apenas divorciada.
Maggie sabe que ele tem razão. O sentido moral do Quebeque sob o
domínio de Duplessis foi o pano de fundo do que aconteceu na sua família.
Os pais apenas reagiram por medo e pânico, tomando a única decisão que
podiam tomar para protegerem a filha da humilhação e desgraça públicas.
Como pode ela ficar revoltada com ele? O pai está a morrer. Ela não quer, de
modo algum, puni-lo no leito de morte ou guardar rancor depois de ele se ir,
o que só serviria para envenenar a sua própria vida.
– Tentaste encontrá-la? – pergunta ele.
– Não tive oportunidade de fazer nada desde que o James nasceu.
– Não quero que me odeies – diz ele.
– Eu nunca poderia odiar-te, papá.
Os olhos dele fecham-se e a respiração torna-se ainda mais esforçada. A
cabeça cai para o lado, o corpo agitando-se por soluços silenciosos. As
lágrimas acumulam-se nas faces encovadas.
– Ela era tão linda, Maggie. Assim como tu. – Começa a tossir. – Perdoa-
me por não a ter salvado quando tive a oportunidade.
– Salvar?
– Chega – diz a mãe, entrando no quarto. – Deixa-o em paz, Maggie.
– Hortense – diz ele, engasgando-se. – Traz-me uma bebida.
– Wellington, não sejas idiota.
– Por favor.
Hortense deixa o quarto a contragosto, a resmungar baixinho:
– Maudit ivrogne.
Maldito bêbedo.
– Eu dei-lhe o nome que tu querias – revela o pai de Maggie, assim que
ficam sozinhos.
– Que nome?
– Elodie.
Maggie solta um ruído engasgado e cobre a boca com a mão.
– A maman disse-te?
– Foi a Deda.
– Porque é que nunca me contaste?
Ele abana a cabeça com desamparo, os olhos turvando-se.
– Foi uma decisão impulsiva – admite ele. – Eu não tinha intenção de o
fazer, mas, no último segundo, simplesmente não fui capaz de a deixar ir
sem, pelo menos, uma ligação a ti. Alguma pista para ela encontrar o
caminho de regresso.
Maggie deita a cabeça no peito dele. Não apaga o que ele fez, mas dar ao
bebé o nome que ela escolheu é uma espécie de dádiva preciosa.
– E se ela nunca foi adotada? – sugere Maggie, levantando a cabeça. – E se
ela cresceu num asilo?
– Se ao menos aquele casal tivesse sido mais honrado – lamenta ele. – Eles
deviam ter ficado com ela, doente ou não. Eles são os únicos culpados.
– Porque escolheste pessoas de Nova Iorque? Porquê tão longe?
– Era difícil para os judeus arranjarem bebés naquela época – explica ele. –
Estavam desesperados e começaram a comprar bebés no Quebeque. Achei
que era a melhor opção para garantir uma adoção.
– Não podias ter encontrado outra família aqui no Quebeque, depois de eles
decidirem não ficar com ela?
– Era esse o plano – responde ele. – Ela seria transferida para o orfanato
Saint-Sulpice, perto de Farnham. Tenho a certeza de que a entregaram a uma
família, Maggie. Ela era perfeita.
O pai fecha os olhos e começa a roncar, ofegante.
– Era assim que as coisas funcionavam – murmura, voltando por instantes à
consciência. – Não pensávamos que estivéssemos a fazer nada de errado. Mas
nada correu como eu esperava.
Pouco tempo depois, ele ronca alto, a garganta a vibrar. Quando Maggie sai
do quarto, colide com a mãe, que traz uma garrafa de whisky Crown Royal
numa mão e um copo com cubos de gelo na outra.
– Ele está a dormir – diz Maggie, fechando a porta.
– O que é que ele te disse? – quer saber a mãe.
– Tudo.
– Não pensámos que estivéssemos a fazer nada de mal – defende-se a mãe.
– Estávamos apenas a tentar limpar a confusão que criaste da melhor maneira
que sabíamos, Maggie.
– A confusão que eu criei? É possível que a culpa tenha sido do Yvon!
Maggie pode perdoar ao pai por ter levado Elodie para o orfanato, mas não
vai oferecer à mãe a mesma cortesia por ter escolhido acreditar em Yvon em
vez de na própria filha.
– Imagino que seja mais conveniente para ti culpares o Gabriel em vez de o
teu querido cunhado – acusa Maggie.
– Ele é o marido da minha irmã, Maggie.
– E eu sou a tua filha.
A maman desvia o olhar.
– Eu hei de encontrá-la – afirma Maggie.
– Não vais conseguir – avisa a mãe. – Eles provavelmente mudaram-lhe o
nome, apagaram-lhe a história. Ninguém nesta província quer que saibas
onde está essa criança ou o que aconteceu com ela.
Maggie olha para a mãe um momento e depois repete com autoridade:
– Eu hei de encontrá-la.
CAPÍTULO 38

M aggie estaciona o carro em frente ao Hôpital Mentale Saint-Sulpice e


fica sentada vários minutos, tentando recompor-se. A fachada de tijolo
vermelho e o convidativo jardim da frente fazem Maggie pensar que o
edifício foi, provavelmente, um dia uma casa bastante charmosa. Se não fosse
pelas barras de ferro nas janelas, ainda poderia ser.
Um telefonema rápido para o orfanato de Cowansville revelou que uma
menina de três semanas tinha lá dado entrada em abril de 1950 e havia sido
transferida um mês depois para Saint-Sulpice, tal como o seu pai supusera.
Em 1954, o nome do orfanato – e, com ele, a vocação – foi oficialmente
mudado para Hôpital Mentale Saint-Sulpice.
Maggie sai do carro e fica parada na porta da frente durante muito tempo, a
imaginar a sua filha recém-nascida a ser levada para ali há tantos anos nos
braços de um estranho. Respira fundo e usa a aldraba para bater à porta. Logo
depois, alguém abre a porta.
– Posso ajudar?
Maggie fica espantada ao ver-se diante de um homem de meia-idade com
uma poupa à Elvis. Estava à espera de uma freira.
– Gostaria de falar com alguém responsável – anuncia ela. – Uma das
irmãs?
– Eu sou o zelador.
– Gostaria de obter algumas informações sobre a minha filha.
O homem franze o sobrolho. Tem olhos cansados e uma expressão dura.
Deve atender mulheres como Maggie constantemente, à procura de filhos há
muito perdidos, especialmente depois de as comissões de inquérito se terem
tornado públicas.
– Não damos informações – responde ele. – É contra a lei.
Maggie aproxima-se dele e mete-lhe uma nota de cinquenta dólares na
mão.
– Por favor, aceite este donativo – diz ela nervosamente. – Ficarei
agradecida por qualquer coisa que me possa dizer.
Ele hesita um momento e, então, enfia rapidamente o dinheiro no bolso.
– Venha comigo – diz ele.
Maggie segue-o, reparando no interior sombrio – pouca iluminação,
mobília velha, um forte cheiro a mofo – enquanto se dirigem para um
escritório nos fundos. Ele puxa uma corrente e uma lâmpada nua ilumina uma
sala estreita forrada com armários de arquivo em madeira. Maggie examina
os armários, imaginando o conteúdo secreto – nomes de bebés, nomes de
progenitores biológicos, nomes de famílias adotivas, datas de nascimento,
locais de nascimento, registos hospitalares, certidões de nascimento; tudo
aquilo interdito às pessoas que mais os desejam.
– Nome? – pergunta o homem.
– Maggie Larsson.
– O nome da menina – corrige ele, impaciente. – Sabe se ela tem nome?
– Elodie.
– Data de nascimento?
– 6 de março de 1950.
Ele ajoelha-se à frente do armário identificado com as datas de 1948 a 1950
e folheia as pastas de arquivo até encontrar o que procura. Maggie prende a
respiração.
– Aqui está – declara ele, entregando-lhe a pasta. Encosta-se aos armários e
acende um cigarro. – Despache-se antes que a irmã Tata e as outras voltem. A
maioria ainda está na missa da manhã.
Era exatamente essa a esperança dela. Maggie abre a pasta com mãos
trémulas. Contém dois documentos. O primeiro é uma cópia da certidão de
nascimento. Nome: Elodie. Data de nascimento: 6 de março de 1950. Local
de nascimento: Hospital Brome-Missisquoi-Perkins. Cowansville, Quebeque.
Mãe: desconhecida. Pai: desconhecido.
O outro documento na pasta é um registo de transferência.
– O que é isto? – pergunta Maggie. – É de outubro de 1957.
– Muitas crianças foram transferidas para os hospitais psiquiátricos de
Montreal – informa ele. – Depois da conversão.
– Isso significa que ela não foi adotada?
– Não se houver um registo de transferência.
– Mas por que motivo teria ela sido transferida?
– Para dar lugar a mais pacientes – responde ele. – Depois de 1955,
começaram a mandar verdadeiros doentes mentais para cá. Por isso, tiveram
de começar a enviar órfãos para os asilos da cidade para arranjar espaço. Nós
não estávamos equipados para os receber todos.
– Trabalhava aqui nessa altura? – pergunta ela. – Acha que pode lembrar-se
dela?
– Só estou aqui há dois anos – informa ele. – Eu trabalhava num orfanato
em Valleyfield antes disso, mas lembro-me do dia em que as freiras de lá
contaram às crianças.
Ele apaga o cigarro num cinzeiro próximo e abre o maço para tirar outro.
Entrega-lhe um e acende-o. Ela sente um alívio nos pulmões. É a primeira
vez em muitas horas que consegue respirar fundo.
– Lembro-me de uma das freiras ir de sala de aula em sala de aula naquela
manhã anunciar às crianças que todas seriam declaradas deficientes mentais.
Pode imaginar? As freiras estavam incomodadas, pois sabiam que o que
faziam não era correto.
Ele abana a cabeça perante a lembrança.
– Um dia, as crianças estavam todas sentadas na aula, a receber uma
educação – continua ele – e, no dia seguinte, num piscar de olhos, acabou-se
a escola. A partir de então, foram tratadas como atrasadas mentais. Puseram
grades de ferro nas janelas, como pode ver, e portões ao redor da
propriedade. Não demorou muito até começarem a mandá-las para asilos em
Montreal, enfiando-as em enfermarias já sobrelotadas com verdadeiros
doentes mentais.
A pequena sala começa a ficar embaçada com o fumo do cigarro.
– Porquê? – pergunta ela, sabendo a resposta e odiando-a.
– A razão é a parte fácil – diz ele. – A província pagava uma ninharia às
freiras para cuidar dos órfãos e acima de três vezes mais para cuidar de
doentes mentais. Foi por isso que o convento Mount Providence se tornou um
hospício e a razão por que tantos orfanatos do Quebeque lhe seguiram o
exemplo. O dinheiro está sempre na raiz de tudo, não é?
– Mas isso não pode ter sido legal!
Ele solta uma risada dura.
– Legal? – diz ele. – Quem acha que mais beneficiou? Assim que os
registos dessas crianças foram alterados para as classificar como deficientes
mentais, a Igreja e o governo de Duplessis começaram a encher os bolsos. A
província recebeu subsídios gigantescos do governo federal para construir
hospitais, portanto, podia perfeitamente pagar à Igreja mais do triplo para
cuidar de doentes mentais do que costumava pagar por órfãos.
– Para onde foi ela levada? – pergunta-lhe Maggie. – Porque não está isso
escrito neste registo de transferência?
– Eles não incluíam essa informação. Não se registava nada que pudesse
levar alguém como a senhora a encontrar um filho.
– Onde estão os outros documentos? – inquire Maggie. – Não deveria haver
mais?
– Muitos dos registos foram destruídos depois da conversão dos orfanatos.
É possível que os registos dela tenham sido transferidos para o asilo para
onde foi levada, mas como pode ver, se houvesse um registo de transferência
aqui, seria bastante vago.
Maggie fecha a pasta e entrega-lha. Sente-se tão vazia como no dia em que
Elodie lhe foi tirada, onze anos antes.
– Faz alguma ideia para onde ela possa ter sido enviada? – pergunta-lhe. –
Alguma ideia?
– Talvez para o Saint-Nazarius ou para o Mercy. Foi para esses dois que a
maioria dos nossos órfãos foi transferida. Duvido que a encontre, no entanto.
Esses sítios são como fortalezas. Além disso, a maioria dos registos que lá
existem são falsos. Eu vi documentos a descrever crianças normais e
saudáveis como doentes mentais graves, um perigo para si próprias e para os
outros. Tudo inventado. Os registos reais foram destruídos. Muitos desses
órfãos receberam novos nomes quando chegaram aos hospitais, começando
com «A» para os bebés nascidos em janeiro, «B» para fevereiro e assim por
diante.
A esperança de Maggie esvai-se. Como poderá ela encontrar Elodie, se a
filha tiver recebido um novo nome? Se os registos – a identidade dela –
foram apagados?
– A Igreja tem de continuar a encobrir isto – comenta o zelador. – A
senhora não vai conseguir suborná-los como fez comigo.
– O que posso fazer, então?
– Pode escrever ao Governo do Quebeque.
– O que adianta? – funga ela. – Desde quando o Governo se envolve em
meras questões de ajuda a órfãos?
– Desde que o Duplessis morreu – responde ele. – Uma comissão de
psiquiatras tem estado a investigar alguns dos hospitais psiquiátricos da
província. No Mount Providence, já chegaram à conclusão de que a maioria
das quinhentas crianças que examinaram são perfeitamente normais. Grande
novidade, hein?
– E que providências estão a tomar?
– Isso não sei bem. Julgo que o plano é colocar os mais jovens em famílias
de acolhimento e deixarem os mais velhos cuidarem de si próprios. – Encolhe
os ombros, com uma expressão cínica. – O novo governo acabou apenas de
revelar que essas crianças não pertencem a instituições mentais. Ainda há
centenas de hospitais para investigar.
– Meu Deus! Então ainda posso ser capaz de a recuperar – diz Maggie.
– Se a conseguir encontrar – ressalva ele. – Mas acredite no que lhe digo:
as freiras farão tudo o que estiver ao seu alcance para o impedir.

Já lá fora, Maggie respira fundo várias vezes antes de entrar no carro e ir


para casa, onde começa imediatamente a disparar cartas para o governo da
província, exigindo ver os registos da filha e saber para onde foi transferida
em 1957.
CAPÍTULO 39

O s seios de Maggie estão cheios; ela espera que o bebé acorde logo para
poder libertar-se de algum daquele leite. Tem estado a ler o último
manuscrito de Godbout para se distrair, fazendo anotações aqui e ali e
refletindo sobre a melhor abordagem. Desta vez, pediu direito de assinatura e
Godbout prometeu discutir o assunto com o editor. Ele tornou-se um paladino
da sua carreira de tradutora literária.
Ainda não decidiu o que vai fazer com a loja do pai. É certo que está
tentada a assumir as rédeas do negócio, mas Peter quer vendê-la e dar o
dinheiro à mãe. Ele não parece muito interessado na vontade do pai, dado que
nunca acreditou que o negócio fosse capaz de gerar um lucro substancial.
Embora Maggie esteja inclinada a acreditar que manter a loja na família seria
um investimento melhor a longo prazo, capaz de gerar um lucro razoável para
a mãe, ainda não lutou por ela. Ainda não sabe como poderá lidar com a
maternidade e a gestão de uma empresa de comércio retalhista muito
exigente. O pai nunca estava em casa, o que não é uma opção para Maggie,
mas a ideia de vender a loja a um estranho não lhe parece certa.
James Gabriel tornou-se um bebé rechonchudo e robusto, com lindo cabelo
loiro, olhos que pairam entre o azul e o cinzento e faces muito rosadas. A
mãe de Maggie chegou até a afirmar que ele era mais bonito do que Peter em
bebé. Desde o seu nascimento, a vida tornou-se uma longa sequência de
amamentação, privação de sono, loucura hormonal, confusão estonteante,
solidão e feroz e quase dolorosa devoção por aquela pequena criatura
egocêntrica. Não tem havido tempo para se preparar para a morte do pai, se é
que isso é possível. Também não tem havido tempo para ruminar sobre o
paradeiro de Elodie ou de Gabriel. De certa forma, Maggie é grata pelo seu
estado meio zombie e pela suspensão da realidade.
As irmãs têm sido uma grande ajuda. Agora que Vi tirou a carta de
condução, visita-a quase todos os dias, muitas vezes acompanhada por Nicole
e também por Geri, quando esta consegue algum tempo livre da faculdade.
Às vezes, uma delas fica com o pai para que a mãe também possa visitar o
bebé. Elas brigam para ver quem pega em James ao colo e lhe troca a fralda e
o acorda da sesta, especialmente a maman, que se desdobra em atenções.
Maggie e as irmãs acham que a mãe está a amolecer com a idade.
Violet entra na cozinha carregando um cesto de roupa cheio de fraldas
recém-lavadas, fraldas de ombro para pôr o bebé a arrotar, enxovais e
cobertores de bebé.
– Oh, Vi, és a minha salvadora – diz Maggie.
Vi pousa o cesto e tira os óculos, que estão embaciados.
– Adoro dobrar estas roupinhas minúsculas – diz ela.
– Tens tanto jeito com ele.
– Não sei como consegues fazer tudo isto sem um marido – comenta ela. –
Passo por cá amanhã depois do trabalho.
E então a porta bate atrás dela e a casa fica em silêncio. James Gabriel
dorme como um anjo.
Maggie volta a concentrar-se no livro de Godbout. Cerca de meia hora
depois, alguém bate à porta. Maggie repara nos óculos de Violet pousados na
ponta da mesa e pega neles ao levantar-se. Limpa rapidamente os mamilos
com um pano da loiça e corre para a porta.
Continuam a bater.
– Estou a ir, Vi! – diz ela, exasperada. Chega à porta e abre-a, com os
óculos na mão. – Só reparei neles agora, caso contrário, já te teria ligado
para...
Interrompe-se a meio da frase quando percebe que não é Violet.
Instintivamente, olha para baixo – os seios a verter e a camisa manchada – e
lamenta ter de abrir a porta.
– Maggie – cumprimenta ele.
Ela faz um esforço para se recompor, mas sente todo o corpo a tremer.
– Desculpa por não ligar com antecedência – diz ele. – Não sabia se querias
ver-me.
– Claro que quero ver-te – responde ela, com a voz embargada de emoção.
Ao mesmo tempo, os olhos percorrem o corpo dele, fazendo um inventário
rápido da cabeça aos pés. Está vestido com um casaco militar, calças de
ganga e um gorro da equipa de hóquei no gelo Montreal Canadiens enterrado
até à testa. Continua lindo. Os ombros parecem mais largos, os olhos mais
azuis, os lábios mais cheios. Ou será apenas imaginação dela? Parte dela quer
atirar-se para os braços dele; a outra, tem vontade de lhe dar um soco na cara.
Ela não faz ideia em que ponto estão.
– Entra – convida ela, abrindo a porta.
– Bela casa – comenta ele, seguindo-a até à cozinha. – Fizeste um bom
trabalho a decorá-la.
Nesse aspeto, Maggie é como a mãe. Gosta de fazer as suas próprias
cortinas, de comprar tecidos vintage e de usar muitos folhos; compra
antiguidades em feiras da ladra e leilões, para depois as restaurar e pintar.
– Estás com uma nova tradução? – pergunta ele, reparando nas anotações
pousadas na mesa da cozinha. – Li o último que traduziste. Fizeste uma
tradução brilhante.
– Fico feliz por teres gostado – diz, sentindo a raiva a acumular-se dentro
dela.
– Como tens estado? – pergunta ele, como se tivesse acabado de voltar de
uma pescaria.
– Muita coisa aconteceu.
– Soube do teu pai. Lamento muito.
– Por onde andaste? – deixa ela escapar. – Tens ideia de tudo o que fiz para
tentar encontrar-te? Quantas vezes importunei as tuas irmãs? Simplesmente
desapareceste!
Ele tira o gorro e passa a mão no cabelo, que cresceu desde a última vez
que o viu, mas não diz nada, sentando-se à mesa da cozinha sem esperar ser
convidado.
– Liguei para todo o lado – continua ela, sentando-se também. – Até falei
com a tua mulher. Fui à Canadair, ao apartamento em Papineau...
– Eu sei.
– Despediste-te da fábrica sem dizer água vai? Simplesmente
desapareceste. Porquê?
– Tudo se desmoronou depois de as coisas terminarem entre nós. Deixei a
Annie. Não aguentava mais estar ali, não aguentava mais conduzir o táxi,
trabalhar na fábrica. Tive de me afastar.
– Porque não me ligaste?
– Era de ti que eu tinha de me afastar – admite ele. – Acreditava que as
coisas nunca iriam funcionar entre nós. Tu estavas acostumada a um tipo
diferente de vida. Tinhas expectativas às quais eu nunca poderia
corresponder.
Maggie desvia o olhar.
– Mas já me conformei – conclui ele.
– O que é que isso significa?
– Com aquilo que sou.
– Percebo – responde ela, incerta do que ele está a tentar dizer-lhe.
– Tu ainda eras casada, Maggie. O que tinha eu para oferecer? Nada.
– Podias ter voltado para Dunham, para a fazenda da tua família.
– E ficar sujeito às regras da minha irmã mais velha para o resto da vida?
Não ter direito a dizer uma palavra enquanto ela toma todas as decisões,
como se eu ainda tivesse catorze anos? Ou roubar-te ao teu marido bancário
rico e tomar conta de ti? Como? Com o quê?
– Eu deixei-o – responde ela. – Já lhe tinha dito que ia fazê-lo. Não dou
importância a coisas materiais. Eu só te queria a ti. Fartei-me de esperar por
ti.
– Não me parecia boa ideia na altura.
– Para onde foste?
– Para Gaspé.
Ela ergue o olhar para ele, permitindo-se realmente observá-lo pela
primeira vez.
– Arranjei trabalho na pesca de bacalhau – diz.
– Nem às tuas irmãs disseste onde estavas?
– A Clémentine e eu estávamos de candeias às avessas. A Angèle sabia,
mas nunca contaria a ninguém se eu lhe pedisse para não o fazer. Nem
mesmo à Clem. Eu só precisava de ficar sozinho.
– Fizeste um ótimo trabalho.
– Era essa a ideia. – Ele junta um pouco de leite ao chá. – Mas agora estou
bem. Muito bem, na verdade. O trabalho físico é bom. Adoro viver junto ao
mar, trabalhar ao ar livre. Longe de Montreal.
– E de mim.
– A princípio. Eu precisava de clarear as ideias, de assimilar tudo.
– E agora?
– Comprei um terreno em Gaspé.
Ao ouvir aquela declaração, Maggie tem o mesmo sentimento agudo de
perda que teve da primeira vez que ele a deixou.
Mais do que qualquer outra coisa, quer implorar-lhe para ficar, mas ele
comprou terras, extinguindo completamente a segunda oportunidade de amor.
– Não quero conduzir um táxi ou passar o resto da vida na Canadair – diz
ele. – Foi a única coisa que consegui ter claro enquanto estive fora.
Um grito alto do quarto do bebé sobressalta os dois. Gabriel quase pula do
assento. Maggie está habituada aos gritos do filho a acordar e ao seu péssimo
sentido de oportunidade. Espera um momento, vendo se ele acordou de vez e
pode finalmente dar-lhe de mamar e aliviar a dor nos seios, mas o choro
subsiste. Ele tornou a adormecer.
– A Angèle disse-me que tinhas um bebé – diz ele. – Parabéns.
Ela faz uma pausa e confessa:
– É teu, Gabriel.
A revelação deixa-o visivelmente abalado. Ele abre a boca, mas nenhuma
palavra sai. Fica ali sentado um momento, a assimilar a informação, os olhos
vidrados.
– Eu tentei encontrar-te – lembra ela. – Queria que ele tivesse um pai.
– Eu sei – murmura ele. – Eu não... não sei o que dizer.
Maggie deixa-o absorver a notícia mais um pouco.
– Queres conhecê-lo? – pergunta, quebrando, por fim, o silêncio.
O rosto dele ilumina-se e responde:
– Sim. Por favor. – Ele levanta-se e dá uns passos em direção a Maggie,
puxando-a, em seguida, para um abraço inesperado. – Eu pus essa hipótese –
admite ele, soltando-a. – Quando a Angèle me disse, achei que o bebé podia
ser meu.
– Devias ter voltado, nesse caso.
– Mas também podia ser do teu marido. Eu não queria piorar ainda mais as
coisas. E ainda estava chateado, Maggie.
– Vou dar-lhe de comer e depois trago-o para baixo.

