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Espiritualidade

Cristã

Ms. Jonathan Menezes


Catalogação na fonte/ Bibliotecária Zoraide Gasparini CRB/9 1529

Janeiro / 2014

Coordenação editorial: Depto. Desenvolvimento Institucional


Coordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório Jr
Projeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. Teixeira
Revisão: Mirian Soares
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO

Unidade - 01 Espiritualidade e espiritualidades..............................07

Unidade - 02 O que é espiritualidade cristã?...................................15

Unidade - 03 Espiritualidade na Bíblia ............................................21

Unidade - 04 Espiritualidade na história..........................................29

Unidade - 05 Espiritualidade e oração (I)........................................39

Unidade - 06 Espiritualidade e oração (II).......................................47

Unidade - 07 Espiritualidade do deserto..........................................55

Unidade - 08 O deserto na espiritualidade de Jesus........................63

Unidade - 09 Espiritualidade, teologia e vida..................................73

Unidade - 10 Espiritualidade da libertação......................................83

Unidade - 11 Espiritualidade e a busca pela felicidade...................91

Unidade - 12 Henri Nouwen e a espiritualidade da imperfeição..103

Unidade - 13 Espiritualidade e Comunidade.................................117

Unidade - 14 Espiritualidade e sexualidade (I).............................127

Unidade - 15 Espiritualidade e sexualidade (II)............................135

Unidade - 16 Espiritualidade e Prodigalidade................................141

03
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA
Bem vindo(a) à disciplina de Espiritualidade Cristã!
Nela você estudará prioritariamente fundamentos bíblicos,
teológicos e históricos da espiritualidade, tendo como foco final uma
compreensão (e vivência) de uma espiritualidade cristã e, por isso,
cristocêntrica e solidária, visando à vivência da fé e da missão em sua
integralidade, a serviço do reino de Deus.
Como introdução a este curso, gostaria de compartilhar com
vocês um texto de minha autoria, que resume bem a tônica de tudo o
que estudaremos neste semestre, intitulado:

A dança do Espírito
“O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde
vem; assim é todo o que é nascido do Espírito” (João 3.8).
O sopro do Espírito é um sopro constante, mas nunca visível a
olhos nus. Para se saber onde e como ele está soprando é preciso ter a
capacidade de enxergar além. Além das aparências, das estruturas, das
inibições de ânimo, das manifestações exóticas, de meras palavras. O
Espírito pode estar em tudo isso, mas também pode permanecer “fora”.
Ele não se limita ou se reduz às paredes do escravismo institucional
humano, seja ele secular ou religioso. O Espírito é livre e age em
liberdade: “Onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade”.
Mas, convém perguntar, onde está o Espírito? Ele não se
encontra exclusivamente aqui ou ali. Não se faz monopólio de uma
instituição, pessoa ou evento. O eventualismo humano apenas inibe a
verdadeira ação do Espírito, ao pretender dizer: “Aqui está ele”; “Neste
encontro ele se manifestará com poder”. Definitivamente, Paulo estava
certo ao afirmar que o homem natural não aceita nem compreende
as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura, porque elas se
discernem espiritualmente (1Co 2.14). Estamos falando do Espírito de
Deus. Se Deus é o Onipresente, conforme diz o salmista, como se pode
querer enjaular o Espírito?
Sua natureza é livre como é a de um animal selvagem, que ao ser
preso ou confinado, perde todo o seu vigor, vitalidade e espontaneidade
anteriores. O Espírito Santo age movido pelo sopro, pela palavra, pelo
toque de Deus. Ele está presente onde Deus se encontra fazendo suas
pequenas e maravilhosas revoluções, nos lugares, das formas e com as
pessoas menos esperadas. Não tem como antecipar sua presença ou
ação. O poder de consolo do Consolador não repousa nem cresce na
prepotência, nas palavras decoradas, nem na manipulação pensada;
esse poder só é fecundo na fraqueza, em palavras e em seres imersos
nas imperfeições de sua humanidade. Ele é o brilho do tesouro que
habita em vasos de barro.
A dança do Espírito não aprisiona, mas promove as sábias
loucuras revolucionárias e libertadoras de Deus. Todos os que tentam
aprisionar Deus, confiná-lo ou formatar sua natureza em uma caixa,
falam de um conceito, privando os outros e a si mesmo nele. Contudo,
graças a Deus, a verdade não germina ali. O vento sopra onde quer,
onde Deus quiser.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

Jonathan Menezes

Objetivos

Ao final do curso, o aluno(a) deverá ser capaz de:


1. Conhecer os conceitos básicos que diferenciam a espiritualidade
no plural da espiritualidade cristã

2. Relacionar os fundamentos históricos, bíblicos e teológicos


contemporâneos da espiritualidade cristã

3. Compreender a importância de uma espiritualidade integral


para a vida e missão da igreja

4. Desenvolver práticas e disciplinas que condigam com uma


espiritualidade mais humana, cristocêntrica e solidária.
Espiritualidade Cristã

Unidade - 01
Espiritualidade e espiritualidades

Introdução

Esta primeira unidade se trata de uma tentativa de


encontrar definições possíveis para a espiritualidade, no
sentido mais geral, para então diferenciar a espiritualidade
cristã, em particular. Isto se fará, buscando suporte tanto em
temas que estão sendo discutidos na atualidade (no Brasil,
em especial), como a questão da busca de um cristianismo
não-religioso, quanto em diálogo com autores que têm
desenvolvido contribuições importantes nesta área.

Objetivos

1. Discutir sobre as dificuldades próprias de se


compreender e definir o que é a Espiritualidade;

1. Identificar alguns dos diversos termos, conceitos e


experiências que normalmente relacionam à espiritualidade.

