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– John Clare
PRÓLOGO
1950
Q uem planta uma semente planta uma vida. É uma frase que o pai de
Maggie repete várias vezes, citando os seus estimados Anuários de
Agricultura de 1940 a 1948. Ele não se limita a plantar sementes; dedica-se a
elas como um pregador se dedica a Deus. É conhecido na cidade onde vive
como o Homem das Sementes – um título pretensioso, mas que soa nobre.
Maggie adora ser a filha do Homem das Sementes. Confere-lhe um ar de
prestígio – ou, pelo menos, assim foi um dia. Tal como a província onde vive,
na qual os franceses e ingleses disputam perpetuamente o primeiro lugar, a
sua família também tem dois lados bem distintos. Maggie compreendeu
muito cedo que era necessário enterrar uma estaca, fazer uma aliança. Aliou-
se ao pai, e ele a ela.
Quando era ainda muito novinha, ele costumava ler-lhe passagens da sua
impressionante coleção de livros de horticultura. O preferido dela era o The
Gardener’s Bug Book1. Continha um poema na primeira página, que sabia de
cor. O escaravelho da roseira é uma praga na rosa; assim são aqueles que
veem o escaravelho e não a rosa. Enquanto outras crianças eram embaladas
com contos de fadas, as suas histórias de embalar eram sobre sementes e
jardinagem: sobre o pioneiro americano, Johnny Appleseed2, a levar as suas
sementes das prensas de sidra da Pensilvânia, a percorrer centenas de
quilómetros para cuidar dos seus pomares, a partilhar a riqueza das suas
maçãs com os colonos e os indianos; ou sobre Gregor Mendel, o monge
austríaco que plantara ervilhas no jardim do mosteiro, que estudara as
características de cada geração e cujas observações, dissera-lhe o pai,
constituíam a base do nosso conhecimento atual sobre genética e
hereditariedade. Triunfos de tal natureza, afirmara o pai, começam sempre
com uma única semente.
– Como fazes as sementes que vendes? – perguntou-lhe ela certa vez.
Ele fitou-a, como se ofendido, e respondeu:
– Eu não faço as sementes, Maggie. São as flores que as fazem.
É o potencial de beleza que ele mais admira: o caule gracioso que ainda
precisa de crescer, a forma da folha, a cor da flor, a abundância do fruto.
Olhando para a mais simples semente na palma da mão, ele entende o milagre
que se dará quando ela servir o seu propósito.
Ele também aprecia a previsibilidade das sementes. O grão de milho, por
exemplo, produz sempre uma planta madura em noventa dias. O pai gosta de
poder confiar em tais factos, embora, ocasionalmente, as plantas cresçam
imperfeitas ou deformadas e isso o incomode profundamente, provocando-lhe
insónias, como se a própria semente o tivesse traído.
As histórias do pai foram sempre uma fonte de conforto para ela, quando
criança, e agora têm ainda mais significado, enquanto tenta adormecer nesta
cama estranha, neste corpo estranho. Aos dezasseis anos, Maggie tem uma
semente a crescer dentro dela e está quase madura. O bebé mexe-se e dá
pontapés com força, empurrando-lhe as paredes da barriga com os pés e
cotovelos, recordando-a da terrível transgressão, da vergonha que causou e da
reviravolta que provocou na sua vida confortável.
Lá fora, o céu escureceu. Ela tinha subido para fazer uma sesta à tarde, mas
já devia ser hora de jantar e ainda não conseguira adormecer. Pousa a mão na
barriga e sente de imediato as acrobacias inquietantes na palma da mão. Pelo
menos, não está sozinha neste lugar.
A tia chama-a para jantar e Maggie espreguiça-se. Relutante, acende a luz,
sai da cama e desce para os enfrentar.
Uma travessa de carne assada é colocada na mesa para o jantar de
domingo, acompanhada de outras, com cenouras, batatas e ervilhas. Uma
garrafa de vinho é aberta para os adultos. Pão fresco, manteiga macia, sal e
pimenta. Os pais dela vieram de visita. Maggie está feliz por ver o pai. Sente
falta dele, mesmo que ele a trate de forma diferente agora. Percebe que está a
fazer um esforço, mas há uma sombra nos seus olhos azuis sempre que olha
para ela, o que não é frequente. Falta convicção à tentativa de perdão. Ele não
consegue superar o sentimento de traição.
Maggie vê o tio a afiar a faca com toda a cerimónia e cortar fatias finas de
carne rosada que sangra para a porcelana branca. As irmãs dela estão aos
segredinhos e risinhos, excluindo-a. Alguém pergunta se há rábano. Maggie
sente um jorro de líquido quente a escorrer-lhe por entre as pernas no exato
momento em que a mãe diz:
– Tabarnac 3, esqueci-me do rábano.
O vestido de Maggie está ensopado. As faces fervem de vergonha. Ela quer
fugir da mesa e correr para a casa de banho, mas o fluxo de líquido não
diminui.
– Eu fiz chichi – deixa escapar, levantando-se.
O líquido ainda lhe escorre pelas pernas, surpreendentemente inodoro,
formando uma poça no chão de madeira da tia.
Ela vira-se para a mãe, em pânico. As irmãs olham para o vestido
manchado com expressões perplexas. Por fim, a tia Deda exclama:
– Rebentaram-lhe as águas!
Nicole, a irmã mais nova, começa a chorar. A maman e Deda entram em
ação. Os homens afastam-se discretamente da mesa, sem dizer uma palavra.
Esperam com embaraço por instruções das mulheres.
– Ela entrou em trabalho de parto – diz a maman calmamente.
– Agora? – reage o pai de Maggie, olhando para o grande pedaço de carne
assada acabadinho de fatiar no centro da longa mesa de pinho. – Só estava
previsto para daqui a um mês.
– Estas coisas não têm hora marcada – riposta a maman. – É melhor ligares
ao doutor Cullen. Diz-lhe que vá ter ao hospital.
– O que está a acontecer? – pergunta Maggie. Ninguém a preparou para
este momento.
Deda apressa-se a colocar o braço rechonchudo no ombro de Maggie.
– Está tudo bem, cocotte – tenta tranquilizá-la. – O bebé só quer sair mais
cedo.
Nunca ninguém diz «o teu bebé». É sempre «o bebé». Até Maggie pensa
nele como «o bebé». Ainda assim, apesar de todo o caos que causou, ela não
está pronta para o deixar ir. Habituou-se a pensar nele como um aliado ou um
talismã, embora não exatamente como o seu futuro filho. É ainda muito
jovem e o conceito de maternidade é-lhe totalmente alheio. Mas também não
tem de o fazer. O bebé que nasce nessa noite só tem, na verdade, um
significado para ela: vai ficar livre da prisão na quinta dos tios e pode,
finalmente, ir para casa.
Sente uma contração e solta um rugido de dor.
– Está a chegar – diz a mãe. Está a chegar.
1 The Gardener’s Bug Book (O livro de insetos do jardineiro), 1946, da autoria de Cynthia Westcott
(1898-1983), patologista de plantas e especialista em rosas. (N. da T.)
2 John Chapman (1774-1845), mais conhecido como Johnny Appleseed (semente de maçã), foi um
viveirista americano que introduziu o cultivo das macieiras em vários estados norte-americanos. (N.
da T.)
3 Blasfémias como tabarnac (sacrário) ou calice (cálice) fazem parte do léxico francês específico do
Quebeque. Derivam de termos relacionados com a religião católica e são usados frequentemente para
enfatizar uma emoção. (N. da T.)
PARTE I
1948-1950
1948
Caminham juntos até casa em total silêncio. O pai de Maggie não faz
qualquer tentativa de leveza. Não há nenhuma das brincadeiras habituais,
apenas o peso da vergonha partilhada a pairar entre eles no ar frio. Quando
finalmente chegam a casa, Maggie corre para dentro.
A cozinha cheira a cravinho e a pimenta-da-jamaica. Ela vê três bolos de
açúcar alinhados no peitoril da janela. A mãe está ao fogão, a mexer uma
panela gigante de ragoût de boulettes. Uma tal quantidade de almôndegas
significa que vão ter visitas para o jantar.
– É melhor prepararem-se – diz a maman. – Devem chegar todos às sete.
– Quem são todos? – quer saber o pai.
– Eu disse-te que convidei os Dions e os Frechettes – responde ela,
impaciente, virando-se para lhe atirar um olhar de desaprovação.
Ainda não está a usar o corpete, o que deixa Maggie tão furiosa que tem de
desviar o olhar. Envergonha-se dos seios descaídos e da barriga flácida da
mãe, e deseja que ela tivesse feito um esforço maior para preservar a sua
beleza ao longo dos anos. O que aconteceu hoje na loja só pode ser culpa da
mãe.
– Não estou com disposição para festas – murmura o pai, evitando olhar
para Maggie. – Foi um dia muito longo.
– Põe a cerveja no frigorífico – diz a maman, ignorando-o. – Passaste por
ela no vestíbulo.
Mais tarde naquela noite, depois de todos se terem ido deitar, Maggie está
do lado de fora do santuário do pai. Observa o fumo do charuto que escapa
por baixo da porta e bate timidamente.
– Entra – diz ele.
Ela sempre adorou aquele espaço. É um mundo masculino, o retrato
perfeito do pai. Há peças de rádios na mesa e rádios feitos à mão – alguns
acabados, outros a meio da dissecção – espalhados pelo chão. Há um monte
de caixas de charutos vazias da House of Lords na estante que ele construiu,
ao lado de todos os seus livros: Manual para Jardineiros, Como Gerir um
Centro de Jardinagem, Árvores Autóctones do Canadá6, Como Deixar de se
Preocupar e Começar a Viver, de Dale Carnegie.
– O que te parece uma seleção de petúnias de várias cores para a capa do
catálogo da próxima estação? – pergunta-lhe o pai.
– Gosto.
– Lembras-te da capa do ano passado? – diz ele, entregando-lhe o catálogo
de 1948.
Ela abre-o e folheia as páginas.
28 de junho de 1949
Querido Gabriel,
Desculpa não ter podido despedir-me, mas não houve tempo. Fui
mandada para Frelighsburg, para trabalhar na fazenda de gado do
meu tio, sob o pretexto de a minha família precisar do dinheiro. Mas
todos sabemos que fui exilada aqui para me manterem longe de ti. Vou
escrever-te sempre que puder. Espera por mim, meu amor! Eles não
vão conseguir manter-nos separados!
Para sempre tua,
Maggie
1954-1961
Elodie
Maggie
–A
mercado.
quela não é a Angèle Phénix? – comenta Peter ao virarem para a
Ontario Street carregados com sacos de frutas e legumes frescos do
Maggie vive em Montreal com o irmão há vários meses. Tem sido uma
transição difícil da vida no campo e teve de se adaptar rapidamente.
Costumava pensar que a hostilidade entre franceses e ingleses era bastante
palpável na terra dela, mas ali, em Montreal, é algo volátil e em constante
fervilhar. Não há placas que esclareçam que língua deve ser falada onde; é
preciso ler nas entrelinhas e prestar muita atenção. Uma pessoa tem de
simplesmente saber para não ofender ninguém.
– Angèle! – exclama Maggie, genuinamente feliz por a ver.
Pousa os sacos no passeio e abraça a velha amiga.
– O que fazes em Montreal? – pergunta-lhe Angèle.
– Trabalho nos armazéns Simpson’s. Moro com o Peter.
Peter acena em cumprimento, com ar desinteressado.
– Vivemos em Lafontaine – continua Maggie. – Como é a escola de
enfermagem?
– Estou a adorar – responde Angèle. – Foi a escolha certa para mim. Eu não
teria dado uma boa freira. Estás com ótimo aspeto, Maggie.
Maggie agradece-lhe.
– Adoro a tua saia – elogia Angèle, admirando as flores de feltro que
Maggie colou no tecido. Ela pousa as compras no chão para tocar nas flores e
Maggie repara na primeira página do jornal La Presse que espreita do saco de
papel. A palavra «orfanatos» desperta-lhe a atenção.
Lê a manchete de onde está.
Orfanatos do Quebeque vão ser convertidos em hospitais psiquiátricos.
Maggie veio para Montreal para fugir ao passado. No entanto, ali está ele,
em parangonas na primeira página do jornal, só para a atormentar. Assola-a a
rapidez com que é atirada de volta àquele momento vergonhoso. Confrontada
uma vez mais com os segredos e escândalos que se esforçou tanto para
esquecer.
– Horrível, não é? – comenta Angèle, notando o olhar de Maggie para o
jornal. – Vinha a ler sobre isso no elétrico à saída do trabalho.
Maggie pega no jornal e passa rapidamente os olhos pelo artigo.
– Todos os orfanatos da província vão ser transformados em hospitais
psiquiátricos?
– Vai demorar algum tempo, mas, sim, é o que estão a fazer.
– É para não terem de educar as crianças – comenta Peter.
– Já sabias disto?
– Está em todos os noticiários.
– Vão começar pelas Sisters of Charity of Providence no próximo ano – diz
Angèle.
– Mas para onde vão todos os órfãos?
– O Duplessis está-se nas tintas para isso – responde Peter.
– Porque é que estão a fazer isto?
– Porque o Duplessis é um monstro – replica Peter. – Obviamente, o
governo federal dá mais dinheiro às freiras para tratarem de pessoas doentes
do que para cuidar de órfãos.
– É uma barbaridade – comenta Angèle, com estalidos de língua de
condenação.
Uma onda de pavor instala-se no peito de Maggie. Pensa naquele bebé
indefeso na palma da mão do Dr. Cullen e pergunta-se se a sua filha poderá ir
parar a um hospício. Sempre que Maggie se permitiu pensar em Elodie,
imaginou-a com uma mãe meiga e carinhosa e um pai presente e atencioso.
Pela primeira vez desde que a entregou para adoção, Maggie põe a hipótese
de a filha não ter sido adotada.
Sente os olhos de Peter nela e tem consciência de que ele sabe o que ela
está a pensar. Tal como todos os outros membros da família, ele cooperou no
encobrimento sub-reptício da sua gravidez.
– Como está o Gabriel? – pergunta Peter a Angèle, mudando de assunto.
As faces de Maggie coram à menção do nome dele, mas tenta manter uma
expressão neutra.
– Mudou-se para Montreal há uns anos – explica Angèle. – Teve um
desentendimento com a Clémentine sobre a gestão da fazenda e não voltou a
visitá-la desde então. É encarregado na Canadair.
Ele está aqui, pensa Maggie. Sabia que devia estar, mas a confirmação é
como uma descarga elétrica a atravessar-lhe o corpo.
– Está casado – acrescenta Angèle, sem olhar para Maggie.
Tudo fica em silêncio: o ruído da rua, a algazarra das crianças no beco, a
própria respiração. Maggie demora uns instantes a recuperar.
– Foi rápido... – consegue ela finalmente dizer.
– Ele está feliz – diz Angèle.
– Como se chama a mulher dele?
– Annie.
Annie. Um soco no estômago. Não tem ninguém para culpar além de si
mesma.
– Temos de ir – diz Maggie, dando a Angèle um abraço apático,
apressando-se a pegar nos sacos de compras e afastando-se.
– Esquece – aconselha Peter, alcançando-a.
Maggie olha-o, sobressaltada.
– Esqueço o quê?
– O Gabriel, a gravidez. A mãe e o pai fizeram um bom trabalho a encobrir
toda a situação. Estás aqui para recomeçares a tua vida.
Fazem o resto do caminho até casa em silêncio. Quando chegam finalmente
a Lafontaine, uma bonita rua do East End ladeada por árvores e escadas de
incêndio em ferro forjado, Maggie luta para conter as lágrimas ao subir as
escadas estreitas.
Moram no segundo andar de um tríplex, com outros inquilinos a viver no
piso de cima e no piso de baixo, cujos ruídos ela ouve a qualquer hora, cujos
odores ela sente assim que acorda. Começa a habituar-se; aprendeu a andar
de meias ou chinelos, nunca de sapatos, para que Mme. Choquette do andar
de baixo não bata com a vassoura no teto. O apartamento que partilha com o
irmão, pelo menos, é luminoso, com chão de madeira e muitas janelas. O
revestimento em linóleo da cozinha está a levantar em alguns sítios, mas os
eletrodomésticos são quase novos. O quarto de Maggie está praticamente
vazio, contendo apenas duas camas de solteiro em ferro forjado e uma
cómoda do Exército de Salvação. Quando ela se queixou por não haver
cortinas, Peter respondeu-lhe: «Não morres por causa disso.»
Deixou os frascos com as sementes plantadas e os rebentos de limoeiro em
Dunham, sabendo que a mãe as deitaria fora.
Pousa os sacos e vai direita à varanda. Acende um cigarro e sopra o fumo
para o horizonte constante da cidade. Há roupa pendurada nas cordas que vão
das varandas até aos postes telefónicos, ziguezagueando pelo céu, pares de
ceroulas e calças de trabalho unindo todo o quarteirão.
O que Peter disse é verdade. Ela tinha vindo para ali para começar de novo,
para se reinventar – não para se considerar um trágico fracasso e uma
desilusão para a família, mas como uma rapariga autónoma e trabalhadora.
Talvez até capaz de reconquistar o afeto do pai.
A maneira como se separaram deixou-a imensamente triste. Quando voltou
para Dunham depois de ter o bebé, Vi já a tinha substituído na loja de
sementes. Maggie entendeu que era o castigo por ter dececionado o pai. Sabia
que nunca poderia pedir o seu emprego de volta, muito menos uma
oportunidade de trabalhar na loja, a vender. Uma nuvem pairava sobre ela
naquele momento, uma nuvem que existiria sempre em Dunham,
especialmente em casa dos pais. Até a gaveta trancada do armário de arquivo
no escritório do pai, que ela sabia conter todas as informações sobre o
nascimento e o paradeiro da sua filha, era um tormento constante. Por fim,
concluiu que não tinha outra escolha senão ir-se embora.