James Gabriel sorri assim que vê o rosto dela. Ele adora-a. Maggie é a peça
central e essencial do universo dele.
– Olá, pequenino! – Pega nele e beija-lhe a bochecha quentinha. – Hora de
comer – sussurra, encostando-o ao peito.
De imediato, ele agarra-lhe um punhado de cabelo e puxa com força. Ela
solta um gritinho, maravilhada com a sua força. Senta-se com ele na cadeira
de baloiço e começa a amamentá-lo, deixando que ele lhe drene os seios do
leite e tentando acalmar-se antes de o apresentar ao pai. Quantas vezes
imaginou aquela cena? Mal pode acreditar que está realmente a acontecer. Já
quase tinha desistido.
Depois de o bebé afastar o rosto e bolçar no seu ombro, ela segura-o contra
o peito e diz:
– Agora vamos lá conhecer o teu pai.
Leva-o para baixo e respira fundo antes de entrar na cozinha.
– Aqui está ele – anuncia ela, desfazendo-se em lágrimas antes sequer de
Gabriel pegar nele.
– Como é que ele se chama? – pergunta-lhe Gabriel, estendendo os braços
para o receber.
– James Gabriel.
Gabriel arregala os olhos e abre um sorriso.
O bebé arrota quando passa da mãe para o pai e Maggie inclina-se para lhe
limpar o queixo com a manga da camisa. Gabriel pega no bebé ao colo com
uma confiança surpreendente.
– Mon Dieu – murmura ele, esfregando o nariz na cabeça de James e
beijando-lhe a face redondinha. – É lindo.
Gabriel olha para Maggie fixamente. Ele está a chorar.
– O meu filho – diz ele com orgulho. – Mon gars.
Maggie ri, sentindo-se tremendamente feliz.
– Bonjour, mon homme – diz ele suavemente, erguendo-o nos braços.
James sorri para ele. Amor à primeira vista.
Gabriel começa a cantar-lhe em francês.
– Fais dodo, bébé à Papa...
O coração de Maggie acelera. James arrulha e ri.
– Si bébé pas fais dodo, grand loup-loup va manger.
O telefone toca e Maggie atende.
– O teu pai está morto – diz a mãe.
Sem mais.
CAPÍTULO 40

O Homem das Sementes é sepultado no cemitério atrás


protestante. Quase todos os fazendeiros de Frelighsburg
da igreja
a Granby
aparecem para lhe prestar a última homenagem. Maggie mal reconhece os
clientes da loja, vestidos com gabardinas escuras e formais e as expressões
solenes. Os homens que ela conhecia usavam sempre jardineiras e botas
enlameadas, eram bronzeados e tinham as unhas cheias de terra. Mas ali estão
todos – Blais, LaPellure, O’Carroll, Cardinal, Loriot. Lançam sementes para
o caixão quando este é baixado à terra. No momento em que fica totalmente
imerso, engolido pela terra que o pai amava tanto, Maggie chora.
Pensa nos catálogos, no jardim sonhado e nunca plantado, no santuário
cheio de fumo no antigo quarto da criada; pensa nos rádios caseiros, nos
charutos, nos seminários de Dale Carnegie e nos livros de autoajuda, e em
todas as maneiras que ele tentou esconder-se da mulher e apagar a dura
realidade da sua vida doméstica, mas nunca deixando de apoiar a família,
independentemente dos sacrifícios que tivesse de fazer.
Ficou surpreendida ao saber que o pai a fizera única executora
testamentária da sua vontade. Adicionou até uma cláusula que dá a Maggie o
poder de decidir se a loja é vendida ou não, o que lhe pareceu um gesto
sincero de reconciliação. Para choque e desagrado de Peter, mais ninguém na
família tem direito a voto – nem mesmo a mãe. A decisão é inteiramente de
Maggie. Foi uma jogada inteligente da parte do pai, conhecendo Maggie
como conhecia. Ele sabia que ela nunca iria – nunca conseguiria – vender a
loja.
E estava certo. Maggie nunca irá vendê-la.
Os homens aproximam-se da família, um por um, apertando as mãos e
oferecendo condolências. Quando tudo acaba, a maman agarra o braço de
Geri e, as duas, caminham, resolutas, para o Packard do pai. Gabriel e o bebé
seguem atrás delas, deixando Maggie um momento a sós com o pai.
Ela não consegue acreditar que ele se foi. Um entorpecimento apoderou-se
dela, o que ajudou a difundir a dor e o vazio o suficiente para sobreviver a
cada dia. Ajoelha-se e toca na pedra do túmulo com a mão enluvada,
prometendo em silêncio continuar o seu legado com a mesma paixão e
dedicação.
Quando finalmente se levanta e se afasta do túmulo, Clémentine Phénix
emerge da sombra das árvores, limpando o rosto com um lenço de seda
estampado. Pega no braço de Maggie e fita-a com ar suplicante. Os seus
olhos estão inchados e vermelhos quando se aproxima o suficiente para
Maggie lhe sentir o cheiro a sabonete Yardley da pele.
– Os meus pêsames – diz ela, com a voz embargada.
Georgette espreita atrás dela, as faces coradas pelo frio, o nariz a pingar.
Está tão alta, observa Maggie. Deve ter uns dezassete anos, com o mesmo
nariz sardento e cabelo loiro de Clémentine. Usa um velho casaco, que parece
um dos antigos casacos de Vi. Sim, pensa ela, olhando com mais atenção.
Sim, é o casaco de Vi, pode confirmar pelo botão que falta.
– Ele era um bom homem – diz Clémentine.
– Obrigada – responde Maggie, num tom cordial, ainda a olhar para o
casaco, perplexa. Como é que o casaco foi parar a Georgette?, pergunta-se.
– O teu pai podia saber muito de sementes – afirma Clémentine, encarando
Maggie –, mas não percebia nada de flores, pois não?
Maggie dá um passo atrás, sem saber o que dizer.
– Dá as nossas condolências à tua família – acrescenta Clémentine e depois
afasta-se, triturando a neve com as botas, seguida por Georgette.
Maggie regressa a casa dos pais depois do funeral, mas não fica muito
tempo. Ainda incomodada com o encontro com Clémentine, sente-se incapaz
de enfrentar mais condolências, conversa de circunstância sobre sanduíches
de festa e a ausência do pai. Pede a Gabriel que suba para pôr o bebé a dormir
a sesta e vai para o sítio onde sempre procurou consolo: o milharal.
O Sol põe-se por trás da casa da família Phénix e o céu muda rapidamente
de azul-vivo para azul-escuro à medida que desce a colina. Errando pelo
campo congelado, Maggie soma todos os pedaços inconsequentes que por si
só sempre pareceram benignos, mas que agora, vistos num todo, criam um
cenário de algo muito mais incriminatório. O cheiro característico do
sabonete Yardley na pele de Clémentine, O Manual do Jardineiro na estante,
o serviço de chá inglês, as roupas usadas passadas de Violet para Georgette.
Maggie lembra-se de uma jovem Clémentine a tratar com todo o carinho a
plantação, uma mão na anca, a outra a acariciar o milho, tal como Maggie a
viu fazer uma centena de vezes – uma mulher a que o pai de Maggie não teria
sido capaz de resistir, especialmente vivendo mesmo debaixo do seu nariz.
Não foi só daquela vez, percebe Maggie. A relação deles deve ter
continuado, muito depois daquele dia em que Maggie os apanhou no
escritório do pai.
Ela vira-se e dirige-se para o casebre dos Phénix. Bate à porta e Clémentine
aparece.
– Entra – convida ela, como se a aguardasse.
Ainda está de vestido preto, com os olhos inchados e agarrada àquele
lenço.
– A Georgette é filha do meu pai? – pergunta Maggie, mal passando a
porta.
Clémentine recua, sobressaltada.
– É ou não é?
– Claro que não – responde Clémentine, o desafio percetível na voz.
Maggie senta-se no sofá sem ser convidada.
– Mas tu mantiveste uma relação com ele todos estes anos, não foi?
– Sim.
– Tudo isto são testemunhos dele – diz Maggie, apontando para os livros na
prateleira, para o serviço de chá. – As roupas passadas de nós...
– Ele estava apenas a tentar ajudar-nos.
– A minha mãe sabe? – questiona Maggie friamente.
– Claro que não – responde Clémentine. – Eu não estaria viva.
– E o Gabriel?
– Nem pensar numa coisa dessas.
– Ele fez-te implorar fiado na loja dele – lembra Maggie. – Mesmo sendo
amantes.
– Fui eu que não aceitei o dinheiro dele – explica ela. – Eu era jovem,
estúpida e demasiado orgulhosa. Ele ofereceu e eu disse que não. Quando
pedi fiado naquele dia na loja, acho que ele ficou zangado comigo por eu o
ter feito à frente das pessoas, em vez de o deixar ajudar-me discretamente.
Estava zangado comigo por eu ser tão teimosa e orgulhosa.
Ela serve-se de um whisky e serve outro a Maggie, também, sem perguntar
se ela quer.
– Ele amava-te? – pergunta ela.
– À sua maneira – responde Clémentine, de olhos finalmente secos. – Não
da maneira que amava a tua mãe. Não o suficiente para a deixar. Ele sempre
se deixou levar pela luxúria. Não entendia o amor. Mas tentou. Tentou
verdadeiramente.
Maggie ri-se disso e Clémentine cora.
– Eu amava-o – admite Clémentine. – É um alívio dizê-lo finalmente em
voz alta.
Maggie levanta-se.
– Sinto muito – murmura Clémentine.
Maggie não responde. Está demasiado cansada. Não sente raiva, sequer,
está apenas esgotada.
Regressa a pé para a casa dos pais, sentindo-se desalentada e só. Uma vez
lá dentro, vai para o santuário do pai e puxa o cordão da luz, estupefacta ao
descobrir o aposento praticamente vazio. Cheira a produtos de limpeza e a
lixívia. O chão de madeira reluz de ter sido polido recentemente e todos os
rádios caseiros desapareceram. Ele foi-se. Foi lavado e esfregado até à
inexistência. Maggie reconhece a obra da mãe imediatamente. Não há papéis
espalhados na secretária, nem catálogos por acabar, nem cinzeiros, nem o
mais pequeno sinal dos seus passatempos. Os livros, geralmente empilhados
por toda a parte, dependendo de quais três ou quatro ele estava a ler em
simultâneo, estão agora organizados por altura na estante. Os de agricultura
misturados com os de gestão. Passa um dedo pelas lombadas, estacando num
dos antigos catálogos. Faz uma nota mental de os levar todos para a loja de
sementes e de os guardar naquele que, em breve, será o seu escritório.
Ajoelha-se e abre a caixa de ferramentas do pai, cheia de pequenas
recordações: o diploma de horticultura, os postais e desenhos que os filhos
lhe deram ao longo dos anos, um retrato da mãe em sépia gasto pelo tempo.
Experimenta abrir o armário de arquivo no canto da sala, mas está trancado.
Desta vez, a chave não está no seu lugar habitual.
A mãe de Maggie aparece de repente à porta.
– Porque é que já limpaste o santuário dele? – pergunta Maggie, pronta
para se vingar e lhe contar a verdade sobre Clémentine. – Cheira a lixívia!
Não cheira a ele.
– O que querias que eu fizesse?
– Podias ter esperado.
– Porquê? – quase grita a maman, as lágrimas assomando-lhe aos olhos
negros. – Ele não vai voltar!
– Importas-te sequer? – acusa Maggie.
– Claro que me importo – responde ela. – Eu amava-o.
– Amavas?
– Eu sei que era mazinha para ele às vezes...
Maggie ri-se.
– Sim, eras – concorda ela.
– Sai daí – consegue dizer a mãe, limpando os olhos e o nariz com a ponta
do avental. – Ainda temos convidados.
– Onde está a chave do armário de arquivo? – pergunta-lhe Maggie.
– Não sei. Não estava aqui quando limpei a sala. Ele provavelmente
escondeu-a depois de teres andado a vasculhar as coisas dele.
Pois claro que o faria. Seria algo muito típico seu.
– O que procuras, afinal? – pergunta a mãe. – Já sabes tudo o que há para
saber.
Maggie apaga a luz e segue a mãe. Fecha a porta atrás de si, tentando
pensar onde poderá ele ter escondido a chave e se alguma vez a encontrará.
Sobe até ao antigo quarto de Peter, onde James dorme, tranquilo, cercado
por almofadas para evitar que caia da cama. Observa o pequeno monte subir
e descer a cada doce respirar e é dominada por uma poderosa onda de amor e
um otimismo inexplicável. Herdou este espírito de resiliência do pai, um
homem que nunca desistiu; um homem que sofreu e perseverou, agarrando-
se, como pôde, aos momentos de felicidade.
CAPÍTULO 41

A luz do sol
devagarinho.
que transborda pelas cortinas transparentes acorda-a
Todos os acontecimentos do dia anterior retornam
lentamente: o funeral, a conversa com Clémentine.
Maggie espreguiça-se, rebola para o lado e aninha-se junto a Gabriel.
Ele aperta-lhe a mão contra o peito e ela sente na palma da mão o coração
dele a bater.
– Quero que te mudes para Gaspé comigo – diz ele, com a voz rouca de
sono. – Comprei aquela terra para nós, Maggie. Foi por isso que voltei. Para
um novo começo.
– Não posso simplesmente partir.
– Gaspésie é um lugar maravilhoso – diz ele, virando-se para a encarar. – É
o melhor de dois mundos. Campo junto ao mar.
– A minha vida está aqui.
– Podes traduzir livros em qualquer sítio.
– O meu pai deixou-me o negócio – informa ela. – E eu quero geri-lo.
Sempre quis.
Gabriel suspira e deita-se de costas.
– Tu desapareceste completamente da minha vida – diz ela. – Não podes
voltar um ano depois e esperar que eu desista de tudo. Eu quero estar contigo,
mas aqui.
– Eu quero criar o meu filho – responde ele, acendendo um cigarro. – Um
menino precisa de um pai na sua vida. A minha terra é junto ao mar. Eu
posso ensiná-lo a pescar...
– A paternidade é mais do que pescar.
– Eu sei que sim.
– Não estás a compreender – insiste ela. – Eu quero ficar aqui e tomar
conta da loja de sementes do meu pai. Sempre foi o meu objetivo. E sei que
serei boa a fazê-lo.
– Como podes trabalhar e cuidar do James?
– Hei de encontrar uma maneira – responde ela. – A Violet ofereceu-se
para me ajudar.
– Somos uma família, Maggie. Devíamos ficar juntos.
– Com isso queres dizer ficar onde tu queres.
– Eu amo-te – diz ele. – Sempre amei. Porra, Maggie. Acredita em nós e
escolhe-me em vez do teu pai.
O bebé solta um grito alto do berço e Gabriel instintivamente sai da cama
para o ir buscar.
– Não podes fumar enquanto estás com ele ao colo! – censura-o Maggie.
– Porque não?
– Porque não é saudável! Faz-lhe mal aos pulmões.
– Quem disse?
– Ele nasceu prematuro. Os pulmões dele são muito frágeis.
Gabriel apaga o cigarro e sai do quarto, voltando momentos depois com
James nos braços.
– Queres vir morar comigo para Gaspé, pequenino? – pergunta ele ao bebé,
beijando-lhe a cabeça e as faces.
Uma brisa sopra pela janela aberta, agitando as cortinas e atirando ao chão
as notas de tradução de Maggie pousadas na mesa de cabeceira, como folhas
caindo suavemente das árvores. Ela baixa-se para as apanhar, aliviada por ter
algo que fazer. Depois de as arrumar devidamente na mesa, arrisca uma
olhadela rápida a Gabriel.
Ele acaricia o cabelo macio do filho.
– Não achas estranho, Maggie, teres abortado todos os filhos do teu marido
e o meu ser o único que sobreviveu? Como podemos não acreditar que é
destino?
– Eu não posso mudar-me para Gaspé.
– Todos os obstáculos que se interpuseram no nosso caminho já não
existem – diz ele. – O teu pai morreu. Já não precisas da aprovação dele.
Abandona o plano dele para a tua vida, Maggie.
– É isso que não compreendes – refuta ela. – Tomar conta da loja é o meu
plano para a minha vida. Sempre foi.
Gabriel não parece convencido.
– Não se trata apenas de lhe agradar – afirma ela, com absoluta certeza.
A razão para ficar é cumprir o propósito da vida dela, não o do pai.
– O teu lugar também é aqui – diz ela. – Só não queres admitir.
– Eu já comprei a terra lá, Maggie. Tenho um bom emprego...
– Então podes ver o James sempre que vieres de visita.
– Isso quer dizer que já decidiste? – pergunta ele, de olhos fixos no filho.
– Tu não?
Ela afasta-se, sem certeza de ser capaz de suportar outra separação. Depois
de tanto tempo, nenhum dos dois está preparado para se sacrificar em prol do
outro. Gabriel quer ficar com ela nas condições dele, no território dele, o que
é exatamente o que ela sempre quis dele. Quando ele lhe passa o bebé,
Maggie apercebe-se de que já temia que tudo terminasse assim no instante
em que lhe abriu a porta. Nos momentos cruciais, nenhum dos dois foi capaz
de assumir o compromisso com o outro. Talvez o amor nem sempre
prevaleça para além do que a pessoa é na sua essência.
Ele veste as calças pretas do funeral, abotoa a camisa branca e enfia a
gravata no bolso sem dizer uma palavra.
– Gabriel? – chama ela. – Antes de voltares para Gaspé, há algo que eu
gostaria que fizéssemos juntos.
CAPÍTULO 42

É manhã de um domingo ensolarado e frio. Maggie olha pela janela para o


Hospital Saint-Nazarius e sabe que é um tiro no escuro. A única resposta
que obteve do Governo às suas perguntas foi a cópia oficial do registo de
transferência de Elodie, datada de outubro de 1957, a confirmar que ela foi
uma das dezenas de meninas, entre os sete e os doze anos, transferidas para
uma instituição não identificada em Montreal naquele ano. Depois de fazer
algumas pesquisas, Maggie conseguiu restringir aos três principais hospitais
que aceitaram a maioria dessas transferências, um dos quais foi Saint-
Nazarius.
Maggie e Gabriel foram primeiro ao Mercy Hospital – uma experiência
desagradável em que foram repreendidos e maltratados por uma equipa de
freiras, que trataram Maggie como se ela fosse uma criminosa por ter
engravidado aos quinze anos. Depois disso, Maggie compreendeu como
Clémentine se deve ter sentido na sua própria terra natal.
Saint-Nazarius situa-se num vasto terreno cercado por, pelo menos, uma
dúzia de pavilhões separados. A entrada principal fica num imponente
edifício de pedra cinzenta, em forma de U, com filas intermináveis de
lucarnas brancas. O centro do edifício principal faz lembrar uma igreja, com
dois pilares de pedra em ambos os lados e uma cruz proeminente no telhado.
– Preparada?
Ela olha para Gabriel e faz um aceno de cabeça pouco convincente.
Saem do carro e ele pega-lhe na mão. Entram pelo portão da frente e
aproximam-se do edifício em silêncio.
O pavilhão psiquiátrico, com as janelas de grades, corredores cavernosos e
forte cheiro a lixívia, provoca em Maggie uma terrível sensação de pavor. Ela
faz um exame completo ao espaço à sua volta, que está preocupantemente
limpo e silencioso, e pergunta-se onde estarão as crianças.
Na receção, Maggie apresenta-os como os pais de uma menina órfã que
pode ter sido transferida para lá em 1957.
– Ela nasceu no dia 6 de março de 1950.
A freira, de lábios finos e de óculos, corta logo a palavra a Maggie,
dizendo:
– Não posso ajudá-la. Os registos dos pacientes são confidenciais.
– Eu tenho o registo de transferência dela – diz Maggie, tirando-o da
carteira e mostrando-o à freira. – Eu sei que a maioria dos órfãos das cidades
vizinhas foi enviada para cá ou para...
– Abandonou-a, não foi?
– Sim, irmã, abandonei, mas eu tinha dezasseis anos na altura – explica
Maggie. – Agora, estou em posição de cuidar dela.
– Os registos são confidenciais, madame. Cedeu os seus direitos a eles.
– Mas se ela está aqui – diz Maggie, a voz subindo de tom –, não seria o
melhor para todos se pudéssemos levá-la connosco para casa?
– Não pode verificar os registos e dizer-nos se ela está aqui? – intervém
Gabriel.
– Nós sabemos a data exata em que ela foi transferida – acrescenta Maggie,
apontando para o registo de transferência.
– Está a perder o seu tempo, madame.
– Mas nós somos os pais dela! – exclama Maggie, perdendo a paciência. –
Além do mais, esta experiência bárbara está prestes a acabar. O Dr. Lazure já
declarou que os órfãos não pertencem a hospitais psiquiátricos.
– As coisas não funcionam assim – interrompe a freira. – Ainda temos leis
no Quebeque. Se a rapariga esteve aqui, é porque é deficiente mental.
Gabriel pousa a mão no antebraço de Maggie para a acalmar.
– Não pode apenas confirmar se ela está aqui ou não? Ou se alguma vez
esteve? – implora Maggie, suavizando o tom. – Só uma espreitadela rápida à
pasta dela?
– Não, não posso – revida a freira, indignada.
Gabriel olha, furioso, para Maggie, repreendendo-a em silêncio para que
mantenha a calma, mas ela ignora-o.
– Voltarei com um advogado, se for preciso – ameaça Maggie, no
momento em que outra freira se aproxima.
É baixa e de ombros largos, com um rosto redondo e olhos castanhos
afastados.
– Olá – cumprimenta ela, em tom caloroso, assumindo o lugar da colega. –
O meu nome é irmã Ignatia. Posso ajudar em alguma coisa? Sou uma das
supervisoras da enfermaria.
A atitude amistosa imediatamente coloca Maggie à vontade.
– Sim, irmã – diz ela, aliviada. – Obrigada. Estou à procura da minha filha,
Elodie. Ela foi transferida para aqui em 1957...
Um lampejo inconfundível de reconhecimento atravessa os olhos da irmã
Ignatia. Tanto Maggie como Gabriel reparam e trocam olhares esperançosos.
– Elodie de Saint-Sulpice – diz a irmã Ignatia, e a outra freira lança-lhe um
olhar de advertência.
– Sim! – exclama Maggie, o coração a bater com toda a força.
– Eu conhecia a pequena Elodie.
O coração de Maggie para de bater.
– Conhecia? – consegue ela articular.
– Ela tinha sete anos quando foi transferida para cá.
– Sim – diz Gabriel. – Mas já não está aqui? Foi adotada?
– A Elodie estava muito doente quando veio para cá – explica a irmã
Ignatia. – Morreu pouco tempo depois. Lamento ter de vos dar a notícia.
Maggie deixa-se cair contra Gabriel. Sente a mão dele a fechar-se sobre a
dela, ouve a freira a dizer algo sobre Elodie ser muito fraca desde a nascença.
Maggie só consegue pensar que deixou ficar mal a filha.
– Posso fazer cópias da ficha dela – oferece a irmã Ignatia.
Maggie não responde, mas Gabriel diz:
– Sim, por favor. É muito gentil da sua parte.
A irmã Ignatia afasta-se pelo corredor, os sapatos a chiar no piso de linóleo,
o hábito a arrastar atrás dela. Esperam cerca de vinte minutos em silêncio
desolado até ela voltar com um envelope de Saint-Nazarius.
Entorpecida, Maggie abre-o e lê algumas das anotações rabiscadas. Mesmo
através da névoa de lágrimas, algumas das palavras destacam-se da página.

Atraso mental profundo. Perigo para si e para os outros. Delírios


paranoicos. Ataques e convulsões violentas. Gripe.

O diagnóstico está assinado por alguém do Hôpital Mentale Saint-Sulpice.


O nome é ilegível. Um rabisco.
– Ela não era atrasada mental – diz Maggie, levantando o olhar.
A irmã Ignatia sorri, compassiva, mas não reage. Aquele olhar – cheio de
pena e recriminação – diz muito.
– Isto não pode estar certo – insiste Maggie. – É possível ter havido um
erro? Algum engano?
– Eu conhecia-a, madame – assegura a irmã Ignatia suavemente. – Ela
tinha muitos problemas. Não só problemas de saúde, mas também problemas
mentais e emocionais graves. Estas anotações foram escritas por um médico.
– Onde está o atestado de óbito? – exige saber Maggie. – Não há nada na
pasta depois de 1957. Nem sequer uma referência à sua morte.
– Se houver uma certidão de óbito – responde a irmã Ignatia com toda a
calma –, deverá estar na posse do Governo.
– O que quer dizer com «se houver»?
– A sua filha era deficiente mental e nasceu fora dos laços do matrimónio –
diz a irmã Ignatia gentilmente, com uma voz tão doce como xarope. – É
improvável que haja qualquer registo da sua morte, muito menos da sua vida,
além do que tem nas suas mãos.
Fora do hospital, Maggie pega numa pedra e atira-a contra a fachada de
tijolos do edifício.
– Não acredito nela – declara, virando-se para Gabriel.
– Maggie...
– A minha filha não está morta. Vou escrever ao Governo e pedir a certidão
de óbito.
Ele puxa-a para si e tenta abraçá-la, mas ela resiste.
– Não vou simplesmente desistir.
– A freira não tem motivos para mentir – diz Gabriel, com ternura. – É hora
de esquecer e seguir em frente.
– Não vou esquecer coisa nenhuma – afirma Maggie. – Não acredito
naquela mulher. Ela tem uma cara sinistra.
– Eu entendo que precises de continuar a acreditar...
– A minha filha está viva e eu vou encontrá-la.
CAPÍTULO 43

Elodie

1961

U ma tarde de fim de inverno, quando o mundo lá fora é uma paisagem


pardacenta através das grades das janelas e toda a neve já derreteu,
Elodie é chamada a meio do seu turno na costura. Levanta-se da máquina
Singer e segue uma das freiras pelo corredor em silenciosa consternação.
Vup. Vup. Nunca esquecerá o som ominoso dos hábitos das freiras a varrer o
chão.
Sobem os seis lanços de escada até ao átrio principal da enfermaria
psiquiátrica, mas, em vez de atravessarem as portas trancadas que levam à
enfermaria de Elodie, a freira detém-se em frente a um dos escritórios e bate
à porta.
– Entrez – vem a voz de um homem.
A freira abre a porta e empurra gentilmente Elodie para a sala.
– Elodie de Saint-Sulpice – anuncia ela, antes de desaparecer.
– Eu sou o Dr. Lazure – apresenta-se o homem, pegando numa pasta da
mesa, mal levantando os olhos. – Por favor, senta-te.
Elodie não se mexe. Quando percebe o que está a acontecer, o seu corpo
fica entorpecido.
– Eu não mordo – diz ele.
Elodie abre a boca para falar, mas nada sai. Está petrificada. Tudo o que
disser e fizer nesta sala decidirá o seu destino. Estragou tudo da última vez.
Disse as coisas erradas e eles pensaram que ela era burra ou retardada ou
problemática. Seja qual for o erro que tenha cometido, arruinou-lhe a vida.
Não pode deixar que volte a acontecer.
O médico observa-a. Ela sente-se a tremer. Ainda assim, não consegue
mexer-se.
– Não precisas de ficar assustada – acalma-a.
Ele parece uma pessoa gentil, mas ela sabe que não deve confiar. Já foi
enganada duas vezes por médicos e de ambas pagou caro pela sua falta de
discernimento.
– Senta-te – repete-lhe, com mais firmeza.
Finalmente, as pernas dela obedecem e Elodie faz o que lhe é dito.
– Eu faço parte de uma equipa psiquiátrica que está a investigar instituições
como Saint-Nazarius – explica ele. – Estamos a examinar centenas de
crianças como tu...
– Porquê?
– Porque fazemos parte de uma comissão encarregada de determinar se tu e
outros como tu devem estar num sítio como este.
– O que é uma comissão? – pergunta Elodie, arrependendo-se
imediatamente, cheia de medo de que ele pense que ela não sabe nada, que é
retardada ou ignorante, como disse a irmã Camille.
– É um dever ou um projeto atribuído a um grupo de pessoas – responde
ele, de forma neutra. – Eu não trabalho neste hospital. Este não é o meu
escritório. Estou só de visita. Estou aqui para te fazer algumas perguntas.
Elodie acena com a cabeça, respirando nervosamente. Repara na pasta que
ele tem à sua frente e não consegue tirar os olhos dela. É a pasta dela.
Consegue ler os números 06-03-50 na capa e reconhece-os como a sua data
de nascimento.
– Vamos começar? – pergunta ele.
– Sim, monsieur.
– Lembra-te, estou aqui como aliado.
Ela não faz ideia do que significa «aliado», mas, desta vez, não se atreve a
perguntar.
– Há quanto tempo estás aqui, Elodie?
– Há quatro anos – responde ela.
– E antes disso?
– No orfanato.
– E tens agora...?
– Onze anos? – diz ela, hesitante, com receio de ser uma pergunta com
rasteira.
– Isto não é um teste – esclarece ele, adivinhando-lhe o pensamento. –
Elodie, sabes porque estás aqui em Saint-Nazarius?
– Não, senhor.
Ele rabisca algo na pasta dela.
– Porque o médico do orfanato achou que eu era atrasada mental? –
aventura-se ela. – Ou louca?
O Dr. Lazure continua a escrever na pasta.
– No dia da mudança de vocação – explica ela –, a irmã Tata disse-nos que
éramos todas atrasadas mentais, mas eu, a Emmeline e algumas outras
meninas fomos as únicas a ser trazidas para Saint-Nazarius. Por isso,
devemos ter feito alguma coisa errada...
O Dr. Lazure ergue os olhos para ela, mas não diz nada.
– Eu não sou atrasada mental – afirma Elodie, a voz subindo de tom. – Eu
não pertenço aqui.
– Não discordo disso.
– Eu sou órfã – diz ela. – Não uma doente mental. A irmã Camille diz que
sou primitiva por estar aqui há tanto tempo, mas isso não significa que eu seja
louca.
– Concordo plenamente.
– Posso não saber as respostas a todas as perguntas que me vai fazer –
continua ela –, mas não sou louca.
O Dr. Lazure acena com a cabeça, franzindo o sobrolho. Ela não consegue
perceber se o desagradou ou se disse algo errado. Cala a boca, repreende-se
mentalmente.
– Eu não sabia as respostas às perguntas do outro médico e foi por isso que
me trouxeram para aqui. Mas eu só tinha sete anos.
– Este não é um teste em que possas reprovar.
– Não é? – diz ela. – Eu quero sair daqui. Eu tenho de sair daqui.
– Compreendo.
Ela abana a cabeça.
– Não, não compreende.
– Então, explica-me – pede ele.
– Elas mataram a minha amiga – deixa ela escapar. – A Emmeline de Saint-
Sulpice. Nós viemos para aqui juntas. E não foi a primeira que mataram.
Elodie interrompe-se e tapa a boca com a mão. Voltou a fazê-lo. Falou de
mais, não conseguiu conter a tagarelice imprudente que já a colocou em
terríveis sarilhos com a irmã Ignatia. E se este médico fizer queixa dela,
como o último?
– Essa é uma acusação muito séria – diz o Dr. Lazure.
– Mas é a verdade – continua Elodie, incapaz de se conter. – Elas deram à
Emmeline uma sobredose de Largactil. Outra menina foi morta por cantar.
Elas também não eram atrasadas mentais. Eram apenas órfãs, como eu...
O Dr. Lazure acena com a cabeça. Tem uma veia azul-escura a pulsar na
testa e uma ruga profunda entre os olhos. Elodie sabe que cometeu outro erro
grave. Olha para o chão, tentando esconder o lábio trémulo e as lágrimas.
Um momento depois, durante o qual a veia da testa do Dr. Lazure
desaparece, ele pergunta:
– Podes dizer-me o que é isto, minha querida?
Ele mostra-lhe uma imagem do que parece ser uma caixa com botões.
– Não, senhor – responde ela.
– É um rádio – explica ele. – E isto?
– Não sei, senhor.
– É um acordeão. E isto?
– Um carro – diz ela, reconhecendo-o imediatamente.
Ele mostra-lhe mais imagens de objetos diferentes, perguntando-lhe o que
cada um é. Ela conhece alguns, mas não todos.
– Isto é um frigorífico – explica ele, quando ela não consegue adivinhar.
Isto é um ananás, um telefone, um presente. Um trator, um coração.
– É como da última vez – interrompe ela, a voz embargando-se. – Eu nunca
vi essas coisas, mas isso não faz de mim louca!
– Claro que não – concorda ele.
– Sou apenas ignorante – afirma ela.
Ele sorri tristemente e escreve algo na pasta dela.
– Se nos vai deixar sair daqui – diz ela –, acha que podia arranjar maneira
de eu voltar para Saint-Sulpice? Para o caso de a minha mãe ir à minha
procura?
A expressão dele fecha-se. Desvia o olhar, evitando-a.
– É tudo por hoje – declara o médico.
Elodie fica ali um momento, não querendo sair sem algo concreto a que se
agarrar, uma promessa ou alguma réstia de esperança que a ajude a suportar o
resto dos seus dias ali.
– Eu não pertenço a este lugar.
Ele concorda com a cabeça em resposta e levanta-se da mesa.