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Em busca de definições
Definir espiritualidade não é uma tarefa tão fácil quanto parece
ser, ao menos em nosso contexto latino-americano com forte tendência
para a religiosidade. Na América Latina somos religiosos por natureza
e nossa compreensão de espiritualidade normalmente diz respeito à
intensidade dessa vida religiosa.
É devido a isso que neste curso não é possível tratar do
assunto da espiritualidade cristã sem ambientá-lo no contexto do
qual ele faz parte. Isso é necessário porque ela é experiência humana
em relação ao divino, e o humano sempre está localizado em algum
tempo e lugar. Em se tratando de realidade brasileira, tal necessidade
se intensifica, pois nosso quadro religioso é bastante complexo e
completamente relacionado à situação sócio-histórica. Isso quer dizer
que, culturalmente, não vivemos a religião como algo à parte, mas no
conjunto da vida.
Quando, por exemplo, acontecem as costumeiras enchentes
de início de ano e pessoas diversas ficam desabrigadas em várias
regiões do país, ao serem entrevistadas por repórteres sobre o que
farão a respeito, geralmente
respondem: “Somente Deus
poderá nos ajudar agora”,
ou “Deus nos dará forças
pra reconstruir tudo o que
perdemos”. Para nosso povo,
principalmente aqueles mais
simples, não se fala de Deus
como um conceito apenas,
mas como uma forma de
viver e dar sentido à vida. Foto reprodução: TV Ji-Paraná

Precisamos ter consciência de que a espiritualidade – ainda


falando genericamente aqui – não acontece no vácuo, mas dentro das
situações de vida no mundo. Ela não somente possui uma localização,
como afeta a vida em todos os seus aspectos. Por mais que a
modernidade iluminista tenha relegado a religião à esfera dos valores e
da ética e entregue às ciências a orientação da vida concreta, na prática

08 Espiritualidade Cristã
cotidiana o fator religioso ainda é significativamente condicionador de
nossas relações com as questões sociais, econômicas e culturais.
O contexto em que nossa espiritualidade “acontece” deve ser
visto de modo integral, ou integrado, ou seja: histórico-religioso,
sócio-econômico, cultural, ecológico, etc. Na cultura brasileira,
historicamente ela tem sido um fator agregador desses aspectos. Para
iniciarmos uma conversa sobre o assunto podemos, então, distinguir
alguns conceitos religiosos que, invariavelmente, são relacionados à
espiritualidade, inicialmente comentando algo sobre essa discussão no
contexto atual e, em seguida, fazendo uma abordagem dos termos.

Sobre a religião e seus derivados


No atual momento, vemos tomar corpo um movimento de
pessoas que se dizem apaixonadas por Jesus, mas que não gostam mais
da igreja, detestam as instituições em geral, e desenvolveram uma ojeriza
pelo que chamam de “religião” – a meu ver, a religião institucionalizada.
O mote de sua trajetória está no slogan: “Mais Jesus e menos religião”.
O problema é que, nesse meio termo, apareceram outros
apresentando outra visão de religião, mais positiva talvez, alegando que
a religião faz parte da história humana desde sempre e tem oferecido
contribuições importantes a ela. Em outras palavras, por mais que
critiquemos a religião, na perspectiva dos defensores desta visão, não
vivemos sem ela. Nesta discussão pouco criteriosa, termos como
religião, religiosidade e espiritualidade acabam sendo utilizados de modo
intercambiável, como se um fosse ou pudesse ser sinônimo para outro.
E a confusão se vê armada. Podemos desatar este nó?
Em primeiro lugar, a discussão sobre as terminologias (religião,
religiosidade, espiritualidade, etc.) é in-termi-nável. Todas são palavras
polissêmicas, se considerarmos o diálogo interdisciplinar, ou mesmo
o senso comum. Ricardo Barbosa, por exemplo, defende que quando
falamos de espiritualidade – especialmente no mundo contemporâneo
em que o uso da palavra se tornou cada vez mais corrente – não nos
referimos apenas, e necessariamente, à obra do Espírito Santo, mas “aos
movimentos do espírito humano na busca por identidade e significado.

09
Neste sentido, podemos falar de espiritualidades”,
no plural, uma vez que não se trata de um só
rosto, mas de vários (SOUSA, 2004).
Em segundo lugar, esse movimento
(por um cristianismo não-religioso) não é
novo. Já vimos isso no século XX, através
de Karl Barth, e mais fortemente na teologia
de Dietrich Bonhoeffer, na teologia secular
(Harvey Cox) e da morte de Deus (A. T.
Robinson e Cia), dentre outros. A diferença
para o que temos visto atualmente é que
esses últimos me parecem ter sido mais Karl Barth

intencionais, proposicionais e consistentes


(quer se concorde com eles ou não) no
sentido de formular respostas relevantes aos
problemas e movimentos de seu tempo, e não
um flash mob de descontentes, como parece
se apresentar grande parte do movimento
atual. É preciso conferir mais coerência e
conteúdo aos nossos descontentamentos.
No que diz respeito às terminologias,
Paul Tillich, por exemplo, falando sobre
a clássica diferenciação entre religião e
revelação em sua Teologia Sistemática, afirma
que toda revelação pressupõe um receptor. E,
considerando não haver receptor “puro” (isto é,
livre da influência de sua cultura e da ideologia),
e consequentemente nenhuma forma de fé,
interpretação ou verdade universalmente válida,
a recepção em si já é uma religião. Assim, o que
Tillich chama de “religião” seria o processo de
recepção e, por conseguinte, de significação
da revelação. Nesta acepção, não há revelação
sem religião e todos os que vivem conforme a
revelação de Deus poderiam ser considerados
religiosos. Harvey Cox

10 Espiritualidade Cristã
Então, para começo de conversa, precisamos tentar entender
qual religião esse movimento atual
quer de menos, e qual Jesus ele quer de
mais, para poder avançar no debate,
não acham? Arriscar-me-ei, então, em
algumas impressões mais pessoais sobre
esse tema no último tópico. Agora, para
não confundir muito os termos, como de
propósito tenho feito até aqui, vejamos
algumas conceituações importantes.