No dia em que partiu, foi à Superior Seeds e ficou a olhar para a fachada,
com uma mistura de nostalgia e desespero. Tinha dezanove anos. Uma
mulher. No entanto, estar ali ainda a fazia sentir-se a menina que contava
sementes no sótão. Era o trabalho de Violet agora, um trabalho que Geri
assumiria um dia, e depois seria a vez de Nicole. Como a vida era simples
naqueles sábados na loja, os dias mais felizes da sua vida, com tantas certezas
de como seria o seu futuro. Agora era um legado do qual fora excluída.
O pai encontrava-se junto à caixa registadora, a dar um dos seus sermões
ubíquos a um jovem agricultor.
– Tens de pulverizar até ao verticilo com rotenona quando as plantas são
jovens – dizia ele com autoridade. – E experimenta atar as pontas das espigas
por causa das lagartas.
– Então e DDT? – perguntou o agricultor.
– Há muita controvérsia sobre os inseticidas – disse o pai. – Mas, na minha
opinião, é um inseticida extraordinário.
– Mas será mesmo o remédio para todos os males? Como é que afeta os
pássaros e os peixes... e a nós?
– Os pesticidas são a única solução para o problema dos insetos –
argumentou o pai. – Eles preservam as sementes.
Maggie não tinha a certeza se o pai estava triste ou aliviado ao vê-la partir.
Fosse como fosse, não tentou impedi-la. Ela entregou-lhe um ramo de rosas
amarelo-vivo.
– Apanhei-as para ti no caminho.
Ele pousou-as no balcão.
– Queres levar umas sementes de feijão-verde para começares a tua horta
na cidade? Sempre gostaste de ter o teu jardim.
– Claro – respondera ela, sabendo que não haveria jardim.
Ele entregou-lhe um saco de papel pardo.
– Eu sabia que este dia iria chegar – disse ele. – Sempre foste a minha flor
selvagem.
CAPÍTULO 14
Elodie
1955
Maggie
Elodie
1957
Maggie
Alguns dias depois, Maggie vê-se de olhos fixos no telefone. Quer fazê-lo
há meses, talvez anos. Com um súbito lampejo de coragem, pega no
auscultador e disca o número.
– Ligue-me ao orfanato de Cowansville, por favor – pede ela à telefonista.
– Um momento – diz a telefonista, a voz nítida e neutra.
Maggie acende um cigarro e exala, com a boca na caneca de café.
Segundos depois, outra mulher entra na linha.
– Irmãs do Bom Pastor – diz ela numa voz agradável. – Daqui fala a irmã
Maeve.
Nenhum som escapa da boca de Maggie. Olha para o bocal do auscultador
como se fosse um objeto estranho.
– Irmãs do Bom Pastor – repete a freira. – Está lá?
– Olá, irmã – consegue Maggie finalmente articular, com a devida
quantidade de humildade e respeito na voz.
– Como posso ajudá-la, minha querida?
Bondade. Maggie relaxa.
– Procuro informações sobre uma menina – diz ela.
– Sinto muito, mas não posso ajudar – responde a freira, mudando de tom.
– Mas trata-se da minha filha.
– Se teve uma bebé e ela está aqui, então, não é sua filha. Infelizmente, não
tem direitos nesta província, minha querida.
– Mas eu sou a mãe dela.
– O melhor é esquecê-la. Compreende que, se ela é ilegítima, a senhora não
tem direitos? Essa é a lei.
– Não estou a pedir que me diga onde ela está – diz Maggie. – Só quero ter
a certeza de que foi adotada...
– Os registos são confidenciais – explica a freira. – Ninguém aqui ou em
qualquer orfanato do Quebeque pode fornecer informações. Reze pelo seu
pecado, minha filha...
– Por favor, eu ficaria muito grata por qualquer coisa que me possa dizer –
implora Maggie, o auscultador a tremer-lhe na mão. – Só quero saber se ela
foi adotada, para poder parar de me preocupar se ela acabou num asilo...
Prende a respiração, esperando que a irmã Maeve lhe diga para esquecer o
assunto e seguir com a sua vida. A freira suspira.
– Sabe a data de nascimento?
A pergunta apanha Maggie desprevenida, pois, sinceramente, não esperava
conseguir nada.
– 6 de março de 1950 – diz ela, com a voz trémula.
– E o dia em que foi trazida para cá?
– O mesmo.
– Aguarde, por favor.
Maggie tenta acalmar-se. Respira fundo, respira fundo. O coração bate com
toda a força. A irmã Maeve fica longe durante muito tempo, pelo menos dez
ou quinze minutos.
– Nenhuma bebé foi trazida para cá nesse dia – diz ela, quando volta
finalmente ao telefone.
– E no dia seguinte? – pergunta Maggie, confusa.
– Não chegou nenhum bebé aqui em março de 1950 – diz ela. – Receio que
tenha ligado para o orfanato errado.
– Tem a certeza?
– Sinto muito.
– Há outro orfanato na zona? Perto de Frelighsburg?
– O mais próximo que conheço é o de Sherbrooke – responde ela. – E uma
grande quantidade de recém-nascidos indesejados vai para Montreal.
Recém-nascidos indesejados.
– Lamento não poder ajudar mais, minha querida. Deus a abençoe.
A linha cai.
Maggie fica paralisada durante muito tempo. Acende outro cigarro no
anterior. Deda disse-lhe que o pai levou a bebé para o orfanato de
Cowansville. Porque é que não há um registo da chegada de Elodie?
Num impulso, Maggie pega no telefone e liga para a loja do pai.
– Para onde levaste o meu bebé? – pergunta-lhe ela.
– Maggie?
– Acabei de falar com uma pessoa do orfanato Bom Pastor – continua ela, a
adrenalina a fervilhar-lhe no sangue. – A Deda disse-se que foi para onde a
levaste, mas não há registo da entrada de uma menina nesse ou em qualquer
outro dia de março.
– Disseram-te isso?
– Sim.
– É ilegal...
– Para onde a levaste, papá?
– Acalma-te – pede ele. – Não devias desenterrar o passado, especialmente
agora que estás grávida.
Maggie cerra os olhos para afastar as lágrimas. Não contou aos pais sobre o
último aborto espontâneo.
– Para onde a levaste? – insiste ela.
– Levei-a para o orfanato de Cowansville – responde ele, a voz subindo de
tom. – Tal como a tua tia te disse. O que não deveria ter feito, a propósito.
– E eu acabei de te dizer que nenhuma criança deu entrada nesse dia.
– Para onde mais poderia eu tê-la levado? – insiste ele. – Não tenho
interesse nenhum em mentir, Maggie. É o sítio para onde vão todos os bebés
ilegítimos. Não havia propriamente abundância de escolha.
– Não a levaste para Sherbrooke? Ou para Montreal?
– Eu não.
– Não faz sentido.
– Talvez tenha havido algum engano, Maggie. Duvido muito que os
registos deles sejam totalmente seguros. Seja como for, tens de deixar o
passado para trás. Tens sorte em estares tão bem na vida agora. – Ela ouve
vozes de homens ao fundo. – Chegaram clientes – diz o pai. – Tenho de ir.
Concentra-te no bebé que vais ter. O outro é um beco sem saída.
CAPÍTULO 19
Elodie
1959
E lodie tenta levantar a cabeça da almofada, mas está pesada como tijolos.
O comprimido que lhe dão à noite transforma-a em zombie no dia
seguinte. Raramente se sente acordada. O mundo parece desenrolar-se em
câmara lenta através de um filtro nebuloso. As freiras disseram-lhe que o
comprimido que dão a todos os pacientes se chama Largactil. Algumas das
meninas mais velhas da enfermaria B chamam-lhe o comprimido da
lobotomia. Embora Elodie tenha apenas nove anos, já sabe o que é uma
lobotomia; outra menina chamada Nora explicou-lhe. Nora foi transferida da
enfermaria dos epiléticos na primavera passada. Quando chegou à enfermaria
B, Elodie foi logo perguntar-lhe por Emmeline.
– Ela não fala desde a lobotomia – disse Nora com naturalidade.
– O que é uma lobotomia? – quis saber Elodie.
– É quando te espetam um picador de gelo na frente do cérebro para te
tornar menos violenta – explicou Nora. – Estão sempre a fazê-lo no bloco
operatório.
Elodie suspirou de choque, não acreditando que pudesse ser verdade.
Correu para a irmã Alice – a única freira semi-humana da enfermaria – e
puxou-lhe o hábito.
– É verdade que eles espetam picadores de gelo na cabeça dos pacientes
para não serem violentos? – perguntou ela, sem fôlego.
– Que disparates estás para aí a dizer, Elodie?
– A Nora disse-me que a Emmeline não fala desde que a lob... lob... aquela
coisa em que eles fazem um buraco na cabeça...
A irmã Alice suspirou.
– Uma lobotomia é uma operação perfeitamente legítima – explicou ela. –
Com os pacientes perigosos, não há outra opção.
– Mas a Emmeline não era perigosa...
– Se tratares da tua vida e não arranjares problemas – avisou ela –, não
precisarás de uma.
Naquela tarde, Nora foi acorrentada a um cano por causa da sua «língua
comprida». Culpou Elodie e nunca mais falou com ela, até ter sido transferida
para outra enfermaria.
Elodie está imóvel na cama, ainda grogue e de boca seca. De certa forma,
sente-se grata pelo Largactil. Embora deteste a forma como a faz sentir o dia
todo – lenta, confusa e estúpida –, atenua a dor antes de adormecer e ao
acordar. Naqueles meros minutos de estupefação dócil, quando os
pensamentos são um borrão e a mente quase inconsciente, consegue
esquecer. Tudo tem uma aura alucinatória: os outros pacientes, as freiras, a
desesperança do seu encarceramento. O Largactil, pelo menos, neutraliza o
desespero durante algum tempo.
Eu não sou louca, recorda a si mesma. Eu não sou louca.
As luzes acendem-se e as meninas levantam-se das camas. Arrastam-se até
à casa de banho, escovam os dentes e lavam a cara com água fria, tentando
livrar-se dos efeitos da droga. O melhor que se pode dizer dos dias de Elodie
em Saint-Nazarius é que não se importa com o seu atual trabalho a coser
lençóis na cave. O primeiro trabalho ali foi limpar as casas de banho de todas
as enfermarias femininas. Andar atrás de andar, casa de banho atrás de casa
de banho, durante quase um ano. Quando ouviu uma das outras meninas
comentar que havia trabalho na costura, mentiu e disse que sabia costurar. De
alguma forma, conseguiu safar-se. Ao observar as outras costureiras – e com
a ajuda de uma das veteranas, uma epilética chamada Marigot –, foi capaz de
aprender com rapidez suficiente para manter o lugar. Aparentemente, tem
jeito.
Depois do pequeno-almoço e das orações, Elodie desce até à cave – o seu
refúgio – e senta-se à máquina Singer. Não a incomoda ficar sentada horas a
fio sem intervalo; a dor nas costas é um luxo em comparação com as dores
que sentia no corpo por esfregar o chão e as sanitas. Além disso, há trabalhos
piores, como transportar os cadáveres para o cemitério atrás do hospital. Há
pacientes a morrer em Saint-Nazarius quase todos os dias – não apenas
idosos, mas também crianças. As notícias correm depressa pelas enfermarias,
passadas das raparigas mais velhas para as mais novas. Naquele lugar cheio
de segredos não há segredos.
Ela começa a costurar a porção da manhã – uma dúzia de bainhas de
lençóis por hora, duas dúzias até ao meio-dia – deixando a mente vaguear ao
sabor do zumbido da máquina. Perde a conta aos lençóis que costura, à
medida que se amontoam ao seu lado, mas, sem saber como, faz sempre a
quantidade correta. A sineta da irmã Calvert a soar junto ao ouvido arranca-a
ao devaneio.
É esta a rotina monótona dos seus dias. O almoço é uma espécie de carne
castanha afogada num molho grosso e coagulado. A sobremesa é sempre uma
pequena porção de melaço espalhada no prato.
Depois, regressa à cave, onde se espera que atinja a quota da tarde – a
ameaça de transferência é uma presença constante –, seguida de mais uma
papa indiscernível ao jantar e depois de volta para a enfermaria, para balançar
estupidamente nas cadeiras rangentes com os verdadeiros loucos.
À noite, quando a freira de plantão se detém junto à sua cama para
distribuir o Largactil, Elodie toma-o com uma mistura de medo e alívio.
Habituou-se a gostar do momento em que as pálpebras ficam pesadas e a
cabeça começa a flutuar, do exato momento em que a realidade se desvanece.
Nessa noite, o seu último pensamento consciente antes do abençoado
esquecimento é: Oh, ali está a Lua.
Acorda a tremer e desorientada, sentindo a cama molhada. Ainda é noite e
estão todos a dormir. Apercebe-se de um cheiro avinagrado e pungente. Leva
alguns minutos a perceber que fez chichi na cama.
Fica um grande pedaço deitada na própria urina, a pensar em como vai
navegar pelo labirinto de camas até à casa de banho. A fila de camas onde se
encontra é a mais distante e ela ainda está meio drogada. Quando finalmente
delineia uma estratégia, sai de mansinho da cama, tira os lençóis e enrola-os
numa bola.
Esgueira-se com toda a cautela pelo espaço estreito entre a parede e a
primeira fila de camas, mas ainda se sente muito grogue. As pernas não lhe
obedecem como deveriam – como se fossem macarrão cozido – e o quarto
parece girar. O Largactil é um imobilizante poderoso, mas ela usa a parede
para se apoiar. O que não contava era com a bota mal arrumada, a espreitar
debaixo de uma das camas.
A bota devia estar no cubículo à entrada do dormitório; cada menina tem o
seu cubículo – uma pequena prateleira por cima de um cabide onde podem
guardar os parcos e preciosos bens –, mas Elodie tem o azar de tropeçar numa
bota perdida e se espalhar ao comprido no chão do quarto. Se estivesse mais
alerta, poderia ter evitado cair de forma tão estrondosa; no entanto, para
evitar a queda, tenta agarrar algo e acaba por derrubar uma das mesinhas de
cabeceira metálicas. A mesinha de cabeceira e o candeeiro caem ao chão, o
vidro da lâmpada partindo-se.
Ouve algumas das outras meninas a acordar. O que aconteceu? Quem está
aí? A luz acende-se de repente cegando momentaneamente Elodie. Os
joelhos doem-lhe e vê que está a sangrar por causa da lâmpada partida.
Quando olha para cima, vê a irmã Ignatia de pé acima dela, com uma
expressão carrancuda. Embora seja baixa e atarracada, do ponto de vista de
Elodie no chão, a freira parece gigante.
– O que aconteceu? – ruge ela.
– Eu tinha de ir à casa de banho – murmura Elodie. – Não conseguia ver o
caminho.
– Pelo cheiro, parece que já foste à casa de banho.
Elodie tenta esconder os lençóis molhados com o corpo.
– Acordaste toda a gente.
– Foi um acidente – lamenta Elodie. – Tropecei numa bota.
– Estás a tentar arranjar sarilhos a alguém?
– Não, irmã. Foi um acidente.
– Devias ter mais cuidado.
Elodie não consegue conter um soluço que lhe escapa dos lábios.
– Vai para a casa de banho e espera lá por mim – manda a irmã Ignatia. – E
tira essa camisa de dormir suja.
– Mas eu não vi a bota! – choraminga Elodie, incapaz de se controlar. –
Não é justo!
– Justo? – repete a irmã Ignatia, os lábios retesando-se num sorriso
assustador. – Devo lembrar-te que és paciente do meu hospital? Eu sou o teu
juiz, e julgo não só as tuas transgressões de hoje, mas todos os teus pecados,
assim como os pecados dos teus pais. Agora vai e espera por mim na casa de
banho.
Elodie levanta-se, atabalhoada, e corre para a casa de banho. Tira a camisa
de dormir e coloca-a no lavatório, juntamente com os lençóis, abrindo a água
quente para ficarem de molho. Nua e a tremer, envolve o peito com os braços
e aninha-se para gerar algum calor corporal.
A irmã Ignatia entra na casa de banho trazendo um grande balde de gelo. A
postura dela é calma. Deita o gelo na banheira e empurra Elodie lá para
dentro. Elodie tenta ser estoica, mas está a congelar e desata a chorar.
A irmã Ignatia pega na grande escova de madeira que está por baixo do
lavatório – a que usam para limpar o chão – e esfrega as coxas de Elodie até
ficarem em carne viva.
– Assim já deve bastar – murmura ela com satisfação, segurando depois a
cabeça de Elodie debaixo da torneira. – Da próxima vez, tem mais cuidado.
Antes de sair, atira a Elodie uma camisa de dormir branca e limpa.
A porta fecha-se atrás dela. Finalmente sozinha, Elodie sai da banheira e
veste a camisa de dormir.
– Eu não sou louca – sussurra para o reflexo no espelho.
Se parar de o repetir, corre o risco de esquecer.
CAPÍTULO 20
Maggie
G abriel tem vinte e sete anos. Não resta praticamente nada do rapaz do
campo que era. O físico alterou-se – o maxilar é mais quadrado, os
ombros mais largos, os músculos mais definidos. Está mais pálido e o cabelo
loiro, antes grosso e comprido, está cortado à escovinha, tornando-lhe a
beleza mais marcante, mais angular. O peito e os braços também ganharam
volume, sem dúvida de anos a levantar peças de avião pesadas. Maggie tem
dificuldade em associar a imagem atual dele com a do rapaz de há uma
década, quando fizeram amor pela primeira vez naquele mesmo lugar.