Os dias gotejam letargicamente, cada um mais sombrio do que o anterior.


As meninas da enfermaria de Elodie começam a desaparecer, mas ela fica. A
irmã Camille garante que o dia dela vai chegar, mas ela começa a duvidar. As
raparigas mais velhas – as de dezoito, dezanove e vinte e poucos anos – estão
a ser postas em liberdade com uma única mala e uma prece. Vão ter de
arranjar emprego e um lugar para viver, uma missão que a Elodie parece
impossível, dada a falta de capacidades e de conhecimento sobre o mundo.
Elodie está grata por só ter onze anos.
– O que julgas que estás a fazer?
Elodie levanta a cabeça e vê a irmã Ignatia em pé junto a ela.
– Só estou aqui sentada a balançar – responde Elodie, num tom um pouco
mais desafiador do que o habitual.
– As casas de banho e o chão do teu dormitório precisam de ser esfregados
– diz a irmã Ignatia, a crueldade nos olhos negros. – Agora que a Yvette se
foi, é o teu trabalho.
– Eu já tenho um trabalho...
As costas da mão da irmã Ignatia aterram diretamente na têmpora de Elodie
antes de ela conseguir terminar a frase.
Elodie agarra a cabeça para parar o zumbido nos ouvidos. Sente as lágrimas
a queimarem-lhe os olhos.
– Quando eu sair daqui...
– Tu não vais sair daqui – interrompe a irmã Ignatia.
– Eu sou órfã – diz Elodie, enchendo-se de coragem. – Foi por isso que o
médico me entrevistou.
– E para onde pensas que vais?
– Para um orfanato verdadeiro ou para um lar de acolhimento, algum sítio
onde a minha mãe me possa encontrar.
– A tua mãe está morta – anuncia a irmã, num tom quase triunfante.
Elodie sente a pulsação acelerar.
– Não, não está – responde ela, com a voz trémula. – Só está a dizer isso da
boca para fora.
A expressão da irmã Ignatia é desprovida de pena.
– Está na tua pasta.
– Eu não acredito em si – consegue articular Elodie, sentindo a boca seca.
A irmã Ignatia vira-se de repente e sai da sala. Elodie balança a cadeira
para a frente e para trás, tentando acalmar-se. Será verdade? A mãe dela
estará mesmo morta?
A menina na cadeira de baloiço ao lado dela – uma das doentes mentais
verdadeiras – solta um grito alto.
– Cala-te – resmunga Elodie.
A menina torna a gritar, arreganhando os dentes como um animal.
– Cala-te de uma vez! – grita Elodie, com as lágrimas a escorrer pelas
faces.
A menina retardada grunhe algo e choraminga.
Logo depois, a irmã Ignatia está de volta, agitando uma pasta na cara de
Elodie.
– Aqui tens – diz ela, levantando a pasta. – Só para que saibas, de uma vez
por todas.
A irmã abre a pasta.
– «Mãe falecida» – lê ela em voz alta, e depois vira a pasta para que Elodie
possa ver por si mesma.
Elodie consegue decifrar a palavra «mãe», mas a outra palavra – «falecida»
– são apenas letras aleatórias. Não se lembra bem de como ler.
– Ela está morta – repete a irmã. – Morreu no parto; o castigo de Deus
pelos seus pecados. Tu não tens pai. És uma bastarda e não tens para onde ir.
És demasiado nova para viveres lá fora sozinha e demasiado velha para um
orfanato ou para uma família de acolhimento. Ninguém quer uma rapariga na
puberdade. Estás no limbo, portanto, é aqui que vais ficar.
– Não é verdade – diz Elodie, com a voz embargada.
A irmã Ignatia sorri.
– Está escrito aqui – insiste ela, apontando para a escrita elegante, gravada
permanentemente a tinta preta. – «Mère decedée».
Mãe falecida.
– Mas nunca me disse isso antes!
– Estou a dizer-te agora.
CAPÍTULO 44

Maggie

M aggie entra na loja de sementes e acende as luzes. Não teve vontade de


vir ali desde que o pai morreu, mas nessa noite sentiu-se inspirada a
voltar e, de alguma forma, reaproximar-se dele. Olha em redor com tristeza.
O pai nunca mais tornará a entrar ali, nunca mais irá passear-se por aquele
chão ou fazer soar a campainha da máquina registadora ou envolver-se num
debate político com os agricultores franceses que tanto ridicularizava e
adorava. É o lugar de Maggie, agora.
Ela passa pelas caixas de sementes a caminho do sótão, parando para abrir
uma das gavetas e deixando um punhado de morangueiros-de-jardim deslizar
por entre os dedos. Depois, sobe as escadas, pensando no dia em que James
irá pesar as sementes aos sábados, tal como ela.
No andar de cima, está tudo igual. A balança, a pilha de pequenos
envelopes amarelos, a pá de metal. Espreita pela janela para o beco,
lembrando-se de como ela era naquela época, da rapariga adolescente cheia
de ambições e com um fraquinho pelo pior pesadelo do papá. Até o cheiro é o
mesmo – terra húmida e mofo.
Desce as escadas até ao escritório do pai, que agora é dela: o lugar onde o
pai matava a cabeça com as contas, somava as faturas e encomendava as
sementes; onde Maggie o apanhou com Clémentine. Senta-se à grande
secretária. Há pastas de arquivo organizadas em montes: Contas a pagar.
Inventário. Faturas vencidas. Encomendas pendentes.
Amanhã irá reunir-se com o gerente da loja para analisar os sistemas do pai
e aprender como tudo funciona. Foi ele que assumiu o comando enquanto o
pai esteve em casa a morrer. É ele que mantém o negócio organizado e a
funcionar. Maggie terá de ter cuidado para não o ofender, a ele ou a qualquer
outra pessoa. O maior desafio vai ser a vendedora.
Uma das últimas coisas que o pai lhe disse foi: «Se decidires ficar e tomar
conta da loja, fá-lo com humildade. Dá a todos o tempo necessário para se
habituarem a ti.»
Irónico, vindo dele. A humildade nunca foi o seu forte, mas Maggie
entendeu que teria de ser o dela, se quisesse conquistar o respeito dos
empregados e dos clientes. Agora, sentada ali, com a realidade do
compromisso que assumiu diante de si, sente-se nervosa e levemente enjoada.
E se falhar? E se o negócio for à falência nas mãos inexperientes dela?
Tenta convencer-se de que o pai tinha fé suficiente nela para deixar o seu
bem mais precioso nas suas mãos. Ela tem cabeça para o negócio e sempre
adorou desafios, e agora está pronta para ocupar o seu lugar antes dos trinta
anos. Abre a gaveta de cima da secretária, que cheira a mofo, como madeira
molhada, e vê, na gaveta quase vazia, um envelope de sementes com o seu
nome, Maggie, escrito na caligrafia elegante do pai. Abre o envelope. Lá
dentro, encontra a chave do armário de arquivo com uma breve mensagem:
Sempre foste a minha flor selvagem.
Sem perder tempo, regressa a Dunham. A casa está escura e todos estão a
dormir. Entra de mansinho no santuário do pai e abre o armário.
Na gaveta de baixo, descobre uma manta de bebé de flanela branca
cuidadosamente dobrada. Ao desdobrá-la, lê as palavras PROPRIEDADE DO
HOSPITAL BROME-MISSISQUOI-PERKINS impressas no tecido. Sacode-o e uma
minúscula pulseira de hospital em plástico cai-lhe no colo. Não tem nome,
apenas uma data: 06-03-50. Leva o cobertor ao nariz e cheira. O cobertor de
Elodie.
O pai era mais sentimental do que ela imaginava.
Por baixo do cobertor, há um grande envelope pardo enviado por Sonny
Goldbaum.
Maggie senta-se de pernas cruzadas no chão e abre o envelope de papel. Há
um registo de nascimento do Hospital Brome-Missisquoi-Perkins e várias
cartas em fino papel azul.

De: Sonny H. Goldbaum

9 de setembro de 1949
Agradeço a disponibilidade em ter vindo à cidade para se encontrar
comigo, Mr. Hughes. Foi um prazer conhecê-lo. Vou começar de
imediato a procurar uma colocação adequada. Peço-lhe que me
mantenha informado sobre o progresso da gravidez, saúde, data
prevista para o nascimento, etc. da sua filha. Conforme a nossa
conversa, a família adotiva será judia, mas asseguro-lhe que as
famílias que aceito representar são do mais alto nível.

12 de dezembro de 1949

Boas notícias, Mr. Hughes! Encontrei um jovem casal que deseja


adotar o bebé da sua filha. Eles não conseguiram ter filhos e têm tido
muitas dificuldades no processo de adoção efetuado pelos canais
habituais. Estará a ajudar a concretizar um sonho. Eles já
concordaram com o preço. Entrarei em contacto consigo, assim que
possível, com mais pormenores. Como está a progredir a gravidez?

4 de fevereiro de 1950

Mr. Hughes,
Aqui ficam os pormenores do processo: irá entregar a criança à irmã
Jeanne-Edmoure, no Mercy Hospital. Ela trará o bebé até mim. O
senhor, o médico e a freira receberão o pagamento antecipado. Não
deve haver trocas de dinheiro entre si e qualquer uma das partes. Não
verá os pais adotivos nem saberá os seus nomes. Fica acordado que
não deve haver qualquer contacto.

18 de março de 1950

Mr. Hughes,
Lamento informar que não consegui convencer o casal a ficar com o
bebé, devido à saúde fraca. Vou continuar a procurar uma nova
colocação, embora, de acordo com a nossa conversa anterior, a
icterícia e o baixo peso ao nascer sejam obstáculos. Mantê-lo-ei
informado.
Maggie examina a correspondência e encontra um velho recorte do jornal
La Presse, datado de fevereiro de 1954.

O advogado de Montreal, Sonny Hyman Goldbaum, foi detido ontem e acusado de


falsificar certidões de nascimento e de advogar em atos criminosos, em associação
com uma rede internacional de tráfico de bebés. Goldbaum, de 31 anos, declarou-se
inocente das acusações, mas, até ao momento, as provas revelam que mais de mil
bebés franco-canadianos, nascidos em Montreal, foram vendidos ilegalmente a
famílias judias nos Estados Unidos.
Segundo fontes deste jornal, uma família que desejasse adotar uma criança em
Nova Iorque poderia contactar um advogado local que, em seguida, a encaminharia
para Goldbaum. Assim que os detalhes financeiros fossem acordados, a rede de
tráfico obteria um bebé num lar para mães solteiras, com ou sem o consentimento da
mãe biológica. O bebé seria então entregue no destino com um visto e passaporte
falsos. Esperam-se mais detenções, numa rede que, segundo descrição das nossas
fontes, é uma rede multimilionária de médicos, advogados, enfermeiros e outros
envolvidos.

Maggie vasculha o armário e tira o resto que o pai lhe deixou. Alguns
livros de gestão – A Bíblia do Empreendedor, A Prática da Gestão, de Peter
Drucker, Pense e Fique Rico, de Napoleon Hill –, assim como alguns livros
de jardinagem e catálogos antigos, e uma composição que Maggie escreveu
na terceira classe.

A pessoa que mais admiro

Na cidade, chamam ao meu pai Homem das Sementes porque tem a


maior seleção de sementes dos cantões orientais. A loja dele chama-se
Semences Supérieures/Superior Seeds. A placa está escrita em francês
e em inglês...

A fungar e a limpar as lágrimas, depara-se com as provas da sua primeira


tradução: Juntos, Triunfaremos. Quando pega num dos livros de jardinagem,
Flores Silvestres do Leste do Canadá, encontra, pressionadas entre as
páginas, as flores de Silphium, parecidas com as flores de girassol, que
ofereceu ao pai no dia em que se mudou para Montreal. Lembra-se dele a
pousar o ramo no balcão da loja e de pensar que ele iria esquecer-se delas ali.
Pressiona o cobertor de Elodie contra o rosto e encosta os joelhos ao peito.
Sentada no meio dos preciosos símbolos e lembranças que o pai guardou ao
longo dos anos, Maggie percebe o quanto ele a amava verdadeiramente. Não
o expressava com frequência e, muitas vezes, parecia até reprová-la, mas as
descobertas desse dia provam o contrário.
Folheando mais uma vez as páginas gastas do livro de flores silvestres,
Maggie depara-se com dois envelopes amarrados com um elástico, ambos
endereçados a Wellington Hughes numa letra antiquada e muito desenhada.
Abre um e uma pequena fotografia a preto-e-branco cai ao chão. É de uma
menina, no meio do quintal de alguém. Tem um corte de cabelo à tigela, está
vestida com um bibe e nos pés, sapatos Oxford bicolores; segura uma boneca
maltrapilha numa mão e o que parece um desenho na outra. A data no
rebordo branco da fotografia é 17 de junho de 1953.
Maggie olha para a fotografia um momento e depois lê a carta.

Caro Mr. Hughes,


A criança em quem o senhor e a sua esposa demonstraram interesse
é uma menina inteligente e afável que está connosco desde que nasceu.
Está de perfeita saúde e tem progredido muito bem em todas as etapas.
Junto uma fotografia dela, tal como pediu. Se tiver disponibilidade e
quiser visitá-la novamente, será um prazer recebê-lo e discutir
possíveis providências para a adoção.
Atenciosamente,
Irmã Alberta

Maggie pega com torpor na outra carta, datada de novembro de 1955.

Mr. Hughes,
Venho por este meio informá-lo de que, na sequência de uma ordem
governamental recente, o antigo orfanato Saint-Sulpice é agora o
Hôpital Mentale Saint-Sulpice. A criança a quem se refere já não está
aqui. Não tenho autorização para divulgar qualquer outra informação.
Atenciosamente,
Irmã Alberta

Maggie demora uns minutos a assimilar o que acaba de encontrar. Volta a


olhar para a fotografia, examinando aquela menina com admiração. A sua
filha.
De repente, todas as peças do quebra-cabeças se encaixam.
O pai não só encontrou Elodie, como também a visitou no orfanato e fingiu
querer adotá-la para descobrir... o quê? Que ela estava viva, saudável e a
«progredir bem em todas as etapas»? Estava apenas curioso ou em busca de
algum consolo ou garantia de que ela estava bem a fim de aplacar o seu
sentimento de culpa?
Assim que a viu e constatou que ela estava a crescer bem e que
provavelmente seria adotada, parece ter perdido o interesse até 1955,
exatamente na altura em que os orfanatos foram convertidos em hospitais
psiquiátricos.
Perdoa-me por não a salvar quando tive a oportunidade.
Ele tentou recuperá-la, mas já foi demasiado tarde. Ela já tinha sido
declarada doente mental. A irmã Alberta mentiu na carta; Elodie só foi
transferida em 1957. Seriam aquelas freiras todas mentirosas? Destruíam as
vidas de crianças indefesas para ganharem o máximo de dinheiro possível e
protegerem simultaneamente a Igreja?
Maggie aperta a fotografia da filha contra o peito e dobra o corpo,
chorando baixinho.
Alguém bate à porta, assustando-a. Ela levanta-se, limpa o nariz e os olhos
e atravessa a cozinha, encontrando Gabriel à porta das traseiras.
– O que fazes aqui? – pergunta-lhe ela, destrancando a porta e deixando-o
entrar.
– Fui a tua casa, mas não estavas. Imaginei que estarias aqui.
A porta fecha-se atrás dele e ele segue-a até ao escritório do pai.
– Estiveste a chorar? – pergunta ele, tocando-lhe a face. – Tiveste uma
semana difícil.
– Pode dizer-se que sim.
Desvia o olhar, para que ele não veja as lágrimas que voltam a cair.
– Não sei quanto tempo vai demorar – diz ele.
– Quanto tempo vai demorar? – pergunta ela, sem perceber.
– A largar o meu emprego, a arrumar as minhas coisas e a vender a terra.
Ela olha-o, confusa.
– Vender a terra?
Gabriel acena com a cabeça, confirmando.
– Mas tu adoras o teu trabalho – diz ela. – Adoras o litoral...
– Eu posso pescar aqui, Maggie. É só um pedaço de terra. Eu quero estar
contigo e criar o nosso filho. Não penso noutra coisa desde que cheguei.
– A sério?
– Nós pertencemos um ao outro. Aqui, nos cantões, tal como disseste. É o
nosso destino.
Sem uma palavra, ela abraça-o, a soluçar.
– São lágrimas de felicidade? – pergunta ele, tirando-lhe o cabelo do rosto.
Ela afasta-se e entrega-lhe a fotografia.
– O que é?
– É uma fotografia da Elodie – diz. – Encontrei-a nas coisas do meu pai.
Havia uma carta, também. Gabriel, ela não estava doente.
Ele parece confuso.
– Aquela freira em Saint-Nazarius mentiu-nos. Lê isto.
Ela entrega-lhe a carta.
– A Elodie nunca esteve doente – declara ela com ferocidade, relendo a
carta por cima do ombro dele. – O Estado não tem certidão de óbito. Porque
acreditaríamos que ela está morta?
CAPÍTULO 45

Elodie

1967

E lodie está deitada na cama, a olhar para o teto que tanto despreza. Não
importa que a enfermaria A seja conhecida por Enfermaria da Liberdade
e viver ali seja um grande avanço comparado com a enfermaria B; continua a
odiar cada centímetro quadrado daquele hospital. E embora a vida na
enfermaria A – onde está desde 1964 – lhe tenha proporcionado uma maior
liberdade de movimentos dentro do hospital, mais independência e os abusos
físicos tenham cessado, Saint-Nazarius continua a ser o que sempre foi para
ela: uma prisão.
Esta é a sua última noite na prisão. A irmã Camille arranjou forma de ela
dividir um apartamento com outra rapariga de Saint-Nazarius que vive
sozinha no mundo lá fora há quase um ano.
A rapariga, Marie-Claude, arrenda atualmente um apartamento de uma
assoalhada e meia no distrito de Pointe Saint-Charles. Elodie lembra-se dela
de Saint-Nazarius – uma rapariga alta e sossegada, cujo temperamento
adaptável e subserviente lhe poupou, pelo menos, algumas das torturas e
punições sofridas pelas outras. Marie-Claude e Elodie não eram exatamente
amigas, mas conheciam-se da enfermaria B e coexistiam sem incidentes.
Elodie vira-se para o lado e fecha os olhos. No dia seguinte, vai sair
daquele lugar e encarar o futuro. Por mais surreal que lhe pareça, a emoção
dominante nessa noite é o medo. A verdade é que quase preferia ficar ali.
Quase.
Ali, sabe o que esperar e o que esperam dela. Há uma certa simplicidade no
ritmo dos seus dias, uma familiaridade e previsibilidade que não está pronta a
abandonar. Quem sabe o que a espera no mundo lá fora?
Depois de a irmã Camille lhe ter encontrado um sítio para viver na cidade,
o diretor clínico de Saint-Nazarius chamou Elodie ao seu escritório e tentou
convencê-la a ficar.
– O que vais fazer lá fora? – perguntou-lhe ele.
Ela encolheu os ombros; não fazia ideia. Ele ofereceu-lhe um quarto
privado – fora da enfermaria psiquiátrica –, um emprego remunerado na
farmácia do hospital e a liberdade de entrar e sair como bem entendesse.
Era uma oferta tentadora e Elodie prometeu pensar, o que fez. A pergunta
dele atormentou-a durante dias. O que vais fazer lá fora?
Elodie não tem educação, qualificações, dinheiro, família ou amigos. Além
do orfanato e de alguns passeios de autocarro até uma cidade vizinha, nunca
saiu da propriedade de Saint-Nazarius. Está internada desde os cinco anos, e
tem agora dezassete, portanto, a maior parte da sua vida.
Pelo menos ali, tem a irmã Camille. A irmã Camille tornou-se a sua melhor
amiga, defensora e confidente. Foi ela quem a ensinou a ler, usando a Bíblia,
e que a transferiu para a enfermaria A. E agora, foi ela quem a libertou.
E se o mundo real não for melhor do que Saint-Nazarius? O mais certo é
não ser capaz de esconder a sua burrice e falta de experiência, e todos saberão
que cresceu num hospício.