Alguns conceitos importantes


Paul Tillich

Temos alguns conceitos que normalmente são utilizados como


sinônimos ou relacionados à espiritualidade. No entanto, eles possuem
sentido próprio e designam alguns aspectos ou momentos da nossa
espiritualidade, mas não ela propriamente dita. São eles:

1. Religiosidade – A experiência pessoal do ser humano com


Deus traduz-se, numa linguagem mais contemporânea da história e
antropologia das religiões, muito melhor como “religiosidade” que
como “religião” propriamente dita. A palavra religião nos remete
às instituições religiosas ou às grandes religiões, de caráter mais
dogmático e clerical. Já religiosidade é um termo que evoca uma
experiência mais ampla; traduz-se como expressão da interioridade
do ser humano, de sua busca tateante pelo relacionamento com o
transcendente, o numinoso, o sagrado. Isso se expressa em formas não
institucionalizadas de lidar com o sagrado, como os ritos, êxtases, as
danças, as festas, e assim por diante.

2. Fé – Tem a ver com o envolvimento com Deus a partir de uma


resposta pessoal a Ele. Possível mediante a conversão, ou seja, a decisão
pelo seguimento de Jesus como fruto de um ato de liberdade. Demanda
a crença nesse Deus a ponto de um envolvimento de vida com ele.
Karl Barth esclarece que a fé não é um estado humano e nem mesmo

11
uma qualidade – a isto ele chama de “religiosidade”, classificação esta
que, de certa forma, bate com o que vimos acima. Fé é história que se
constrói com Deus através da sua Palavra, “uma história nova a cada
dia”. Fé também não é igual a “crença”, isto é, a uma “suposição, a uma
opinião, estabelecer um postulado, um cálculo de probabilidades, para
então identificar o objeto da teologia com aquilo que supôs, postulou
e considerou verossímil, e, neste sentido, o assumir” (BARTH, 2008,
p. 64). Para Barth, a fé nasce de um encontro, e não de uma simples
identificação, “do crente com aquele em quem crê” (Idem, p. 65).
Neste sentido, é válido ressaltar, portanto, que “fé” e “crença”
são coisas opostas. Na diferenciação feita por Harvey Cox (2009, p.
2), a fé diz respeito a uma “confiança profundamente assentada”, algo
vital para nossa existência. “Na linguagem cotidiana nós usualmente
aplicamos o termo a pessoas em quem confiamos ou aos valores
que nos são mais caros”. Já a crença seria, segundo Cox, mais como
a opinião, mais proposicional que existencial. Dizer “eu acredito em
Deus” é diferente de dizer “eu tenho fé em Deus”. E a diferença está
proporcionalmente ligada ao compromisso. Acreditar que Deus existe
não significa ter sua existência assentada em Deus e em sua Palavra.
Já depositar a sua fé neste mesmo Deus implica em um compromisso
de vida com Ele e sua Palavra, de modo que os valores, modo de
agir e pensar divinos têm uma influência direta e decisiva em minha
existência e em como a conduzo.

3. Misticismo – Os termos místico, mística e misticismo


aparecem com freqüência na história da Igreja e como sinônimo, de
certa forma, de espiritualidade. Misticismo tem a ver, todavia, com
uma dada “experiência” e não com o seu pensamento e reflexão
necessariamente. Trata-se da vivência interna do evento religioso,
geralmente comunicada por meio de narrativa. Neste sentido, no relato
de uma “experiência mística” a preocupação acaba recaindo mais no
contato sobrenatural, na experiência em si, emocional e extática, sem
dar muita importância ao conteúdo. Posso experimentar o sagrado,
neste sentido, sem grandes significados para a maneira como vivo e

12 Espiritualidade Cristã
me relaciono com o mundo. Já na espiritualidade bíblica, o conteúdo
é importante, de tal forma que a experiência evoca, necessariamente,
um conteúdo, um significado, uma mudança de mentalidade e,
consequentemente, do jeito de viver.

4. Espiritualidade – Vocês perceberão, pelos textos desta e


da próxima unidade, que espiritualidade é uma palavra que resiste
à conceituação fechada. Ou seja, não podemos compreender
espiritualidade como “somente isto” ou “somente aquilo”. Pelo
contrário, precisamos buscar um entendimento básico inicial, ir
aprofundando este entendimento por meio das leituras e, associado
a isto, construindo um modo próprio de compreensão por meio da
vivência. Gostaria de instigar isto ao longo do curso em geral, e mais
especificamente na próxima unidade.

Conclusão

Espiritualidade é mais que um conceito. Mas, como seres


humanos que somos, só nos entendemos e nos comunicamos por
meio da linguagem. Por isso temos tantos conceitos de espiritualidade
quantos são os campos semânticos, os contextos e as vivências. Isto
não significa que qualquer definição ou percepção é válida, e sim
que podem existir, no meio de tantas, algumas mais adequadas e
apropriadas que outras. A próxima unidade, portanto, se trata da
busca de uma visão apropriada e integral da espiritualidade, numa
perspectiva cristã. Até mais!