Sente-se um pouco insegura e preocupada com a própria aparência.
– Como tens estado? – pergunta ele, o tom leve e sem nenhum sinal de
ressentimento.
Maggie procura no rosto dele uma réstia do que sentiu por ela um dia, mas
não há lá nada. Ele olha-a da mesma forma que qualquer outro homem. Nada
mais.
– O que fazes aqui? – pergunta-lhe.
– Isso pergunto eu – diz ele. – Estás no meu campo.
Ela sorri e ele sorri também.
– Vim visitar os meus pais – explica ela. – Ainda venho para o campo
sempre que cá estou.
– Eu sei.
Tê-la-á visto ali? Terá estado à espreita da janela?
– E tu? – pergunta ela. – A Angèle disse-me que vens pouco a casa.
– Isso foi há muito tempo – responde ele. – A Clémentine precisava de
ajuda na fazenda. É época de colheita.
– Isso quer dizer que fizeram as pazes?
– Sim, fizemos as pazes – diz ele.
– Ainda trabalhas na Canadair?
– Onde havia de ser? Na Bolsa de Valores?
Ela ri-se, mas a risada sai estridente. Não está certa de que ele pretendesse
que fosse uma piada.
– Também sou taxista à noite – acrescenta ele. – É dinheiro extra.
Gabriel não lhe pergunta mais nada sobre ela. Ficam de frente um para o
outro em silêncio, o que amplifica o volume dos grilos em redor.
– És casado? – pergunta ela, tentando parecer descontraída.
– Sim.
– Com filhos?
– Não – responde ele. – Não é coisa para mim. Não quero filhos.
Um milhão de coisas diferentes passam-lhe pela cabeça. Será que ele teria
querido criar o bebé há uma década – supondo que fosse dele – ou teria
fugido assim que soubesse que ela estava grávida?
– Queres ir beber um copo? – pergunta-lhe ele.
Gabriel ainda não lhe perguntou se ela é casada ou se tem filhos. Talvez
saiba pelas irmãs ou pelos mexericos da cidade. Talvez não queira saber.
Maggie olha de relance para a casa dos pais, pensando em Roland
enfurnado no minúsculo escritório com o pai.
– É melhor ir avisá-los – diz ela, de maneira vaga.
Volta para dentro e bate à porta do santuário do pai. Ele abre uma fresta da
porta e ela é imediatamente envolvida pelo fumo de charuto. O pai põe a
cabeça de fora, com ar aborrecido.
Maggie vislumbra Roland sentado na poltrona de couro, as pernas
estendidas, um charuto numa mão e um copo de whisky Crown Royal na
outra. No rádio, ouve-se Mario Lanza.
– Vou à cidade encontrar-me com a Audrey para uma bebida – informa ela.
– Queres que te leve? – oferece-se Roland num falar arrastado, pronto para
entrar no carro e levá-la aonde ela quiser ir.
É um bom homem, pensa ela, sentindo-se culpada. Se, pelo menos, ele não
tivesse mudado. Se ela o tivesse conhecido primeiro.
– Não estás em condições de conduzir – diz ela. – Ficamos cá a dormir esta
noite. Vou dizer à maman para preparar o antigo quarto do Peter para nós.
– Custa a acreditar que já passaram dez anos, não é? – comenta Gabriel
sobre um jarro de cerveja morna. – Gosto do teu cabelo assim.
Ele estende a mão e toca nele. Maggie fica muito quieta enquanto os dedos
dele deslizam lentamente pelas ondas naturais. Então, Gabriel recua e bebe
um gole de cerveja, como se a carícia fosse um gesto perfeitamente normal.
– E tu, tens filhos? – pergunta-lhe ele.
– Ainda não. Estamos a tentar. Tive alguns reveses...
Ele anui, mas não oferece qualquer comentário solidário ou encorajador
como a maioria das pessoas faz. Maggie enche o copo.
– O que faz o teu marido? – pergunta ele.
– É bancário.
Gabriel acende um cigarro e exala uma linha reta de fumo.
– O Homem das Sementes deve estar orgulhoso – comenta ele. – Ele é
inglês, obviamente?
– Ainda estás zangado comigo?
– Porque estaria? – ri-se ele. – Nós éramos crianças.
Maggie não acredita.
– Tens uma fotografia da Annie? – pergunta.
Está curiosa, como quem não consegue deixar de olhar para um acidente.
– Sabes o nome dela? – espanta-se ele.
Maggie cora.
– A Angèle mencionou-o. Ela deve ser bonita.
Gabriel encolhe os ombros. Terminam o jarro e ele pede outro. Maggie
pega num dos cigarros dele e ele acende-lho com o seu isqueiro Zippo, que
fecha com um gesto repentino da mão.
– Então, aqui estamos nós – diz ele. – Casados com outras pessoas.
Ela abre a boca para dizer alguma coisa, mas não sabe como resumir tudo o
que sente numa frase coesa. Fita-o e tem certeza de uma coisa: ainda o quer.
– Assim que te vi esta noite... – começa ele. – Ainda és tão bonita.
– Pareces desapontado.
– Esperava que tivesses engordado.
– Eu gostaria que não tivéssemos demorado dez anos a reencontrarmo-nos
– diz ela, subitamente dominada pelo desejo de confessar tudo: a gravidez, o
bebé, o orfanato, até mesmo Yvon. A embriaguez é quase suficiente para o
fazer, mas, num momento de lucidez, decide calar-se.
– E agora? – pergunta ele.
Maggie abana a cabeça e ficam a olhar um para o outro durante um longo
tempo, sem um piscar de olhos ou uma tentativa de os desviar. Maggie sente
uma centelha de esperança. Por um breve instante, tudo parece possível, mas,
depois, uma empregada passa e Gabriel faz um gesto a pedir a conta. A
esperança de Maggie afunda-se. Pega noutro dos cigarros dele e, num gesto
sedutor, inclina-se para que ele lho acenda.
– És feliz? – pergunta ela, segurando-lhe o pulso para manter a chama
firme.
– Que tipo de pergunta é essa? – revida ele, deixando algum dinheiro na
mesa. – Vamos.
Segue-o e ambos caminham em direção à Bruce Street. Sem dizer uma
palavra, ele pega-lhe na mão. O gesto não parece ilícito; parece natural e
certo.
– Gostava que o tempo pudesse parar neste momento – diz ela ao
aproximarem-se do edifício Small Bros.
– Porque não? – diz ele, puxando-a para o beco.
– O que estás a fazer?
Gabriel empurra-a contra a parede de tijolo. Sem aviso, beija-a. O que mais
a choca não é a presunção dele ou sequer a sua própria imprudência ao
corresponder, mas a excitação. Beijou-o tantas vezes antes, porém, é tão
excitante como da primeira vez.
Ele pressiona o corpo contra o dela, encostando-a à parede do edifício.
Maggie abraça-lhe instintivamente a cintura, deslizando uma mão por baixo
da camisa e subindo pelas costas lisas. Mas quando sente, subitamente, a mão
dele por baixo da saia e a subir até à coxa, afasta-o.
– Para!
Ele ignora-a.
– Para! – insiste ela, com a boca encostada ao ouvido dele.
Ele fita-a com surpresa.
– Não podemos fazer isto – diz ela. – O Roland deve estar preocupado, a
imaginar onde estarei.
– O Roland – murmura Gabriel, os dedos deslizando entre as pernas dela,
puxando-lhe as cuecas.
– Por favor, não – pede ela debilmente.
Ele afasta-se, encarando-a.
– Não é assim que eu quero que isto aconteça – afirma ela.
– Como queres que isto aconteça? – pergunta ele, irritado, ajeitando as
calças. – Nós somos casados com outras pessoas.
– Não com traições.
– Queres que eu deixe a Annie para te sentires melhor a foder comigo?
– Gabriel, não fales assim.
– Isso não é uma opção, Maggie. – Pragueja baixinho e depois, num
impulso, dá um murro na parede de tijolo atrás da cabeça dela. – Sempre a
mesma Maggie – diz, sacudindo a mão a sangrar. – Sempre a provocar, a
seduzir. Mas a verdade crua e nua é que não queres perturbar a tua vidinha
privilegiada, só queres saber se ainda podes ter-me. Volta para o teu maldito
bancário.
– Eu daria qualquer coisa para que tudo tivesse sido diferente! – grita ela, a
voz reverberando no beco estreito.
A verdade – lançada na noite daquela forma tão dura e inexorável – fá-lo
estacar. Ficam ambos ali, sem saber o que fazer.
– Desculpa – diz ele. – Estou bêbedo. Isto foi um erro.
As palavras penetram-na como facas afiadas. Gabriel acompanha-a até à
margem do milharal – o lugar onde se escondiam juntos, onde fizeram amor e
desapareceram juntos, se encontraram, se perderam e se encontraram
novamente. Ela inala profundamente, não querendo entrar em casa. O ar é
húmido e tem a fragrância do pico do verão, uma mistura de orvalho, flores a
brotar e adubo fresco. O céu está sem estrelas. Percebe que está a chorar, mas
Gabriel provavelmente não consegue ver-lhe as lágrimas na escuridão.
Talvez seja melhor assim, raciocina ela. A luxúria é apenas um
estrangulamento que torna impotentes o coração e a mente. Houve momentos
em que quase destruiu a vida dos pais. Está melhor com Roland, que é, ou
pelo menos era, seu amigo.
– Boa noite – despede-se Gabriel.
Sem dizer uma palavra, ela vira costas e começa a subir a colina.
– Ei! – chama ele. – Eu trabalho no turno de dia da Canadair até às três e
um quarto.
Um desafio lançado.
CAPÍTULO 22
As férias vêm e vão sem grande alarde, seguidas por uma longa e profunda
hibernação de inverno, na qual Maggie passa muito do seu tempo livre
fechada dentro de casa, a pensar em Gabriel e no encontro onírico do ano
anterior. Aconchegada junto à lareira, dia após dia, com a mesma camisola de
lã e meias grossas de esqui, Maggie passa grandes quantidades de tempo em
fantasias ricas e pormenorizadas.
E então, uma tarde, pouco depois de o inverno ter terminado, Maggie vê-se
numa parte desconhecida da cidade. É como se tivesse sustido a respiração
todos aqueles meses e agora, de repente, não consegue prendê-la nem mais
um instante. Chegou uma nova década – os anos cinquenta acabaram – e o
sentimento de claustrofobia tornou-a inquieta, audaciosa. Precisa de respirar.
A Canadair fica perto do Aeroporto de Cartierville, em Saint-Laurent. Há
um autocarro que para na Sherbrooke Street e que a leva diretamente à
avenida Côte-Vertu. Caminha, resoluta, aproveitando o clima ameno de
março e os primeiros raios fortes de sol no rosto.
Quando era criança, a Canadair era muito conhecida pelo fabrico de aviões
durante a guerra. Muitos dos rapazes do campo, como Gabriel, viajavam para
a cidade e trabalhavam lá todo o inverno. Lembra-se de Gabriel, no final dos
anos quarenta, a gabar-se de quando a Canadair começou a fabricar os caças
F-86 Sabre, como se fosse ele a fazê-los. Ele costumava dizer que ajudar a
construir aviões para a Royal Canadian Air Force era um privilégio, mesmo
que só ganhasse quarenta e três cêntimos à hora e trabalhasse em turnos de
dezassete horas.
Todos estes pensamentos lhe ocupam a mente quando o autocarro se detém
na Côte-Vertu. Subitamente, dá-se conta da magnitude do que está prestes a
fazer e sente uma pressão no peito como quando os aviões aterram na pista de
asfalto de Cartierville.
CAPÍTULO 23
Elodie
1960
Alguns dias depois, quando estranhas manchas vermelhas lhe aparecem por
todo o corpo, obrigando a irmã Ignatia a mandá-la para a enfermaria de
doenças infeciosas no terceiro andar, Elodie aproveita a oportunidade para,
finalmente, falar em nome de Emmeline e de todos os órfãos.
– Varicela – confirma o médico, avaliando rapidamente o pescoço e os
braços de Elodie. – Não deves coçar.
Elodie estuda-o com cuidado, tentando avaliar se ele é um deles ou alguém
que possa ajudá-la. Parece uma pessoa condigna. Os olhos são de um azul
muito vivo e ela gosta do bigode e do lenço no bolso da bata branca.
– Vou dar-te um frasco de loção de calamina – diz ele. – Não podes coçar,
menina. Vais ficar com cicatrizes.
Elodie quase dá uma gargalhada. Cicatrizes! Se ele pudesse ver as
cicatrizes que já tem de tantas tareias que levou. Acha que ela se preocupa
com cicatrizes de varicela? Ele não faz ideia.
Ele unta-a com uma loção cor-de-rosa que é fresca na pele e que acalma
instantaneamente.
– Também devias cortar as unhas.
– Doutor?
– Sim?
– Uma menina do sexto andar morreu no outro dia.
– Sim – responde ele, distraído. – Isto é um hospital. Acontece.
– Mas ela não tinha nada.
– Ela não estaria aqui, se isso fosse verdade.
– Eu também não tenho nada – informa-o Elodie. – E estou aqui. A maioria
de nós é perfeitamente normal. Somos apenas órfãos. Não somos loucos.
– A tua ficha médica diz o contrário.
– Que ficha?
– De quando foste transferida para cá – explica ele. – Nós temos a tua ficha
médica.
– O que diz a minha?
– Não estou a par dos registos da enfermaria psiquiátrica – diz ele. – Mas
garanto que deve haver uma razão para estares aqui.
– Eu sou normal – insiste Elodie, inflexível.
– Não coces – recomenda ele.
– Posso ver o que está escrito na ficha sobre mim?
– Claro que não.
– Eu não quero morrer aqui – diz ela. – Eles mataram a Emmeline dando-
lhe Largactil a mais. Ela veio comigo do orfanato Saint-Sulpice e estava
perfeitamente bem. Era normal e inteligente e eles fizeram-lhe uma
lobotomia.
– Pelos vistos, ela era uma menina muito doente.
– Mas não era. Não quando chegámos aqui. E agora eles mataram-na.
– Estás a ser muito dramática.
– Não é a única – continua Elodie. – No ano passado, outra menina
desapareceu a meio da noite. Ouvi dizer que o corpo dela foi atirado para as
traseiras e enterrado no cemitério. Tudo o que ela fez foi cantar.
Elodie ainda se lembra da menina que costumava cantar para dormir à
noite, da sua voz doce a flutuar pelo quarto. O seu nome era Agathe. Só tinha
cinco anos, mas a irmã Ignatia costumava bater-lhe para a fazer parar de
cantar. Certa manhã, quando Elodie acordou, alguém disse: «A Agathe foi-
se.»
A cama dela estava vazia e acabadinha de fazer, como se nunca ninguém
ali tivesse dormido.
Nunca foi dito nada sobre o que lhe aconteceu. Nenhuma explicação, como
se elas não fossem dignas de saber.
– Elas fazem-nos coisas terríveis – confessa ao médico. – Não pode ajudar-
nos? Alguém sabe o que fazem connosco?
– Acalma-te – diz o médico, franzindo o sobrolho.
– Os pacientes loucos da minha enfermaria já eram loucos antes de
chegarem aqui?
– Como é que eu posso saber?
– Vou ficar louca, se ficar aqui?
– Onde vais tu buscar essas ideias?
– Por favor, ajude-me – implora ela. – Nós fomos esquecidas lá em cima. E
as freiras... são cruéis. Torturam-nos. Por favor, não há nada que possa fazer?
O médico pousa uma mão no joelho dela e responde:
– Vou investigar isso. Acalma-te. Vou descobrir o que se passa.
Elodie acena, obediente, sentindo todo o corpo relaxar de alívio.
– Toma isto – diz ele, entregando-lhe a loção de calamina. – E espalha
sempre que tiveres muita comichão.
– Obrigada, doutor.
Ele pisca-lhe o olho e Elodie sai da sala, leve e feliz, como há muito tempo
não se sentia. Sorri para a irmã Calvert, que espera por ela à porta, e diz:
– Varicela.
– Pareces muito feliz com isso – resmunga a irmã, atravessando o corredor
no seu passo arrastado, acompanhado do restolhar do hábito.
Vários dias se passam e nada acontece. Elodie espera que o médico apareça
de visita. Ele prometeu que iria investigar o assunto. Talvez as freiras estejam
a dificultar-lhe a vida, conclui ela, e precisa de ser paciente. Não seria
extraordinário se ele expusesse toda a situação e o hospital percebesse que
tinha havido um erro terrível e as libertasse? As mandasse de volta para
Saint-Sulpice, onde, tanto quanto Elodie se lembra, era relativamente feliz?
Deitada acordada na cama à noite, cerca de uma semana depois da visita ao
médico, percebe que ninguém veio dar-lhe o Largactil. Talvez o médico
sempre tenha dito alguma coisa sobre a morte de Emmeline e os
tranquilizantes diários tenham finalmente sido banidos. Tem sentimentos
contraditórios sobre não tomar o remédio para dormir, mas uma onda de
excitação ao pensar na possibilidade de liberdade abafa todas as outras
preocupações.
Quando dá por isso, é acordada por mãos ásperas. Tenta sentar-se, mas
alguém lhe enfia uma fronha na cabeça, dificultando-lhe a respiração. Umas
mãos agarram-na, puxando-a para um lado e para o outro. O mundo é negro
dentro da fronha, mas consegue ouvir as fivelas da camisa de forças enquanto
tentam vestir-lha.
Debate-se, os gritos abafados pelo tecido, apavorada com a perspetiva de
sufocar.
– Calme-toi! – sibila uma delas e imediatamente reconhece a voz da irmã
Ignatia.
Elas lutam com ela agora, mas está a ser-lhes muito difícil apertarem as
fivelas.