Quando o Sol finalmente nasce na janela oeste do dormitório, Elodie


levanta-se. Tira a pequena mala que a irmã Camille lhe deu na noite anterior
de baixo da cama e pousa-a no colchão, com cuidado para não acordar as
outras. Na mala, coloca os dois vestidos que possui, camisas de dormir, roupa
interior e meias – tudo doado ao longo dos anos – e a Bíblia que a irmã
Camille lhe ofereceu. Vai em silêncio à casa de banho para trocar de roupa,
escovar os dentes e o cabelo e olhar uma última vez para o seu reflexo no
espelho lascado por cima do lavatório de porcelana.
A rapariga que vê ali refletida enche-a de repúdio por si própria. O cabelo
curto a direito cai murcho e incolor contra o couro cabeludo; a pele é pálida e
os olhos sem vida. É a primeira coisa que as pessoas vão notar – que ela
parece louca.
Acrescenta a camisa de dormir e os produtos de higiene pessoal à mala e
fecha-a. Devias estar feliz hoje, diz a si mesma. Este é o dia com que
sonhaste toda a vida.
Faz a cama e passa os olhos pelo quarto uma última vez.
Os corredores estão silenciosos. Quase espera que uma das freiras apareça
para poder olhá-la nos olhos e dizer: Nenhuma de vós voltará a dizer-me o
que fazer. Mas nenhuma das irmãs aparece para se despedir. De certa forma,
aquela demonstração final de indiferença é quase tão perturbadora como
alguns dos castigos mais cruéis que sofreu.
Pensa em ir à enfermaria B fazer uma despedida triunfal da irmã Ignatia e
depois cuspir-lhe na cara, mas sabiamente conclui que a irmã Ignatia
provavelmente a trancaria numa cela e deixá-la-ia ali a apodrecer. Esse
pensamento faz Elodie correr escada abaixo.
Já no átrio de entrada, lembra-se da noite em que chegou, de como estava
aterrorizada e desavisada. Abre as portas e sai para a manhã fria, ofegante.
Semicerra os olhos contra o brilho do sol que se reflete na neve.
Estou livre.
– Elo!
É a irmã Camille, que acena do carro. Elodie abotoa o casaco até ao
pescoço; esquecera-se de como são frios os dias de inverno. Não faz uma
viagem há muito tempo e as poucas que fez eram, geralmente, no verão.
Como é que vai conseguir comprar um chapéu? Ou luvas?
Sente um aperto no peito só de pensar nisso. As coisas práticas da vida.
Desce as escadas sem olhar para trás.
– Elo! Despacha-te! – chama novamente a irmã Camille. O irmão aguarda
no banco do condutor para as levar até Pointe Saint-Charles. – Estás pronta?
– pergunta.
Elodie engole em seco. Sabe que este é o dia de folga da irmã Camille e
está-lhe muito grata, mas não consegue encontrar as palavras para o
expressar. Ela é uma rapariga com dezassete anos de idade e destruída. Não
está pronta para enfrentar o mundo. Quando o carro arranca, começa a chorar.
– Chora – diz a irmã Camille, pegando-lhe na mão. – Chora tudo o que te
apetecer.
E ela assim faz, alto e sem pudor, enquanto rumam ao assustador
desconhecido.
CAPÍTULO 46

A sua nova casa fica na cave de uma casa geminada de tijolo vermelho na
rue de la Congrégation, situada numa zona industrial da cidade.
– Vais gostar daqui – diz a irmã Camille, tentando preencher o silêncio
com as suas habituais explosões de otimismo.
– Há um jardim aqui perto – acrescenta o irmão da irmã Camille. – Mesmo
ali na esquina da Wellington com a Liverpool.
– Wellington e Liverpool? – repete Elodie num inglês enviesado.
– São sobretudo irlandeses que aqui vivem.
– E franceses também – acrescenta a irmã Camille, lançando um olhar de
advertência ao irmão. – Griffintown, do outro lado do canal, é todo irlandês,
mas não te preocupes, porque aqui no Pointe há muitos franceses.
Elodie olha pela janela. O bairro além da sua rua é uma mistura de fábricas,
casas geminadas e chaminés altas.
– Ainda não acabaram as obras para o novo metro – explica a irmã Camille.
– É por isso que há muito entulho da construção.
– O metro?
– É um comboio subterrâneo. Está a ser construído para a exposição
mundial, este verão.
A irmã Camille parece estar a falar numa língua desconhecida. Comboio
subterrâneo? Exposição mundial? Elodie olha-a fixamente, lutando contra as
lágrimas.
– Podemos falar disso tudo quando estiveres instalada – diz a irmã Camille.
– Não te preocupes, Elo. As coisas vão melhorar.
Elodie assente com a cabeça, não acreditando no que ela diz.
– A cidade está a florescer – continua a irmã Camille. – É uma altura
maravilhosa para viver aqui. Espera pelo verão e verás.
Elodie força um sorriso, pois vê o quanto a irmã Camille se esforça.
– Eu gosto – diz ela, olhando para a casa vermelha. A renda é de setenta e
quatro dólares por mês, incluindo aquecimento, do qual ela pagará metade. –
Vamos entrar – convida, respirando fundo.
– E é tua – lembra-lhe a irmã Camille. – Não precisas de dar satisfações a
ninguém. Só a Deus.
Elodie ignora a observação. Não tem sentido de humor em relação a Deus.
Marie-Claude espera por ela lá dentro. O apartamento é limpo e pouco
mobilado. Um quarto com um sofá-cama e uma cómoda para partilharem,
uma pequena casa de banho e uma kitchenette com espaço apenas para uma
mesa quadrada e duas cadeiras dobráveis.
– Não é muito – desculpa-se Marie-Claude –, mas é melhor do que Saint-
Nazarius.
Elodie sorri e pousa a mala.
– Toma – diz a irmã Camille, entregando-lhe um papel.
Elodie abre.
– Dominion Textiles?
– Está a contratar costureiras – explica ela. – Vi o letreiro na montra. A
fábrica fica em Saint-Henri.
– Não foi aí que aquele tipo da FLQ foi pelos ares no verão passado? –
pergunta Marie-Claude.
– Pelos ares? – repete Elodie, sentindo-se fraca.
– Ele estava a tentar fazer explodir a fábrica da Dominion Textiles, mas a
bomba detonou antes do tempo.
– Porque faria ele tal coisa?
– Ele era da FLQ – explica Marie-Claude. – É um grupo terrorista que quer
que o Quebeque se separe do Canadá, por isso, ataca empresas inglesas como
a Dominion Textiles.
Elodie olha nervosamente para a irmã Camille.
– Continuam a precisar de costureiras – diz a irmã Camille, categórica. –
Não voltará a acontecer. Pelo menos, lá não. É o sítio perfeito para ti. É fácil
ir de Pointe a Saint-Henri.
– Como é que eu lá chego? – quer saber Elodie.
A irmã Camille suspira.
– Logo descobres, Elo. Não és incapaz.
– Sou, sim! – protesta ela. – É exatamente isso que eu sou.
A irmã Camille olha-a nos olhos.
– Não precisas de ser – diz ela. – Agora, és livre.
– É fácil para si dizer – murmura Elodie.
– Deves perdoar as outras freiras – afirma a irmã Camille com severidade.
– Algumas de nós tinham de tratar de cinquenta crianças sem qualquer ajuda.
As mais razoáveis foram proibidas de vos tratar com compaixão ou afeição.
Mas não éramos todas más.
Elodie olha para o chão.
– Peço desculpa – murmura ela. – Tem sido tão boa para mim e eu não
tenho forma de retribuir.
– Podes retribuir perdoando as outras.
Elodie cala-se, pois nunca será capaz de perdoar as outras – muito menos a
irmã Ignatia –, mas não quer desiludir a irmã Camille e dizê-lo.
– Eu tenho de ir – anuncia a irmã Camille.
– Já?
A irmã Camille abraça Elodie – um abraço curto e rápido – e depois dá-lhe
algum dinheiro.
– Para te ajudar a começar – diz ela. – Volto daqui a uma semana.
E então, deixa as duas raparigas na sua nova vida.
Não demora um minuto para que Elodie recomece a chorar. Marie-Claude
estende-lhe um lenço.
– Eu também fiquei assim quando saí – diz ela, sentando-se no sofá. – Não
conseguia parar de chorar.
– Como é que eu vou encontrar este sítio? – lamenta-se Elodie, segurando o
papel. – Não faço ideia de onde estou, muito menos de onde fica Saint-Henri.
E se alguém tentar bombardear a fábrica outra vez? É uma loucura, não é?
– Eu vou contigo – oferece-se Marie-Claude. – Ajudo-te a encontrar o sítio.
– Obrigada.
– Tens de arranjar um emprego imediatamente – acrescenta ela. – Não
posso pagar a renda sozinha.
Elodie assente, sentindo-se assoberbada.
– Queres desfazer a mala? Tenho uma gaveta para ti.
Elodie abre a mala no chão e retira os parcos pertences. Todos cabem na
gaveta de baixo com espaço de sobra.
– Estás com fome? – pergunta Marie-Claude. – Há comida no frigorífico
que posso partilhar contigo até teres dinheiro para comprares a tua.
O frigorífico. Elodie olha para a caixa de metal branca na cozinha e
lembra-se de o médico em Saint-Nazarius lhe perguntar se sabia o que era.
Ela não sabia.
Marie-Claude levanta-se de um pulo, cheia de energia nervosa, e vai para a
cozinha.
– Tenho um resto de carne de porco – diz ela. – E podemos cozer batatas.
Elodie concorda com um aceno silencioso.
– Vem ajudar-me.
Hesitante, Elodie junta-se à nova companheira de casa na cozinha. Fica
estupefacta ao ver Marie-Claude encher uma panela com água, tapá-la e
colocá-la no fogão.
– É assim que se liga o fogão – explica ela, rodando o botão. – Agora,
descascamos as batatas.
Ela pega numa das facas da gaveta e começa a descascar habilmente a pele
castanha e suja da batata.
– Porque fazes isso? – pergunta-lhe Elodie.
– Porque não se coze as batatas com a casca.
– Porque não?
– Porque não.
Marie-Claude continua a descascar as batatas. A casca sai numa espiral
perfeita.
– Queres tentar?
– Não.
– Vais aprender tudo isto – garante Marie-Claude. – Foi o que eu fiz.
Elodie acena com a cabeça, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.
– Sinto muito...
– Não te preocupes. Sabes que mais? Vamos deixar isto e sair.
– Sair?
– Vamos almoçar fora.
– Mas há tanta gente...
– Sim, existem pessoas no mundo. Não podes esconder-te delas.
– Tenho muito medo.
– De quê?
Elodie encolhe os ombros.
– Que eles saibam.
– Saibam o quê?
– Que acabei de sair de um hospício.
– Só tu e eu sabemos disso.
– Sinto como se estivesse escrito na minha testa...
– Mas não está. Quanto dinheiro é que a irmã Camille te deu?
Elodie enfiou a mão no bolso e tirou algumas notas de dólar.
– Não vamos gastar muito – diz Marie-Claude. – Cinquenta cêntimos, no
máximo. Apenas o suficiente para comemorarmos.
As raparigas vestem os casacos e Marie-Claude empresta o cachecol a
Elodie para que faça as vezes de gorro. Saem, encolhendo-se ao sentirem o
frio cortante do ar nas faces. O vento sopra com força e Elodie puxa o
cachecol até aos olhos.
– Tabarnac, y’fait fraite – pragueja Marie-Claude.
A neve range debaixo dos pés enquanto caminham até ao Parc Marguerite
Bourgeoys. Elodie olha para cima e repara num grupo de crianças vestidas
com roupa de neve, a correr e a gritar, brincando na neve. O que mais a choca
é a liberdade que elas mostram. Não parecem ter uma ponta de medo de rirem
em voz alta ou de levantarem a voz ou de se divertirem.
Viram para Wellington e o som da risada das crianças permanece, seguindo
Elodie pela rua.
– É aqui – anuncia Marie-Claude, parando em frente a um sítio que diz
PAUL PATATES FRITES na montra. – O meu snack-bar preferido.
O interior é quente e cheira a óleo de fritar, como no refeitório de Saint-
Nazarius, quando serviam perca frita em ocasiões especiais. Batem com as
botas para se livrarem da neve e sentam-se lado a lado no balcão em bancos
de couro vermelho que giram.
A princípio, Elodie tem medo de cair, mas logo rodopia como uma criança
num carrossel.
Marie-Claude pede dois steamés e duas Pepsis. Cerca de cinco minutos
depois, a empregada pousa à frente delas um prato que cheira
maravilhosamente.
– O que é isto? – pergunta ela a Marie-Claude, inclinando-se sobre o prato
e inalando o agradável cheiro a gordura.
– É um cachorro-quente e batatas fritas – responde Marie-Claude.
Elodie pega numa batata frita e mete-a à boca, sem se importar que lhe
queime a língua. Fecha os olhos e delicia-se com o sabor e a textura –
crocante por fora, mole por dentro, perfeitamente oleosa – e depois pega
numa mão-cheia delas.
– Experimenta isto – diz Marie-Claude, esguichando um líquido viscoso
vermelho de um frasco de vidro que diz HEINZ. – Molha as batatas no
ketchup. Assim, exatamente.
– Mon Dieu – suspira Elodie, pegando com avidez no cachorro-quente. – É
delicioso.
– Põe ketchup nisso também – instrui Marie-Claude.
– Mon Dieu! – exclama Elodie novamente, mordendo a salsicha rosada
envolta num pão quentinho e esponjoso. – Porque é que não nos alimentaram
assim em Saint-Nazarius?
– Isto é comida verdadeira – diz Marie-Claude, com a boca cheia. – Tens a
cara cheia de ketchup.
– Deixa lá.
A empregada pousa dois copos de um líquido escuro. Elodie leva a
palhinha aos lábios e sorve para ajudar a engolir o cachorro-quente.
– Oh, mon Dieu – repete ela, sentindo um formigueiro nos lábios e a
efervescência na língua. – É tão doce!
– É Pepsi – diz Marie-Claude. – Maravilhosa, não é?
Elodie ri, deliciada.
– Sim – responde ela, bebendo outro gole longo. – Maravilhosa.
CAPÍTULO 47

Maggie

M aggie senta-se no banco de baloiço do alpendre com uma caneca de


café e papel de carta, descalça e ainda em camisa de dormir. O sol já
vai alto e o ar tem o cheiro agradável e orvalhado das manhãs de verão.
Gabriel e James estão a dormir, um momento raro e, portanto, sagrado. Se
não fosse pelo coro de toutinegras no jardim, sentiria que tinha o planeta só
para si.
Pega numa folha de papel em branco e na sua melhor caneta. Há um novo
primeiro-ministro no poder, o que significa uma nova oportunidade para
expor o seu caso. Começa a escrever.

Caro M. Bourassa,
Escrevo em nome da minha filha, Elodie de Saint-Sulpice, uma órfã
nascida...

– Bom dia, meu amor.


Maggie olha para cima e vê Gabriel de pé à porta, o cabelo despenteado e
só de cuecas. Ele acende um cigarro e sai para o alpendre.
– Está calor – diz ele, juntando-se a ela no baloiço de madeira que
construiu.
Maggie pousa a carta de lado e ficam os dois um tempo a baloiçar em
silêncio. Gabriel pega na caneca dela e bebe um gole de café.
– Estás a escrever ao Bourassa, não estás?
– Sim.
Ele acena e Maggie deteta um lampejo de pena nos olhos dele.
– Pobre homem – brinca ele. – Não faz ideia de quantas vezes vai ouvir
falar de ti. Provavelmente não se teria candidatado a primeiro-ministro se
soubesse.
– Eu sei que pensas que ela está morta – diz Maggie, reiterando a mesma
conversa que têm sempre que ela envia uma das suas cartas para o Governo.
– Não importa o que eu penso – diz ele.
– Mas importa-me a mim.
– Eu sei que precisas de acreditar que ela está viva, Maggie.
– E tu?
– Eu não acho que o Governo te vá ajudar a encontrá-la – responde ele,
pragmático. – Afinal, foram eles que a puseram lá.
– O Bourassa é novo – argumenta ela. – É um recomeço. Ele não ouviu a
nossa história. Talvez se formos à Cidade do Quebeque pessoalmente...
– Fazer o quê? Bater à porta e pedir para falar com ele? Não conseguimos
nem passar pelas malditas freiras!
Maggie desvia o olhar.
– Ela faz vinte anos este ano – lembra ela.
– Ela teria feito.
– Tu leste a carta da irmã Alberta ao meu pai – revida Maggie,
bruscamente, e não é a primeira vez. – Ela era perfeitamente saudável. Atraso
mental profundo? Ambos sabemos que isso não é verdade, e temos provas.
– Mas isso não significa que ela não tenha morrido, Maggie. Sabemos lá se
a saúde dela se deteriorou quando chegou a Saint-Nazarius! Vais continuar a
mandar cartas para o Governo o resto da vida?
– Eu não sei mais o que fazer.
– Vamos ter outro bebé – sugere ele.
Maggie fita-o como se ele tivesse enlouquecido.
– Estou a falar a sério.
– Para quê? Para eu esquecer a Elodie?
– Não – diz ele. – Para o James ter um irmãozinho ou uma irmãzinha.
– Ele tem nove anos.
– E depois?
– Já não tenho idade para ter mais filhos.
– Tens trinta e seis anos.
– Não vai preencher o vazio – afirma ela. – O James não preencheu. Tu não
preenches. Nada pode preencher o vazio, exceto ela.
– E podes ter de viver com isso o resto da vida – diz ele. – Todos temos as
nossas cruzes para carregar.
CAPÍTULO 48

Elodie

1970

E lodie pousa quatro ementas de plástico na mesa e sorri sem fazer


contacto visual.
– O que querem beber? – pergunta, tirando um bloco de notas do bolso do
avental branco.
Os rapazes da mesa olham para ela com expressões confusas. Um deles diz:
– Inglês? – Aponta para o boné de baseball. – Nós somos de Boston.
– Bebidas? – repete Elodie em inglês, sem levantar os olhos do bloco.
– Quatro coca-colas.
Ela anui e apressa-se a ir buscar as colas. Trabalha na Len’s Delicatessen,
no centro da cidade, há mais de um ano. Candidatou-se à posição de
empregada por capricho. Enquanto caminhava pela St. Catherine Street no
verão anterior, reparou num letreiro na montra e entrou. Gostou
imediatamente porque a fez lembrar do jantar com Marie-Claude, da primeira
vez que experimentou coca-cola e batatas fritas. Quando olhou para a vitrina
refrigerada repleta de peças de carne fumada na Len’s, soube que estava no
lugar certo. Atrás do balcão, um homem vestido com uma bata branca de
médico – pensava ela, então – cantarolava enquanto cortava carne com uma
máquina que ronronava como um carro. Num frigorífico na frente da
charcutaria devia haver uma dúzia de bolos enormes, todos decorados com
cobertura de glacé branca e raspas de chocolate e enfeitados com cerejas
vermelhas brilhantes. Uma mulher mais velha, vestida com um uniforme
bege de empregada de mesa, não parava de atirar sanduíches para cima do
balcão, onde ficavam uns minutos debaixo das lâmpadas de aquecimento
antes de serem levadas por outra empregada. Aquelas sanduíches
assombrosas, com as grossas fatias de carne fumada rosada, eram tão grandes
que pareciam bocas escancaradas.
Todas as mesas da Len’s Deli estavam ocupadas naquele dia, o barulho de
talheres e conversas apenas alto o suficiente para abafar a cantoria do doutor.
O cheiro a carne fumada e batatas fritas deixou Elodie deliciosamente tonta.
Teve de esperar um pouco para que a clientela do almoço começasse a
dispersar até que alguém pudesse falar com ela, mas quando as coisas
acalmaram ao final da tarde, o doutor (que afinal era o proprietário e não um
médico), sentou-se a uma mesa e entrevistou-a.
Embora ela mal conseguisse olhá-lo nos olhos ou dizer uma palavra de
inglês, ele deve ter-se apiedado dela porque a contratou imediatamente.
– És adorável – disse ele. – Não temos muitas raparigas francesas a
candidatar-se.
Elodie deixou a Dominion Textiles no dia seguinte, o que foi um enorme
alívio. Odiava a costura e odiava ainda mais a vida de fábrica. Era demasiado
parecida com a de Saint-Nazarius. Seria um alívio nunca mais ter de ouvir o
zumbido de uma máquina de costura. Além disso, estava constantemente a
olhar para as janelas, preocupada que um cocktail molotov fosse atirado pelo
vidro. Corre o ano de 1970 e muita coisa está a acontecer na província – a
entrada em vigor da lei relativa às Medidas de Guerra, os sequestros políticos
–, mas Elodie sente-se muito mais segura na charcutaria.
Nos últimos dois anos, conseguiu ajustar-se ao mundo exterior da melhor
maneira possível. Encontra formas de passar despercebida entre as pessoas,
de se relegar para segundo plano, de não dar nas vistas. Gosta de estar no
centro da cidade, onde a multidão em movimento tem a capacidade de a
engolir inteira. É boa a esconder-se à vista de todos, a misturar-se, a tornar-se
invisível. Relacionar-se com outras pessoas é mais difícil – a intimidade,
olhar as pessoas nos olhos, conversas a sós. Prefere a obscuridade de
estranhos. Tem pouca confiança no seu próprio intelecto e está sempre com
medo de chamar a atenção para a sua ignorância e falta de educação. Pelo
menos, em Saint-Nazarius não sobressaía. Era apenas uma das muitas
raparigas desafortunadas, nem melhor nem pior do que as outras.
Porém, ali no mundo exterior, o escrutínio real ou imaginado dos outros
aflige-a. Tirando os momentos em que está em casa com Marie-Claude, a
Len’s Deli é o único sítio onde Elodie consegue esquecer-se das suas
inseguranças incapacitantes. Deve-o ao seu chefe, Lenny Cohen, cuja
personalidade calorosa e gregária a deixou à vontade desde o primeiro dia.
Lenny é um homem grande e pesadão, com uma voz tonitruante e uma risada
ainda mais alta. Usa uma bata de talhante branca para cortar a carne e canta
canções de Johnny Cash todo o dia. Come as sobras de carne fumada e as
batatas fritas dos pratos dos clientes sem ponta de vergonha e incentiva os
empregados a fazerem o mesmo.
– Sou eu que pago esta comida – está sempre a dizer. – Porque há de ser
desperdiçada?
As outras duas empregadas são primas de Len, mulheres mais velhas, que
tratam Elodie como filha e lhe ensinam inglês, tal como a irmã Camille a
ensinou a ler usando a Bíblia. Não só aceitam Elodie como ela é, como
parecem gostar de tê-la por perto. Não lhe fazem perguntas sobre o seu
coxear ou as cicatrizes; sabem que ela é órfã e provavelmente deduziram o
resto. Ela, por sua vez, é como um pequeno refugiado francês que eles
acolheram para cuidar e alimentar.
Elodie pousa quatro copos de coca-cola na mesa junto à janela e pega na
caneta e no bloco.
– Já sabem o que querem pedir? – pergunta, no seu péssimo inglês.
– Quatro sanduíches de carne fumada – responde o do boné.
Elodie olha para cima tempo suficiente para reparar nos olhos azuis, nas
faces coradas e sardentas e nos dentes muito brancos. Todos eles cheiram a
cerveja, o que não é invulgar. A Len’s está aberta até à meia-noite para ainda
receber a clientela de foliões que entram bêbedos e aos tropeções com
vontade de comer carne fumada.
Elodie gosta da gente noturna – uma diversidade de universitários, hippies,
vagabundos e turistas. Quanto mais estranhos e marginalizados, mais
confortável se sente.
– Não sei se posso servi-lo a usar esse boné – comenta ela, inexpressiva,
surpreendendo-se com o gracejo incomum.
A viver em Montreal, aprendeu o suficiente para conhecer a antiga
rivalidade entre as equipas de hóquei no gelo Montreal Canadiens e Boston
Bruins.
O rapaz sorri e, obediente, tira o boné do Bruins. O cabelo é rapado e
ruivo-claro. Hoje em dia, quase toda a gente tem cabelo comprido – incluindo
Elodie. Ela usa-o com a risca ao meio e deixa-o cair de ambos os lados do
rosto.
– Está melhor assim? – diz ele, pousando o boné na mesa.
Elodie vira costas e vai-se embora, corando. Ouve-os a rir atrás dela.
Francesa atrevida. Não devia ter dito nada.
Quando volta com a comida, alguns minutos depois, o rapaz de boné
pergunta-lhe o nome.
– Elodie – responde ela, puxando o prato para si.
– Elodie – repete ele, fechando os olhos. – Como «melodie» sem o «M».
Ao ver o olhar fixo e inexpressivo de resposta, um dos amigos diz:
– Ela não percebe inglês, Den.
– A que horas sais do trabalho? – pergunta Dennis, fitando-a com uma
expressão determinada.
– À meia-noite – responde ela, sentindo o rosto aquecer.
Dennis olha para o relógio, um reluzente Timex no pulso grosso e sardento.
– Isso é daqui a meia hora – diz ele. – Posso esperar por ti?
– Bien, non – recusa ela, não por vontade própria, mas porque é a coisa
certa a fazer.
Outros clientes entram, para ainda comerem sanduíches de carne fumada
antes de a Len’s encerrar, e Elodie apressa-se a ir buscar algumas ementas
que se encontram junto à caixa registadora. Assim que as pousa nas outras
mesas, Dennis e os amigos tornam a chamá-la.
– O Dennis tem um fraquinho por ti – confidencia um dos amigos.
– Fraquinho?
– Ele gosta de ti.
– Ele não me conhece...
– Mas quer conhecer. Tem uma queda por raparigas francesas.
– Deixa-me acompanhar-te a casa – intervém Dennis.
– Eu moro em Pointe Saint-Charles – diz ela, como se ele devesse saber
onde fica. – É muito longe.
– Apanhamos um táxi. Ou o elétrico.
– Non – diz ela, perturbada pela atenção, sabendo que não pode deixar que
ele a leve a casa.
Ele é muito estiloso e certinho, areia de mais para a sua camioneta.
– Deixa-o acompanhar-te a casa – diz um dos amigos dele. – Ele vai para o
Vietname na próxima semana.
Elodie ouviu falar do Vietname. Marie-Claude tem sempre o rádio ligado e
é impossível passar por um jornal sem o ver nas manchetes. Este adorável
rapaz de cabelo ruivo com os olhos mais claros que ela já viu vai para a
guerra.
– Sinto muito – diz ela. – Mas...
– Não sintas. Deixa-me só levar-te a casa.
Elodie hesita. Os outros rapazes olham-na com ares de súplica, com as
mãos unidas em falsa oração. Mal consegue acreditar que aquele rapaz goste
dela o suficiente para se dar ao trabalho de a acompanhar até casa.
– Vais mesmo para o Vietname? – pergunta ela.
– Vou mesmo.
Antes ainda de ela aceitar, ele sorri, triunfante. Elodie pergunta-se, com
uma onda de tristeza, o que a guerra fará a alguém como ele.

Dennis espera por ela sozinho, sentado à mesa, até as luzes da charcutaria
se apagarem. Saem juntos, ignorando as sobrancelhas erguidas e as
piscadelas de olho de Lenny e Rhonda.
– Para onde foram os teus amigos? – pergunta-lhe ela, ao saírem para a St.
Catherine Street, que ainda está bem iluminada e cheia de foliões.
– Voltaram para o Cleópatra – admite ele meio envergonhado. – Sabes o
que é?
Elodie acena com a cabeça. O Café Cléopâtre é um clube de striptease no
bairro da luz vermelha. Ela sabe-o porque a sua vizinha na rue de Sébastopol
é dançarina lá.
– Foi a primeira vez que fui a um sítio desses – acrescenta Dennis. – Senti-
me muito desconfortável e foi por isso que saímos. Não é coisa para mim. Eu
preferi experimentar a carne fumada.
– E os teus amigos?
– Gostaram das strippers – responde ele, com uma risada.
– Porque vieste a Montreal? – quer ela saber.
O que ela quer dizer é: Porque é que Montreal é o teu último destino antes
de ires para a guerra? Mas não fala inglês suficiente para formular a frase;
entende consideravelmente mais do que consegue comunicar.
– Montreal é tão europeia – explica ele. – Os bares estão abertos até mais
tarde, as mulheres são mais bonitas e aqui já tenho idade legal para beber.
Também por causa dos clubes de striptease e da carne fumada.
– Disseste que não gostas de clubes de striptease...
– Mas não sabia disso até hoje à noite.
Elodie sorri e ele pega-lhe na mão. O corpo dela fica tenso ao toque dele.
– Não te preocupes – diz ele. – Estou só a ser cavalheiro.
Ela deixa-se ficar de mão dada com ele e caminham assim até à Ontario
Street.
– Tu coxeias – comenta ele.
– Já nasci assim – diz ela, parando.
– Pensei que podia ter sido poliomielite.
– É aqui que apanho o elétrico – informa ela. – Podes vir comigo, mas
depois tens de te ir embora.
– Palavra de escoteiro – promete ele, levantando a mão.
– Quem?
– Escoteiro. É uma expressão.
Ela encolhe os ombros e ambos riem.
Dennis fala sem parar, sentados lado a lado, durante a viagem no elétrico
vazio. Elodie esforça-se para o entender, ouvindo atentamente, satisfeita por
o deixar ser o centro das atenções enquanto lhe observa discretamente o perfil
fascinante. Tem um nariz afilado e um começo de barba no rosto. Ela
pergunta-se se ele se barbeia. Não parece suficientemente adulto para ser um
soldado.
Quanto mais ele fala, mais ela gosta dele. Dennis admite adorar desportos,
mas não ser grande atleta. Tem duas irmãs mais novas, ambas ainda no liceu.
O pai é canalizador. A mãe queria que ele fosse para a faculdade, mas estudar
não é a cena dele. Diz muito isso: a cena dele. Clubes de striptease e estudar
não são a «cena» dele. Raparigas francesas são.
Portanto, passou o último ano como aprendiz do pai. E então foi recrutado.
– Estou a tentar ser otimista – diz ele, os olhos turvando-se. – Não me
importei muito de ir fazer a recruta. Passei oito semanas em Fort Lewis e
outras oito semanas em Fort Polk a fazer o treino complementar. Nunca
estive em tão boa forma física, apesar de ter recuperado alguns quilos nas
últimas duas semanas de licença.
Elodie assente, fingindo entender tudo o que ele diz.
– Depois de oito semanas de recruta e mais oito de treino especializado,
estou evidentemente pronto para a guerra. Vou para Da Nang na próxima
semana.
– Deves estar com medo.
Dennis encolhe os ombros e olha pela janela.
– Só um idiota não estaria – resmunga ele. – Mas vou defender a
democracia.
Apesar da barreira da língua, Elodie ainda é capaz de detetar o sarcasmo e a
bravata na voz dele.
Saem na Wellington e atravessam o Parc de la Congrégation. É uma bela
noite de outono, com um toque de humidade no ar. O solo está coberto até
aos tornozelos de folhas húmidas vermelhas e amarelas. Elodie não toma
nada como um dado adquirido. O ar fresco, um céu estrelado, um labirinto de
árvores majestosas, uma brisa fresca, o calor, a neve no rosto, o chapinhar de
uma poça de chuva, o sol nas costas, o zumbido de mosquitos no ouvido, o
perfume de uma flor... tudo são presentes e ela sabe disso.
– O que estás a pensar? – pergunta-lhe Dennis.
Ela sorri. Não há palavras para lhe transmitir o sentimento agridoce de uma
noite como aquela, muito menos numa língua que ainda não domina. Sem
responder a Dennis, ela baixa-se, apanha um monte de folhas e atira-as ao ar.
Quando as folhas caem sobre a sua cabeça, ela pensa se aqueles raros
momentos de felicidade estarão sempre interligados com tristeza, nunca
existindo uma sem a outra.
Dennis responde com o mesmo gesto, rindo quando várias folhas ficam
agarradas ao uniforme de Elodie e ao cabelo comprido.
– Pareces uma daquelas hippies – diz ele, sacudindo-lhe uma folha do
ombro.
Ela atira outro monte de folhas na direção dele antes de se lançar a correr
pelo parque, adorando a sensação dos pés no chão enquanto corre, a falta de
ar no peito. Isto é liberdade, pensa. Dennis alcança-a e puxa-a para si. Antes
que ela possa impedi-lo ou entrar em pânico ou pensar duas vezes, ele beija-
a.
O seu primeiro beijo. Com os lábios dele encostados suavemente aos dela,
sente-se tomada pela emoção. As lágrimas vêm-lhe aos olhos. Ele sabe a
cerveja, carne fumada e mostarda, e é maravilhoso.
– Não vais mandar-me embora para o hotel, vais? – pergunta ele, tocando-a
na face.
Ela desvia os olhos.
– E então? Posso entrar?
Marie-Claude foi com o namorado visitar a família dele em Valleyfield
durante o fim de semana prolongado, por isso, tem o apartamento só para si
até segunda-feira à noite. Além do mais, já não é virgem; há muitos anos que
não é, graças a um dos enfermeiros de Saint-Nazarius.
– A esta hora da próxima semana estarei numa selva – lembra ele.
– Isso é mesmo verdade? – pergunta ela.
Ainda não tem a certeza se pode confiar nele. Aliás, não tem a certeza se
pode confiar seja em quem for.
– Eu não mentiria sobre a guerra – diz ele, parecendo um pouco ofendido.
Os prós e os contras de o deixar entrar são um turbilhão na sua mente, mas
ele espera que ela se decida. Contras: está apavorada. Prós: ele vai para o
Vietname, por isso, não a abandonará quando perceber que é muito superior a
ela ou que pode arranjar muito melhor. Ela nunca mais o verá, portanto, não
precisa de se preocupar com o que ele possa pensar dela. Encorajada pela
partida iminente dele, sente-se livre para ser quem quiser nessa noite, e
mesmo que ele descubra o pior – a ignorância e o negrume dela –, ele pode
morrer em breve. Por uma noite, pode fingir ser uma rapariga normal com um
rapaz normal antes de ele ir para a guerra.