13
Referências

BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. 8ª ed. São Leopoldo,


RS: Sinodal, 2003.
COX, Harvey. The future of faith. New York: HarperOne, 2009.
MCGRATH, Alister. Uma Introdução à Espiritualidade Cristã. São
Paulo: Vida, 2008.
SOUSA, Ricardo Barbosa de. Espiritualidade e espiritualidades. In:
Espacio de diálogo. Disponível em: <www.cenpromex.org.mx/revis-
ta_ftl/num_1>. Acesso 02 dez. 2013.
Escrito em parceria com textos (com uso autorizado) de autoria da
professora Regina Sanches.

Anotações
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14 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 02
O que é espiritualidade cristã?

Introdução

Na unidade anterior, nos ocupamos de definições


iniciais, procurando demonstrar como espiritualidade é um
assunto complexo, razão pela qual utilizei esta palavra no plural
(espiritualidades), além de comparar com termos relacionados
tais como religião, religiosidade e misticismo. Nesta segunda
unidade do curso, porém, gostaria de tratar especificamente
do que falamos quando falamos em espiritualidade cristã. A
tese principal a ser defendida é a de que a espiritualidade é
diferente de mística, de religião e de religiosidade – embora
seja muitas vezes, em com pouco critério, identificada com
elas. Mais que isso, que a espiritualidade cristã é um modo
de ser, expresso a partir de um encontro, relacionamento e
compromisso com a pessoa de Jesus Cristo.

Objetivos

1. Diferenciar espiritualidade cristã de outras formas e


compreensões de espiritualidade.

2. Desenvolver uma visão de espiritualidade mais


ampla e integral.

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Sobre a espiritualidade cristã
De acordo com Alister McGrath (2008, p. 20), a palavra
espiritualidade procede do termo hebraico ruach, que pode ser
traduzido por “espírito”, inclusive no sentido de
“vento”, “alento”. Refere-se ao ânimo de vida,
tanto que a gera como que a sustenta. Também
tem a ver como cada cristão responde à sua fé
nas diversas representações cristãs existentes, o
que, de acordo com ele, permite-nos também
falar de “espiritualidades cristãs”.
Pode-se entendê-la, em geral, como
uma qualidade não material que diz respeito à
vivência, envolvimento, dedicação religiosa em Alister McGrath

geral, à luz de reflexão e entendimento. Mas, podemos falar também de


espiritualidade cristã, que é aquela forma de espiritualidade específica
da fé cristã e sua vivência.
Neste aspecto, eu ficaria com uma definição mais simples, que
deve perpassar nossas conversas daqui para diante:
Espiritualidade é o modo de ser do cristão guiado pelo Espírito Santo.
A espiritualidade cristã baseia-se na fé, pois é por ela que
acolhemos a palavra de Deus. A experiência mística e a devoção fazem
parte e auxiliam nossa espiritualidade, mas não é sua fonte principal.
A fonte de nossa espiritualidade é Jesus Cristo, que conhecemos
prioritariamente pela palavra de Deus. A vida não é a razão da nossa
espiritualidade, mas seu contexto. A espiritualidade cristã, conforme o
próprio nome diz, é cristológica e cristocêntrica.
O seguimento de Jesus Cristo gerador da espiritualidade cristã
não se dá, no entanto, como a um líder religioso de grande inspiração.
Conhecemos Jesus pela obra de salvação e graça que ele realizou, e
continua realizando, em nós. Nesse sentido, nossa espiritualidade, outra
vez ressalto, é fruto do encontro com Cristo e a salvação que ele concede a
nós, conforme ensinou o apóstolo Paulo aos cristãos na cidade de Corinto:
“Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este
crucificado” (1Cor 2.2). É em função disso que o estudo da espiritualidade
cristã requer compreender seus fundamentos bíblicos e a experiência e
elaboração histórica da Igreja – que veremos na próxima unidade.

16 Espiritualidade Cristã
Amor à vida, sim!
Cultos e teatros sem substância, não!
Oportunamente voltando à discussão da primeira unidade
sobre a questão da religião, pergunto: Quando profetas como Amós,
por exemplo, criticam os cultos, encontros religiosos, ritos e formas
de se “achegar a Deus”, o que afinal ele está criticando? Ele está
denunciando a forma de religião predominante em Israel, sem entrar
no mérito de dizer “toda religião”, ou “a religião”. Talvez uma coisa
que esteja faltando às nossas genéricas classificações sobre religião é
“dar nome aos bois”. E isto Amós faz. Observem o seguinte trecho (na
tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson):
Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio
dos seus congressos e convenções. Não me interessam
seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos.
Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos,
das suas táticas de relações públicas e criação da própria
imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de
culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram
para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero
justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios
de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu
Eugene Peterson quero (Am 5.21-24 – Grifos meus).

A religião criticada por Amós é covarde e superficial, porque


marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos
relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com
abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o baluarte da espiritualidade,
dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por
justiça. Afirma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos,
mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, na samaritana
à beira do poço em meio ao caminho.
Daí, muitos desses encontros, congressos, convenções e projetos
religiosos aos quais se refere o profeta, terem se tornado, para Deus,
um negócio insuportável e indigno de atenção. Mais “culto ao ego”
que outra coisa. Daí a pergunta: “Quando foi a última vez que vocês
cantaram para mim?”. E o que é viver e cantar “para Deus”?
É anelar por Deus com todo o nosso ser (lutando contra

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nossa divisão interna); é deixar ser movido e tocado pelas coisas que
mobilizam o coração de Deus (o que sabemos por meio da Palavra);
é desejar ardentemente que sua vontade seja feita tanto aqui na terra,
como no céu; é lutar para que a justiça corra como rio que não seca;
é buscar viver em integridade e afastar ao máximo do nosso caminho
a hipocrisia. Mas, como? E seria isto outra forma de religião? Não sei,
talvez, quem sabe. Linguagem, tudo passa por ela.
Não é novidade para ninguém que muitos sistemas religiosos
se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas
têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao
invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino,
covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em
assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda
da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado.
Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina
de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem
corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.
A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai
sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe
(embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom
funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim
estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e
de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da
espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas
para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos
que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas,
hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.
A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e
promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para
uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque
só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério,
ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a
fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar
tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao
“seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”.
Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente,
muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra

18 Espiritualidade Cristã
viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos
do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos.
Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da
admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos
do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo
de libertação de suas entranhas) somos um pouco como os fariseus
ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade,
para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção
“Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor
senso) todo crente é meio hipócrita e, por natureza, religioso (no
sentido que Amós abomina), até que prove o contrário lutando contra
tal orientação.
Nas palavras do profeta Amós, temos indícios ou ecos (da
Revelação) de um constante manifesto de repúdio divino contra a
escolha de tantos em fazer do farisaísmo e da hipocrisia sua morada
permanente. Agora pergunto:
• Quem será o primeiro a ter coragem de vestir a carapuça?
• Quem ousará romper com as correntes (frouxas ou apertadas)
da hipocrisia?
• Quem será capaz de avançar uma milha mais rumo a uma
entrada em um cristianismo não-religioso?
Quem sabe você possa discutir essas e outras questões com sua
comunidade, grupo pequeno, ou mesmo no fórum indicado para esta
semana, com seus colegas de turma.

Conclusão

No âmbito da fé cristã, entende-se a espiritualidade como


um modo de vida, essencialmente relacional, centrado em Cristo
e firmado na Palavra. Embora ela possa se expressar em formas e
conotações consideradas religiosas, ela envolve mais que o que se
entende comumente por religião. Ser espiritual, neste aspecto, é deixar
que o seu viver seja guiado e orientado de modo integral (em tudo o
que se é e se faz – isto falando em termos ideais, indicando uma busca
e não “a perfeição” em si) pelo Espírito de Deus, sem abandonar os
aspectos da vida material, corporal, humana. O templo do Espírito,

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nesse sentido, não é apenas meu espírito ou alma, mas meu corpo,
todo o meu ser indivisível.
Gostaria de relacionar, por fim e ao modo de retomada,
algumas idéias relacionadas à espiritualidade que devem ser mais bem
pensadas, por exemplo:
1. É algo próprio do ser humano – é uma prática que
requer pensamento, decisão, comportamento, vivência, o que é
caracteristicamente humano.
2. É algo que se opõe ao material – historicamente tem sido
entendida em contraposição ao corpóreo ou material, ou seja, vida
espiritual contrapõe vida mundana.
3. Muitas vezes é tratada em referência à vivência religiosa –
como se naturalmente dissesse respeito à religião.
4. Na religião, refere-se à relação com a transcendência –
superação da materialidade e contato com o divino.
Dentro de uma compreensão integral de espiritualidade, não
cabe mais pensá-la como o oposto do que é material e concreto.
Vivemos em um tempo que busca superar os vícios impostos pela
modernidade, como o que se expressa no dualismo entre fé e razão,
religião e ciência, espiritual e material.
A cultura chamada de pós-moderna esforça-se pela integração
em todos os sentidos e aspectos da vida humana. Espiritualidade, nesse
caso, não é algo que se refere exclusivamente a atividades tipicamente
“religiosas” (como orar, jejuar ou ir à igreja aos domingos), pois tem a
ver com a vida como um todo, e não está à parte da vida no mundo e
com a vivência nele. Se a espiritualidade é um “modo de vida”, como
venho defendendo, envolve não somente uma parte dela, mas a vida
inteira. Correr, por exemplo, pode ser uma atividade tão espiritual
quanto o jejum, e por aí vai. Espero que esta idéia fique mais clara
na próxima unidade, quando veremos um aporte bíblico e histórico à
espiritualidade cristã. Até lá!_

Referências

McGRATH, Alister. Uma Introdução à Espiritualidade Cristã. São Paulo:


Vida, 2008.

20 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 03
Espiritualidade na Bíblia

Introdução

Tendo abordado algumas ideias básicas sobre o que


há de específico na espiritualidade cristã em relação a outras
formas possíveis de espiritualidade em voga nos dias de hoje,
nos debruçaremos nesta terceira unidade de nosso curso sobre
bases da espiritualidade cristã no Antigo e Novo Testamento.
Para tanto, apresentarei alguns recortes e, a partir deles,
analisaremos o assunto, tendo em vista tratar-se de um texto
de pequeno porte. A intenção básica é que você constate que
a Espiritualidade Cristã é necessariamente bíblica, ainda que a
palavra “espiritualidade”, em si, não seja.

Objetivos

1. Apresentar alguns caminhos bíblicos da espiritualidade


cristã;
2. Constatar que, embora não seja um termo bíblico, a
essência da espiritualidade cristã está em ser bíblica.

21
Bases bíblicas para a espiritualidade
Para tratar das bases bíblicas da espiritualidade cristã a
partir do nosso contexto sócio-cultural, introduziremos o assunto
com citações de dois teólogos terceiro-mundistas que experienciam
situações de vida parecidas com a nossa, ou seja: sérios problemas
sócio-econômicos, riquezas cultural e ecológica não devidamente
aproveitadas, diversidade religiosa e uma teologia que emerge da
situação sócio-histórica.
Nossa teologia da espiritualidade deve corresponder a essas
situações e seus problemas comprometedores da vida. Devemos fazê-
lo não à parte, mas do interior dessa realidade, conforme ensina John
Mbiti, teólogo, filósofo e poeta queniano:

A religião permeia todas as partes da vida, de maneira


tão completa que não é fácil, talvez nem possível isolá-
la. Um estudo desses sistemas religiosos é, portanto,
primariamente um estudo dos povos em si, com todas as
suas complexidades tanto da vida tradicional, como da
moderna (MBITI, 1990, p. 1).