– Está quieta! – diz a irmã Ignatia, impaciente, e dá-lhe um murro na
cabeça.
O corpo de Elodie amolece. A camisa de forças é apertada. A irmã Ignatia
brada ordens. Elodie percebe que as outras que a atacam são pacientes como
ela, dispostas a obedecer, aliviadas por não serem elas. Carregam-na em total
escuridão para outro quarto, onde é despejada de costas numa cama de metal
e depois amarrada a ela como um animal. Não há colchão e ela sente as
afiadas espirais de metal a cravarem-se-lhe nas costas, onde a camisa de
forças não cobre o corpo.
A fronha é-lhe retirada da cabeça e Elodie percebe, para grande horror, que
está numa cela escura e abafada, as janelas fechadas com tábuas. O calor é
sufocante.
– O que é que eu fiz? – implora ela à irmã Ignatia, em voz chorosa. –
Porque está a fazer isto comigo?
A irmã Ignatia não responde e o seu silêncio é mais assustador do que
qualquer coisa que pudesse ter dito.
– Por favor, não me deixe aqui! – suplica Elodie. – Por favor! Irmã...
A irmã Ignatia desliza um balde para debaixo da cama e Elodie entende
imediatamente que vai ficar ali algum tempo; que não será desamarrada, nem
mesmo para ir à casa de banho.
– Não vá embora – pede ela. – Está tanto calor. Por favor...
A irmã Ignatia vira-se bruscamente, a saia do hábito silvando aos pés, e sai
da cela, seguida pelos lacaios em silêncio.
Elodie pensa em gritar, mas rapidamente afasta a ideia. Sabe que ninguém
a ouvirá; mesmo se o fizessem, ninguém viria. Contorce-se na cama, tentando
desesperadamente encontrar algum resquício de conforto – uma posição
ligeiramente suportável, pelo menos –, mas é impossível com a camisa de
forças, o calor e o metal cravado na carne. O sono também não chega. Sem
um colchão, circulação de ar ou a capacidade de movimentar os braços, só
pode ficar ali, a lamentar-se por não ter tentado fugir há muito tempo.
Poderia tê-lo feito? Não aos sete anos de idade. Não depois de ter sido
trancada atrás das portas da enfermaria B. Agathe escapou. Emmeline
escapou. Talvez a morte fosse a única saída viável. Decide que nunca mais
vai lamentar a morte de qualquer outra menina de Saint-Nazarius. Porque
deveria? Elas estão livres, estão em paz, e ela, Elodie, é a única ainda no
inferno.
Elodie calcula o tempo pelas refeições que lhe trazem três vezes por dia –
uma mistura em puré de tudo o que foi servido no refeitório. A cela cheira a
urina, a fezes e ao próprio vómito. De vez em quando, por puro e simples
tédio insuportável, ela reza. Negoceia com Deus, pergunta-lhe como pode Ele
permitir que ela seja tratada daquela maneira, mas nenhuma resposta lhe
chega, apenas mais daquele Seu silêncio cruel, um vazio que deveria servir de
consolação. Ela odeia-O quase tanto como odeia a irmã Ignatia.
Depois de quase uma semana de prisão – exatamente dezassete batidos
hediondos – a porta abre-se e a irmã Ignatia aparece, com a sua expressão
arrogante. Em silêncio, tira as correntes a Elodie e desaperta-lhe as fivelas da
camisa de forças. Elodie encolhe-se assim que os braços ficam livres. Os
músculos estão rígidos, as articulações doem-lhe e os ossos estão fracos. Dói-
lhe cada centímetro do corpo. Quando tenta sentar-se, solta um grito e cai
para trás. O metal afiado nas costas era preferível à dor de tentar mexer-se.
A irmã Ignatia entrega-lhe um vestido, fazendo uma careta por causa do
fedor do balde que quase transborda, e tapa a boca e o nariz com a mão.
– É porque falei com o médico sobre a sobredose da Emmeline? – pergunta
Elodie.
Um lampejo de regozijo – vitória ou diversão – perpassa os olhos de
morcego da irmã Ignatia, mas não dá a Elodie a satisfação de uma resposta.
CAPÍTULO 25
Maggie
Elodie
Maggie
A meio de uma noite húmida de outono, Maggie é despertada por uma forte
onda de náuseas. É a primeira noite que passa nos cantões como uma
mulher separada e optou por dormir na casa dos pais em vez de sozinha em
Knowlton. Apesar de estarem desiludidos com a decisão dela, os pais não lhe
viraram as costas.
Desce as escadas de mansinho e vai à despensa procurar bolachas de água e
sal. Pega num punhado delas, veste um dos casacos ásperos da mãe e vai lá
para fora. O pai está de pé na pequena horta, examinando-a como se fosse
perfeitamente lógico estar a fazer jardinagem à meia-noite, em outubro.
– O que estás a fazer, papá?
O pai vira-se e olha para ela, iluminado pelo brilho amarelo do holofote
acima da porta das traseiras. Os seus olhos demoram um momento a focar e
ela sabe que ele está embriagado.
– A ver as ervas da tua mãe – responde, com a voz arrastada.
– Agora?
– A lua está em quarto crescente – diz ele, inclinando a cabeça para o céu.
– É preciso semear sempre com a lua em quarto crescente, nunca em quarto
minguante.
Maggie senta-se numa cadeira de jardim branca em ferro forjado e inala o
ar fresco do outono.
– Os cientistas começam a descobrir os efeitos dos ritmos lunares nos
campos magnéticos da Terra – diz ele. – O que, obviamente, afeta o
crescimento.
Ele agacha-se e começa a cavar a terra, tirando uma pequena batata.
– Dizem que uma batata cultivada em laboratório continua a mostrar um
ritmo de crescimento que reflete as fases da lua.
Ele tenta levantar-se, mas cambaleia um pouco e tem de se agarrar à
cadeira para se firmar. Ela repara que as mãos do pai tremem e que todo o
corpo parece balançar à mais pequena brisa, como se não estivesse bem
assente no chão.
– Adoro o cheiro a tomilho – diz Maggie, inalando o aroma das ervas.
O ar está quente e abafado para outubro.
– Tenho de plantar salsa para a tua mãe – diz ele, mais para si mesmo. –
Também ajuda a dar mais aroma às rosas.
Maggie levanta-se e espreguiça-se.
– Estou cansada. Vou para a cama.
– Devias voltar para o Roland – diz-lhe ele. – Esse bebé é exatamente o que
os dois precisam.
O que os dois precisam. Como se fosse uma batedeira ou um aspirador.
Uma coisa. Foi assim que Roland o descreveu também.
– Estamos ambos a seguir com as nossas vidas, papá. A decisão foi mútua.
– Tu tens tudo, Maggie. Não te compreendo.
– Não compreendes que quero ser feliz?
– É preciso mais coragem para ficar.
– Não concordo – diz ela, cansada. – Lamento se isso te magoa.
Dá um beijo na testa do pai, que está húmida de suor.
Ele enfia a mão no bolso do casaco e tira um cantil de prata. Ela observa-o
a beber um gole e depois a guardá-lo no bolso.
– Boa noite, papá.
Ele não responde, o olhar fixo em frente, o rosto marcado pela exaustão e
pelo desgosto. O desespero nos seus olhos é tal que quase faz Maggie desejar
ter ficado com Roland, só por amor ao pai.
Maggie ainda não encontrou Gabriel e ele ainda não apareceu. O sonho de
ter aquele filho com ele começa a desvanecer-se. E, no entanto, apesar das
frequentes ondas de desespero, uma teimosa réstia de esperança – ou
possivelmente de ilusão cega – persiste. Não vai desistir dele, e é por isso que
enfrentará tudo sozinha, em vez de voltar a correr para Roland, em busca de
segurança. Acredita que, acima de tudo, seja um sinal de fé.
Deixa o pai ali com as ervas e o cantil e regressa para dentro. Passa pelo
santuário e interrompe o passo, reparando que a porta está entreaberta.
Enquanto viveu nesta casa, nunca o viu a deixar a porta aberta. Ou está mais
bêbedo do que o habitual ou simplesmente assumiu que todos estavam a
dormir e que não havia necessidade de a fechar.
Maggie empurra levemente a porta e entra. Fica ali um momento, a respirar
o cheiro do pai. O velho livro Como Gerir um Centro de Jardinagem está
aberto no capítulo intitulado «Como atrair clientes», o que significa que o
negócio da loja está fraco esta estação. Passa os olhos pelo resto dos livros,
pelas peças de rádios, pela confusão de papéis e projetos pendentes, pelo
armário de arquivo metálico cinzento no canto da sala.
Sem pensar, e antes mesmo de se dar conta do que faz, encontra a chave na
gaveta de cima da secretária, mal escondida numa caixa de charutos vazia.
Ajoelha-se em frente ao arquivo e abre-o. Folheia as pastas – na sua maioria
contas – até que a mão repousa num envelope grosso de papel pardo na
gaveta de baixo. Há um endereço carimbado no canto. Maggie pega no
envelope no exato momento em que o pai aparece atrás dela.
– O que julgas que estás a fazer? – brada ele.
Ela levanta-se de um pulo, largando o envelope. Só conseguiu ler o nome
Goldbaum, LLB antes de o pai fechar a gaveta com o pé. O instinto diz-lhe
que tem algo que ver com Elodie.
– O que é isto? – pergunta-lhe ela. – Porque contrataste um advogado?
Ele agarra-a pelo pulso e empurra-a para fora do santuário. Violência física
nunca foi uma característica do pai. O rosto dele está vermelho e as veias do
nariz parecem ter explodido de raiva. Fecha-lhe a porta na cara e tranca-a.
Maggie fica do lado de fora da porta durante vários minutos, chocada com
aquela explosão invulgar. Ouve-o a arrastar os pés e bater com coisas lá
dentro.
– Papá! – chama, mas ele não responde.
CAPÍTULO 32
Elodie
E lodie limpa o suor da testa e desvia o rosto do vapor. Este mês foi
destacada para passar os lençóis a ferro, uma tarefa ainda mais
entediante do que a costura. Também é muito mais doloroso para o seu braço
direito, que nunca mais foi o mesmo desde que foi amarrada àquela cama
sem colchão durante uma semana.
– Faz cinco minutos de intervalo – diz a irmã Camille. – O teu rosto está
muito vermelho.
A irmã Camille é nova. Não parece muito mais velha do que Elodie, mas
agora é a encarregada das costureiras. É demasiado gentil para um sítio como
Saint-Nazarius. Será uma questão de tempo até se livrarem dela.
– Porque está aqui? – pergunta-lhe Elodie, pousando o ferro no descanso. –
Não pertence a um sítio como este, tal como eu.
– Deus pôs-me aqui por um motivo – responde ela. – Embora, às vezes, eu
não consiga perceber qual.
– Acha que Ele me pôs aqui por uma razão? – pergunta-lhe Elodie.
– Claro – responde a irmã Camille com toda a certeza. – Nós nem sempre
compreendemos o que Ele faz ou porque o faz. Podemos nunca vir a
compreender, não nesta vida. É isso que significa ter fé.
– Isso não é reconfortante – murmura Elodie.
A irmã Camille aperta-lhe a mão, um gesto tão surpreendente que Elodie se
encolhe e retrai a mão.
– Essa é a pior parte de estar aqui – diz a irmã Camille com tristeza. – Ver
as crianças crescerem sem qualquer afeto. Não é normal. Detesto não poder
abraçar as pequeninas e confortá-las quando choram.
– Seria despedida – diz Elodie. – Ou pior.
– Fi-lo uma vez, quando comecei. Peguei numa menina que tinha sido
acorrentada a um cano toda a noite. Ela não devia ter mais de quatro anos.
– O que aconteceu? – pergunta Elodie, desejando que a irmã Camille já lá
trabalhasse quando Elodie era pequena.
– Fui apanhada pela irmã Laurence e banida para o refeitório. – Ela parece
envergonhada e acrescenta: – E depois para aqui para a cave. Não consigo ser
cruel como me dizem para ser. Simplesmente não consigo.
– Talvez isso mude.
– Claro que não vai mudar.
– Então porque fica aqui?
– Eu disse-te – responde ela. – É a vontade de Deus. Mas entre nós, que
ninguém nos ouve, ficarei feliz quando se livrarem de mim.
– Leve-me consigo, irmã...
– Gostava de poder – diz a irmã Camille, pegando Elodie pela mão e
levando-a para o corredor. – Escuta-me – continua ela, baixando a voz. – A
lei está a mudar.
– Que lei?
– A lei que te pôs aqui.
Elodie encolhe os ombros, confusa.
– O Governo está a começar a investigar estes hospitais – explica a irmã
Camille. – Eles sabem o que aconteceu aos órfãos e vão tomar medidas a esse
respeito. Eles sabem que não são doentes mentais.
As lágrimas saltam dos olhos de Elodie e ela atira-se contra o peito da irmã
Camille.
– Quando? – chora ela. – Quando é que eu posso sair?
– Os médicos já começaram a entrevistar as crianças.
Uma onda de pânico atravessa o corpo de Elodie.
– O que se passa? – pergunta a irmã Camille. – É uma coisa boa, Elodie.
– A última vez que um médico me entrevistou, eu acabei aqui –
choraminga ela, lembrando-se daquele dia no orfanato. – Eu falhei!
– Basta que sejas tu mesma – tranquiliza-a a irmã Camille. – Tu não és
retardada. Ambas sabemos disso. Estes médicos estão do teu lado.
Elodie está cética. Os médicos nunca estão do lado dela; apenas fingem
estar.
– Eles vão descobrir que a maioria das crianças que está aqui é de
inteligência normal – assegura a irmã Camille. – Quando muito, tendes
algumas perturbações devido ao confinamento e a todos os maus-tratos. Tu és
inteligente, Elodie, mas ignorante.
– O que é que isso significa?
– Significa que não sabes nada sobre o mundo. Coisas básicas. És
primitiva, só isso. Mas não és louca.
– Isso é verdade.
– Se todas as pobres meninas daqui não eram atrasadas quando entraram,
certamente serão quando saírem.
– Acha que vou conseguir encontrar a minha mãe?
– Tudo é possível, se acreditarmos em Deus – diz a irmã Camille, mas a
expressão nos seus olhos desmente as palavras.
Elodie não vê fé, apenas pena. Ou talvez seja a própria desconfiança de
Elodie, a sua ambivalência em relação a Deus.
– Para onde irei? – inquire Elodie. – Não conheço nada além deste sítio...
– As crianças mais novas provavelmente vão para lares de acolhimento ou
para verdadeiros orfanatos. As mais velhas serão libertadas, imagino.
– Libertadas?
A irmã Camille acena com a cabeça. E então, vendo o olhar alarmado de
Elodie, acrescenta:
– Não te preocupes, não tens idade suficiente para ficares sozinha.
– Acha que vão mandar-me de volta para o orfanato de Farnham?
– Não sei.
A mente de Elodie vibra de pensamentos. A possibilidade de escapar de
Saint-Nazarius – de nunca mais ter de ver a cara da irmã Ignatia – enche-a de
nova esperança, algo que não sentia há anos.
– Vais ter de ter paciência – avisa a irmã Camille. – Não vai ser coisa para
acontecer tão cedo.
– Mas vai acontecer?
– Eu acredito que sim. Já começou noutros hospitais.
Elodie sorri, sentindo todo o seu corpo vibrar de entusiasmo e alívio. Há
uma réstia de medo – ainda tem de convencer os médicos de que não é louca
ou atrasada mental – e uma certa apreensão acerca do local para onde será
enviada, mas nada que possa sobrepor-se à alegria.
CAPÍTULO 33
Maggie
Maggie pega no carro e vai diretamente para a loja do pai. Espera por ele
do lado de fora, a andar de um lado para o outro até ele encerrar a loja. O dia
já escureceu e vê o vapor da própria respiração, mas o ar invernoso sabe-lhe
bem no rosto. Observa o pai a mandar embora os últimos clientes, os
retardatários do fim do dia, e depois as luzes apagam-se. Quando ele está
prestes a trancar a porta, Maggie bate no vidro.
O pai deixa-a entrar, intrigado.
– O que fazes aqui? – pergunta ele, trancando a porta atrás dela.
– Porque é que me disseste que levaste o meu bebé para o orfanato? – exige
ela saber. – Porque é que me mentiste?
Os ombros do pai descaem ligeiramente, o suficiente para que ela repare.
Continua com ar adoentado.
– Se falaste com aquele advogado – diz ele –, certamente já sabes porque
menti.
– Porque a vendeste.
– Não exatamente.
– O que é que isso significa?
– Era isso que íamos fazer – admite ele, esfregando a têmpora com o
polegar. – Como poderia eu contar-te uma coisa dessas? Era melhor que
pensasses que ela foi para um orfanato. Mas quero que compreendas,
Maggie, que a venda de bebés ilegítimos era uma prática comum.
– É horrível! – exclama ela.
– Não foi ideia minha. O Yvon sabia como tratar do assunto. Creio que ele
engravidou alguma rapariga.
Maggie bufa de nojo.
– Eu pensei que isso garantiria uma adoção – explica o pai. – E eu
precisava do dinheiro extra. Era uma situação vantajosa para todos, Maggie.
Mas, então, foi tudo por água abaixo.
– Porquê?
– A bebé nasceu doente. Deveria ter ido para um casal judeu de Nova
Iorque – explica o pai. – Estava tudo combinado. Eu ia entregá-la a uma das
freiras do Mercy Hospital...
– Freiras? – berra Maggie. – Elas estavam envolvidas na venda de bebés?
– Era um grande negócio – diz o pai. – Os advogados tratavam dos
documentos e depois davam o bebé a uma freira ou a um médico do lar para
mães solteiras. Estavam todos metidos nisso. O Goldbaum foi preso alguns
anos depois de eu ter tratado das coisas com ele. Apareceu nas notícias.