As freiras aproximam-se dela. Consegue ouvir-lhes o riso escarninho, sentir


o cheiro a sabão e a tabaco nas mãos, mas não consegue vê-las por causa da
fronha enfiada na cabeça.
– Não! – grita ela quando uma delas a agarra pelos pulsos e outra pelos
tornozelos.
Atiram-na para uma cadeira e amarram-na com correias de couro. Há pelo
menos seis, os hábitos a rumorejar como corvos a bater as asas.
– Por favor, não! – geme ela.
Alguém arranca a fronha e a irmã Ignatia aparece, numa luz branca,
aterrorizante. Traz uma pequena faca na mão.
– Vou cortar-te o cérebro agora – diz ela com toda a calma.
Elodie acorda, ofegante. Vira-se, assustada, ao ver o rosto de Dennis ao seu
lado na almofada.
– Esqueci-me de que estavas aqui – articula ela, com voz rouca.
– Estás bem? Estás encharcada em...
– Elas fizeram-me a lobotomia? – pergunta ela, desorientada.
– Hã? De que estás a falar?
Dennis está em casa dela há três dias. Conversaram durante horas, pela
noite fora e até ao raiar do dia, partilhando coisas típicas de novos amantes.
Falaram de esperanças para o futuro – ele de ser um canalizador como o pai,
casar-se e ter filhos; ela de encontrar um parente vivo, talvez o pai ou uma
tia. E apesar de terem partilhado um com o outro algumas cicatrizes do
passado, ela não disse uma palavra sobre Saint-Nazarius. Apenas lhe disse
que os pais dela morreram e que cresceu num orfanato nos cantões. Ele não
lhe perguntou porque é que cada barulhinho – uma buzina de carro, um
autocarro a passar, o aquecedor, um rato – a sobressalta; porque tem tantas
cicatrizes no corpo; porque tem pesadelos e acorda banhada em suores frios.
Supõe que ele tenha tirado as suas próprias conclusões sobre as provações
num orfanato. Não precisa de saber que o orfanato onde ela esteve era, na
verdade, um hospício.
– Parecias uma pessoa louca no teu pesadelo – diz ele.
– Eu não sou louca – revida ela, virando o rosto para o lado.
– Ei, eu não quis insinuar nada – diz ele, pousando a mão no ombro dela. –
Só estava a brincar.
Dennis puxa-a para si e ela descansa a cabeça no ombro dele. Ele acaricia-
lhe o cabelo. Elodie ergue o olhar para ele, sabendo que são as últimas horas
que passam juntos. Não falaram sobre voltarem a ver-se. Há um acordo tácito
entre eles de que este é apenas um fragmento temporal, um fim de semana
perdido. Se ele sobreviver à guerra, terá uma boa recordação da rapariga
francesa que lhe tirou a virgindade. Quanto a Elodie, recordar-se-á para
sempre da primeira pessoa – homem ou mulher – que lhe mostrou afeto e
ternura físicos.
– Os teus olhos são tão tristes – comenta ele. – E ainda não tens vinte e um
anos.
Ela desvia rapidamente o olhar e liga a televisão.
– Tabarnac! – exclama ela, sentando-se na cama. – Eles mataram-no.
– Quem?
– O político – responde ela. – Foi raptado pelo FLQ. Acabaram de
encontrar o corpo dele no porta-bagagens de um carro.
– O FL... quê?
– FLQ. Eles querem que o Quebeque se separe do Canadá, por isso, fazem
explodir edifícios e matam pessoas – explica ela, lutando com o inglês. –
Atiraram uma bomba no sítio onde eu costumava trabalhar.
– Estavas lá?
– Não.
– Como é que isso serve a causa deles?
– Não sei. Só sei que eles testam os ingleses.
– Testam os ingleses? – brinca ele.
– Detestam – corrige ela.
– E tu? Também detestas os ingleses?
– Bien non.
– Mas és francesa – propõe, claramente confuso.
– Nem todos os franceses detestam os ingleses – diz ela.
A verdade é que todos os que a fizeram sofrer eram franceses. Talvez seja
por isso que não sente qualquer ligação efetiva com o seu próprio povo, a
razão por que se sente mais confortável com pessoas como Len Cohen e
Dennis de Boston.
Elodie aumenta o volume para ouvir o apresentador do Le Téléjournal.
– Ele nem sequer é inglês – salienta Dennis. – O político morto tem um
nome francês, o que significa que acabaram de matar um deles.
– Mas ele é liberal – explica Elodie. – Eles também são o inimigo.
– És muito esperta para uma...
– Para uma quê? – corta ela, preparando-se para a estocada final. Para uma
retardada. Para uma lunática.
– Para uma canadiana – completa ele, inocentemente.
Ela ri, aliviada.
– Gosto de te ver sorrir – diz-lhe ele. – Faz os teus olhos menos tristes.
CAPÍTULO 49

Maggie

M aggie abre a porta da frente e entra no vestíbulo.


– Olá? – chama ela, indo para a cozinha. – Mãe?
A casa está quieta. Vai buscar algumas bolachas de água e sal à despensa,
pois sabe que a mãe tem sempre a famosa caixa vermelha à mão, e enfia uma
na boca para ajudar a acalmar os enjoos. Tal como na gravidez anterior, as
bolachas de água e sal trazem-lhe alívio instantâneo.
– Mãe?
Encontra a mãe no sofá da sala, especada a olhar para o vazio.
– Mãe?
– O Yvon morreu – diz a mãe, em choque.
O coração de Maggie falha uma batida. Ainda bem, pensa ela, não sentindo
nada.
– Como?
– Enforcou-se.
Apesar do choque, Maggie experimenta uma sensação de triunfo.
– Porquê? – pergunta à mãe, sentando-se na velha otomana que era do pai.
– Ele deixou algum bilhete?
– Não. Uma rapariga veio a público dizer que ele a tinha violado.
Maggie quer gritar: Eu bem te disse!, mas contém-se e pensa quantas outras
haverá.
– O pai da rapariga era um dos trabalhadores da fazenda – explica a
maman. – Ela tinha doze anos. O pai dela espancou o Yvon quase até à morte
e ameaçou ir à Polícia. O Yvon teria sido preso.
– Como é que soubeste?
– A vizinha da Deda ligou-me – responde ela, soluçando para um lenço. –
Graças a Deus que a Deda não está viva para ver tudo isto.
Deda teve um ataque cardíaco no ano anterior e morreu durante o sono.
Maggie não foi ao funeral.
– Depois dessa, outras raparigas também o acusaram do mesmo – diz a
maman. – De todos os cantos de Frelighsburg.
A mãe deixa os ombros descaírem e começa a chorar alto, expressando
mais angústia do que quando o próprio marido morreu. As costas de Maggie
endurecem e ela levanta-se.
– Estás obviamente muito perturbada por ele ter morrido – comenta ela,
friamente. – É melhor deixar-te sozinha.
A maman para de chorar imediatamente e olha para Maggie.
– Não é por ele que estou perturbada! – exclama ela. – É por ti. Tu tentaste
dizer-me...
Volta a desfazer-se em lágrimas. Maggie nunca viu a mãe assim.
– Está tudo bem – diz Maggie, desajeitada. – Foi há muito tempo.
– Eu não acreditei em ti – soluça a maman. – Tu tentaste dizer-me e eu
importei-me mais com proteger a Deda do que contigo.
Maggie desvia o olhar, lembrando-se da dor que sentiu ao chegar a essa
mesma conclusão na altura.
– És capaz de me perdoar?
Há uma vulnerabilidade nos olhos da mãe que é difícil de conciliar com a
mulher que conheceu durante toda a vida.
Maggie não consegue dizer que sim. Embora se sinta vingada, não é
suficiente. Ainda não.
A maman levanta-se de repente e puxa Maggie para um abraço demasiado
apertado.
– Perdoa-me, cocotte – murmura, com a respiração quente contra o cabelo
da filha.
O corpo de Maggie permanece rígido nos braços da mãe. É muito estranho
sentir-se assim, pensa, envolta nos braços grossos da maman, que a apertam
com surpreendente vigor. Mais de três décadas de amor derramadas num
gesto bem-intencionado, mas muito atrasado.
– Não esmagues o bebé – diz-lhe Maggie.
CAPÍTULO 50

Elodie

1971

E lodie vai à casa de banho e, no momento em que se limpa, ocorre-lhe que


não vê sangue há muito tempo. Tenta lembrar-se da última vez que teve
a menstruação – um desafio, já que a sua memória é terrível – e conclui que
não a tem desde o outono, talvez até desde setembro. Lembra-se de ter tido
cãibras terríveis e de ter tido de sair tarde de noite para comprar mais pensos
higiénicos e de que ainda estava calor lá fora. É janeiro, agora.
Olha para a barriga protuberante e, de repente, é tão óbvio que solta um
grito engasgado. Atribuiu o aumento de peso a um excesso de batatas fritas e
sanduíches de carne fumada da Len’s, chegando a mencionar a Marie-Claude
que devia comer menos pois estava a ficar com pança.
Sai a correr da casa de banho e volta para a cozinha, onde Marie-Claude se
encontra a lavar a loiça.
– Acho que estou grávida – anuncia ela.
– O quê?
– Não tenho o período desde o outono.
– Quem diabo é o pai?
– Alguém que conheci na charcutaria – admite ela. – Ele ia para o
Vietname na semana seguinte. Eu nem sei o sobrenome dele.
As faces de Marie-Claude tornam-se vermelhas.
– Foi só... um fim de semana – murmura Elodie.
– Aqui? Fizeste-o aqui? No nosso apartamento?
Elodie olha para o chão, envergonhada.
– Tens a certeza de que estás grávida? – insiste Marie-Claude, a voz
crispada e moralista. – Não tens vomitado de manhã...
– Não sei.
– Achas que sabes alguma coisa?
– Tenho andado um pouco cansada e enjoada – admite Elodie.
– Oh, mon Dieu. Obviamente, vais ter de te livrar dele.
– O que queres dizer com isso?
– Não podes criar um bebé sozinha.
– Achas que devo dá-lo? – grita Elodie. – Não podes estar a falar a sério!
Marie-Claude suspira. A água ainda corre da torneira e as luvas de borracha
pingam espuma para o chão de linóleo.
– Tu, mais do que ninguém, devia saber que eu nunca poderia dar o meu
bebé – diz Elodie.
– Mas como é que vais ser mãe, Elo? Não consegues.
– Estou farta de que as pessoas me digam o que posso ou não posso fazer.
Já sofri o bastante.
– Tu não sabes fazer nada. Como podes cuidar de uma criança?
– Pelo menos, a criança vai ter uma mãe.
Marie-Claude vira-se e recomeça a lavar a loiça em silêncio. Elodie fica ali
alguns minutos, hesitante. Nunca esperou que Marie-Claude reagisse daquela
maneira. Ou melhor, não pensou de todo.
– Não vais poder ficar aqui – anuncia Marie-Claude, por fim, a voz quase
inaudível acima do ruído da água.
Elodie paralisa, sem palavras.
– Não posso ajudar-te a criar um filho – diz ela. – Simplesmente, não
posso.
– Não te pedi para o fazeres.
– Tens de procurar outro sítio para viver.
A mente de Elodie está a mil. Ela ainda tem a mala de Saint-Nazarius e
tudo o que possui ainda cabe lá dentro. Mas para onde iria?
– Quando me queres fora daqui? – pergunta ela friamente.
Marie-Claude não responde; encosta-se ao lava-loiças, fecha a água e fica
quieta muito tempo. Elodie sai da cozinha, indo em transe para o sofá-cama.
Fica ali deitada a acariciar com uma mão a inclinação suave da barriga. Um
bebé. É surreal. Fecha os olhos, não querendo pensar no amanhã, quanto mais
nos próximos meses.
– Eu não quero ser cruel – diz Marie-Claude, aparecendo, de repente, junto
ao sofá. – Apenas não posso apoiar-te nisso.
– Compreendo.
– Podes ficar mais algum tempo – cede ela. – Mas terás de sair depois de o
bebé nascer.
– Obrigada.
– Sinto muito, Elo.
– A culpa é minha – diz Elodie, sentando-se. – Não espero que me ajudes a
criar o meu filho.
– Seja como for, é provável que me case com o Jean-Marc, por isso...
– Não precisas de explicar.
Marie-Claude acena com a cabeça, desviando o olhar, incapaz de encarar
Elodie.
– Como pudeste deixar isso acontecer, Elo? Devias saber que é um erro
repetir a história.
Elodie sabe que ela tem razão, mas foi tão feliz naquele fim de semana.
Deixou-se enredar completamente na farsa de ser uma pessoa normal.
– Tens a certeza de que não te lembras do sobrenome dele? – pergunta-lhe
Marie-Claude. – Talvez ele possa ajudar-te.
– Eu nunca soube o apelido dele. Além disso, provavelmente já está morto.
– Oh, Elo! – lamenta Marie-Claude, abanando a cabeça. – Como pudeste
deixar isso acontecer?

Os meses de gravidez correm depressa – demasiado depressa. A data que


se aproxima parece ser o dia do juízo final. Continua a trabalhar como
empregada de mesa – faz agora apenas os turnos diurnos –, mas os tornozelos
inchados estão a transformar os seus dias num inferno, assim como o calor do
verão e a azia constante. Len e as empregadas foram misericordiosamente
imparciais. Uma noite, quando a barriga já começava a notar-se, Rhonda
aproximou-se dela e perguntou:
– O ruivo de Boston?
Elodie assentiu.
– Ele vai casar-se contigo?
– Ele está no Vietname.
Nem mais uma palavra foi dita sobre o assunto. Elodie deixou-os assumir
que existe um namoro à distância e que ele pode regressar para se casar com
ela no fim da missão.
Numa tarde particularmente sufocante do último trimestre de gravidez,
Elodie entra em casa depois do trabalho e arrasta-se pelo corredor, parando
na cozinha para pegar em algo fresco para beber. Marie-Claude está sentada à
mesa, a fumar um cigarro e a abanar-se com a revista policial Allo Police.
– Como te sentes? – pergunta ela a Elodie. – Pareces um pouco pálida.
– Estou cansada.
– Vais ter de parar de trabalhar em breve.
– Não posso – responde Elodie, tirando uma Pepsi do frigorífico e
sentando-se numa cadeira. – Não até o bebé nascer.
– Isso é daqui a menos de um mês.
– Eu preciso do dinheiro.
Ela combinou com Mme. Drouin mudar-se para o apartamento de cave
vizinho, no final do mês. Mme. Drouin concordou em cuidar do bebé
enquanto Elodie está no trabalho, e cobra-lhe um pagamento mensal razoável
que inclui na renda. Juntamente com as gorjetas e o subsídio da Segurança
Social, Elodie acha que deve ser capaz de conseguir aguentar.
– Eu sei que pensas que estou a cometer um grande erro – diz Elodie,
abrindo um bolo recheado May West e dando uma mordida ávida. – Por criar
este filho sozinha.
– Na verdade, não – diz Marie-Claude, surpreendendo-a. – Eu também sou
órfã, lembras-te? Sei como é crescer sem pais. E sei que nunca serias capaz
de o dar.
Elodie empurra o bolo com um gole de Pepsi.
– Acho que cometeste um erro ao engravidar – acrescenta Marie-Claude,
severa. – Especialmente com um estranho.
– Tenho medo de não saber o que fazer – confidencia Elodie.
Marie-Claude estende o braço sobre a mesa e dá-lhe uma palmadinha
afetuosa na mão.
– E não vais saber – diz ela. – Mas vais descobrir. Tu és esperta.
Marie-Claude tem sido boa para ela ao longo de todos estes anos. Depois
de a irmã Camille ter sido transferida para um hospital em Repentigny,
Marie-Claude tornou-se a única pessoa de confiança, deixando Elodie ficar
no apartamento durante a gravidez e perdoando-lhe o erro. Pode não ser a
pessoa mais fácil de conviver, mas tem compaixão.
– Vou fazer uma sesta – diz Elodie, levando a Pepsi para o sofá-cama.
Deita-se de costas com uma almofada debaixo das pernas e fecha os olhos.
A cama nunca foi tão confortável. O bebé dá-lhe um pontapé com um pé ou
cotovelo. Pequena e estranha criatura, pensa ela, enquanto o sente a chutar e a
dar voltas dentro dela. É sempre mais enérgico quando Elodie se deita para
dormir. É estranhamente calmante, todo aquele movimento e atividade.
De repente, sente Marie-Claude sacudi-la para a acordar.
– Elodie! – exclama ela. – A cama está encharcada!
Elodie abre um olho.
– Sente o colchão.
Elodie toca na cama e vê que está ensopada. Senta-se, confusa.
– O que está a acontecer?
– Eles não te disseram na clínica que as águas iam rebentar antes de
entrares em trabalho de parto?
– Sim, mas...
– Então, deve ser isso – diz ela. – Tens de ir para o hospital.
– Eu não estou preparada!
– Vou chamar um táxi.
Elodie começa a chorar.
– Mon Dieu! O que eu fui fazer...!
– Agora não é altura para isso.
– Eu não sei ser mãe! Nunca vou saber o que fazer!
Marie-Claude ignora-a, pega no telefone e chama um táxi.
– Vens comigo? – suplica Elodie, sentindo o pânico aumentar.
– Claro – assegura Marie-Claude. – Só tenho de estar no trabalho às sete. É
melhor que ele saia antes disso.
Marie-Claude ainda trabalha como secretária na Grand Trunk Railway.
– Estou com medo – sussurra Elodie.
– E deves estar.

Treze horas depois, Elodie encontra-se sozinha numa cama de hospital,


tentando imaginar como vai ser mãe da menina que acabou de dar à luz.
Quando a enfermeira lhe pousou a bebé no peito, Elodie não sentiu nada.
Nem alegria, nem alívio, nem qualquer tipo especial de ligação. Muito menos
amor. Sentiu o que sempre sente. Um vazio.
Só relaxou quando a enfermeira pegou na bebé e a levou para o berçário.
– Pode visitá-la mais tarde – disse a enfermeira, sorrindo ao sair.
– Quando posso ir-me embora? – perguntou Elodie antes de ela sair.
A enfermeira lançou um olhar estranho a Elodie e respondeu:
– Daqui a dois dias.
Dois dias no hospital. Preferia estar na rua do que presa ali. Não entra num
hospital desde o dia em que deixou Saint-Nazarius; tudo à volta dela a deixa
enjoada: o cheiro, as luzes fluorescentes, a comida horrível da cafetaria.
E agora?
As palavras da irmã Ignatia vêm-lhe à memória. Imbecil. Retardada. Como
é que alguém como ela pode cuidar de outro ser humano?
Limpa as lágrimas do rosto à ponta do lençol. Por uma fração de segundo,
pensa em fugir dali. Como seria fácil escapar! Mas então pensa na filha e
reconsidera. Certamente isso seria pior do que uma vida com Elodie.
Tudo isto lhe passa pela cabeça quando a enfermeira retorna para levar a
bandeja; a comida debaixo da tampa abobadada permanece intocada.
– Tem de comer, Mam’selle de Saint-Sulpice – aconselha ela. – Precisa de
ganhar forças.
– Não é comestível – resmunga Elodie.
– Já escolheu um nome? – pergunta a enfermeira, em tom otimista e alegre.
– Ela é um anjinho.
– Não.
– A sua família vem visitá-la?
Elodie vira a cabeça, sem responder.
– Eu vou deixá-la descansar – diz a enfermeira, sem nunca perder o tom
animado.
Marie-Claude aparece depois de sair do trabalho, trazendo um ramo de
cravos cor-de-rosa.
– Como está ela?
Elodie leva um momento a perceber que Marie-Claude se refere à bebé.
– Não sei – responde. – Ainda não fui vê-la.
Marie-Claude pousa as flores na mesa e senta-se na beira da cama.
– Tens de levar a vida para a frente – diz ela. – Não podes agarrar-te ao
passado.
– Eu não tenho sentimentos por ela – confessa Elodie. – Que tipo de mãe
posso ser?
– Tens de a conhecer primeiro, só isso.
– Eu não vou conseguir.
– Deixa de sentir pena de ti própria – repreende-a Marie-Claude. – Agora
tens uma filha que precisa de ti. Já lhe deste um nome?
Elodie abana a cabeça, negando.
– Bem, é melhor pensares em algo rapidamente.
Elodie vira a cabeça, envergonhada.
– Ela está melhor contigo do que num orfanato – diz Marie-Claude
bruscamente. – Não é possível causares mais danos do que as freiras.
– Como é que sabes?
– Uma péssima mãe ainda é melhor do que não ter mãe.
– Lembras-te da maneira como a irmã Ignatia costumava alinhar-nos e
bater-nos com a correia, sempre por causa de um erro de outra rapariga?
– Claro.
– Uma vez, ela desatou a bater-nos porque a Sylvie viu um rato e gritou.
Quando acabou, ela disse: «Isto é para vos ensinar a todas a comportarem-se
devidamente.»
– O que tem isso a ver com o assunto? – pergunta Marie-Claude,
impaciente.
– Essa frase é tudo o que sei sobre criar um filho.
– É isso que queres para a tua filha, então? Que ela cresça assim, sem mãe?
– Que tal uma boa família? – sugere Elodie, animando-se. – Eu podia dá-la
a uma família. Pessoas que eu escolher. Ricas e amáveis.
– Levanta-te – comanda Marie-Claude.
– Hã?
– Sai da cama e vem comigo.
– Aonde?
– Ver a tua filha.
Elodie faz o que ela manda, deslizando lentamente as pernas e levantando-
se da cama com cuidado. Atravessa o corredor ao lado de Marie-Claude, o
peito enchendo-se de medo à medida que se aproximam do berçário.
– Pensa no quanto as coisas mudaram – diz Marie-Claude, enfiando o braço
no de Elodie. – As nossas mães foram proibidas de ficar connosco e de nos
criar sozinhas. Tiveram de nos abandonar. Pelo menos, tu podes escolher.
Agora, uma mulher pode criar um filho sem ser casada.
Param em frente à janela do berçário e encostam os narizes ao vidro. Elodie
examina os berços todos até ver o nome de Saint-Sulpice, que parece
oficialmente ter-se tornado o seu sobrenome. Ao vê-lo escrito no berço da
filha – não o nome dela, mas o nome do orfanato onde ela passou os
primeiros sete anos da sua vida –, desata a soluçar.
Aninhada dentro do berço está a sua filha, envolta num cobertor cor-de-
rosa e pouco maior do que uma boneca. Um rostinho rosado, longas pestanas
e completamente careca.
Marie-Claude leva a mão à boca e suspira.
– Ela é linda, Elo!
Elodie olha para o bebé.
– Achas que sim?
– Claro que sim. O que se passa contigo?
– Não sei o que devo sentir.
Marie-Claude vira-se para Elodie, agarra-a pelos ombros e sacode-a com
força.
– Dá um nome à tua filha e segue com a tua vida – ordena ela. – Estás a
ouvir-me? Precisas de encontrar uma maneira de deixares para trás o que te
aconteceu.
– Tu deixaste?
– Eu tento – responde Marie-Claude, soltando Elodie. – Pelo menos, eu
tento.
– Eu não sei como esquecer.
– Então diz às pessoas o que nos fizeram em Saint-Nazarius – aconselha
Marie-Claude. – Escreve, conta a algum jornalista. Estão sempre a publicar
histórias como essa no Journal de Montréal. Conta ao mundo sobre a irmã
Ignatia e como fomos tratadas lá. Faz alguma coisa e depois dá um maldito
nome à tua filha.
PARTE IV

1974

Plantio

Como é belo um jardim entre as provações e paixões da existência.