John Mbiti

De fato, viver com Deus é compartilhar das suas preocupações


e fazer delas as nossas preocupações pessoais e comunitárias. É
também aprender a amar o próximo como fruto da nossa liberdade
de acordo com Kosuke Koyama, teólogo japonês que foi missionário
na Tailândia:

Quando o amor funciona, o caráter da liberdade se revela


– mesmo que continue sendo um mistério para nós.
“Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém sua
vida pelos amigos” (João 15:13). O homem tem a liberdade
de amar e “dar sua vida pelos amigos”. Quando escolhe
perder a sua liberdade pelo amor aos outros, é que ele se
torna mais livre e mais amoroso (KOYAMA, 1979, p. 46)
Kosuke Koyama

22 Espiritualidade Cristã
Outro teólogo, Juan Stam, latino-americano de coração e
naturalização, relacionou a vida no mundo à esperança do cristão, à
luz do seus estudos em escatologia:
Vivemos nestes tempos como cidadãos de uma nova ordem. De
agora em diante, somos a levedura e a semente, a luz e o sal da
nova criação, assim como do Reino que veio e virá. Isso significa
viver como primícias da nova criação vindoura. Enquanto isso,
“entre os tempos”, vivemos desejando e apressando a gloriosa
transformação de todas as coisas, conforme o Criador prometeu
(STAM, 2003, p. 98).
É tendo como ponto de vista (de onde vemos as coisas) essa
compreensão de uma fé contextualizada que iremos agora para o texto
bíblico.

Breve olhar a partir do Antigo Testamento


O melhor ponto de partida para qualquer teologia que se queira
afirmar cristã é a criação. A chamada Teologia da Criação serve para
nós como base para o tratamento do problema humano no mundo e a
relação disso com Deus.
Também é nas narrativas da criação que encontramos os
primeiros relatos sobre a presença e atuação do Espírito Santo. Nelas,
ele é apresentado como ruach, termo hebraico que significa “vento”,
no sentido de “alento”, “fôlego”, “ânimo”. O Espírito na criação é aquele
que anima a vida, ou seja, dá energia (no sentido da física mesmo).
Explicando de uma forma poética e bem latino-americana: “Ele faz
com que simples bonecos de barro cantem e dancem à luz do sol”. O
Espírito foi a energia de vida na criação de todas as coisas, e, como tal,
ele é também, até hoje, o sustentador dela no mundo.
Cosmos significa mundo, no “sentido de universo”. Se a Floresta
Amazônica permanece verde e as árvores de Buriti continuam a dar
seus frutos e sua seiva a alimentar muitos, é porque o Espírito de Deus
ainda age no mundo. Se as matas ao longo das estradas de Minas
reverdecem com uma pequena chuva após longo período de estiagem,
é porque a vida está nelas, e essa vida (ânimo) vem do Espírito Santo e
não de outro. Se o ser humano é capaz de dizer “a vida continua” após

23
grandes perdas e sofrimentos, é porque há esperança no mundo, e,
esperança é vida, a qual tem como fonte o Espírito Santo de Deus.
Neste sentido, todo atentado contra a vida no mundo, nas suas
mais diversas manifestações, é também atentado contra o Espírito Santo
e sua obra vivificadora. Nesta direção é que se deve compreender a
evangelização, que não deveria visar o doutrinamento ou acréscimo de
membros a uma Igreja local, mas, sobretudo, ser a condução de pessoas
a Jesus Cristo, a única fonte possível de vida por meio do Espírito.
O que isso tem a ver com a espiritualidade cristã? Podemos
dizer que são dessas águas teológicas que ela emerge. E o ministério do
Espírito Santo é gerar e manter a vida na criação de Deus. E podemos
afirmar que essa é a medida da nossa espiritualidade.
Ainda no Antigo Testamento podemos perceber como os profetas
corresponderam ao Espírito ao encarnarem a Palavra de Deus em suas
vidas, comunicando-a de modo integral. Também compreendemos a
espiritualidade horizontal do sapiencialismo, que relacionou-a a vivência
da vontade de Deus na vida, em sua organização e inter-relacionamentos.
Sapiencialmente viver no Espírito é viver em sabedoria.

Um breve olhar a partir do Novo Testamento


A vida e obra de Jesus são mais do que modelo de espiritualidade;
são sua fonte principal, como ele mesmo afirmou: “Eu sou a porta;
se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará
pastagens” (Jo 10.9). Neste caso, achar pastagens é achar alimento,
nutrir-se dele e assim viver. Não há espiritualidade cristã se esta não
for cristológica (no sentido de basear-se teologicamente na pessoa de
Jesus) e cristocêntrica (no sentido de estar centrada em Jesus). Nossa
vida com Deus somente é possível porque Cristo, através de sua obra
salvadora, faz a mediação entre nós e ele:
Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai,
senão por mim (Jo 14.6).
Cristo é o caminho por onde passa nossa espiritualidade.
Como afirma o termo que a acompanha e qualifica, ela é cristã.
Mas ele também comentou que enviaria o Espírito da Verdade: “O
Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o