A celeuma de 1954. Goldbaum deu a entender que tinha sido injustamente
perseguido.
– Foi acusado de vários crimes – continua o pai –, entre elas falsificação de
certidões de nascimento. Mas ele escapou da primeira vez. Da segunda, teve
de pagar uma multa. Foi quando toda a história saiu nos jornais.
– Por quanto é que ias vendê-la? – quer saber Maggie.
– Por três mil dólares, mas as freiras iam receber a maior parte. Depois da
comissão do advogado, ficaríamos com quinhentos dólares. Metade disso
teria ido para o Yvon por ter deixado que ficasses na fazenda deles durante a
gravidez.
– A minha filha valia duzentos e cinquenta dólares para ti?
O pai não responde.
– O que aconteceu depois?
– O Goldbaum garantiu-me que eram boas pessoas que não podiam ter
filhos – continua ele. – Mas quando descobriram que o bebé era prematuro e
tinha icterícia, mudaram de ideias. Não queriam um bebé doente.
– Então, para onde a levaste? – insiste Maggie, limpando as lágrimas.
– Ela ficou no hospital. As freiras ficaram de a levar para o orfanato assim
que a icterícia desaparecesse e ela ganhasse algum peso. Tinha menos de dois
quilos.
– Então, simplesmente deixaste-a lá? – explode Maggie, não querendo
imaginar a sua pequena bebé abandonada no hospital.
– Deixei-a aos cuidados dos médicos e das freiras, sim.
– Então ela sempre foi para o orfanato, mas mais tarde? Talvez em abril?
– Talvez – responde ele. – Era prática corrente, Maggie. Tenho a certeza de
que ela acabou por ser adotada.
– Como podes ter a certeza? – acusa Maggie. – Não fazes ideia do que lhe
aconteceu. Não que te importes.
CAPÍTULO 35
Gabriel,
1961-1971
M aggie atende o telefone usando uma luva de forno. É a mãe, o que não
é invulgar, embora normalmente falem aos domingos à noite depois do
jantar.
– Porque estás a ligar tão cedo? – pergunta Maggie, empurrando o frango
de volta para o forno.
– Ele está doente – diz a maman.
– Quem é que está doente? – pergunta Maggie, o coração acelerando.
– O teu pai. Tem cancro.
– Cancro?
– Recusou-se a ir ao Dr. Cullen. Sabes como ele odeia médicos. Agora
espalhou-se por todo o corpo. Ele esperou demasiado tempo.
O pai de Maggie sempre teve um medo mortal dos médicos. Ela não se
lembra de uma única vez em que o pai tenha ido ao médico, nem para um
check-up, nem por causa de alguma indisposição ou doença. A estratégia dele
é lutar contra a doença sozinho e esperar pelo melhor.
– Há quanto tempo está doente?
– No ano passado reparou num pequeno caroço logo abaixo da orelha – diz
a maman. – Mentiu-me e disse que foi ao médico e que não era nada. Disse
que era só um quisto, por isso, ignorou-o até ser do tamanho de uma
almôndega. Foi quando eu lhe disse que tinha de ir removê-lo, que estava a
ficar tão grande como a cabeça dele. Eu mesma o levei e o Dr. Cullen
mandou-nos diretamente para o hospital. Maldito palerma! Nunca me disse o
mal que se sentia. E agora...
– Agora, o quê?
– Agora é demasiado tarde. Ele vai morrer.
– Deve ser possível fazer alguma coisa – diz Maggie, perturbada. – Há
sempre alguma coisa a fazer. Que tipo de cancro é?
– É raro – responde a maman. – O médico chamou-lhe o cancro do
jardineiro.
– Que diabo é isso?
– Por causa dos pesticidas, provavelmente.
Quantas vezes Maggie ouviu o pai defender os pesticidas diante dos
clientes? Eles são amigos da semente, meus senhores!
– Esteve a semana toda no hospital a fazer exames – continua a mãe. – Não
me deixou dizer a nenhum de vós. Pelo menos, até sabermos a gravidade.
Mandaram-no para casa para morrer.
Maggie leva uma mão à boca para reprimir o exalar de choque.
– Quanto tempo lhe deram?
– Meses. Um ano, no máximo.
– Eles não conhecem o papá – afirma Maggie, com a voz embargada. – Se
alguém é capaz de lutar e vencer uma coisa destas, é o pai. Ele não vai
desistir.
– Maggie. Isto não é um problema de negócios. É cancro.
Maggie encosta-se ao forno e chora baixinho. Não fala com o pai desde que
James Gabriel nasceu. Aliás, planeava não o fazer durante mais tempo, para o
punir pelo que fez a Elodie. Tem obrigado a mãe e as irmãs a virem a casa
dela visitar o bebé, em vez de ser ela a ir a casa dos pais. Agora está
devastada.
Ela sabia que o pai não estava bem. Há meses que parece não estar bem. Só
viu o neto uma vez, no hospital, quando veio visitá-lo à nascença, trazendo
charutos para quem quer que lá estivesse. Maggie não lhe disse uma palavra.
– Ouviste-me? – insiste a mãe.
– Não.
– Eu disse que ele pediu para te ver.
Quando ela chega, a mãe já a espera na cozinha, com uma aparência velha
e cansada. Só tem cinquenta anos, mas parece vinte anos mais velha.
Engordou ainda mais e passou a ter papada. A primeira coisa que faz é pegar
no bebé de Maggie. Olha para o rosto adormecido e sorri, um sorriso que lhe
ilumina os olhos escuros e suaviza as rugas fundas em volta da boca
geralmente carrancuda.
– Bonjour, mon p’tit choux – arrulha ela.
Maggie observa a mãe a embalar James Gabriel nos braços, murmurando
palavras sem sentido e olhando para ele em adoração, e pergunta-se se a
maman a embalou daquela maneira, se olhou para ela com aqueles mesmos
olhos enfeitiçados e lhe murmurou suavemente ao ouvido.
– Como está o papá? – pergunta ela.
– Está cheio de dores. Tem a morfina, mas não ajuda. O cancro já está no
fígado.
Maggie sobe as escadas. O quarto está escuro como breu e sinistramente
silencioso. Aproxima-se da cama e vê um pequeno monte sob a colcha de
chenille.
– Papá?
O pai mexe-se.
– Maggie?
Ela senta-se ao lado dele.
– Acende a luz – murmura ele.
Com a luz acesa, repara na significativa deterioração do pai. Tem de lutar
contra as lágrimas para não o alarmar. A raiva a que se agarrou ao longo dos
últimos dois meses esvai-se imediatamente. Ele parece um velho doente.
Esquelético, pálido, indefeso. O homem forte e fiável desapareceu. Não resta
qualquer vestígio da sua vitalidade, paixão ou arrogância.
– Maggie – ofega ele. Tem olheiras escuras e os braços são como ramos.
Tosse para um lenço e Maggie encolhe-se. – Como estás? – pergunta ele, a
voz a gargarejar de muco.
– Estou bem, papá.
Ele tenta um sorriso. Anos a fumar charutos amarelaram-lhe os dentes
inferiores.
– Agora tens um filho para criar – diz ele.
Maggie pega-lhe na mão.
– Se eu tivesse uma última vontade...
– Por favor, não digas isso.
– O menino precisa de um pai – continua ele. – O Roland aceitar-te-ia de
volta num piscar de olhos. Eu sei que ele ainda te ama.
Maggie fica em silêncio.
– A loja tem de ser posta à venda – diz ele.
– Eu sei. Posso ajudar com isso.
– Certifica-te apenas de que não acabe nas mãos de um francês, está bem?
Não quero que a Superior Seeds fique com má reputação depois de tanto
trabalho árduo para construir um negócio sólido e sério.
Ela solta uma risada. O pai sempre se achou superior aos outros.
– A menos que tu assumas a responsabilidade – acrescenta ele.
– Que fique com a loja?
– Sempre tiveste boa cabeça para os negócios – diz ele. – Tens de ser tu.
Podias geri-la. Mantê-la na família.
A mente de Maggie fervilha de ideias. Gerir a loja de sementes do pai era o
seu sonho de infância, mas agora tem o bebé e gosta de traduzir...
– Preciso de dormir – murmura ele. – Pensa nisso, hum?
Ela anui, sabendo que não será capaz de pensar noutra coisa.
O s seios de Maggie estão cheios; ela espera que o bebé acorde logo para
poder libertar-se de algum daquele leite. Tem estado a ler o último
manuscrito de Godbout para se distrair, fazendo anotações aqui e ali e
refletindo sobre a melhor abordagem. Desta vez, pediu direito de assinatura e
Godbout prometeu discutir o assunto com o editor. Ele tornou-se um paladino
da sua carreira de tradutora literária.
Ainda não decidiu o que vai fazer com a loja do pai. É certo que está
tentada a assumir as rédeas do negócio, mas Peter quer vendê-la e dar o
dinheiro à mãe. Ele não parece muito interessado na vontade do pai, dado que
nunca acreditou que o negócio fosse capaz de gerar um lucro substancial.
Embora Maggie esteja inclinada a acreditar que manter a loja na família seria
um investimento melhor a longo prazo, capaz de gerar um lucro razoável para
a mãe, ainda não lutou por ela. Ainda não sabe como poderá lidar com a
maternidade e a gestão de uma empresa de comércio retalhista muito
exigente. O pai nunca estava em casa, o que não é uma opção para Maggie,
mas a ideia de vender a loja a um estranho não lhe parece certa.
James Gabriel tornou-se um bebé rechonchudo e robusto, com lindo cabelo
loiro, olhos que pairam entre o azul e o cinzento e faces muito rosadas. A
mãe de Maggie chegou até a afirmar que ele era mais bonito do que Peter em
bebé. Desde o seu nascimento, a vida tornou-se uma longa sequência de
amamentação, privação de sono, loucura hormonal, confusão estonteante,
solidão e feroz e quase dolorosa devoção por aquela pequena criatura
egocêntrica. Não tem havido tempo para se preparar para a morte do pai, se é
que isso é possível. Também não tem havido tempo para ruminar sobre o
paradeiro de Elodie ou de Gabriel. De certa forma, Maggie é grata pelo seu
estado meio zombie e pela suspensão da realidade.
As irmãs têm sido uma grande ajuda. Agora que Vi tirou a carta de
condução, visita-a quase todos os dias, muitas vezes acompanhada por Nicole
e também por Geri, quando esta consegue algum tempo livre da faculdade.
Às vezes, uma delas fica com o pai para que a mãe também possa visitar o
bebé. Elas brigam para ver quem pega em James ao colo e lhe troca a fralda e
o acorda da sesta, especialmente a maman, que se desdobra em atenções.
Maggie e as irmãs acham que a mãe está a amolecer com a idade.
Violet entra na cozinha carregando um cesto de roupa cheio de fraldas
recém-lavadas, fraldas de ombro para pôr o bebé a arrotar, enxovais e
cobertores de bebé.
– Oh, Vi, és a minha salvadora – diz Maggie.
Vi pousa o cesto e tira os óculos, que estão embaciados.
– Adoro dobrar estas roupinhas minúsculas – diz ela.
– Tens tanto jeito com ele.
– Não sei como consegues fazer tudo isto sem um marido – comenta ela. –
Passo por cá amanhã depois do trabalho.
E então a porta bate atrás dela e a casa fica em silêncio. James Gabriel
dorme como um anjo.
Maggie volta a concentrar-se no livro de Godbout. Cerca de meia hora
depois, alguém bate à porta. Maggie repara nos óculos de Violet pousados na
ponta da mesa e pega neles ao levantar-se. Limpa rapidamente os mamilos
com um pano da loiça e corre para a porta.
Continuam a bater.
– Estou a ir, Vi! – diz ela, exasperada. Chega à porta e abre-a, com os
óculos na mão. – Só reparei neles agora, caso contrário, já te teria ligado
para...
Interrompe-se a meio da frase quando percebe que não é Violet.
Instintivamente, olha para baixo – os seios a verter e a camisa manchada – e
lamenta ter de abrir a porta.
– Maggie – cumprimenta ele.
Ela faz um esforço para se recompor, mas sente todo o corpo a tremer.
– Desculpa por não ligar com antecedência – diz ele. – Não sabia se querias
ver-me.
– Claro que quero ver-te – responde ela, com a voz embargada de emoção.
Ao mesmo tempo, os olhos percorrem o corpo dele, fazendo um inventário
rápido da cabeça aos pés. Está vestido com um casaco militar, calças de
ganga e um gorro da equipa de hóquei no gelo Montreal Canadiens enterrado
até à testa. Continua lindo. Os ombros parecem mais largos, os olhos mais
azuis, os lábios mais cheios. Ou será apenas imaginação dela? Parte dela quer
atirar-se para os braços dele; a outra, tem vontade de lhe dar um soco na cara.
Ela não faz ideia em que ponto estão.
– Entra – convida ela, abrindo a porta.
– Bela casa – comenta ele, seguindo-a até à cozinha. – Fizeste um bom
trabalho a decorá-la.
Nesse aspeto, Maggie é como a mãe. Gosta de fazer as suas próprias
cortinas, de comprar tecidos vintage e de usar muitos folhos; compra
antiguidades em feiras da ladra e leilões, para depois as restaurar e pintar.
– Estás com uma nova tradução? – pergunta ele, reparando nas anotações
pousadas na mesa da cozinha. – Li o último que traduziste. Fizeste uma
tradução brilhante.
– Fico feliz por teres gostado – diz, sentindo a raiva a acumular-se dentro
dela.
– Como tens estado? – pergunta ele, como se tivesse acabado de voltar de
uma pescaria.
– Muita coisa aconteceu.
– Soube do teu pai. Lamento muito.
– Por onde andaste? – deixa ela escapar. – Tens ideia de tudo o que fiz para
tentar encontrar-te? Quantas vezes importunei as tuas irmãs? Simplesmente
desapareceste!
Ele tira o gorro e passa a mão no cabelo, que cresceu desde a última vez
que o viu, mas não diz nada, sentando-se à mesa da cozinha sem esperar ser
convidado.
– Liguei para todo o lado – continua ela, sentando-se também. – Até falei
com a tua mulher. Fui à Canadair, ao apartamento em Papineau...
– Eu sei.
– Despediste-te da fábrica sem dizer água vai? Simplesmente
desapareceste. Porquê?
– Tudo se desmoronou depois de as coisas terminarem entre nós. Deixei a
Annie. Não aguentava mais estar ali, não aguentava mais conduzir o táxi,
trabalhar na fábrica. Tive de me afastar.
– Porque não me ligaste?
– Era de ti que eu tinha de me afastar – admite ele. – Acreditava que as
coisas nunca iriam funcionar entre nós. Tu estavas acostumada a um tipo
diferente de vida. Tinhas expectativas às quais eu nunca poderia
corresponder.
Maggie desvia o olhar.
– Mas já me conformei – conclui ele.
– O que é que isso significa?
– Com aquilo que sou.
– Percebo – responde ela, incerta do que ele está a tentar dizer-lhe.
– Tu ainda eras casada, Maggie. O que tinha eu para oferecer? Nada.
– Podias ter voltado para Dunham, para a fazenda da tua família.
– E ficar sujeito às regras da minha irmã mais velha para o resto da vida?
Não ter direito a dizer uma palavra enquanto ela toma todas as decisões,
como se eu ainda tivesse catorze anos? Ou roubar-te ao teu marido bancário
rico e tomar conta de ti? Como? Com o quê?
– Eu deixei-o – responde ela. – Já lhe tinha dito que ia fazê-lo. Não dou
importância a coisas materiais. Eu só te queria a ti. Fartei-me de esperar por
ti.
– Não me parecia boa ideia na altura.
– Para onde foste?
– Para Gaspé.
Ela ergue o olhar para ele, permitindo-se realmente observá-lo pela
primeira vez.
– Arranjei trabalho na pesca de bacalhau – diz.
– Nem às tuas irmãs disseste onde estavas?
– A Clémentine e eu estávamos de candeias às avessas. A Angèle sabia,
mas nunca contaria a ninguém se eu lhe pedisse para não o fazer. Nem
mesmo à Clem. Eu só precisava de ficar sozinho.
– Fizeste um ótimo trabalho.
– Era essa a ideia. – Ele junta um pouco de leite ao chá. – Mas agora estou
bem. Muito bem, na verdade. O trabalho físico é bom. Adoro viver junto ao
mar, trabalhar ao ar livre. Longe de Montreal.
– E de mim.
– A princípio. Eu precisava de clarear as ideias, de assimilar tudo.
– E agora?
– Comprei um terreno em Gaspé.
Ao ouvir aquela declaração, Maggie tem o mesmo sentimento agudo de
perda que teve da primeira vez que ele a deixou.
Mais do que qualquer outra coisa, quer implorar-lhe para ficar, mas ele
comprou terras, extinguindo completamente a segunda oportunidade de amor.
– Não quero conduzir um táxi ou passar o resto da vida na Canadair – diz
ele. – Foi a única coisa que consegui ter claro enquanto estive fora.
Um grito alto do quarto do bebé sobressalta os dois. Gabriel quase pula do
assento. Maggie está habituada aos gritos do filho a acordar e ao seu péssimo
sentido de oportunidade. Espera um momento, vendo se ele acordou de vez e
pode finalmente dar-lhe de mamar e aliviar a dor nos seios, mas o choro
subsiste. Ele tornou a adormecer.
– A Angèle disse-me que tinhas um bebé – diz ele. – Parabéns.
Ela faz uma pausa e confessa:
– É teu, Gabriel.
A revelação deixa-o visivelmente abalado. Ele abre a boca, mas nenhuma
palavra sai. Fica ali sentado um momento, a assimilar a informação, os olhos
vidrados.