– Benjamin Disraeli
CAPÍTULO 51

Maggie

M aggie levanta os olhos da máquina de escrever e admira pela janela a


sua adorada visão da água. Bebe um gole de café, aproveitando a
sossegada manhã de domingo. O aroma subtil e adocicado das flores
silvestres que Stephanie colheu para ela – um lindo ramo caseiro de varas-de-
ouro, margaridas, cardos e serpentárias – paira no ar. Adora o seu novo lar e a
sua vida ali em Cowansville. Depois de Stephanie nascer, decidiram vender a
casa em Knowlton e mudar-se para mais perto da loja. Gabriel nunca se
sentiu à vontade a viver na casa que era de Roland.
Roland deixou-a vender a casa sem levantar problemas. Ele casara-se,
entretanto, já tinha os seus próprios filhos e não se importou de a deixar ficar
com o dinheiro da venda do imóvel. Ela e Gabriel compraram um pequeno
terreno e uma casa georgiana de 1830, caiada de branco, com vista para o
lago Brome. Gabriel pode pescar no seu tempo livre e ainda gerir a fazenda
em Dunham. Clémentine está agora noiva e cedeu a administração quotidiana
da fazenda ao irmão.
Gabriel está finalmente a fazer o que sempre quis – a trabalhar no campo à
sua maneira. Conseguiu aumentar o lucro da fazenda graças à expansão da
Route 10 até Magog e Sherbrooke, e com a loja de sementes também a correr
bem, vivem uma vida melhor do que algum dos dois imaginou ser possível.
Maggie sabe que, de muitas maneiras, ela também vive a vida do pai. Passa
os dias a servir os filhos dos fazendeiros que conheceu enquanto crescia, a
falar com eles de sementes, de colheitas e de lagartas-da-espiga, alertando-os
para os perigos dos pesticidas, relativamente aos quais o pai se tornou um
exemplo. Tal como o pai, ela é conhecida por se envolver em longas
conversas políticas e em ocasionais discussões (ou sermões, se justificado),
pois, na sua essência, ainda é uma anglófona. Tal como o pai, Maggie não
tem medo de partilhar as suas opiniões. É respeitada por isso, tanto como
pelo seu conhecimento e experiência com sementes.
No final de cada dia, antes de ir para casa preparar o jantar para a família,
ela tranca-se no escritório do pai – ainda se refere a ele como o escritório do
pai – e aproveita um momento de sossego para analisar as vendas do dia ou
verificar a contabilidade de Fred, escrevendo depois a lista de tarefas para o
dia seguinte. Compreende agora a relutância do pai em soltar as rédeas um
milímetro que fosse. Controlar todas as facetas do negócio dá-lhe uma
sensação de segurança, especialmente desde que abriu a nova loja de
jardinagem em Granby. Chama-se Seed World – a placa nem sequer inclui o
nome em francês – e é um daqueles armazéns gigantescos, de aparência
industrial, onde o cliente tem de empurrar um carrinho pelos corredores e
encontrar as coisas sozinho. Cheira a ferramentas, não a jardinagem. Pelo
menos, a loja de Maggie ainda cheira a plantas a crescer.
No jardim, Gabriel e as crianças estão esparramados na relva, com um
balde de mirtilos acabados de apanhar entre eles. Maggie observa Gabriel
atirar um mirtilo a James e depois outro a Stephanie. As crianças retaliam e,
em pouco tempo, os três estão envolvidos numa guerra de mirtilos, e as
gargalhadas chegam-lhe pelas janelas.
Maggie ri baixinho ao ver James enfiar a mão no balde e lançar uma mão-
cheia de mirtilos ao pai. Ainda a deixa desconcertada vê-lo tão perto da idade
adulta – as pernas compridas e desengonçadas, quase tão alto como Gabriel,
com o queixo quadrado e o cabelo desgrenhado demasiado hippie para o
gosto dela. Tem treze anos e a sua beleza começa agora a despontar, as
feições a reajustarem-se numa nova estrutura de maior dimensão. O seu
corpo parece ter crescido da noite para o dia e o resto ainda luta para
recuperar o atraso. Vê-se a procurar freneticamente aquele garotinho, que
sabe ter existido, escondido algures debaixo dos ombros largos e mãos e pés
grandes que andam atabalhoadamente pela casa, mas todos os vestígios do
seu menino desapareceram.
Maggie volta a concentrar a atenção na máquina de escrever e retoma o
planeamento do conteúdo do catálogo da primavera. Embora a época da
colheita de milho mal tenha começado, quando o modelo estiver pronto para
impressão, a data-limite de novembro já terá chegado. Costuma manter a
configuração original do pai, dividindo o catálogo em categorias de sementes
– gramíneas e legumes; herbáceas; frutas e vegetais; grãos; flores – com
secções separadas para embalagem e transporte, ferramentas e pesticidas.
Acrescentou uma secção chamada «Sugestões de profissional», onde explica
como identificar anomalias nas mudas, como testar a humidade do solo, as
condições ideais para a germinação e outros temas fascinantes.
O milho é geralmente o centro das atenções. Faz sempre um bom trabalho
com a estirpe original de milho amarelo, e quando começa a escrever a
sinopse que irá acompanhar as fotografias que ela própria tira, decide fazer
uma promoção especial. Trinta cêntimos por um pacote de cem sementes.
Quando termina, verifica duas e três vezes gralhas que possam ter escapado
– o pai abominava erros no catálogo e transmitiu essa obsessão a Maggie – e
depois puxa o papel com um movimento dramático do pulso, como se
acabasse de concluir um romance.
Quando se levanta para ir buscar mais café, o telefone toca. O bom humor
de Maggie desaparece, pois assume que é a mãe a ligar para se queixar sobre
a mudança iminente para o lar de idosos. Ainda pensa em ignorar a chamada,
mas o sentimento de culpa não lho permite e pega no telefone. Os seus
irmãos estão todos longe – Geri e Nicole em Montreal, Peter em Toronto e
Violet em Val Racine –, portanto, a maman não tem mais ninguém a quem
azucrinar.
– Maggie? É a Clémentine. Leste o Journal de Montréal de hoje?
– Não, porquê? – pergunta Maggie.
Algo na urgência da voz de Clémentine lhe faz o coração acelerar.
– Há uma notícia na página três sobre os órfãos da época do Duplessis – diz
Clémentine.
– Eu já te ligo.
– Maggie. Acho que pode ser ela...
Maggie desliga e vai procurar o jornal. Encontra-o, intocado, pousado no
toucador da casa de banho, onde Gabriel o deixou para ler depois do jantar.
Nem se incomoda em ir para outro aposento; senta-se ali mesmo nos
ladrilhos frios ao lado da sanita e abre-o na página três.

A INTEGRAÇÃO SOCIAL DOS ÓRFÃOS ADULTOS DE DUPLESSIS


Num dia quente de primavera de 1967, «Monique» (nome fictício), de dezassete
anos, saiu pela porta principal do Hospital Saint-Nazarius de Montreal rumo à
liberdade. Monique cresceu atrás das grades das janelas da ala psiquiátrica de Saint-
Nazarius, não por ser deficiente mental, mas por ser órfã. Monique é apenas uma dos
milhares de crianças saudáveis e ilegítimas que foram diagnosticadas mentalmente
incapazes nos anos 1950, sob o governo do primeiro-ministro Maurice Duplessis, e
enviadas para hospitais psiquiátricos de toda a província.
Em 1954, Duplessis assinou um decreto ministerial que pretendia converter os
orfanatos da província em hospitais, como forma de canalizar mais financiamento
federal para as ordens religiosas que cuidavam dos órfãos. Na altura, o Governo do
Quebeque recebia subsídios federais para os hospitais, mas praticamente nada para
os orfanatos. O apoio financeiro a órfãos era de apenas 1,25 dólares por dia, em
comparação com os 2,75 dólares por dia para doentes psiquiátricos.
Estas crianças não eram apenas órfãs; eram os abandonados «filhos do pecado»
da província, nascidos fora do casamento e sem ninguém para os defender. A
lembrança mais antiga de Monique é da vida no orfanato Saint-Sulpice, em Farnham,
onde viveu até aos sete anos. Naquela época, era conhecido como a Casa das
Meninas Indesejadas. «Mas não era um mau sítio», diz ela. «Não tenho más
recordações de lá, até ter sido transformado em hospital psiquiátrico.»
Monique recorda o dia em que chegou um autocarro e dele saiu um grupo de
doentes mentais idosos que se mudaram para o edifício a que Monique chamava lar.
O ensino escolar foi interrompido abruptamente nesse dia e Monique foi incumbida da
tarefa de cuidar dos doentes mentais até ao dia em que foi transferida para Saint-
Nazarius, em 1957.
Como era a vida de uma criança normal a crescer num hospital psiquiátrico? No
seu apartamento de cave em Pointe Saint-Charles, Monique mostra um caderno
repleto de histórias pormenorizadas da sua experiência lá – desenhos, entradas de
diário e sonhos. Se não fosse pela benevolência e pelos cuidados diários das irmãs de
Saint-Nazarius, é difícil imaginar o que teria acontecido com crianças como Monique.
As freiras encarregadas das enfermarias sobrelotadas tinham uma tarefa hercúlea em
mãos. Era normal haver apenas uma freira para supervisionar, pelo menos, cinquenta
crianças numa enfermaria, e sem qualquer assistência. Nesta situação limite, tiveram
de impor regras rigorosas e muita disciplina.
«Eu fui logo posta a trabalhar», explica Monique. «A limpar as casas de banho, a
costurar. Éramos severamente punidas até pelos erros mais insignificantes.»
Mas também houve momentos felizes. Concertos de Natal, excursões a cidades
próximas, amizades que durarão para toda a vida. Depois de deixar o hospital,
Monique morou com uma ex-colega de quarto de Saint-Nazarius, que também foi
libertada após avaliação de uma comissão, criada no início dos anos sessenta,
encarregada de investigar essas instituições. Em 1962, foi divulgado que mais de vinte
mil pacientes estavam aí internados indevidamente, seguindo-se então a libertação
progressiva de muitos dos órfãos, agora adultos, que tiveram de enfrentar o mundo
exterior, encontrar trabalho e viver uma vida normal.
Como a maioria dos órfãos na mesma situação, Monique deixou Saint-Nazarius
com poucas competências de vida. Descrevendo-se como infantil e «primitiva»,
Monique diz: «Eu nem sabia descascar nem cozer uma batata.»
Contudo, graças à diligência das irmãs de Saint-Nazarius, Monique sabia costurar e
conseguiu encontrar trabalho quase imediatamente como costureira. Tem sido capaz
de se sustentar e de se adaptar à sociedade. O tempo revelará toda a verdade sobre
as ramificações das iniciativas de Duplessis, mas, por enquanto, Monique leva uma
vida normal e tranquila, que, como ela diz, é tudo o que sempre quis.
«Eu não sou louca», afirma. «Nunca fui. Eu sou como qualquer outra pessoa por
quem se passa na rua.»

Maggie termina o artigo e levanta-se do chão. Não liga a Clémentine; em


vez disso, corre lá para fora, a agitar o jornal na mão e a chamar por Gabriel.
CAPÍTULO 49

Elodie

E lodie olha para o desenho no seu caderno e percebe que cometeu um


erro. Apaga o que desenhou e corrige: havia três correias com fivelas na
parte da frente da camisa de forças, não quatro. A quarta fivela ficava no
fundo; era para a alça que passava por entre as pernas e era apertada atrás, nas
costas.
Satisfeita, fecha o caderno e guarda-o com cuidado na gaveta da mesa de
cabeceira. Tem já um volume considerável, este caderno que contém página
atrás de página de esboços feitos à mão e anotações detalhadas sobre o que
lhe aconteceu em Saint-Nazarius – narrado com uma precisão agonizante, as
memórias ainda cruas e bem vivas na sua mente.
Não planeia mostrar o caderno de notas a mais ninguém. Abriu a sua alma
àquele jornalista e, em vez de dizer a verdade, ele escreveu um conto de fadas
com um final feliz. Na manhã em que o artigo foi publicado, ela mal podia
esperar para o ler. Foi no sábado anterior, há uma semana. Na altura, pensou:
Finalmente, vou ter a minha vingança. Imaginou que toda a província logo
saberia o que as freiras tinham feito aos órfãos e que, finalmente, elas teriam
de enfrentar as consequências dos seus atos.
Quando Elodie terminou de ler o artigo, as lágrimas corriam-lhe soltas e
estava sentada no chão, devastada. A história não mencionava as torturas e os
maus-tratos que sofreu no dia a dia, não havia uma menção ao nome da irmã
Ignatia ou ao facto de «Monique» estar a criar a sua própria filha ilegítima
agora. Isso teria interferido com o final feliz do jornalista; teria estragado a
imagem que ele criara dela, de uma pessoa a levar uma «vida normal e
tranquila».
Um disparate, tudo um disparate. Mentiras por omissão. E pior: «concertos
de Natal»? «Amizades que durarão para toda a vida»? Elodie queria vomitar
ao ler essa parte. E o mais escandaloso de tudo foi a descrição da
«benevolência» e dos «cuidados diários» das freiras.
Foi quando rasgou o jornal em mil pedaços e lhe deitou fogo no lava-
loiças. Ficou ali, a ver as chamas a destruir a sua primeira, mas não a última,
tentativa de vingança.
Não é boa o suficiente para escrever a sua autobiografia, mas prometeu a si
mesma que um dia contará a sua história a alguém que esteja disposto a expor
a verdade: não um artigo branqueado e fútil que continua a proteger a Igreja,
mas um relato explícito e impiedoso dos horrores que os órfãos sofreram. Só
espera que a irmã Ignatia ainda seja viva quando o mundo descobrir o que ela
fez.
– Maman?
Elodie olha para cima e vê Nancy ali parada, a observá-la com aqueles
olhos azuis adoradores. A filha tem quase três anos, um lindo cabelo loiro e
um rostinho redondo e rosado. Elodie ainda se espanta por ter, de alguma
forma, conseguido criar aquele anjo exuberante, aquela centelha de luz e
alegria que não para quieta, que se ri de tudo, que bate o pé quando não
consegue o que quer; uma criança destemida e confiante e intrinsecamente
feliz.
Não passa um dia em que Elodie não se pergunte: Como fui capaz de fazer
esta criatura?
Não são nada parecidas. Nancy é curiosa e inteligente, otimista. No
entanto, os momentos de depressão de Elodie não parecem deter o espírito
alegre da menina ou de lhe travar a missão de explorar, de entreter ou de
conseguir o que quer. Na verdade, muito pouco lhe tira o entusiasmo, além de
ouvir um «não». Comparada com a sua própria infância, Nancy teve uma
vida maravilhosa até agora, o que é um grande orgulho para Elodie.
Pode não ser a melhor mãe, é a primeira a admiti-lo. Trabalha como
empregada de mesa cinco noites por semana e ainda recebe subsídio da
Segurança Social. Quando está em casa, passa demasiado tempo com o nariz
enterrado no seu caderno de mágoas, tentando obsessivamente registar cada
um dos maus-tratos que sofreu. Mas Nancy está segura e bem nutrida, não
tem hematomas nem cicatrizes, nunca foi trancada num quarto. É uma
criança que recebeu carinho, beijos, cócegas e que ouviu «eu amo-te»
milhares de vezes. Elodie superou todas as suas expectativas quanto ao
género de mãe que gostaria de ser e conseguiu, apesar de tudo, ultrapassar
muitas das suas limitações.
– Maman, colo – pede Nancy, erguendo os braços gorditos acima da
cabeça.
Elodie pousa-a no sofá-cama que partilham e Nancy enrola-se no colo dela
como um gatinho.
– Je t’aime, maman – arrulha ela.
Elodie ainda se choca ao ouvir aquelas palavras ditas tão livremente. Eu
amo-te. Teve de fazer tão pouco para as merecer.
– Eu também te amo – diz ela, acendendo um cigarro.
– Quando vou a casa da grand-maman? – pergunta Nancy, olhando para
Elodie com verdadeira adoração.
– Quem? – diz Elodie. – Tu não tens uma avó.
– Mme. Drouin disse-me que é a minha grand-maman e é assim que a devo
tratar.
Elodie dá uma longa passa no cigarro e tenta acalmar a pulsação.
– Pois, mas não é – diz ela, irritada.
– Então quem é?
Elodie abre a boca para contar a verdade a Nancy, mas reconsidera. Nancy
olha-a, expectante, daquela maneira tão típica das crianças.
– A Mme. Drouin não é a tua avó – diz com voz controlada.
– Mas ela cuida de mim.
– Não é assim que as coisas funcionam.
– Todas as outras crianças da rua têm avós e tias e tios e primos – insiste
ela. – Onde estão os meus?
Elodie apaga o cigarro numa caneca que está ao lado da cama, piscando os
olhos para afastar as lágrimas que ameaçam cair.
– Eu não te chego? – pergunta ela à menina.
Nancy fica pensativa, as sobrancelhas douradas adoravelmente franzidas.
– Não posso ter as duas coisas? – pergunta ela.
– Talvez um dia, chouette – responde Elodie, nunca desistindo da
possibilidade de um dia encontrar um parente. – Agora vai buscar uma Pepsi
à maman.
Nancy sai da cama e dirige-se para a cozinha, a cantar o Frère Jacques.
– Não abanes a lata! – avisa Elodie.
Momentos depois, Nancy volta com uma lata de Pepsi. Entrega-lha, Elodie
abre a lata e, é claro, o refrigerante sai em jorro, derramando-se como lava
pela camisa dela e pelos lençóis. Nancy desata à gargalhada, sem o mais
pequeno receio de represálias. Elodie acompanha-a no riso, com a certeza
absoluta de que Nancy é o presente que o Universo lhe ofereceu para
compensar a terrível infância que teve de suportar.
O telefone toca e Elodie desliza pela cama para pegar nele.
– Alô?
– Elodie, é Gilles Leduc, do Journal de Montréal.
Elodie fica imediatamente tensa e sente o rosto corar de raiva.
– O seu artigo é um disparate pegado – acusa ela. – O senhor é tão mau
como elas, a proteger as freiras dessa maneira. Diz-se jornalista, mas não
passa de um mentiroso. Deixou tudo o que era importante de fora. A minha
«vida normal e tranquila»? É cego? – Ouve-o suspirar do outro lado, mas
continua. – Deu a ideia de que tive uma infância encantada naquele lugar, por
amor de Deus! Porque não disse a verdade? Teria dado uma história muito
melhor!
Nancy observa-a com os seus enormes olhos.
– Costuma ler a página de classificados? – interrompe ele, silenciando-a.
– Não.
– Pois devia ler.
– Nunca mais vou ler o seu jornal, seu palerma. Não escreve a verdade!
– Acho realmente que devia comprar o jornal de hoje.
– Porquê?
– Um redator que conheço no departamento de classificados disse-me que
há alguém que publica um anúncio há anos, no primeiro sábado de cada mês.
Eu acho que a senhora pode ser a pessoa que essa pessoa procura.
– Eu? De que está a falar?
– A sua história corresponde às informações do anúncio de que estou a
falar. Vá comprar o maldito jornal e leia.
Ele desliga. Apesar da promessa de nunca mais ler um jornal, ela arrasta
Nancy até à loja da esquina para consultar o Journal de Montréal. Escrutina
toda a secção de classificados ali mesmo, até que chega ao anúncio que
praticamente lhe paralisa o coração.

Procuro uma jovem, de seu nome Elodie, nascida a 6 de março de 1950, no


Hospital Brome-Missisquoi-Perkins, nos cantões orientais. Em 1957, ela foi transferida
do orfanato Saint-Sulpice, perto de Farnham, para o Hospital Saint-Nazarius, em
Montreal. Tenho informações sobre a sua família biológica. Por favor, ligue...

E, num ápice, tudo muda.


A sua família biológica. Repete essas palavras sem cessar na sua cabeça
enquanto corre para casa, segurando o jornal contra o coração.
– O que se passa, maman? – pergunta Nancy, tentando acompanhar Elodie.
– Está tudo bem – assegura Elodie, acocorando-se para ficar ao nível dos
olhos da filha. – Acho que, finalmente, vai ficar tudo bem.
CAPÍTULO 53

Maggie

É oestácaossozinha
habitual de uma noite de sábado. Gabriel está na fazenda e Maggie
com as crianças. O telefone toca e Stephanie está a fazer birra
porque quer usar as galochas no banho. James está sentado à mesa da cozinha
a ver um jogo da equipa de baseball Expos e a comer a sua terceira ceia da
noite – ele é um poço sem fundo. A televisão está aos berros.
Maggie pega no telefone, ignorando Stephanie, que lhe está a puxar as
calças à boca de sino e a argumentar que tem de usar as galochas na banheira
para poder fingir que é uma poça.
– Alô? – atende Maggie.
– Vi hoje o seu anúncio no Journal de Montréal – diz uma mulher.
– Desculpe, qual anúncio?
– Dizia que tem informações sobre a minha família biológica? O meu nome
é Elodie.
Os joelhos de Maggie cedem e ela agarra-se ao balcão para se manter em
pé.
– Madame? – diz Elodie.
– Sim. Estou aqui. Peço desculpa.
– O anúncio dizia para ligar para este número.
– Claro – consegue Maggie articular, em choque.
Gabriel deve ter posto o anúncio. Todo este tempo a deixá-la na sua
cruzada, mas secretamente também procurou Elodie.
– Então este é o número certo? – insiste a mulher.
– Sim – balbucia Maggie. – Sim.
Ela não está morta. É ela.
Quando leu o artigo no jornal da semana anterior sobre «Monique» e os
órfãos Duplessis, sentiu um ressurgimento da esperança. Pensou que havia
uma forte possibilidade de Monique ser Elodie. O problema era Maggie ainda
não saber como a encontrar. Sugeriu a Gabriel que fossem de carro até Pointe
Saint-Charles e patrulhassem as ruas em busca de uma mulher de vinte e
quatro anos que pudessem reconhecer, mas Gabriel bateu o pé, dizendo que
ela estava a ser irracional e maníaca. É verdade que foram a todas as fábricas
têxteis de Pointe, Saint-Henri e Griffintown, mas ninguém que se encaixasse
na descrição de Elodie trabalhava lá. Maggie até foi ao Centre de
Retrouvailles, o centro de ajuda ao reencontro de famílias biológicas, mas só
pôde deixar os seus dados pessoais e esperar que algum dia Elodie lá fosse à
procura da mãe biológica.
– O anúncio diz que tem informações sobre a minha família biológica?
– Eu... sim, tenho – gagueja Maggie, tentando soar normal.
Stephanie ainda puxa as calças à boca de sino de Maggie, a reclamar que
quer as malditas galochas. Maggie afasta o telefone da boca e diz a James:
– Tira-a daqui!
James ignora-a.
– Imediatamente – silva Maggie. – Põe-na no banho.
– Com as galochas? – insiste Stephanie.
– Sim – responde Maggie, impaciente.
Stephanie anima-se de imediato e deixa-a em paz. James desliga a televisão
e segue a irmã a contragosto, deixando Maggie sozinha.
– Sabe alguma coisa sobre o seu passado? – pergunta ela a Elodie, na
esperança de confirmar que é realmente ela.
– Eu nasci em 1950 – diz Elodie. – Não sei a data precisa. Ninguém me
adotou porque eu era muito pequena e doente. Não sei muito mais. A minha
mãe morreu a dar-me à luz.
Maggie leva uma mão à boca para não gritar. Morreu a dar à luz? Por que
artes haveriam as freiras de lhe dizer uma coisa daquelas?
– Sabe quem eu sou? – pergunta-lhe Elodie novamente. – Qual é o nome da
minha família?
– O teu nome é Elodie Phénix – responde Maggie, tentando controlar a
respiração e manter a calma.
– E a senhora quem é?
Maggie hesita, sem saber como responder. A pobre rapariga acha que a
mãe dela está morta. Como é que Maggie lhe pode contar a verdade ao
telefone?
– O meu nome é Maggie – diz ela, por fim. – Acho que posso ser a tua tia.
– Irmã da minha mãe?
– Sim – mente Maggie. – Ela teve uma filha que nasceu no dia 6 de março
de 1950, algumas semanas antes da data prevista. A criança esteve em Saint-
Sulpice até 1957 e depois foi transferida para Saint-Nazarius. A minha irmã
deu-lhe o nome Elodie.
– Antes de morrer?
Maggie cerra os olhos com força.
– Sim. Antes de morrer. Estava na certidão de nascimento.
– Tenho tantas perguntas.
Eu também, pensa Maggie.
– Quero saber tudo sobre ela – diz Elodie. – Tenho outros parentes? E o
meu pai?
– Gostarias de te encontrar comigo pessoalmente?
– Sim – responde Elodie, deixando Maggie eufórica.
Combinam um encontro no final de semana seguinte. Maggie gostaria que
fosse mais cedo – iria ao apartamento dela naquele momento, se pudesse –,
mas sente que Elodie está apreensiva sobre a rapidez com que tudo está a
acontecer e contém-se.
Tenta ligar a Gabriel, que está em casa de Clémentine, mas ele já saiu e
está a caminho de casa. Maggie não menciona a conversa com Elodie.
Gabriel tem de ser o primeiro a saber.
Maggie põe-se a andar pela cozinha, desesperada para tornar a ler aquele
jornal. Precisa que Gabriel entre por aquela porta. Ainda a tremer, senta-se à
mesa, com a cabeça a latejar e a anunciar uma enxaqueca.
A minha filha está viva. Nunca acreditou realmente que Elodie estivesse
morta, mas ainda não faz sentido que a irmã Ignatia lhe tivesse mentido
naquele dia, em 1961. Quem manteria propositadamente uma mãe longe da
própria filha? A desumanidade, a absoluta crueldade, é algo que Maggie
nunca será capaz de compreender ou perdoar. Ela roubou a Maggie treze anos
com a filha.
A porta das traseiras abre-se e Maggie pula da cadeira, atirando-se para os
braços de Gabriel.
– O que se passa? – pergunta ele. – As crianças estão a dormir?
As crianças. Esqueceu-se completamente delas. Estão os dois quietos no
andar de cima, provavelmente felicíssimos por ela se ter esquecido deles e
poderem ficar acordados até tarde.
– Não sei.
– Não sabes onde estão as crianças? – diz ele, pousando um balde de
mirtilos no balcão.
– A Elodie ligou.
Gabriel estaca e vira-se para ela.
– O quê?
– A Elodie ligou para cá – repete ela. – Ela está viva.
A cor desaparece-lhe do rosto.
– Ela leu o teu anúncio e ligou! – exclama Maggie. – Há quanto tempo o
publicas? Isso significa que a freira nos mentiu, o que eu sempre soube.
Lembras-te dela a dizer-nos que a Elodie estava muito doente quando foi
transferida para o hospital?
– Espera. Qual anúncio?
– Nos classificados. No Journal de Montréal.
Gabriel abana a cabeça, a expressão neutra.
– Não faço ideia do que estás a falar.
Ficam ali um momento, a olhar um para o outro.
– Vai à loja – diz-lhe Maggie. – Vai buscar o jornal.
– E a Elodie? O que é que ela disse? Como é que ela te soou?
– Foi uma conversa muito breve – diz, e conta-lhe.
Limpando as lágrimas dos olhos, Gabriel desaparece pela porta das
traseiras. A loja fica na esquina da rua, por isso, não demora muito. Maggie
fica à porta até ele voltar e lhe entregar o jornal. Em silêncio e com gestos
frenéticos abrem o jornal nas últimas páginas.
– Ali – diz Gabriel, apontando para o anúncio.