24 Espiritualidade Cristã
vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e
estará em vós” (Jo 14.17), que é também apresentado nesse mesmo
capítulo de João como o Espírito Santo. Ele esclarece que o mundo
não pode receber o Espírito porque não o reconhece, mas aqueles que
pela fé acolheram o conhecimento revelado de Deus, sabem quem é
o Espírito e estão sensíveis à eles. Esses, sim, podem recebê-lo bem
como o conhecimento da verdade que ele transmitirá.
Já em Atos dos Apóstolos, o ministério do Espírito se evidencia
tanto no esclarecimento da verdade de Jesus Cristo, como vemos no
caso do sermão de Pedro no pentecostes, como na vida da Igreja. Ele, o
Espírito, é apresentado como a energia que impulsiona a Igreja em sua
missão. Uma palavra recorrente no livro de Atos é “poder”. Ela é utilizada
para se referir à proclamação dos apóstolos: “Os apóstolos davam, com
grande poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4.33);
ao ministério de Estevão “cheio de fé e poder” (6.8), e outros.
O sentido de poder nas narrativas tem a ver com energizar
mesmo, fazer com que a proclamação, a oração e o testemunho surtam
efeitos extraordinários, que vão além da condição natural e humana.
Quando compartilhamos do ministério do Espírito ele compactua
com nossa missão dando a ela a força necessária para que o possível e
também o impossível ao ser humano aconteça:
“E disse Pedro: Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho
isso te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e
anda. E, tomando-o pela mão direita, o levantou, e logo os seus
pés e artelhos se firmaram” (At 3.6).
É bom lembrar, no entanto, que o mérito disso é todo do Espírito
Santo, pois ele é o poder de Deus em nós: “Mas temos esse tesouro em
vasos de barro, para mostrar que este poder que a tudo excede provém
de Deus, e não de nós” (2Co 4.7). No texto Paulo fala de um “tesouro”
(evangelho e a companhia do poder divino) em “vasos de barro” – que
designa a nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil,
vulnerável e sempre sujeita à quebra.
Temos aqui então um contraste, uma dessas ironias divinas: o
eterno poder, que não pode ser contido (do contrário, não seria eterno)
escolhendo precisamente o que há de mais fraco e incerto para “se

25
abrigar”. E a pergunta é: por quê? Paulo mesmo dá a resposta: é para
mostrar que a excelência desse poder vem de Deus, e não da gente.
Trocando em miúdos: temos um tesouro (poder), mas
esse tesouro não vem de nós, nem é para a nossa glória e nem nos
faz triunfantes no mundo. Pelo contrário. Paulo segue afirmando
nos versos seguintes que “em tudo” somos perplexos, atribulados,
perseguidos, abatidos, embora não o bastante para sermos destruídos,
desanimados, angustiados e totalmente desamparados.
Curioso, não? Esse poder, que não é nosso, não nos faz mais
poderosos que ninguém, tampouco imunes ao sofrimento de qualquer
ser humano – agregando ainda um sofrer de outra espécie, por ser
cristão. Mesmo tendo um tesouro, nunca deixamos de ser simples
vasos! E o vaso não existe para proteger a integridade do tesouro,
mas é o tesouro que é oferecido para proteger a integridade do vaso, a
despeito de suas eventuais “quebras”.
Não somos, portanto, defensores ou detentores do tesouro;
ele não precisa de sentinelas ou guardiões “espirituais”, nem de
Indiana Jones “gospel”; e não somos nós que resplandecemos, mas
ele resplandece através de nós. O vaso não existe ainda para se
transformado em cofre forte, mas existe para morrer: “Trazemos
sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus
também seja revelada em nosso corpo” (4.10).
Penso que o que Paulo está querendo
aqui, dentre outras coisas, é nos convidando a
rever nossa teologia da espiritualidade em sua
ótica sobre o poder e reservar nela um lugar
especial para a aceitação jubilosa da fraqueza.
Somente quando assumirmos nossa fragilidade
humana, o poder de Deus se aperfeiçoará em
nós a fim de que participemos da transformação
que o Espírito já vem realizando no mundo,
muitas vezes sem a nossa “ajuda” pretensiosa.
Fonte: Depositphotos Esse poder, portanto, não torna ninguém
mais especial que o outro, mas certamente com maiores condições para o
serviço (serviço no sentido de atuação de servo), conforme o texto sobre a

26 Espiritualidade Cristã
cura realizada pelos apóstolos relata: “Pois tinha mais de quarenta anos o
homem em quem se operara aquele milagre de saúde” (At 4.22).

Conclusão

Voltamos à pergunta: e o que isso tem à ver com a


Espiritualidade? Se espiritualidade é estar e viver no Espírito, como
um modo de vida – como vimos na primeira aula – isso significa então
que somos graciosamente convidados a colaborar com suas ações e
obras maravilhosas.
Quando pensamos em Espiritualidade cristã normalmente nos
vem à mente aquela postura contemplativa de internalização da fé e
vivência mística da experiência religiosa cristã. Esse é o modelo típico
herdado do monasticismo medieval (como veremos adiante), que
ofereceu a nós um modo de espiritualidade mais ascético, meditativo
e baseado nas disciplinas espirituais. Embora seja extremamente
interessante este modelo, ele não define por si só a espiritualidade
cristã. Necessitamos por vezes da solidão (ou solitude), da quietude
e da meditação para alimentar nossa vida espiritual – e sobre isto
trataremos mais adiante neste curso.
Todavia, conforme o livro de Atos, o sair em missão, proclamar,
conceder saúde a doentes também é parte de nossa espiritualidade.
Quando fazemos isto estamos, mais do que nunca, andando no
Espírito, pois é ele quem nos guia e nos conduz pelas trilhas do mundo,
encarando e vivenciando os desafios próprios da vida mundana e
procurando estar em conexão com os propósitos e orientações divinas.
Como esclarece John Stott, “andar no” Espírito é diferente de ser
“guiado pelo” Espírito. Ele nos guia, mas o seu guiar não nos resigna a
uma condição de passividade, pelo contrário, nós precisamos, na força
que ele supre, segui-lo como resposta ao seu guiar.
Assim, “andar no Espírito” é andar deliberadamente ao longo
do caminho ou de acordo com a linha que o Espírito Santo
estabelece. O Espírito nos “guia”; mas nós temos de “andar no”
Espírito ou de acordo com suas regras. (...) Isso será percebido
em todo o nosso modo de viver, no lazer que buscamos, nos