– Eu tentei encontrar-te – lembra ela. – Queria que ele tivesse um pai.
– Eu sei – murmura ele. – Eu não... não sei o que dizer.
Maggie deixa-o absorver a notícia mais um pouco.
– Queres conhecê-lo? – pergunta, quebrando, por fim, o silêncio.
O rosto dele ilumina-se e responde:
– Sim. Por favor. – Ele levanta-se e dá uns passos em direção a Maggie,
puxando-a, em seguida, para um abraço inesperado. – Eu pus essa hipótese –
admite ele, soltando-a. – Quando a Angèle me disse, achei que o bebé podia
ser meu.
– Devias ter voltado, nesse caso.
– Mas também podia ser do teu marido. Eu não queria piorar ainda mais as
coisas. E ainda estava chateado, Maggie.
– Vou dar-lhe de comer e depois trago-o para baixo.
James Gabriel sorri assim que vê o rosto dela. Ele adora-a. Maggie é a peça
central e essencial do universo dele.
– Olá, pequenino! – Pega nele e beija-lhe a bochecha quentinha. – Hora de
comer – sussurra, encostando-o ao peito.
De imediato, ele agarra-lhe um punhado de cabelo e puxa com força. Ela
solta um gritinho, maravilhada com a sua força. Senta-se com ele na cadeira
de baloiço e começa a amamentá-lo, deixando que ele lhe drene os seios do
leite e tentando acalmar-se antes de o apresentar ao pai. Quantas vezes
imaginou aquela cena? Mal pode acreditar que está realmente a acontecer. Já
quase tinha desistido.
Depois de o bebé afastar o rosto e bolçar no seu ombro, ela segura-o contra
o peito e diz:
– Agora vamos lá conhecer o teu pai.
Leva-o para baixo e respira fundo antes de entrar na cozinha.
– Aqui está ele – anuncia ela, desfazendo-se em lágrimas antes sequer de
Gabriel pegar nele.
– Como é que ele se chama? – pergunta-lhe Gabriel, estendendo os braços
para o receber.
– James Gabriel.
Gabriel arregala os olhos e abre um sorriso.
O bebé arrota quando passa da mãe para o pai e Maggie inclina-se para lhe
limpar o queixo com a manga da camisa. Gabriel pega no bebé ao colo com
uma confiança surpreendente.
– Mon Dieu – murmura ele, esfregando o nariz na cabeça de James e
beijando-lhe a face redondinha. – É lindo.
Gabriel olha para Maggie fixamente. Ele está a chorar.
– O meu filho – diz ele com orgulho. – Mon gars.
Maggie ri, sentindo-se tremendamente feliz.
– Bonjour, mon homme – diz ele suavemente, erguendo-o nos braços.
James sorri para ele. Amor à primeira vista.
Gabriel começa a cantar-lhe em francês.
– Fais dodo, bébé à Papa...
O coração de Maggie acelera. James arrulha e ri.
– Si bébé pas fais dodo, grand loup-loup va manger.
O telefone toca e Maggie atende.
– O teu pai está morto – diz a mãe.
Sem mais.
CAPÍTULO 40
A luz do sol
devagarinho.
que transborda pelas cortinas transparentes acorda-a
Todos os acontecimentos do dia anterior retornam
lentamente: o funeral, a conversa com Clémentine.
Maggie espreguiça-se, rebola para o lado e aninha-se junto a Gabriel.
Ele aperta-lhe a mão contra o peito e ela sente na palma da mão o coração
dele a bater.
– Quero que te mudes para Gaspé comigo – diz ele, com a voz rouca de
sono. – Comprei aquela terra para nós, Maggie. Foi por isso que voltei. Para
um novo começo.
– Não posso simplesmente partir.
– Gaspésie é um lugar maravilhoso – diz ele, virando-se para a encarar. – É
o melhor de dois mundos. Campo junto ao mar.
– A minha vida está aqui.
– Podes traduzir livros em qualquer sítio.
– O meu pai deixou-me o negócio – informa ela. – E eu quero geri-lo.
Sempre quis.
Gabriel suspira e deita-se de costas.
– Tu desapareceste completamente da minha vida – diz ela. – Não podes
voltar um ano depois e esperar que eu desista de tudo. Eu quero estar contigo,
mas aqui.
– Eu quero criar o meu filho – responde ele, acendendo um cigarro. – Um
menino precisa de um pai na sua vida. A minha terra é junto ao mar. Eu
posso ensiná-lo a pescar...
– A paternidade é mais do que pescar.
– Eu sei que sim.
– Não estás a compreender – insiste ela. – Eu quero ficar aqui e tomar
conta da loja de sementes do meu pai. Sempre foi o meu objetivo. E sei que
serei boa a fazê-lo.
– Como podes trabalhar e cuidar do James?
– Hei de encontrar uma maneira – responde ela. – A Violet ofereceu-se
para me ajudar.
– Somos uma família, Maggie. Devíamos ficar juntos.
– Com isso queres dizer ficar onde tu queres.
– Eu amo-te – diz ele. – Sempre amei. Porra, Maggie. Acredita em nós e
escolhe-me em vez do teu pai.
O bebé solta um grito alto do berço e Gabriel instintivamente sai da cama
para o ir buscar.
– Não podes fumar enquanto estás com ele ao colo! – censura-o Maggie.
– Porque não?
– Porque não é saudável! Faz-lhe mal aos pulmões.
– Quem disse?
– Ele nasceu prematuro. Os pulmões dele são muito frágeis.
Gabriel apaga o cigarro e sai do quarto, voltando momentos depois com
James nos braços.
– Queres vir morar comigo para Gaspé, pequenino? – pergunta ele ao bebé,
beijando-lhe a cabeça e as faces.
Uma brisa sopra pela janela aberta, agitando as cortinas e atirando ao chão
as notas de tradução de Maggie pousadas na mesa de cabeceira, como folhas
caindo suavemente das árvores. Ela baixa-se para as apanhar, aliviada por ter
algo que fazer. Depois de as arrumar devidamente na mesa, arrisca uma
olhadela rápida a Gabriel.
Ele acaricia o cabelo macio do filho.
– Não achas estranho, Maggie, teres abortado todos os filhos do teu marido
e o meu ser o único que sobreviveu? Como podemos não acreditar que é
destino?
– Eu não posso mudar-me para Gaspé.
– Todos os obstáculos que se interpuseram no nosso caminho já não
existem – diz ele. – O teu pai morreu. Já não precisas da aprovação dele.
Abandona o plano dele para a tua vida, Maggie.
– É isso que não compreendes – refuta ela. – Tomar conta da loja é o meu
plano para a minha vida. Sempre foi.
Gabriel não parece convencido.
– Não se trata apenas de lhe agradar – afirma ela, com absoluta certeza.
A razão para ficar é cumprir o propósito da vida dela, não o do pai.
– O teu lugar também é aqui – diz ela. – Só não queres admitir.
– Eu já comprei a terra lá, Maggie. Tenho um bom emprego...
– Então podes ver o James sempre que vieres de visita.
– Isso quer dizer que já decidiste? – pergunta ele, de olhos fixos no filho.
– Tu não?
Ela afasta-se, sem certeza de ser capaz de suportar outra separação. Depois
de tanto tempo, nenhum dos dois está preparado para se sacrificar em prol do
outro. Gabriel quer ficar com ela nas condições dele, no território dele, o que
é exatamente o que ela sempre quis dele. Quando ele lhe passa o bebé,
Maggie apercebe-se de que já temia que tudo terminasse assim no instante
em que lhe abriu a porta. Nos momentos cruciais, nenhum dos dois foi capaz
de assumir o compromisso com o outro. Talvez o amor nem sempre
prevaleça para além do que a pessoa é na sua essência.
Ele veste as calças pretas do funeral, abotoa a camisa branca e enfia a
gravata no bolso sem dizer uma palavra.
– Gabriel? – chama ela. – Antes de voltares para Gaspé, há algo que eu
gostaria que fizéssemos juntos.
CAPÍTULO 42
Elodie
1961
Maggie
9 de setembro de 1949
Agradeço a disponibilidade em ter vindo à cidade para se encontrar
comigo, Mr. Hughes. Foi um prazer conhecê-lo. Vou começar de
imediato a procurar uma colocação adequada. Peço-lhe que me
mantenha informado sobre o progresso da gravidez, saúde, data
prevista para o nascimento, etc. da sua filha. Conforme a nossa
conversa, a família adotiva será judia, mas asseguro-lhe que as
famílias que aceito representar são do mais alto nível.
12 de dezembro de 1949
4 de fevereiro de 1950
Mr. Hughes,
Aqui ficam os pormenores do processo: irá entregar a criança à irmã
Jeanne-Edmoure, no Mercy Hospital. Ela trará o bebé até mim. O
senhor, o médico e a freira receberão o pagamento antecipado. Não
deve haver trocas de dinheiro entre si e qualquer uma das partes. Não
verá os pais adotivos nem saberá os seus nomes. Fica acordado que
não deve haver qualquer contacto.
18 de março de 1950
Mr. Hughes,
Lamento informar que não consegui convencer o casal a ficar com o
bebé, devido à saúde fraca. Vou continuar a procurar uma nova
colocação, embora, de acordo com a nossa conversa anterior, a
icterícia e o baixo peso ao nascer sejam obstáculos. Mantê-lo-ei
informado.
Maggie examina a correspondência e encontra um velho recorte do jornal
La Presse, datado de fevereiro de 1954.
Maggie vasculha o armário e tira o resto que o pai lhe deixou. Alguns
livros de gestão – A Bíblia do Empreendedor, A Prática da Gestão, de Peter
Drucker, Pense e Fique Rico, de Napoleon Hill –, assim como alguns livros
de jardinagem e catálogos antigos, e uma composição que Maggie escreveu
na terceira classe.
Mr. Hughes,
Venho por este meio informá-lo de que, na sequência de uma ordem
governamental recente, o antigo orfanato Saint-Sulpice é agora o
Hôpital Mentale Saint-Sulpice. A criança a quem se refere já não está
aqui. Não tenho autorização para divulgar qualquer outra informação.
Atenciosamente,
Irmã Alberta
Elodie
1967
E lodie está deitada na cama, a olhar para o teto que tanto despreza. Não
importa que a enfermaria A seja conhecida por Enfermaria da Liberdade
e viver ali seja um grande avanço comparado com a enfermaria B; continua a
odiar cada centímetro quadrado daquele hospital. E embora a vida na
enfermaria A – onde está desde 1964 – lhe tenha proporcionado uma maior
liberdade de movimentos dentro do hospital, mais independência e os abusos
físicos tenham cessado, Saint-Nazarius continua a ser o que sempre foi para
ela: uma prisão.
Esta é a sua última noite na prisão. A irmã Camille arranjou forma de ela
dividir um apartamento com outra rapariga de Saint-Nazarius que vive
sozinha no mundo lá fora há quase um ano.
A rapariga, Marie-Claude, arrenda atualmente um apartamento de uma
assoalhada e meia no distrito de Pointe Saint-Charles. Elodie lembra-se dela
de Saint-Nazarius – uma rapariga alta e sossegada, cujo temperamento
adaptável e subserviente lhe poupou, pelo menos, algumas das torturas e
punições sofridas pelas outras. Marie-Claude e Elodie não eram exatamente
amigas, mas conheciam-se da enfermaria B e coexistiam sem incidentes.
Elodie vira-se para o lado e fecha os olhos. No dia seguinte, vai sair
daquele lugar e encarar o futuro. Por mais surreal que lhe pareça, a emoção
dominante nessa noite é o medo. A verdade é que quase preferia ficar ali.
Quase.
Ali, sabe o que esperar e o que esperam dela. Há uma certa simplicidade no
ritmo dos seus dias, uma familiaridade e previsibilidade que não está pronta a
abandonar. Quem sabe o que a espera no mundo lá fora?
Depois de a irmã Camille lhe ter encontrado um sítio para viver na cidade,
o diretor clínico de Saint-Nazarius chamou Elodie ao seu escritório e tentou
convencê-la a ficar.
– O que vais fazer lá fora? – perguntou-lhe ele.
Ela encolheu os ombros; não fazia ideia. Ele ofereceu-lhe um quarto
privado – fora da enfermaria psiquiátrica –, um emprego remunerado na
farmácia do hospital e a liberdade de entrar e sair como bem entendesse.
Era uma oferta tentadora e Elodie prometeu pensar, o que fez. A pergunta
dele atormentou-a durante dias. O que vais fazer lá fora?
Elodie não tem educação, qualificações, dinheiro, família ou amigos. Além
do orfanato e de alguns passeios de autocarro até uma cidade vizinha, nunca
saiu da propriedade de Saint-Nazarius. Está internada desde os cinco anos, e
tem agora dezassete, portanto, a maior parte da sua vida.
Pelo menos ali, tem a irmã Camille. A irmã Camille tornou-se a sua melhor
amiga, defensora e confidente. Foi ela quem a ensinou a ler, usando a Bíblia,
e que a transferiu para a enfermaria A. E agora, foi ela quem a libertou.
E se o mundo real não for melhor do que Saint-Nazarius? O mais certo é
não ser capaz de esconder a sua burrice e falta de experiência, e todos saberão
que cresceu num hospício.
A sua nova casa fica na cave de uma casa geminada de tijolo vermelho na
rue de la Congrégation, situada numa zona industrial da cidade.
– Vais gostar daqui – diz a irmã Camille, tentando preencher o silêncio
com as suas habituais explosões de otimismo.
– Há um jardim aqui perto – acrescenta o irmão da irmã Camille. – Mesmo
ali na esquina da Wellington com a Liverpool.
– Wellington e Liverpool? – repete Elodie num inglês enviesado.
– São sobretudo irlandeses que aqui vivem.
– E franceses também – acrescenta a irmã Camille, lançando um olhar de
advertência ao irmão. – Griffintown, do outro lado do canal, é todo irlandês,
mas não te preocupes, porque aqui no Pointe há muitos franceses.
Elodie olha pela janela. O bairro além da sua rua é uma mistura de fábricas,
casas geminadas e chaminés altas.
– Ainda não acabaram as obras para o novo metro – explica a irmã Camille.
– É por isso que há muito entulho da construção.
– O metro?
– É um comboio subterrâneo. Está a ser construído para a exposição
mundial, este verão.
A irmã Camille parece estar a falar numa língua desconhecida. Comboio
subterrâneo? Exposição mundial? Elodie olha-a fixamente, lutando contra as
lágrimas.
– Podemos falar disso tudo quando estiveres instalada – diz a irmã Camille.
– Não te preocupes, Elo. As coisas vão melhorar.
Elodie assente com a cabeça, não acreditando no que ela diz.
– A cidade está a florescer – continua a irmã Camille. – É uma altura
maravilhosa para viver aqui. Espera pelo verão e verás.
Elodie força um sorriso, pois vê o quanto a irmã Camille se esforça.
– Eu gosto – diz ela, olhando para a casa vermelha. A renda é de setenta e
quatro dólares por mês, incluindo aquecimento, do qual ela pagará metade. –
Vamos entrar – convida, respirando fundo.
– E é tua – lembra-lhe a irmã Camille. – Não precisas de dar satisfações a
ninguém. Só a Deus.
Elodie ignora a observação. Não tem sentido de humor em relação a Deus.
Marie-Claude espera por ela lá dentro. O apartamento é limpo e pouco
mobilado. Um quarto com um sofá-cama e uma cómoda para partilharem,
uma pequena casa de banho e uma kitchenette com espaço apenas para uma
mesa quadrada e duas cadeiras dobráveis.
– Não é muito – desculpa-se Marie-Claude –, mas é melhor do que Saint-
Nazarius.
Elodie sorri e pousa a mala.
– Toma – diz a irmã Camille, entregando-lhe um papel.
Elodie abre.
– Dominion Textiles?
– Está a contratar costureiras – explica ela. – Vi o letreiro na montra. A
fábrica fica em Saint-Henri.
– Não foi aí que aquele tipo da FLQ foi pelos ares no verão passado? –
pergunta Marie-Claude.
– Pelos ares? – repete Elodie, sentindo-se fraca.
– Ele estava a tentar fazer explodir a fábrica da Dominion Textiles, mas a
bomba detonou antes do tempo.
– Porque faria ele tal coisa?
– Ele era da FLQ – explica Marie-Claude. – É um grupo terrorista que quer
que o Quebeque se separe do Canadá, por isso, ataca empresas inglesas como
a Dominion Textiles.
Elodie olha nervosamente para a irmã Camille.
– Continuam a precisar de costureiras – diz a irmã Camille, categórica. –
Não voltará a acontecer. Pelo menos, lá não. É o sítio perfeito para ti. É fácil
ir de Pointe a Saint-Henri.
– Como é que eu lá chego? – quer saber Elodie.
A irmã Camille suspira.
– Logo descobres, Elo. Não és incapaz.
– Sou, sim! – protesta ela. – É exatamente isso que eu sou.
A irmã Camille olha-a nos olhos.
– Não precisas de ser – diz ela. – Agora, és livre.
– É fácil para si dizer – murmura Elodie.
– Deves perdoar as outras freiras – afirma a irmã Camille com severidade.
– Algumas de nós tinham de tratar de cinquenta crianças sem qualquer ajuda.
As mais razoáveis foram proibidas de vos tratar com compaixão ou afeição.
Mas não éramos todas más.
Elodie olha para o chão.
– Peço desculpa – murmura ela. – Tem sido tão boa para mim e eu não
tenho forma de retribuir.
– Podes retribuir perdoando as outras.
Elodie cala-se, pois nunca será capaz de perdoar as outras – muito menos a
irmã Ignatia –, mas não quer desiludir a irmã Camille e dizê-lo.
– Eu tenho de ir – anuncia a irmã Camille.