Procuro uma jovem, de seu nome Elodie, nascida a 6 de março de 1950, no


Hospital Brome-Missisquoi-Perkins, nos cantões orientais. Em 1957, ela foi transferida
do orfanato Saint-Sulpice, perto de Farnham, para o Hospital Saint-Nazarius, em
Montreal. Tenho informações sobre a sua família biológica. Por favor, ligue...

Ficam os dois petrificados a olhar para o anúncio, mais perplexos do que


antes.
– Este é o nosso número de telefone.
– Temos de ligar para o jornal – diz ela. – Temos de descobrir quem pôs
este anúncio. Tem de ser alguém que sabe o nosso número.
– É sábado à noite. Não vamos conseguir informação nenhuma até
segunda-feira.
– Poderá ter sido a Clémentine?
– Ela não iria interferir – diz ele. – Não numa questão destas.
– A minha mãe?
Gabriel revira os olhos.
– Ninguém sabe da Elodie além da minha mãe – diz ela. – As únicas
pessoas que sabiam já morreram. Quem mais poderia ser?
Gabriel tira rapidamente um cigarro do maço e acende-o.
– E se for tudo uma farsa?
– É o nosso número de telefone no jornal!
– Como é que sabes se era mesmo ela ao telefone? E se não for?
– Quem mais seria? – contesta Maggie. – Outra órfã chamada Elodie? Ela
sabia coisas.
– E se for outra rapariga do hospital? Alguém que conhece os factos da
vida da Elodie e está à cata de dinheiro? Temos de ter cuidado, Maggie. Não
importa o quanto desejemos que seja ela, nada disto faz sentido!
– Ela não tem nada a ganhar por fingir ser nossa filha.
– Claro que tem. Uma família, eventual apoio financeiro. Qualquer rapariga
podia dizer que o nome dela é Elodie.
– Quando é que te tornaste tão cínico? – acusa Maggie. – Porque não podes
simplesmente aceitar que seja o milagre que tanto desejámos?
– Porra, Maggie! – brada ele, batendo com o punho na mesa. – Tenho medo
de me permitir acreditar que pode ser ela! Não se trata apenas de ti. Tanto
quanto sei, ela também é minha.
– Desculpa.
Ele senta-se e passa a mão pelo cabelo.
– Vamos ter de esperar até segunda-feira.
– Ela acha que eu morri – diz-lhe Maggie. – Disseram-lhe que eu morri no
parto. Provavelmente está naquela treta de pasta.
– Mas porquê?
– Só Deus sabe. Não a contrariei ao telefone – confessa ela. – Fiquei sem
saber o que fazer, por isso, disse-lhe que era a tia dela.
– Calice!
– Devia ligar-lhe e dizer-lhe que estou viva. Não devia ter mentido.
– Não podes dizer-lhe uma coisa dessas por telefone – diz ele. – Tu
abandonaste-a, Maggie. Já vai ser um choque tremendo para ela quando
descobrir que estás viva, mesmo tendo-a abandonado.
– Tens razão – concorda ela, derrotada. – Ela vai odiar-me.
– Se for ela, vai precisar de tempo.
– É ela – teima Maggie, parecendo Stephanie quando não está a levar a sua
adiante. – Pensa, Gabriel. No dia em que fomos a Saint-Nazarius e
perguntámos pela Elodie? Ela estava lá. Provavelmente estivemos a poucos
passos de distância dela, do outro lado daquelas portas. E o que fizeram as
freiras? Disseram-nos que ela estava morta e deixaram-na acreditar que eu
estava morta.
Gabriel levanta-se novamente e contorna a mesa da cozinha. Maggie vê-o a
olhar em redor e sabe que ele procura alguma coisa em que possa bater ou
que possa atirar, uma maneira de descarregar a fúria. Os olhos pousam no
vaso de flores silvestres de Stephanie, mas consegue conter-se.
Maggie levanta-se, aproxima-se e toca-lhe a face, que está molhada.
– Achas mesmo que é ela? – indaga ele, baixinho.
– Nós vamos encontrar-nos com ela – diz-lhe Maggie. – Aí teremos a
certeza. Temos de nos concentrar nisso agora. E temos de descobrir quem pôs
o anúncio.
– Liga à tua mãe.
Maggie vai para o telefone. Enquanto marca o número, Gabriel diz:
– Vou matar aquela freira. E todos os que fizeram isto connosco. Se é a
Elodie e eles nos disseram que ela estava morta, é doentio. E para quê? Para
poderem mantê-la presa na merda daquele hospício em vez de a devolverem a
nós? Por que diabo fariam uma coisa dessas?
– Não sei – responde Maggie, tentando manter a calma em nome dos dois.
– Também não entendo. Mas, ouve-me: vamos finalmente tê-la nas nossas
vidas. Isso é o que importa agora.
A mãe responde depois de uma dúzia de toques.
– Mãe! – exclama Maggie. – Foste tu que puseste o anúncio?
– Eu estou a ver o La Petite Patrie!
– Foste... tu... que... puseste... o... anúncio... na... página... de...
classificados... do... Journal... de... Montréal? – repete Maggie, marcando
cada palavra.
– Qual anúncio? – estranha a mãe. – De que estás a falar? A minha série
está mesmo a terminar.
– Não puseste um anúncio à procura da Elodie?
– Bien non! – responde ela. – Porque faria eu uma coisa dessas?
– Não sei. Só pensei que... não importa. Vai acabar de ver a tua série.
Maggie desliga, desapontada.
– Não foi ela – declara, juntando-se a Gabriel à mesa.
– Claro que não foi ela.
– Quem terá sido, então?
Gabriel encolhe os ombros.
– Acho que não consigo esperar até segunda-feira.
– Será que ela é minha? – questiona Gabriel, exalando um anel de fumo. –
Saberemos assim que a virmos, não achas?
– Provavelmente.
– Vinte e quatro anos.
– Ela sofreu, não achas? – diz Maggie, com a voz embargada. – Se cresceu
naquele lugar horrível?
– Não parecia assim tão mau no artigo.
– Talvez não tenham contado a história toda – ressalva Maggie. – Tu sabes
como os jornais franceses gostam de proteger a Igreja. Lembras-te daquele
livro que eu li há uns anos? Os Loucos Gritam por Socorro10? Pintava um
retrato muito diferente.
– Não vale a pena estares a torturar-te com isso – aconselha Gabriel. – Em
breve, vais poder perguntar-lhe.
– É disso que tenho medo – responde Maggie, pegando no cigarro que ele
deixou a queimar no cinzeiro.
10 Tradução livre. No original, Les fous crient au secours, da autoria de Jean-Charles Pagé,
publicado em 1961, é um testemunho em primeira mão sobre os maus-tratos e as condições de vida
nos hospitais psiquiátricos da época, que o autor descreve quase como prisões, denunciando a
administração das comunidades religiosas. (N. da T.)
CAPÍTULO 54

A primeira coisa que Gabriel faz na segunda-feira de manhã é ligar para o


jornal. Maggie está com ele.
– Não te esqueças de lhes arrancar o nome da pessoa – insiste ela. – Eles
podem não querer dizer.
– Ainda não passaram a chamada para a secção de classificados.
– Pergunta se era homem ou mulher – diz ela. – E há quanto tempo o
anúncio é publicado. E com que frequência.
– Bonjour, madame – diz ele, gesticulando para que Maggie pare de falar.
Maggie afasta-se para lhe dar algum espaço. Rói uma unha, mata uma
mosca que zumbe no peitoril da janela e abre a porta das traseiras para a
atirar lá para fora. Está uma bela manhã, o sol já forte, o ar denso e
perfumado pelo jardim. Examina as malvas-rosas, que estão em plena
floração, formando a imponente parede florida cor-de-rosa, coral e branca
que imaginou dois anos antes, quando as plantou.
Volta para dentro e fica desapontada ao ver que Gabriel ainda está ao
telefone.
– Quem pôs o anúncio? – insiste ela, com gestos de boca.
Gabriel olha-a e leva um dedo aos lábios, pedindo silêncio.
– Não te esqueças de perguntar se vai ser publicado novamente – diz ela.
– E vai ser publicado novamente? – pergunta ele, fazendo um gesto a
Maggie para que lhe traga o café. – Percebo – continua. – Sim, por favor,
cancele. Não há necessidade de voltar a ser publicado. – E um instante
depois: – Sim, ela contactou.
Maggie gesticula maniacamente para que Gabriel termine a chamada.
– Obrigado – diz ele. – Foi muito prestável.
Quando pousa o auscultador, Maggie ergue as mãos em exasperação.
– E então? – aflige-se ela. – Espanta-me que não a tenhas convidado para
jantar.
– O anúncio foi pago por um senhor chamado Mr. Peter Hughes.
– O Peter? – Ela abana a cabeça. – O meu irmão? Eu não... Isso não faz
sentido.
– Liga-lhe.
Gabriel passa o telefone a Maggie e ela liga-lhe para o trabalho.
– Peter Hughes – atende ele, no que Maggie constata ser um tom bastante
arrogante.
Peter tornou-se sócio recentemente de uma grande empresa de arquitetura
em Toronto, de acordo com a carta fotocopiada que enviou a toda a família
no Natal.
– A Elodie ligou-me – anuncia ela de repente. Sem preâmbulos. Sem
cumprimentos.
Peter fica calado.
– Ouviste-me?
– Sim – responde ele. – Isso é bom, não é?
– Sim – diz ela. – Mas porquê, Peter? Não compreendo.
Peter solta uma risada bem-humorada.
– A sério – insiste ela. – Porquê? E porque não me disseste?
– Não fui eu, Maggie. Foi o papá.
É preciso um momento para que as palavras dele sejam compreendidas.
– Ele começou a publicar o anúncio há anos – explica Peter. – Antes de
adoecer. No primeiro sábado de cada mês.
– Ele nunca disse...
– Ele fez-me prometer que eu continuaria a fazê-lo depois de ele morrer. E
que não te contasse.
– Não posso acreditar.
– Eu é que não posso acreditar que ela realmente viu o anúncio e te ligou –
diz Peter. – Depois de tantos anos. Nunca pensei que o faria. Eu disse ao papá
que achava que seria inútil, mas tu sabes como ele era teimoso.
– A mãe sabe?
– Estás a brincar? Claro que não.
Maggie inclina-se sobre o lava-loiças e abre a torneira, molhando o rosto
com água. Está calor na cozinha. Ela encosta o telefone entre a orelha e o
ombro e abre a janela para ventilar.
– Vais conhecê-la? – pergunta-lhe Peter.
– Sim – responde Maggie. – Na semana que vem.
A semana parece arrastar-se. Maggie e Gabriel passam os dias a fingir
normalidade por causa das crianças. Não falam muito de Elodie entre si,
preferindo processar tudo sozinhos. Maggie quase não consegue pensar em
mais nada, mas, com dois filhos, a vida continua, quer ela goste quer não. Há
refeições para preparar, humores para gerir, birras para acalmar, brigas para
acabar, banhos para dar, faxina para fazer. No trabalho, é época de catálogo e,
ainda por cima, a editora acabou de lhe enviar um livro para Maggie traduzir.
É uma sucessão interminável que não lhe deixa muito tempo para cismar nos
seus medos.
Porém, o peso que sente no peito não desaparece. Nem por um instante. Por
trás de cada palavra ou movimento ressoa o martelar implacável da
ansiedade; os seus pensamentos teimam em voltar para Elodie. O que dirá ela
quando finalmente se encontrarem?
Imagina o momento vezes sem fim – a maneira como Elodie irá reagir, a
possibilidade da raiva e do ódio, a recusa do perdão. Maggie não suporta a
ideia de isso acontecer; o medo que sente é visceral, como se Elodie já
estivesse à sua frente, a acusá-la e a rejeitá-la.
Quando a mãe de Maggie fica a saber do encontro, liga a Maggie em
pânico.
– Certas coisas devem ser deixadas em paz! – protesta ela.
– Ela é minha filha, mãe. Não há discussão possível.
– Não é boa ideia, Maggie. Tu abandonaste-a.
– São os anos setenta, mãe. Ninguém quer saber se eu tive um bebé aos
dezasseis anos.
– Não podes contar às crianças. O que vão elas pensar de ti?
– Vão entender. Já te disse, os tempos mudaram. Eles não julgam, como
fazia a tua geração.
– O que vai ela pensar de ti? – insiste a maman. – E se ela te odeia? Já
pensaste nisso?
– Não penso noutra coisa – diz Maggie, e desliga.

Na noite anterior ao encontro com Elodie, Maggie acorda com o coração


aos pulos. Aconchega-se contra o corpo de Gabriel. Para se acalmar, tenta
lembrar-se das histórias que o pai costumava contar-lhe para a ajudar a
adormecer. Um dos seus aforismos preferidos vem-lhe à cabeça, e quase pode
ouvir a voz do pai, como se falasse com ela agora. Quem planta uma semente
planta uma vida.
Pelo menos, ela fê-lo. Deu vida a Elodie, mas pouco mais do que isso.
CAPÍTULO 55

M aggie tira o bolo do forno e pousa-o no balcão para arrefecer. A casa


está quieta. As crianças foram passar a tarde a casa da mãe dela; era
mais fácil do que tentar explicar tudo. Gabriel está no jardim, a construir uma
casa na árvore para as crianças, tentando distrair-se e não cismar. Observa-o
da janela da cozinha, a martelar e a serrar, com o boné dos Montreal
Canadiens puxado sobre a testa. Ama-o tanto como quando o observava a
trabalhar no milharal.
– O teu bolo abateu – diz Clémentine.
Ela veio dar apoio moral.
Maggie olha para o triste bolo e sente o coração abater-se também.
– És uma péssima pasteleira, Maggie.
– É este forno! – defende-se Maggie e ambas riem.
O bolo é deitado ao lixo.
– Eu trouxe bolachas de água e sal e queijo – diz Clémentine. – E biscoitos.
– Biscoitos de pacote?
Clémentine revira os olhos.
– A minha mãe nunca serviria biscoitos de pacote a um convidado –
murmura Maggie, arrependendo-se imediatamente do comentário.
O rosto de Clémentine entristece e ela vira a cara rapidamente. Às vezes,
Maggie esquece-se. Tornou-se tão próxima da cunhada ao longo dos anos,
que mal consegue lembrar-se de que Clémentine foi amante do pai dela, a
rival da sua mãe.
– Desculpa – diz Maggie, pegando na mão de Clémentine. – Não era minha
intenção.
– Eu sei que não – assegura Clémentine, colocando queijo num prato. –
Achas que chá de rosas vermelhas serve? Ou a tua mãe teria trazido as folhas
da China?
Maggie desata à gargalhada e Clémentine junta-se a ela, dissipando de
imediato o constrangimento.
Batem à porta. Elas entreolham-se. Nenhuma das duas se move até
Clémentine dizer:
– Vamos lá conhecer a tua filha.
Maggie está petrificada. Clémentine aperta-lhe a mão e vão até à porta da
frente em silêncio.
Ela está a poucos passos de distância, diz Maggie para si mesma, tentando
convencer-se de que é realmente verdade. Ela está do outro lado da porta.
O momento parece surreal, como se fosse apenas mais uma das fantasias
tolas da sua imaginação. Clémentine parece abrir a porta em câmara lenta.
E então ali está ela. Maggie ouve-se a ofegar. É ela. O rosto é uma mistura
inconfundível das famílias Hughes e Phénix.
– Allô – cumprimenta Elodie.
Ela tenta sorrir, mas não encara os olhos de Maggie.
– Entra – convida Clémentine, dando um passo para o lado.
Elodie entra na casa. Maggie limpa os olhos, não querendo assustar a
rapariga com uma crise emocional antes sequer de ela atravessar a porta. Tem
de estar constantemente a lembrar-se de que Elodie não faz ideia de quem ela
é.
– Eu sou a Maggie – diz ela, a voz soando-lhe estranha. – E esta é a minha
amiga Clémentine.
Elodie volta a cumprimentar sem fazer contacto visual com nenhuma das
duas. Ela tem uma energia nervosa e assustadiça, mas quem a pode censurar?
Clémentine pega no poncho de macramé de Elodie e leva-a para a sala de
estar.
Maggie percebe que ela manca ligeiramente. Está vestida com calças de
ganga e uma blusa verde-azeitona – é muito magra –, mas é do rosto dela que
Maggie não consegue tirar os olhos, mesmo que esteja escondido por trás de
uma cortina de cabelo comprido, dividido ao meio. Há uma semelhança
incontestável com o lado da família de Maggie, certos traços subtis das irmãs
– a curva da boca de Geri, os olhos espaçados de Vi, as sobrancelhas espessas
dos Hughes que todos partilham. A pele é muito clara e o cabelo é loiro
escuro, e o corpo – esguio e de pernas compridas – é característico dos
Phénix.
– Queres um chá? – pergunta Maggie, indicando-lhe o sofá. – Ou uma
Pepsi?
– Pepsi, por favor – responde Elodie, sentando-se.
– Sim, claro – diz Maggie. – Eu volto já.
Vai para a cozinha e atira água para o rosto. Esforça-se para não
hiperventilar. Escancara a porta das traseiras e chama Gabriel. Ele cessa de
martelar, vira-se para ela, o rosto branco como a cal, e aproxima-se
lentamente.
– É ela – declara Maggie, antes que ele possa perguntar. – Vê com os teus
próprios olhos.
Gabriel respira fundo, tentando recompor-se, e vão para a sala juntos.
– Este é o meu marido, Gabriel – apresenta Maggie, entregando a Elodie
um copo de refrigerante. – Gabriel, esta é a Elodie.
As lágrimas saltam aos olhos de Gabriel assim que a vê. Ele sabe que é o
pai, percebe Maggie. Vê-lhe o reconhecimento nos olhos. Ele puxa Elodie
bruscamente para si e abraça-a com força. Nunca foi pessoa de se conter.
– Deixa-a respirar – pede Maggie suavemente.
Gabriel solta a rapariga e recua, mirando-a. Nenhum dos presentes
consegue tirar os olhos dela. Maggie não consegue acreditar que esta é a
criança que viu pela primeira vez numa bacia de esmalte há mais de duas
décadas. E, de certa forma, não é. Ela parece um pouco subnutrida, como se
não comesse bem. Não tem bons dentes ou boa pele, um sinal de pobreza, e
tem uma cicatriz por cima de um olho.
– Mal posso acreditar que estou aqui – diz Elodie, ecoando os pensamentos
de Maggie. – Que é a minha tia.
– O anúncio é publicado há vários anos – começa Maggie. – Como é que o
viste?
Uma sombra passa pelos olhos de Elodie.
– Saiu um artigo sobre mim no Journal há umas semanas – explica ela. – O
jornalista que o escreveu reconheceu a minha história no seu anúncio. Ele
disse-me para comprar o jornal e ler os classificados.
– Um milagre – sussurra Clémentine.
– Nós lemos esse artigo – diz Maggie. – Pensei que havia muitas
semelhanças.
– Era tudo mentira – declara Elodie, o tom tornando-se severo. – Ele
deixou o mais importante de fora, todos os factos. Transformou-o numa
espécie de conto de fadas, o que não foi. Eu não levo exatamente uma «vida
normal e tranquila».
Maggie sente um desgosto profundo. Já suspeitava que o artigo fazia a vida
de Elodie parecer boa de mais para ser verdade, em comparação com outros
relatos que lera.
– O artigo dizia que trabalha como costureira? – pergunta-lhe Clémentine,
mudando de assunto.
– Trabalhei – esclarece Elodie, roendo as unhas. – Logo quando saí do
hospital. Agora sou empregada de mesa.
Maggie reprime a desilusão, recordando a si mesma que não tem o direito
de julgar. Olha de relance para Gabriel e percebe, pela veia que lhe pulsa na
testa e pela boca cerrada, que ele está a tentar conter um dilúvio de emoções.
– Costurar lençóis foi o trabalho que tive em Saint-Nazarius – continua
Elodie. – Era basicamente o que sabia fazer quando saí. Mas estou muito
mais feliz na charcutaria.
Maggie lança um olhar a Gabriel, que ele não corresponde.
– Eu tenho tantas perguntas – diz Elodie, voltando-se para Maggie. – Era
muito chegada à minha mãe? Sabia de mim?
– Sim, eu sabia de ti – responde Maggie, incomodada.
– Como é que ela era?
– Era muito nova.
– Os pais dela obrigaram-na a dar-te para adoção – acrescenta Gabriel.
– Eles achavam que serias adotada imediatamente – continua Maggie. –
Toda a gente achava que sim. Mas isso foi antes de converterem os orfanatos.
– Essa parte do artigo era verdade – diz Elodie. – O dia da mudança de
vocação foi o dia em que a minha vida acabou.
Todos ficam em silêncio. Maggie tem de cerrar os olhos para conter as
lágrimas.
– Eles disseram-nos que éramos loucos – conta Elodie. – E pronto. A partir
daí, passámos a ser.
– O que te fez contar a tua história ao jornal?
– Foi ideia da minha amiga Marie-Claude. Ela pensou que me ajudaria com
a minha raiva. – Ri-se alto, um riso escarninho. – Mas aquele artigo estúpido
deixou-me ainda mais furiosa. – Tira um cigarro da bolsa. – Importam-se que
fume?
– Não, estás à vontade.
Ela acende o cigarro e inala profundamente.
– A intenção da Marie-Claude era boa – prossegue ela, sacudindo uma
nuvem de fumo da frente do rosto. – E tudo acabou por se resolver, porque
vocês encontraram-me.
Enquanto ela fala, Maggie não consegue pensar em mais nada além de
como lhe vai contar a verdade.
– Tens namorado? – pergunta Gabriel a Elodie.
Provavelmente na esperança de que o cuidado e a proteção de um homem
de bem possam, de alguma forma, redimir a vida trágica. Só um homem para
pensar assim, conclui Maggie, e sentir-se melhor.
– Não. Mas tenho uma filha – responde Elodie, com naturalidade. – O
nome dela é Nancy.
Uma filha?
– Tem três anos.
A mesma idade de Stephanie. Maggie fica sem reação. Três anos da vida
da minha neta perdidos, pensa, com tristeza.
– O pai dela estava de partida para o Vietname quando nos conhecemos –
explica Elodie. – Ele nem sequer sabe da Nancy. Nem sei se ele está vivo.
– Tentaste encontrá-lo?
– Não. Não sei o apelido dele.
Maggie observa o queixo de Gabriel a retesar-se e diz:
– Tens uma fotografia dela?
– Não. Ela é muito bonita e confiante. Não é nada parecida comigo.
– Tenho a certeza de que é muito parecida contigo – diz Maggie,
encontrando a voz.
Elodie olha para o chão, com o joelho a tremer de nervoso.
– Quem cuida dela enquanto estás a trabalhar? – pergunta Clémentine.
– A minha vizinha.
– E ganhas o suficiente para sustentar as duas? – intervém Maggie, incapaz
de se conter.
– Vamos vivendo – responde Elodie. – Estou a receber o subsídio da
Segurança Social, o que ajuda.
Maggie acena com a cabeça, sem saber o que dizer. Não se atreve a olhar
na direção de Gabriel com receio de explodir em lágrimas.
– Estou tão grata por me terem encontrado – confessa Elodie. – Eu não
queria que a Nancy crescesse sem família, como eu. Eu tinha esperança que
acabasse por encontrar uns primos ou algo do género, uma tia ou um tio
amável. – Olha diretamente para Maggie. – Tem filhos?
– Sim – responde Maggie. – Um menino e uma menina.
– Uau! Eu tenho primos.
Maggie não diz nada.
– Quantos anos tinha a minha mãe quando me teve? – pergunta-lhe Elodie.
– Dezasseis.
– Eram chegadas? Não chegou a dizer-me.
– Sim.
– Conheceu o meu pai? – persiste Elodie.
– Não – responde Maggie, não se atrevendo a olhar para Gabriel.
– Sabes mais alguma coisa sobre os teus pais? – pergunta ele a Elodie.
– Só que a minha mãe morreu – responde ela.
– Quem te disse isso?
– A irmã Ignatia. Era a encarregada da nossa enfermaria. Ela mostrou-me a
minha pasta e disse que a minha mãe tinha morrido pelos seus pecados.
O coração de Maggie contrai-se. Morde o lábio inferior para se forçar a
manter o silêncio.
– Quando é que ela te disse isso? – pergunta-lhe Gabriel, controlando a
fúria de maneira impressionante.
– Quando eu tinha onze anos – responde Elodie. – Logo depois de o
médico me entrevistar. Foi quando começaram a enviar muitos dos órfãos
para lares de acolhimento. Chegaram à conclusão de que afinal não éramos
loucos.
Gabriel acaba de beber a cerveja. Os dedos na lata tremem.
– Eu tive de ficar em Saint-Nazarius porque a minha mãe estava morta e
ninguém queria uma adolescente – acrescenta Elodie, em tom inexpressivo.
– Desculpem-me um momento. Eu volto já – diz Maggie, levantando-se
abruptamente.
Lá em cima, no quarto, senta-se na cama. Gabriel aparece alguns minutos
depois.
– Se o que a Elodie está a dizer for verdade – diz ela antes mesmo de ele
entrar pela porta –, então a irmã Ignatia deve ter-lhe dito que eu estava morta
logo depois de termos ido a Saint-Nazarius à procura dela.
Gabriel abana a cabeça, impotente.
– Ela disse-me que a Elodie tinha morrido – continua Maggie. – E depois
disse à Elodie que eu estava morta, só para nos manter afastadas. Porquê?
Porquê?
– Juro que vou atirar um cocktail molotov àquela merda de enfermaria do
hospital – pragueja ele, sentando-se ao seu lado.
– Eu não sei o que fazer, Gab.
– Vamos descer e dizer-lhe que somos os pais dela.
– Estou cheia de medo.
– Medo de quê?
– De que ela me odeie. Olha para ela, Gab. Ela é... reparaste nos olhos
dela? Nunca vi tanta tristeza em alguém tão jovem. O artigo no Journal era
pura mentira.
– Ela teve uma vida difícil, Maggie. Nós sempre soubemos disso. Mas ela é
forte. É lutadora, como a mãe.
– Não posso sequer imaginar o que ela passou. Nem quero. Ela coxeia. E
aquela cicatriz no olho? É culpa minha.
– O que lhe aconteceu naquele sítio não é culpa tua.
– O facto de ela lá ter ido parar é culpa minha – argumenta ela. – Tu sabes
que sim e tenho a certeza de que uma parte de ti me odeia por isso também.
Gabriel suspira e acende um cigarro.
– Já tivemos esta conversa, Maggie. Eu já fiz as pazes com a escolha que
fizeste há muito tempo.
– O que ela sofreu nunca poderá ser desfeito. Isto é quem ela é agora.
– Tu não sabes quem ela é. Ainda não sabes nada sobre ela.
– Tenho medo de saber – diz Maggie, com teimosia infantil.
– Eu vou buscá-la – declara ele, levantando-se. – Está na hora.
Maggie não responde, mas não o impede de sair.
Momentos depois, ouve-se uma batida suave na ombreira da porta e Elodie
entra no quarto com óbvia apreensão.
– Passa-se alguma coisa? – pergunta ela, com a voz tímida e assustada.
– Entra – convida Maggie, forçando-se a um tom mais leve.
Elodie aproxima-se.
– Senta-te aqui – diz Maggie, dando-lhe espaço.
Elodie pestaneja nervosamente, hesitando. Ela não confia em Maggie.
Provavelmente não confia em ninguém.
Maggie fita-a um longo tempo sem falar. Daria qualquer coisa para a
abraçar.
– Eu sei que este é um dia importante para ti – começa ela. – Conheceres a
tua tia...
– Seria mais importante se estivesse a conhecer a minha mãe.
Maggie mexe-se nervosamente na cama e olha para o chão.
– Tenho uma coisa para te dizer – continua ela, hesitante. – Tu estás a
conhecer a tua mãe.
– Hã... o que quer dizer? – quase grita Elodie. – Aquela outra senhora,
Clémentine. É ela a minha mãe?
– Eu sou a tua mãe, Elodie.
Elodie paralisa. Nos seus olhos há vislumbres passageiros de choque,
descrença, incredulidade.
Ficam as duas sentadas muito tempo em silêncio, as lágrimas a deslizarem
pelas faces de ambas.
– Não acredito em si – diz Elodie, por fim. – Não pode ser.
– Eu sou a tua mãe – afirma Maggie, mais resoluta, desta vez. – Tu
nasceste no dia 6 de março de 1950. Era uma noite de domingo.
– Não é possível. A minha mãe morreu...
– Eu sei que a freira te disse isso, mas não é verdade – interrompe Maggie
gentilmente.
Um estranho som escapa de Elodie, um som gutural, vindo das entranhas,
um som torturado que despedaça o coração de Maggie.
– Essa freira disse-me a mesma coisa – continua Maggie. – Disse-me que
tu tinhas morrido.
– A irmã Ignatia? Quando?
Maggie pega na mão da filha, que fica pousada mole na sua.
– Elodie! Antes de mais, achas que posso abraçar-te?
Elodie acena com a cabeça, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto, e as duas
atiram-se nos braços uma da outra. O corpo de Maggie entrega-se
completamente ao abraço, o coração a explodir, os músculos e os braços a
relaxar num alívio indescritível. Há uma quebra imediata da tensão, a
libertação de uma vida inteira de constante preocupação que se tornara tão
natural como respirar. Não se sente tão completa e em paz desde o dia em que
deu à luz aquela criança.
– Não sabe o quanto esperei por este momento – soluça Elodie, a voz
abafada contra o pescoço de Maggie.
– Sim, sei – responde Maggie, soltando-a. – Não se passou um dia em vinte
e quatro anos em que eu não tenha pensado em ti, minha filha.
– Quando é que a irmã Ignatia lhe disse que eu tinha morrido?
– Nós fomos a Saint-Nazarius em 1961 à tua procura – conta-lhe Maggie. –
Eu já te procurava há muito tempo. Primeiro, fui ao orfanato.
– Ao Saint-Sulpice?
– Sim. Mas, nessa altura, já era um hospital.
– Falou com a irmã Alberta? – quer saber Elodie, com os olhos cheios de
novas lágrimas. – Ela foi amável comigo. Eu adorava-a. Lembro-me de que
as freiras costumavam dizer que era a casa das meninas indesejadas, mas não
era um mau sítio antes de se tornar um hospital psiquiátrico.
Maggie esforça-se para conter a raiva que sente presa na garganta. Aquela
palavra novamente, «indesejada», como se ela fosse uma boneca rejeitada.
– Ela estava lá? – pergunta Elodie. – A irmã Tata?
– Eu só falei com o zelador – explica Maggie. – Ele sugeriu que eu
escrevesse ao Governo para obter informações, o que fiz. Finalmente
consegui um documento a indicar que dois grupos de órfãos tinham sido
transferidos para o Mercy e para o Saint-Nazarius em 1957. O Gabriel e eu
fomos aos dois.
– E ela disse que eu estava morta?
Maggie acena com a cabeça em concordância.
Elodie tira o maço de cigarros do bolso da frente e acende um, os dedos a
tremer.
– Aquela mulher era um monstro. Mas dizer às duas que a outra estava
morta, quando podia tê-la deixado levar-me para casa...
– Também não consigo compreender tanta crueldade – murmura Maggie. –
Eu só... não há palavras.
A dor é sufocante, daquelas que tiram o ar. De repente, Maggie lembra-se
do cobertor de lã áspero na casa de Deda e Yvon, da sensação no corpo
quando estava a ser violada. Como se estivesse a ser asfixiada e não
conseguisse respirar.
– Eu sei que é muita coisa para assimilar – diz ela. – Deves ter muitas
perguntas para me fazer.
– Porque é que me abandonou? – pergunta Elodie, a voz cortando a dor
partilhada.
O ar escapa do quarto. Aqui está, pensa Maggie.
– Eu tinha quinze anos quando engravidei – começa ela, fitando
diretamente os olhos azuis desolados da filha. – Não me deixaram ficar
contigo. Não é uma história muito original, mas é a verdade. O meu pai
tratou... – quase deixa escapar «de te vender», mas contém-se a tempo – ... de
tudo para que fosses adotada por um casal que não podia ter filhos. Mas
houve algumas complicações quando nasceste e o casal mudou de ideias.
Foste enviada para Saint-Sulpice quando ficaste bem de saúde.
Elodie apaga o cigarro no cinzeiro ao lado da cama. Funga e limpa o nariz.
Como deve ser difícil para ela ouvir aquilo, ainda mais difícil do que para
Maggie dizê-lo.
– Eu dei-te o nome Elodie – continua Maggie. – É um tipo de lírio. É muito
resistente...
A voz esvai-se. Elodie observa-a, como se esperasse outra coisa.
– Comecei a tentar encontrar-te depois do meu terceiro aborto – prossegue
Maggie. – Em 1959. Sentia-me culpada pelos abortos espontâneos. Pensava
que Deus estava a castigar-me por ter aberto mão de ti. Nunca deixei de
pensar em ti. Nunca me senti completa. Nunca. – Limpa os olhos à manga da
camisa. – Eu sei o quanto sofreste, mas...
– Não – interrompe Elodie. – Não sabe.
Maggie morde o lábio.
– Quem é o meu pai?
Maggie respira longa e nervosamente.
– É o Gabriel – confessa ela, tentando manter a voz e o olhar firmes.
As costas de Elodie retesam-se.
– Ele? – pergunta ela, apontando para a porta. – O seu marido?
– Sim.
– Casou-se com ele?
– Sim, mas...
– Porque não puderam ficar comigo então? – insiste ela, obviamente
magoada. – Se estavam juntos e se amavam, porque não o fizeram?
– É complicado – tenta Maggie, perseverando diante do choque da filha. –
Os meus pais mandaram-me morar com a minha tia e o meu tio noutra cidade
para me afastarem do Gabriel.
– Porquê?
– O meu pai queria outra pessoa para mim – diz ela. – Alguém com
estudos, de uma família melhor. Descobri que estava grávida enquanto
morava com os meus tios, por isso, fui obrigada a ficar lá até tu nasceres.
– O Gabriel sabia que estava grávida?
– Eu não lhe contei – confessa Maggie.
– Não podia ter-se casado com ele?
A maneira como Elodie o diz faz tudo parecer tão simples, tão lógico.
Talvez pudesse ter sido.
– Eu não achei que tivesse escolha – explica Maggie a medo. – Eu só tinha
quinze anos.
Elodie reflete sobre isso, mas a dor e perplexidade no seu rosto é censura
suficiente.
– Eles disseram-me que eu não podia ficar contigo e que era assim que as
coisas tinham de ser – diz Maggie. – Foi em 1950. Eu não podia ir contra a
decisão deles.
Elodie permanece em silêncio.
– Terminei a minha relação com o Gabriel naquele verão – continua
Maggie. – Ele mudou-se para Montreal e deixei de ouvir falar dele.
Acabámos os dois por nos casarmos com outras pessoas.
– Como é que se reencontraram? E quando?
– As nossas famílias eram vizinhas – explica Maggie. – Voltámos a
encontrar-nos cerca de dez anos depois. Reatámos a amizade e depois... bem,
as coisas tornaram-se um pouco complicadas durante algum tempo, mas, por
fim, divorciámo-nos os dois das pessoas com quem estávamos e começámos
uma vida juntos.
– Então os seus filhos são o meu irmão e a minha irmã?
– Sim – confessa Maggie, num tom quase de culpa. – O James e a
Stephanie.
– Mon Dieu!
– Eu sei que é muita coisa para assimilar – diz Maggie, voltando a pegar
nas mãos da filha. – Se ao menos eu pudesse convencer-te de como me senti
culpada todos os dias da minha vida desde que abri mão de ti. Quem me dera
ter ficado contigo e com o Gabriel e que nós tivéssemos ficado sempre
juntos. Quem me dera não ter tido tanto medo. Mas eu tinha. Estava tão
apavorada.
– Compreendo – diz Elodie, mas a voz é sumida.
– Eu espero que consigas – sussurra Maggie, a voz embargando-se.
Soluçam juntas durante um tempo, as mãos de Elodie na proteção das de
Maggie.
– Sou parecida com eles? – pergunta Elodie, limpando os olhos. – Com os
seus filhos?
– Sim, acho que há parecenças – afirma Maggie. – Gostarias de os
conhecer? Eu não tinha a certeza se querias.
– Claro – interrompe Elodie. – Toda a vida ansiei por ter uma grande
família. Irmãs e irmãos, avós, tios, primos... é claro que quero conhecê-los.
Maggie puxa Elodie para si e abraça-a com força. Elodie deixa Maggie
segurá-la assim durante muito tempo, até que Maggie finalmente se afasta e
fita os olhos assombrados da filha. Acaricia-lhe o longo cabelo loiro e
repousa-lhe a palma da mão na face.
– És tão linda – sussurra ela.
– Não, não sou – diz Elodie. – Mas a senhora é. Nunca a imaginei com
cabelo preto.
Maggie levanta-se e puxa Elodie com ela. Leva-a até ao espelho por cima
do toucador e ficam lado a lado, a mirar os seus reflexos.
– Há definitivamente traços de família – diz Maggie. – Não a nossa cor de
cabelo, mas repara. – Aponta para as sobrancelhas e narizes. – E a forma dos
nossos olhos é exatamente igual.
– Talvez – admite Elodie, ainda não convencida.
– Também és um pouco parecida com as minhas irmãs – acrescenta
Maggie. – Eu tenho três irmãs e um irmão. Se querias uma grande família, é
isso que vais ter.
Elodie ainda não tirou os olhos do espelho, como se não pudesse acreditar
no que vê.
– É realmente a minha mãe? – pergunta ela. – Temo que se desviar o olhar,
desapareça.
– Eu estou aqui e não vou a lugar nenhum – assegura-lhe Maggie.
Elodie estende a mão e toca no espelho.
– Eu sei que é pedir muito – diz Maggie, ainda a olhar para o espelho –,
mas achas que és capaz de me perdoar?
Elodie hesita antes de responder, levando algum tempo a refletir. O silêncio
é interminável. Finalmente, diz:
– Era muito jovem. O que mais poderia ter feito? Ninguém sabe melhor do
que eu que é pecado ter um filho fora do casamento.
– É mais do que eu poderia esperar – diz Maggie. – Obrigada.
Elodie repousa a cabeça no ombro de Maggie. Maggie não se move, aliás,
mal respira. Quer ficar exatamente assim o máximo de tempo possível.
– Maman – diz Elodie.
Maggie entende que ela está a dizer a palavra em voz alta para a saborear e
que nenhuma resposta é necessária. Maman.
– Também vejo o teu pai na tua cara – diz Maggie com carinho. Depois de
mais alguns minutos ao espelho, sugere: – Vamos descer?
Saem do quarto e descem. Elodie aproxima-se da cadeira onde Gabriel as
aguarda e diz:
– Allô, papa.