– Já?
A irmã Camille abraça Elodie – um abraço curto e rápido – e depois dá-lhe
algum dinheiro.
– Para te ajudar a começar – diz ela. – Volto daqui a uma semana.
E então, deixa as duas raparigas na sua nova vida.
Não demora um minuto para que Elodie recomece a chorar. Marie-Claude
estende-lhe um lenço.
– Eu também fiquei assim quando saí – diz ela, sentando-se no sofá. – Não
conseguia parar de chorar.
– Como é que eu vou encontrar este sítio? – lamenta-se Elodie, segurando o
papel. – Não faço ideia de onde estou, muito menos de onde fica Saint-Henri.
E se alguém tentar bombardear a fábrica outra vez? É uma loucura, não é?
– Eu vou contigo – oferece-se Marie-Claude. – Ajudo-te a encontrar o sítio.
– Obrigada.
– Tens de arranjar um emprego imediatamente – acrescenta ela. – Não
posso pagar a renda sozinha.
Elodie assente, sentindo-se assoberbada.
– Queres desfazer a mala? Tenho uma gaveta para ti.
Elodie abre a mala no chão e retira os parcos pertences. Todos cabem na
gaveta de baixo com espaço de sobra.
– Estás com fome? – pergunta Marie-Claude. – Há comida no frigorífico
que posso partilhar contigo até teres dinheiro para comprares a tua.
O frigorífico. Elodie olha para a caixa de metal branca na cozinha e
lembra-se de o médico em Saint-Nazarius lhe perguntar se sabia o que era.
Ela não sabia.
Marie-Claude levanta-se de um pulo, cheia de energia nervosa, e vai para a
cozinha.
– Tenho um resto de carne de porco – diz ela. – E podemos cozer batatas.
Elodie concorda com um aceno silencioso.
– Vem ajudar-me.
Hesitante, Elodie junta-se à nova companheira de casa na cozinha. Fica
estupefacta ao ver Marie-Claude encher uma panela com água, tapá-la e
colocá-la no fogão.
– É assim que se liga o fogão – explica ela, rodando o botão. – Agora,
descascamos as batatas.
Ela pega numa das facas da gaveta e começa a descascar habilmente a pele
castanha e suja da batata.
– Porque fazes isso? – pergunta-lhe Elodie.
– Porque não se coze as batatas com a casca.
– Porque não?
– Porque não.
Marie-Claude continua a descascar as batatas. A casca sai numa espiral
perfeita.
– Queres tentar?
– Não.
– Vais aprender tudo isto – garante Marie-Claude. – Foi o que eu fiz.
Elodie acena com a cabeça, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.
– Sinto muito...
– Não te preocupes. Sabes que mais? Vamos deixar isto e sair.
– Sair?
– Vamos almoçar fora.
– Mas há tanta gente...
– Sim, existem pessoas no mundo. Não podes esconder-te delas.
– Tenho muito medo.
– De quê?
Elodie encolhe os ombros.
– Que eles saibam.
– Saibam o quê?
– Que acabei de sair de um hospício.
– Só tu e eu sabemos disso.
– Sinto como se estivesse escrito na minha testa...
– Mas não está. Quanto dinheiro é que a irmã Camille te deu?
Elodie enfiou a mão no bolso e tirou algumas notas de dólar.
– Não vamos gastar muito – diz Marie-Claude. – Cinquenta cêntimos, no
máximo. Apenas o suficiente para comemorarmos.
As raparigas vestem os casacos e Marie-Claude empresta o cachecol a
Elodie para que faça as vezes de gorro. Saem, encolhendo-se ao sentirem o
frio cortante do ar nas faces. O vento sopra com força e Elodie puxa o
cachecol até aos olhos.
– Tabarnac, y’fait fraite – pragueja Marie-Claude.
A neve range debaixo dos pés enquanto caminham até ao Parc Marguerite
Bourgeoys. Elodie olha para cima e repara num grupo de crianças vestidas
com roupa de neve, a correr e a gritar, brincando na neve. O que mais a choca
é a liberdade que elas mostram. Não parecem ter uma ponta de medo de rirem
em voz alta ou de levantarem a voz ou de se divertirem.
Viram para Wellington e o som da risada das crianças permanece, seguindo
Elodie pela rua.
– É aqui – anuncia Marie-Claude, parando em frente a um sítio que diz
PAUL PATATES FRITES na montra. – O meu snack-bar preferido.
O interior é quente e cheira a óleo de fritar, como no refeitório de Saint-
Nazarius, quando serviam perca frita em ocasiões especiais. Batem com as
botas para se livrarem da neve e sentam-se lado a lado no balcão em bancos
de couro vermelho que giram.
A princípio, Elodie tem medo de cair, mas logo rodopia como uma criança
num carrossel.
Marie-Claude pede dois steamés e duas Pepsis. Cerca de cinco minutos
depois, a empregada pousa à frente delas um prato que cheira
maravilhosamente.
– O que é isto? – pergunta ela a Marie-Claude, inclinando-se sobre o prato
e inalando o agradável cheiro a gordura.
– É um cachorro-quente e batatas fritas – responde Marie-Claude.
Elodie pega numa batata frita e mete-a à boca, sem se importar que lhe
queime a língua. Fecha os olhos e delicia-se com o sabor e a textura –
crocante por fora, mole por dentro, perfeitamente oleosa – e depois pega
numa mão-cheia delas.
– Experimenta isto – diz Marie-Claude, esguichando um líquido viscoso
vermelho de um frasco de vidro que diz HEINZ. – Molha as batatas no
ketchup. Assim, exatamente.
– Mon Dieu – suspira Elodie, pegando com avidez no cachorro-quente. – É
delicioso.
– Põe ketchup nisso também – instrui Marie-Claude.
– Mon Dieu! – exclama Elodie novamente, mordendo a salsicha rosada
envolta num pão quentinho e esponjoso. – Porque é que não nos alimentaram
assim em Saint-Nazarius?
– Isto é comida verdadeira – diz Marie-Claude, com a boca cheia. – Tens a
cara cheia de ketchup.
– Deixa lá.
A empregada pousa dois copos de um líquido escuro. Elodie leva a
palhinha aos lábios e sorve para ajudar a engolir o cachorro-quente.
– Oh, mon Dieu – repete ela, sentindo um formigueiro nos lábios e a
efervescência na língua. – É tão doce!
– É Pepsi – diz Marie-Claude. – Maravilhosa, não é?
Elodie ri, deliciada.
– Sim – responde ela, bebendo outro gole longo. – Maravilhosa.
CAPÍTULO 47
Maggie
Caro M. Bourassa,
Escrevo em nome da minha filha, Elodie de Saint-Sulpice, uma órfã
nascida...
Elodie
1970
Dennis espera por ela sozinho, sentado à mesa, até as luzes da charcutaria
se apagarem. Saem juntos, ignorando as sobrancelhas erguidas e as
piscadelas de olho de Lenny e Rhonda.
– Para onde foram os teus amigos? – pergunta-lhe ela, ao saírem para a St.
Catherine Street, que ainda está bem iluminada e cheia de foliões.
– Voltaram para o Cleópatra – admite ele meio envergonhado. – Sabes o
que é?
Elodie acena com a cabeça. O Café Cléopâtre é um clube de striptease no
bairro da luz vermelha. Ela sabe-o porque a sua vizinha na rue de Sébastopol
é dançarina lá.
– Foi a primeira vez que fui a um sítio desses – acrescenta Dennis. – Senti-
me muito desconfortável e foi por isso que saímos. Não é coisa para mim. Eu
preferi experimentar a carne fumada.
– E os teus amigos?
– Gostaram das strippers – responde ele, com uma risada.
– Porque vieste a Montreal? – quer ela saber.
O que ela quer dizer é: Porque é que Montreal é o teu último destino antes
de ires para a guerra? Mas não fala inglês suficiente para formular a frase;
entende consideravelmente mais do que consegue comunicar.
– Montreal é tão europeia – explica ele. – Os bares estão abertos até mais
tarde, as mulheres são mais bonitas e aqui já tenho idade legal para beber.
Também por causa dos clubes de striptease e da carne fumada.
– Disseste que não gostas de clubes de striptease...
– Mas não sabia disso até hoje à noite.
Elodie sorri e ele pega-lhe na mão. O corpo dela fica tenso ao toque dele.
– Não te preocupes – diz ele. – Estou só a ser cavalheiro.
Ela deixa-se ficar de mão dada com ele e caminham assim até à Ontario
Street.
– Tu coxeias – comenta ele.
– Já nasci assim – diz ela, parando.
– Pensei que podia ter sido poliomielite.
– É aqui que apanho o elétrico – informa ela. – Podes vir comigo, mas
depois tens de te ir embora.
– Palavra de escoteiro – promete ele, levantando a mão.
– Quem?
– Escoteiro. É uma expressão.
Ela encolhe os ombros e ambos riem.
Dennis fala sem parar, sentados lado a lado, durante a viagem no elétrico
vazio. Elodie esforça-se para o entender, ouvindo atentamente, satisfeita por
o deixar ser o centro das atenções enquanto lhe observa discretamente o perfil
fascinante. Tem um nariz afilado e um começo de barba no rosto. Ela
pergunta-se se ele se barbeia. Não parece suficientemente adulto para ser um
soldado.
Quanto mais ele fala, mais ela gosta dele. Dennis admite adorar desportos,
mas não ser grande atleta. Tem duas irmãs mais novas, ambas ainda no liceu.
O pai é canalizador. A mãe queria que ele fosse para a faculdade, mas estudar
não é a cena dele. Diz muito isso: a cena dele. Clubes de striptease e estudar
não são a «cena» dele. Raparigas francesas são.
Portanto, passou o último ano como aprendiz do pai. E então foi recrutado.
– Estou a tentar ser otimista – diz ele, os olhos turvando-se. – Não me
importei muito de ir fazer a recruta. Passei oito semanas em Fort Lewis e
outras oito semanas em Fort Polk a fazer o treino complementar. Nunca
estive em tão boa forma física, apesar de ter recuperado alguns quilos nas
últimas duas semanas de licença.
Elodie assente, fingindo entender tudo o que ele diz.
– Depois de oito semanas de recruta e mais oito de treino especializado,
estou evidentemente pronto para a guerra. Vou para Da Nang na próxima
semana.
– Deves estar com medo.
Dennis encolhe os ombros e olha pela janela.
– Só um idiota não estaria – resmunga ele. – Mas vou defender a
democracia.
Apesar da barreira da língua, Elodie ainda é capaz de detetar o sarcasmo e a
bravata na voz dele.
Saem na Wellington e atravessam o Parc de la Congrégation. É uma bela
noite de outono, com um toque de humidade no ar. O solo está coberto até
aos tornozelos de folhas húmidas vermelhas e amarelas. Elodie não toma
nada como um dado adquirido. O ar fresco, um céu estrelado, um labirinto de
árvores majestosas, uma brisa fresca, o calor, a neve no rosto, o chapinhar de
uma poça de chuva, o sol nas costas, o zumbido de mosquitos no ouvido, o
perfume de uma flor... tudo são presentes e ela sabe disso.
– O que estás a pensar? – pergunta-lhe Dennis.
Ela sorri. Não há palavras para lhe transmitir o sentimento agridoce de uma
noite como aquela, muito menos numa língua que ainda não domina. Sem
responder a Dennis, ela baixa-se, apanha um monte de folhas e atira-as ao ar.
Quando as folhas caem sobre a sua cabeça, ela pensa se aqueles raros
momentos de felicidade estarão sempre interligados com tristeza, nunca
existindo uma sem a outra.
Dennis responde com o mesmo gesto, rindo quando várias folhas ficam
agarradas ao uniforme de Elodie e ao cabelo comprido.
– Pareces uma daquelas hippies – diz ele, sacudindo-lhe uma folha do
ombro.
Ela atira outro monte de folhas na direção dele antes de se lançar a correr
pelo parque, adorando a sensação dos pés no chão enquanto corre, a falta de
ar no peito. Isto é liberdade, pensa. Dennis alcança-a e puxa-a para si. Antes
que ela possa impedi-lo ou entrar em pânico ou pensar duas vezes, ele beija-
a.
O seu primeiro beijo. Com os lábios dele encostados suavemente aos dela,
sente-se tomada pela emoção. As lágrimas vêm-lhe aos olhos. Ele sabe a
cerveja, carne fumada e mostarda, e é maravilhoso.
– Não vais mandar-me embora para o hotel, vais? – pergunta ele, tocando-a
na face.
Ela desvia os olhos.
– E então? Posso entrar?
Marie-Claude foi com o namorado visitar a família dele em Valleyfield
durante o fim de semana prolongado, por isso, tem o apartamento só para si
até segunda-feira à noite. Além do mais, já não é virgem; há muitos anos que
não é, graças a um dos enfermeiros de Saint-Nazarius.
– A esta hora da próxima semana estarei numa selva – lembra ele.
– Isso é mesmo verdade? – pergunta ela.
Ainda não tem a certeza se pode confiar nele. Aliás, não tem a certeza se
pode confiar seja em quem for.
– Eu não mentiria sobre a guerra – diz ele, parecendo um pouco ofendido.
Os prós e os contras de o deixar entrar são um turbilhão na sua mente, mas
ele espera que ela se decida. Contras: está apavorada. Prós: ele vai para o
Vietname, por isso, não a abandonará quando perceber que é muito superior a
ela ou que pode arranjar muito melhor. Ela nunca mais o verá, portanto, não
precisa de se preocupar com o que ele possa pensar dela. Encorajada pela
partida iminente dele, sente-se livre para ser quem quiser nessa noite, e
mesmo que ele descubra o pior – a ignorância e o negrume dela –, ele pode
morrer em breve. Por uma noite, pode fingir ser uma rapariga normal com um
rapaz normal antes de ele ir para a guerra.
Maggie
Elodie
1971
1974
Plantio
Maggie
Elodie
Maggie
É oestácaossozinha
habitual de uma noite de sábado. Gabriel está na fazenda e Maggie
com as crianças. O telefone toca e Stephanie está a fazer birra
porque quer usar as galochas no banho. James está sentado à mesa da cozinha
a ver um jogo da equipa de baseball Expos e a comer a sua terceira ceia da
noite – ele é um poço sem fundo. A televisão está aos berros.
Maggie pega no telefone, ignorando Stephanie, que lhe está a puxar as
calças à boca de sino e a argumentar que tem de usar as galochas na banheira
para poder fingir que é uma poça.
– Alô? – atende Maggie.
– Vi hoje o seu anúncio no Journal de Montréal – diz uma mulher.
– Desculpe, qual anúncio?
– Dizia que tem informações sobre a minha família biológica? O meu nome
é Elodie.
Os joelhos de Maggie cedem e ela agarra-se ao balcão para se manter em
pé.
– Madame? – diz Elodie.
– Sim. Estou aqui. Peço desculpa.
– O anúncio dizia para ligar para este número.
– Claro – consegue Maggie articular, em choque.
Gabriel deve ter posto o anúncio. Todo este tempo a deixá-la na sua
cruzada, mas secretamente também procurou Elodie.
– Então este é o número certo? – insiste a mulher.
– Sim – balbucia Maggie. – Sim.
Ela não está morta. É ela.
Quando leu o artigo no jornal da semana anterior sobre «Monique» e os
órfãos Duplessis, sentiu um ressurgimento da esperança. Pensou que havia
uma forte possibilidade de Monique ser Elodie. O problema era Maggie ainda
não saber como a encontrar. Sugeriu a Gabriel que fossem de carro até Pointe
Saint-Charles e patrulhassem as ruas em busca de uma mulher de vinte e
quatro anos que pudessem reconhecer, mas Gabriel bateu o pé, dizendo que
ela estava a ser irracional e maníaca. É verdade que foram a todas as fábricas
têxteis de Pointe, Saint-Henri e Griffintown, mas ninguém que se encaixasse
na descrição de Elodie trabalhava lá. Maggie até foi ao Centre de
Retrouvailles, o centro de ajuda ao reencontro de famílias biológicas, mas só
pôde deixar os seus dados pessoais e esperar que algum dia Elodie lá fosse à
procura da mãe biológica.
– O anúncio diz que tem informações sobre a minha família biológica?
– Eu... sim, tenho – gagueja Maggie, tentando soar normal.
Stephanie ainda puxa as calças à boca de sino de Maggie, a reclamar que
quer as malditas galochas. Maggie afasta o telefone da boca e diz a James:
– Tira-a daqui!
James ignora-a.
– Imediatamente – silva Maggie. – Põe-na no banho.
– Com as galochas? – insiste Stephanie.
– Sim – responde Maggie, impaciente.
Stephanie anima-se de imediato e deixa-a em paz. James desliga a televisão
e segue a irmã a contragosto, deixando Maggie sozinha.
– Sabe alguma coisa sobre o seu passado? – pergunta ela a Elodie, na
esperança de confirmar que é realmente ela.
– Eu nasci em 1950 – diz Elodie. – Não sei a data precisa. Ninguém me
adotou porque eu era muito pequena e doente. Não sei muito mais. A minha
mãe morreu a dar-me à luz.
Maggie leva uma mão à boca para não gritar. Morreu a dar à luz? Por que
artes haveriam as freiras de lhe dizer uma coisa daquelas?
– Sabe quem eu sou? – pergunta-lhe Elodie novamente. – Qual é o nome da
minha família?
– O teu nome é Elodie Phénix – responde Maggie, tentando controlar a
respiração e manter a calma.
– E a senhora quem é?
Maggie hesita, sem saber como responder. A pobre rapariga acha que a
mãe dela está morta. Como é que Maggie lhe pode contar a verdade ao
telefone?
– O meu nome é Maggie – diz ela, por fim. – Acho que posso ser a tua tia.
– Irmã da minha mãe?
– Sim – mente Maggie. – Ela teve uma filha que nasceu no dia 6 de março
de 1950, algumas semanas antes da data prevista. A criança esteve em Saint-
Sulpice até 1957 e depois foi transferida para Saint-Nazarius. A minha irmã
deu-lhe o nome Elodie.
– Antes de morrer?
Maggie cerra os olhos com força.
– Sim. Antes de morrer. Estava na certidão de nascimento.
– Tenho tantas perguntas.
Eu também, pensa Maggie.
– Quero saber tudo sobre ela – diz Elodie. – Tenho outros parentes? E o
meu pai?
– Gostarias de te encontrar comigo pessoalmente?
– Sim – responde Elodie, deixando Maggie eufórica.
Combinam um encontro no final de semana seguinte. Maggie gostaria que
fosse mais cedo – iria ao apartamento dela naquele momento, se pudesse –,
mas sente que Elodie está apreensiva sobre a rapidez com que tudo está a
acontecer e contém-se.
Tenta ligar a Gabriel, que está em casa de Clémentine, mas ele já saiu e
está a caminho de casa. Maggie não menciona a conversa com Elodie.
Gabriel tem de ser o primeiro a saber.
Maggie põe-se a andar pela cozinha, desesperada para tornar a ler aquele
jornal. Precisa que Gabriel entre por aquela porta. Ainda a tremer, senta-se à
mesa, com a cabeça a latejar e a anunciar uma enxaqueca.
A minha filha está viva. Nunca acreditou realmente que Elodie estivesse
morta, mas ainda não faz sentido que a irmã Ignatia lhe tivesse mentido
naquele dia, em 1961. Quem manteria propositadamente uma mãe longe da
própria filha? A desumanidade, a absoluta crueldade, é algo que Maggie
nunca será capaz de compreender ou perdoar. Ela roubou a Maggie treze anos
com a filha.
A porta das traseiras abre-se e Maggie pula da cadeira, atirando-se para os
braços de Gabriel.
– O que se passa? – pergunta ele. – As crianças estão a dormir?
As crianças. Esqueceu-se completamente delas. Estão os dois quietos no
andar de cima, provavelmente felicíssimos por ela se ter esquecido deles e
poderem ficar acordados até tarde.
– Não sei.
– Não sabes onde estão as crianças? – diz ele, pousando um balde de
mirtilos no balcão.
– A Elodie ligou.
Gabriel estaca e vira-se para ela.
– O quê?
– A Elodie ligou para cá – repete ela. – Ela está viva.
A cor desaparece-lhe do rosto.
– Ela leu o teu anúncio e ligou! – exclama Maggie. – Há quanto tempo o
publicas? Isso significa que a freira nos mentiu, o que eu sempre soube.
Lembras-te dela a dizer-nos que a Elodie estava muito doente quando foi
transferida para o hospital?
– Espera. Qual anúncio?
– Nos classificados. No Journal de Montréal.
Gabriel abana a cabeça, a expressão neutra.
– Não faço ideia do que estás a falar.
Ficam ali um momento, a olhar um para o outro.
– Vai à loja – diz-lhe Maggie. – Vai buscar o jornal.
– E a Elodie? O que é que ela disse? Como é que ela te soou?
– Foi uma conversa muito breve – diz, e conta-lhe.
Limpando as lágrimas dos olhos, Gabriel desaparece pela porta das
traseiras. A loja fica na esquina da rua, por isso, não demora muito. Maggie
fica à porta até ele voltar e lhe entregar o jornal. Em silêncio e com gestos
frenéticos abrem o jornal nas últimas páginas.
– Ali – diz Gabriel, apontando para o anúncio.
Muito depois de todos terem ido dormir, Maggie sai da cama e atravessa pé
ante pé o corredor. Detém-se no quarto de James para espreitar e vê, pela luz
azul e verde do candeeiro de lava, que as pernas estão penduradas da cama e
o corpo a subir e a descer por baixo dos cobertores. No quarto ao lado, vê
Stephanie a dormir em posição transversal na cama e a sua boneca Raggedy
Ann no chão. Maggie pega nela, coloca-a debaixo do braço de Stephanie e
beija a bochecha quente da menina.
Finalmente, Maggie chega ao fim do corredor e estaca à porta do quarto de
hóspedes, onde a outra filha – a sua primogénita – está a passar a noite. Fica
ali parada um momento, dominada pela emoção. Nunca pensou ter todos os
filhos a dormir debaixo do mesmo teto.
Abre a porta o mais silenciosamente possível e paralisa ao ouvir os soluços
suaves que vêm de dentro. Pensa em consolar Elodie, mas rapidamente afasta
a ideia.
Elodie pode preferir ficar sozinha; afinal de contas, ela sempre esteve
sozinha. Uma estranha a invadir-lhe o quarto a meio da noite pode deixá-la
desconfortável. E Maggie é uma estranha, mãe ou não. Tem de se lembrar
disso. Tem de se lembrar de ir devagar.
Por isso, Maggie recua e desce as escadas até à cozinha. Serve-se de um
copo de vinho, acende um cigarro de Gabriel e senta-se à mesa. Não tem
sono. Um torpor bem-vindo tomou conta dela, abafando parte da intensidade
dos acontecimentos do dia, mas não consegue parar os pensamentos.
O que é que eu deixei que lhe acontecesse? A pergunta percute como um
tambor na sua cabeça.
Elodie está lá em cima a chorar na almofada. Quantas lágrimas já terá
derramado na vida? Quantas noites chorou até adormecer? Qual a profundeza
das suas feridas? Até onde vai o luto na sua alma? E tudo o que Maggie pode
fazer é ficar ali sentada, impotente, sabendo que é a causadora de tudo isso.
O seu maior medo é que todo o amor do mundo – que Maggie e Gabriel
estão preparados para dar – não seja suficiente para compensar o que fizeram
a Elodie ou restaurar o que foi destruído.
Maggie levanta-se e pega na garrafa de vinho do frigorífico. Mais vale
acabá-la. É a que sobrou do jantar. Todos beberam demasiado, em parte
como celebração, em parte como alívio da tensão. Enche o copo e repara na
caixa dos objetos do pai no chão, perto da despensa. Tirou-a no outro dia, na
perspetiva da visita de Elodie.
Vai até lá, senta-se no chão com o vinho e o cinzeiro e começa a fazer
pequenas pilhas organizadas do conteúdo – velhos livros de agricultura,
livros de gestão e inspiradores, postais e desenhos que os filhos lhe
ofereceram ao longo dos anos.
Um dia contará a Elodie sobre o avô, talvez até a leve à loja de sementes,
onde ele era o centro de tudo. Gostaria que Elodie soubesse que ele era muito
mais do que a pessoa que a afastou da própria mãe, que ele era,
fundamentalmente, um bom homem a tentar proteger a sua filha. Que,
incessantemente, tentou redimir-se do seu erro, sempre com gestos discretos,
mas significativos, que acabaram por dar fruto. Primeiro, enviou Elodie para
o mundo com o nome escolhido por Maggie – um detalhe aparentemente
insignificante, mas importante o suficiente para tornar possível o reencontro;
depois, tentou tirá-la do orfanato; e, por fim, ele lembrou-se do anúncio no
jornal que as reuniu.
Há uma simetria perfeita em tudo isso, pensa Maggie, um círculo amoroso
e simbiótico que se completa e que as trouxe a este momento. A mãe
costumava dizer: Deus dá com uma mão e tira com a outra.
Maggie é recordada disso nesse momento. O pai tirou-lhe a filha com uma
mão e depois deu-lha com a outra.
O teu avô era conhecido como o Homem das Sementes...
Apesar de tudo, Maggie acabou por se sair bem. É mãe de três filhos, todos
eles ali nessa noite na casa que tanto ama, é mulher de Gabriel, adora
sementes e línguas, francesa de sangue inglês, inglesa de sangue francês. Não
é totalmente uma coisa nem outra, como sempre quis ser. É arrogante e
humilde, audaciosa e tímida, viva. Ainda está a crescer e sempre estará.
Tira o cobertor de bebé e a pulseira de hospital de Elodie da caixa e,
depois, pega num maço de fotografias amarradas com um elástico. Demora-
se nelas um pouco, perdida em nostalgia agridoce, até reparar numa
fotografia do pai no meio de um jardim que não reconhece. As flores
chegam-lhe até aos joelhos e há uma vedação de madeira atrás dele. Deve
estar nos seus trinta e muitos anos, traz suspensórios e um panamá branco na
cabeça que esconde a calvície prematura. Tem um rosto redondo, um bigode
revirado e segura um charuto entre os dedos. Parece feliz, como se aquele
jardim fosse o seu lugar preferido no mundo, a comungar com a natureza em
todo o seu esplendor selvagem.
É uma expressão que Maggie reconhece de quando costumava observá-lo a
trabalhar na loja de sementes – total e completamente no seu habitat. Um
lugar onde Maggie se viu muitas vezes nos últimos anos e onde sabe que
voltará a estar.
CAPÍTULO 56
Elodie
E lodie ouve a porta a abrir e sustém a respiração. Sabe que é a mãe. A sua
mãe. Não para de repetir a palavra na cabeça. Já não é uma ideia
hipotética ou um delírio infantil. A mãe está ali para a abraçar no escuro, para
lhe enxugar as lágrimas e afastar a dor e os pesadelos.
– Maggie? – sussurra ela, mas a voz sai-lhe muito mansa, sem volume
suficiente.
E tão de repente a porta se abriu como se fecha, e Elodie ouve Maggie
descer as escadas. A tristeza invade-a. Maggie deve ter ouvido Elodie a
chorar e fugiu.
Elodie fica deitada muito quieta. Não se tinha dado conta do quanto ansiava
pelo consolo da mãe. Mesmo numa casa cheia de pessoas, neste lindo quarto
com o papel de parede às flores, a grande cama de ferro e a colcha de retalhos
vermelha, ainda se sente assustada e estranhamente vazia. O ressentimento
começa a fervilhar dentro dela e recorda a si mesma que, apesar de todas as
palavras amáveis e a hospitalidade, provavelmente ela é apenas um incómodo
para eles.
Tenta imaginar como teria sido crescer nesta linda e acolhedora casa cheia
de amor. Aquela menina, Stephanie – a sua irmã, da mesma idade de Nancy,
com as faces rosadas, cheia de bravura e boa disposição – vai crescer com
tudo o que foi negado a Elodie. Devia ter sido eu, pensa ela, com uma ponta
de azedume. Eu cheguei primeiro.
Fica ali a pensar durante muito tempo, ou assim lhe parece. Pode ouvir os
grilos lá fora, fazendo-a lembrar dos primeiros anos em Saint-Sulpice – algo
que tinha esquecido até então. Costumava adorar ouvi-los a cantar do lado de
fora da sua janela. Não havia outros sons a sobreporem-se, apenas o silêncio
perfeito de uma noite campestre. A irmã Tata explicou-lhe que o barulho
chilreante provinha dos machos a esfregar as asas. Como pode ter-se
esquecido disso?
Não consegue adormecer. Como poderia? Tudo o que quer é ir para casa.
Sente a falta do corpinho quente de Nancy, aninhada contra ela, a doce
respiração contra a sua pele.
Então a porta abre-se novamente e, dessa vez, Maggie entra no quarto. O
chão range quando se aproxima da cama. O peso dela na beira do colchão, a
mão no rosto húmido de lágrimas de Elodie.
– Elodie? – sussurra ela. – Preferes ficar sozinha?
– Não – confessa Elodie, numa voz infantil.
– Fico contente – diz Maggie. – Eu estou aqui.
Elodie estende a mão para ela.
– Não vá – pede, e quando ouve os batimentos do coração de Maggie, sente
a amargura desaparecer.
– Claro que não – promete Maggie. – Eu só não sabia se me querias
contigo.
– Eu sempre a quis comigo.
Maggie senta-se ao seu lado na cama e apoia a cabeça numa almofada.
– Posso pedir-lhe para escrever a minha história? – pergunta-lhe Elodie. –
Contá-la exatamente como se passou?
– Sim – responde Maggie sem pensar duas vezes. – Claro que sim.
– E será publicada?
– Com toda a certeza – afirma ela, sabendo que assim será.
Ela vai lutar por isso. Deus vai ajudá-la, se for necessário. A ideia parece-
lhe tão certa como qualquer coisa que algum dia meteu na cabeça fazer.
– Temos de o fazer o mais depressa possível – diz Elodie. – Eu quero que
seja publicada enquanto a irmã Ignatia ainda estiver em Saint-Nazarius. E
quero que use o nome verdadeiro dela e que nós as duas lhe vamos entregar o
livro pessoalmente.
– Sim – concorda Maggie, o coração acelerado de entusiasmo.
A perspetiva de um novo projeto que exigirá que trabalhem juntas durante
muitos meses, de terem as vidas entrelaçadas, da possibilidade de aprofundar
a relação e de, ao mesmo tempo, expor o agressor de Elodie é emocionante.
– Obrigada – diz Elodie. – Vou dar-lhe o meu caderno de notas para
começar. Escrevi nele absolutamente tudo.
– Talvez possas morar aqui connosco enquanto trabalhamos nisso – sugere
Maggie. – Eu não quero pressionar-te, mas a Stephanie e a Nancy são da
mesma idade...
Elodie mal pode acreditar na oferta.
– A Nancy adoraria viver aqui no campo – afirma ela. – Deve ser um bom
sítio para crescer.
– E podias ficar em casa com ela – sugere Maggie. – Pelo menos, até ela
começar a ir para a escola e, se quiseres, podes trabalhar na minha loja.
– Parece-me uma boa ideia – concorda Elodie, pensando no seu
apartamento em Pointe Saint-Charles e no Len’s Deli, e no quanto sentiria
falta de trabalhar lá.
– Não quero assoberbar-te – acrescenta Maggie. – Temos todo o tempo do
mundo para decidires.
Maggie coloca os braços em volta de Elodie e acaricia-lhe o cabelo. Ficam
assim muito tempo, completamente acordadas no escuro.
– Não vou conseguir dormir esta noite – declara Elodie.
– Quando eu era pequena, o meu pai costumava recitar-me um poema para
me ajudar a dormir – sussurra Maggie.
– Diga-mo – pede Elodie.
– Deixa-me ver se consigo lembrar-me. «Johnny Appleseed, Johnny
Appleseed... – começa ela, usando a tradução francesa, Jean Pépin-de-
Pomme.
Grande parte dos conhecimentos que adquiri sobre a dramática história dos
órfãos da era de Duplessis vieram do magnífico livro de Pauline Gill, Les
Enfants de Duplessis (Quebec Loisirs Inc., 1991). A dilacerante – e verídica –
história de Alice Quinton ajudou-me a compreender a carga física, espiritual
e emocional que estes órfãos tiveram de suportar ao longo da vida, mesmo
depois de viverem em liberdade. Tenho para com Alice Quinton uma dívida
de gratidão por ter partilhado a sua história com Pauline Gill, pela sua
candura, honestidade, coragem e resiliência.
A minha maior dívida de gratidão é para com o inigualável Billy Mernit, o
meu fantástico mentor e primeiro leitor/editor: se não fosse a tua visão e o teu
discernimento quanto àquela que seria a verdadeira história – e se não me
tivesses desafiado a contar a história de Elodie – este livro permaneceria
ainda na gaveta. Um trabalho de vinte anos, e bastou o teu dom para contar
histórias e para a edição para me guiar na direção certa. Mais uma vez – já o
disse antes – todos os escritores deveriam ter um Billy.
Devo também um tremendo agradecimento à minha persistente, incansável
e querida agente e amiga, Bev Slopen, que conheci há vinte anos, quando lhe
mostrei a primeira versão do manuscrito. Fomos trabalhando juntas no
«Homem das Sementes» ao longo de duas décadas, e nunca me despediste!
Sinto-me abençoada por te ter tido ao meu lado durante todos esses anos. Não
há muitos agentes que o fizessem. Acho que já devemos ser oficialmente
família uma da outra.
MUITO obrigada a Jennifer Barth, a minha magnífica editora na
HarperCollins. Sinto-me abençoada pelo teu apoio e orientação, e é sempre
uma alegria trabalhar contigo. Mais uma vez, obrigada por teres cuidado tão
bem deste livro em especial – foi muito importante para mim. Libertaste-o,
com o seu novo título e as tuas sugestões brilhantes, permitiste que ele voasse
muito para além daquilo que eu teria esperado.
Agradeço também às equipas de Marketing mais maravilhosas de sempre,
tanto na HarperCollins US como no Canadá: Mary Sasso, Katherine Beitner,
Sabrina Groomes, Cory Beatty, Leo Macdonald e Sandra Leef. O último ano
foi verdadeiramente repleto de entusiasmo, surpresas e alegria. Estou ansiosa
para ver o que este nos trará.
Ao meu editor «de serviço» e melhor amigo, Miguel, o melhor será fazer
um copy e paste dos agradecimentos do livro anterior (continuam a valer
ainda hoje): obrigada por ires buscar os miúdos e os levares a todo o lado na
cidade, e basicamente por tratares da minha vida toda de forma a que eu
possa continuar a ser A Escritora. Adoro-te. Jessie e Luke, não contribuíram
muito para o processo, mas os vossos mimos ajudaram, e muito.
E finalmente, quero agradecer à minha mãe, Peggy, a minha fonte de
inspiração para a personagem de Maggie. Todas aquelas entrevistas e longas
conversas, tudo o que partilhaste comigo acerca da tua vida em Montreal,
todo o teu feedback e as tuas leituras deram finalmente fruto. Só queria que
estivesses aqui para assistir à chegada do livro ao mundo. Vou assumir que o
estás a fazer, algures. Sinto a tua falta.