Muito depois de todos terem ido dormir, Maggie sai da cama e atravessa pé
ante pé o corredor. Detém-se no quarto de James para espreitar e vê, pela luz
azul e verde do candeeiro de lava, que as pernas estão penduradas da cama e
o corpo a subir e a descer por baixo dos cobertores. No quarto ao lado, vê
Stephanie a dormir em posição transversal na cama e a sua boneca Raggedy
Ann no chão. Maggie pega nela, coloca-a debaixo do braço de Stephanie e
beija a bochecha quente da menina.
Finalmente, Maggie chega ao fim do corredor e estaca à porta do quarto de
hóspedes, onde a outra filha – a sua primogénita – está a passar a noite. Fica
ali parada um momento, dominada pela emoção. Nunca pensou ter todos os
filhos a dormir debaixo do mesmo teto.
Abre a porta o mais silenciosamente possível e paralisa ao ouvir os soluços
suaves que vêm de dentro. Pensa em consolar Elodie, mas rapidamente afasta
a ideia.
Elodie pode preferir ficar sozinha; afinal de contas, ela sempre esteve
sozinha. Uma estranha a invadir-lhe o quarto a meio da noite pode deixá-la
desconfortável. E Maggie é uma estranha, mãe ou não. Tem de se lembrar
disso. Tem de se lembrar de ir devagar.
Por isso, Maggie recua e desce as escadas até à cozinha. Serve-se de um
copo de vinho, acende um cigarro de Gabriel e senta-se à mesa. Não tem
sono. Um torpor bem-vindo tomou conta dela, abafando parte da intensidade
dos acontecimentos do dia, mas não consegue parar os pensamentos.
O que é que eu deixei que lhe acontecesse? A pergunta percute como um
tambor na sua cabeça.
Elodie está lá em cima a chorar na almofada. Quantas lágrimas já terá
derramado na vida? Quantas noites chorou até adormecer? Qual a profundeza
das suas feridas? Até onde vai o luto na sua alma? E tudo o que Maggie pode
fazer é ficar ali sentada, impotente, sabendo que é a causadora de tudo isso.
O seu maior medo é que todo o amor do mundo – que Maggie e Gabriel
estão preparados para dar – não seja suficiente para compensar o que fizeram
a Elodie ou restaurar o que foi destruído.
Maggie levanta-se e pega na garrafa de vinho do frigorífico. Mais vale
acabá-la. É a que sobrou do jantar. Todos beberam demasiado, em parte
como celebração, em parte como alívio da tensão. Enche o copo e repara na
caixa dos objetos do pai no chão, perto da despensa. Tirou-a no outro dia, na
perspetiva da visita de Elodie.
Vai até lá, senta-se no chão com o vinho e o cinzeiro e começa a fazer
pequenas pilhas organizadas do conteúdo – velhos livros de agricultura,
livros de gestão e inspiradores, postais e desenhos que os filhos lhe
ofereceram ao longo dos anos.
Um dia contará a Elodie sobre o avô, talvez até a leve à loja de sementes,
onde ele era o centro de tudo. Gostaria que Elodie soubesse que ele era muito
mais do que a pessoa que a afastou da própria mãe, que ele era,
fundamentalmente, um bom homem a tentar proteger a sua filha. Que,
incessantemente, tentou redimir-se do seu erro, sempre com gestos discretos,
mas significativos, que acabaram por dar fruto. Primeiro, enviou Elodie para
o mundo com o nome escolhido por Maggie – um detalhe aparentemente
insignificante, mas importante o suficiente para tornar possível o reencontro;
depois, tentou tirá-la do orfanato; e, por fim, ele lembrou-se do anúncio no
jornal que as reuniu.
Há uma simetria perfeita em tudo isso, pensa Maggie, um círculo amoroso
e simbiótico que se completa e que as trouxe a este momento. A mãe
costumava dizer: Deus dá com uma mão e tira com a outra.
Maggie é recordada disso nesse momento. O pai tirou-lhe a filha com uma
mão e depois deu-lha com a outra.
O teu avô era conhecido como o Homem das Sementes...
Apesar de tudo, Maggie acabou por se sair bem. É mãe de três filhos, todos
eles ali nessa noite na casa que tanto ama, é mulher de Gabriel, adora
sementes e línguas, francesa de sangue inglês, inglesa de sangue francês. Não
é totalmente uma coisa nem outra, como sempre quis ser. É arrogante e
humilde, audaciosa e tímida, viva. Ainda está a crescer e sempre estará.
Tira o cobertor de bebé e a pulseira de hospital de Elodie da caixa e,
depois, pega num maço de fotografias amarradas com um elástico. Demora-
se nelas um pouco, perdida em nostalgia agridoce, até reparar numa
fotografia do pai no meio de um jardim que não reconhece. As flores
chegam-lhe até aos joelhos e há uma vedação de madeira atrás dele. Deve
estar nos seus trinta e muitos anos, traz suspensórios e um panamá branco na
cabeça que esconde a calvície prematura. Tem um rosto redondo, um bigode
revirado e segura um charuto entre os dedos. Parece feliz, como se aquele
jardim fosse o seu lugar preferido no mundo, a comungar com a natureza em
todo o seu esplendor selvagem.
É uma expressão que Maggie reconhece de quando costumava observá-lo a
trabalhar na loja de sementes – total e completamente no seu habitat. Um
lugar onde Maggie se viu muitas vezes nos últimos anos e onde sabe que
voltará a estar.
CAPÍTULO 56

Elodie

E lodie ouve a porta a abrir e sustém a respiração. Sabe que é a mãe. A sua
mãe. Não para de repetir a palavra na cabeça. Já não é uma ideia
hipotética ou um delírio infantil. A mãe está ali para a abraçar no escuro, para
lhe enxugar as lágrimas e afastar a dor e os pesadelos.
– Maggie? – sussurra ela, mas a voz sai-lhe muito mansa, sem volume
suficiente.
E tão de repente a porta se abriu como se fecha, e Elodie ouve Maggie
descer as escadas. A tristeza invade-a. Maggie deve ter ouvido Elodie a
chorar e fugiu.
Elodie fica deitada muito quieta. Não se tinha dado conta do quanto ansiava
pelo consolo da mãe. Mesmo numa casa cheia de pessoas, neste lindo quarto
com o papel de parede às flores, a grande cama de ferro e a colcha de retalhos
vermelha, ainda se sente assustada e estranhamente vazia. O ressentimento
começa a fervilhar dentro dela e recorda a si mesma que, apesar de todas as
palavras amáveis e a hospitalidade, provavelmente ela é apenas um incómodo
para eles.
Tenta imaginar como teria sido crescer nesta linda e acolhedora casa cheia
de amor. Aquela menina, Stephanie – a sua irmã, da mesma idade de Nancy,
com as faces rosadas, cheia de bravura e boa disposição – vai crescer com
tudo o que foi negado a Elodie. Devia ter sido eu, pensa ela, com uma ponta
de azedume. Eu cheguei primeiro.
Fica ali a pensar durante muito tempo, ou assim lhe parece. Pode ouvir os
grilos lá fora, fazendo-a lembrar dos primeiros anos em Saint-Sulpice – algo
que tinha esquecido até então. Costumava adorar ouvi-los a cantar do lado de
fora da sua janela. Não havia outros sons a sobreporem-se, apenas o silêncio
perfeito de uma noite campestre. A irmã Tata explicou-lhe que o barulho
chilreante provinha dos machos a esfregar as asas. Como pode ter-se
esquecido disso?
Não consegue adormecer. Como poderia? Tudo o que quer é ir para casa.
Sente a falta do corpinho quente de Nancy, aninhada contra ela, a doce
respiração contra a sua pele.
Então a porta abre-se novamente e, dessa vez, Maggie entra no quarto. O
chão range quando se aproxima da cama. O peso dela na beira do colchão, a
mão no rosto húmido de lágrimas de Elodie.
– Elodie? – sussurra ela. – Preferes ficar sozinha?
– Não – confessa Elodie, numa voz infantil.
– Fico contente – diz Maggie. – Eu estou aqui.
Elodie estende a mão para ela.
– Não vá – pede, e quando ouve os batimentos do coração de Maggie, sente
a amargura desaparecer.
– Claro que não – promete Maggie. – Eu só não sabia se me querias
contigo.
– Eu sempre a quis comigo.
Maggie senta-se ao seu lado na cama e apoia a cabeça numa almofada.
– Posso pedir-lhe para escrever a minha história? – pergunta-lhe Elodie. –
Contá-la exatamente como se passou?
– Sim – responde Maggie sem pensar duas vezes. – Claro que sim.
– E será publicada?
– Com toda a certeza – afirma ela, sabendo que assim será.
Ela vai lutar por isso. Deus vai ajudá-la, se for necessário. A ideia parece-
lhe tão certa como qualquer coisa que algum dia meteu na cabeça fazer.
– Temos de o fazer o mais depressa possível – diz Elodie. – Eu quero que
seja publicada enquanto a irmã Ignatia ainda estiver em Saint-Nazarius. E
quero que use o nome verdadeiro dela e que nós as duas lhe vamos entregar o
livro pessoalmente.
– Sim – concorda Maggie, o coração acelerado de entusiasmo.
A perspetiva de um novo projeto que exigirá que trabalhem juntas durante
muitos meses, de terem as vidas entrelaçadas, da possibilidade de aprofundar
a relação e de, ao mesmo tempo, expor o agressor de Elodie é emocionante.
– Obrigada – diz Elodie. – Vou dar-lhe o meu caderno de notas para
começar. Escrevi nele absolutamente tudo.
– Talvez possas morar aqui connosco enquanto trabalhamos nisso – sugere
Maggie. – Eu não quero pressionar-te, mas a Stephanie e a Nancy são da
mesma idade...
Elodie mal pode acreditar na oferta.
– A Nancy adoraria viver aqui no campo – afirma ela. – Deve ser um bom
sítio para crescer.
– E podias ficar em casa com ela – sugere Maggie. – Pelo menos, até ela
começar a ir para a escola e, se quiseres, podes trabalhar na minha loja.
– Parece-me uma boa ideia – concorda Elodie, pensando no seu
apartamento em Pointe Saint-Charles e no Len’s Deli, e no quanto sentiria
falta de trabalhar lá.
– Não quero assoberbar-te – acrescenta Maggie. – Temos todo o tempo do
mundo para decidires.
Maggie coloca os braços em volta de Elodie e acaricia-lhe o cabelo. Ficam
assim muito tempo, completamente acordadas no escuro.
– Não vou conseguir dormir esta noite – declara Elodie.
– Quando eu era pequena, o meu pai costumava recitar-me um poema para
me ajudar a dormir – sussurra Maggie.
– Diga-mo – pede Elodie.
– Deixa-me ver se consigo lembrar-me. «Johnny Appleseed, Johnny
Appleseed... – começa ela, usando a tradução francesa, Jean Pépin-de-
Pomme.

Naquela sacola às costas


No saco de que tanto gosta
Futuros pêssegos, peras e cerejas
Futuras uvas e framboesas vermelhas,
Sementes e almas de árvores, coisas preciosas,
Emplumadas com asas microscópicas...

Elodie fecha os olhos. Talvez eu tenha morrido, pensa ela. Os sentimentos


dentro dela são bons de mais, desconhecidos. Também há tristeza, claro. Isso
ela aceita como o lado mais natural e inevitável da sua vida. A tristeza vive-
lhe nas células, juntamente com o sentimento de injustiça e de indignação em
relação à irmã Ignatia e a Deus. Essas coisas não podem ser ultrapassadas.
Fazem parte do seu ser, da mesma maneira que os braços e as pernas, os seus
órgãos e Nancy. Mas, nessa noite, há algo mais: esperança.
Agora tem uma família, a cujo leme está uma mãe linda, que vive e que
respira. Uma mãe que quer fazer parte da vida dela, que a procurou mais do
que uma vez e que deseja perdão e uma segunda oportunidade; uma mãe que
foi forçada a abandoná-la e que depois tentou encontrá-la.
Elodie pode viver com isso. Nunca vai recuperar aqueles vinte e quatro
anos – e sabe que vai carregar o fardo do seu passado enquanto for viva –,
mas, pelo menos, agora tem um futuro como parte de uma família.
– «O coração de uma criança conhece toda a natureza, e a maçã, verde,
vermelha e branca» – continua Maggie. – «Sol de cada dia e de cada noite, a
maçã aliada ao espinho, filha da rosa...»
Elodie não entende o poema. Mas não precisa de entender. O efeito não
diminui por não saber.
AGRADECIMENTOS

Grande parte dos conhecimentos que adquiri sobre a dramática história dos
órfãos da era de Duplessis vieram do magnífico livro de Pauline Gill, Les
Enfants de Duplessis (Quebec Loisirs Inc., 1991). A dilacerante – e verídica –
história de Alice Quinton ajudou-me a compreender a carga física, espiritual
e emocional que estes órfãos tiveram de suportar ao longo da vida, mesmo
depois de viverem em liberdade. Tenho para com Alice Quinton uma dívida
de gratidão por ter partilhado a sua história com Pauline Gill, pela sua
candura, honestidade, coragem e resiliência.
A minha maior dívida de gratidão é para com o inigualável Billy Mernit, o
meu fantástico mentor e primeiro leitor/editor: se não fosse a tua visão e o teu
discernimento quanto àquela que seria a verdadeira história – e se não me
tivesses desafiado a contar a história de Elodie – este livro permaneceria
ainda na gaveta. Um trabalho de vinte anos, e bastou o teu dom para contar
histórias e para a edição para me guiar na direção certa. Mais uma vez – já o
disse antes – todos os escritores deveriam ter um Billy.
Devo também um tremendo agradecimento à minha persistente, incansável
e querida agente e amiga, Bev Slopen, que conheci há vinte anos, quando lhe
mostrei a primeira versão do manuscrito. Fomos trabalhando juntas no
«Homem das Sementes» ao longo de duas décadas, e nunca me despediste!
Sinto-me abençoada por te ter tido ao meu lado durante todos esses anos. Não
há muitos agentes que o fizessem. Acho que já devemos ser oficialmente
família uma da outra.
MUITO obrigada a Jennifer Barth, a minha magnífica editora na
HarperCollins. Sinto-me abençoada pelo teu apoio e orientação, e é sempre
uma alegria trabalhar contigo. Mais uma vez, obrigada por teres cuidado tão
bem deste livro em especial – foi muito importante para mim. Libertaste-o,
com o seu novo título e as tuas sugestões brilhantes, permitiste que ele voasse
muito para além daquilo que eu teria esperado.
Agradeço também às equipas de Marketing mais maravilhosas de sempre,
tanto na HarperCollins US como no Canadá: Mary Sasso, Katherine Beitner,
Sabrina Groomes, Cory Beatty, Leo Macdonald e Sandra Leef. O último ano
foi verdadeiramente repleto de entusiasmo, surpresas e alegria. Estou ansiosa
para ver o que este nos trará.
Ao meu editor «de serviço» e melhor amigo, Miguel, o melhor será fazer
um copy e paste dos agradecimentos do livro anterior (continuam a valer
ainda hoje): obrigada por ires buscar os miúdos e os levares a todo o lado na
cidade, e basicamente por tratares da minha vida toda de forma a que eu
possa continuar a ser A Escritora. Adoro-te. Jessie e Luke, não contribuíram
muito para o processo, mas os vossos mimos ajudaram, e muito.
E finalmente, quero agradecer à minha mãe, Peggy, a minha fonte de
inspiração para a personagem de Maggie. Todas aquelas entrevistas e longas
conversas, tudo o que partilhaste comigo acerca da tua vida em Montreal,
todo o teu feedback e as tuas leituras deram finalmente fruto. Só queria que
estivesses aqui para assistir à chegada do livro ao mundo. Vou assumir que o
estás a fazer, algures. Sinto a tua falta.

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