27
livros que lemos e nas amizades que fazemos. (...) Em tudo isso
ocupamo-nos de coisas espirituais. Não basta submeter-nos
passivamente ao controle do Espírito; também temos de andar
ativamente no caminho do Espírito. Só assim aparecerá o fruto
do Espírito (STOTT, 2003, p. 140).
O efeito disso em nós (o fruto propriamente) é como o efeito do
exercício físico feito em boa medida, que no momento em que é realizado
parece estar consumindo nossas forças, mas com o tempo descobrimos
que, com ele, ganhamos saúde e, assim, energia de verdade. Vejamos
adiante exemplos de espiritualidade na história. Até lá!

Referências

KOYAMA, Kosuke. Fifty meditations. New York: Orbis Books, 1979.


MBITI, John. African religions & philosophy. Oxford: Heinermann,
1990.
STAM, Juan. Profecia bíblica e missão da igreja. São Leopoldo:
Sinodal, 2003.
STOTT, John. A mensagem de Gálatas. Somente um caminho. São
Paulo: ABU, 2003.

28 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 4
Espiritualidade na história

Introdução

Pensando ainda em bases da espiritualidade cristã,


nesta unidade convido vocês para um passeio como que de
avião sobre a história da Igreja, mas focando a espiritualidade
cristã, como foi pensada e praticada no decorrer dos tempos
por homens e mulheres em sua paixão pelo Divino. Certamente
faltarão muitas informações importantes, mas precisarei fazer
recortes devido ao espaço que temos. Retomarei, por fim,
questões do período bíblico, fechando com a espiritualidade
da Missão Integral.

Objetivos

1. Conhecer caminhos da espiritualidade na história


para um posterior aprofundamento das temáticas abordadas;

2. Desenvolver a sua espiritualidade no plano pessoal à


luz e tendo como modelo suas práticas bíblica e histórica.

29
Um olhar sobre a espiritualidade na história
A história da espiritualidade cristã somente é possível como um
recorte dentro da história mais abrangente da Igreja e da sua teologia.
Não se trata de um assunto à parte, pois diz respeito à vivência da fé
dessa Igreja no mundo.
Como vimos na unidade anterior, os antecedentes da história
da espiritualidade cristã estão na espiritualidade bíblica. Lembremos
de alguns antecedentes rapidamente.
No Antigo Testamento a espiritualidade é baseada na relação
histórica concreta do povo com Deus. A história é o palco da ação
divina. Ele promete salvação e a realiza no tempo e no espaço. Essas
promessas realizadas viram memória e esperança, que se revitalizam
nas novas situações do povo com seu Deus. Da mesma forma, o Senhor
requer do seu povo fidelidade à aliança que estabeleceram no Sinai.
Tanto nas narrativas do
Pentateuco, Livros Históricos e
Profetas, como nos ensinos dos
Escritos, a vida com Deus se
faz na coletividade (do povo de
Israel), e é realizada mediante
a fidelidade aos preceitos do
Senhor. Essa fidelidade, que
seria uma sinônima possível
Povo de Israel - Wikimedia Commons de espiritualidade, deveria
ser visibilizada através de
políticas corretas e justas, vida social e familiar exemplar, dedicação
religiosa, transmissão do conhecimento de Deus, e assim por diante.
A necessidade de ser fiel se devia ao fato de que Israel era o povo eleito
de Deus e com ele havia firmado um pacto, um acordo:
A finalidade da eleição é o serviço, e quando ele é recusado, a
eleição perde seu sentido. Primordialmente, Israel deve servir
os marginalizados em seu meio: o órfão, a viúva, o pobre e o
estrangeiro. Sempre que o povo de Deus renova sua aliança
com Javé, reconhece que está renovando suas obrigações com a
vítimas da sociedade (BOSCH, 2002, p. 36).

30 Espiritualidade Cristã
É em vista das razões acima que a espiritualidade de Israel
estava estreitamente relacionada à sua missão de transmissora do
conhecimento de Deus pela via da vida no mundo e da comunicação
e registro da revelação. Era preciso que as nações adorassem a Deus e,
para isso, teriam que conhecê-lo. De certa forma, a espiritualidade das
nações passava pelo serviço de Israel.
No Novo Testamento, a espiritualidade passava pelo
reconhecimento do Messias (Jesus Cristo) e o seguimento de sua
vida e seus ensinos, conforme transmitidos pelos apóstolos e, em
vista disso, na reunião como Ekklesia e o exercício da missão. Tanto
quanto a espiritualidade é dinâmica e celebrativa no AT, no NT ela
é proclamadora (kerigmática), de serviço (diaconia), comunitária (na
koinonia), requer ensino (didaskalia) e é celebrativa (litúrgica). Ou
seja, trata-se de uma espiritualidade integral – como mais bem visto
no texto de apoio desta aula, escrito pelo professor Marcos Orison.

No período antigo
No período antigo aconteceu uma mudança no paradigma
teológico, portanto, de compreensão da espiritualidade cristã. A
fé histórica, dinâmica e narrativa do período bíblico cedeu lugar
gradativamente para uma forma mais reflexiva e abstrata. A helenização
da teologia cristã afetou o modo de se vivê-la no mundo. No fundo
porque, enquanto fenômenos históricos,
esta teologia já nasceu em diálogo com o
helenismo.
Outro fator que contribuiu para isso
foi a institucionalização da Igreja, que trouxe
consigo a formalização do culto e a instituição
do clero como mediador da relação com
Deus. A espiritualidade a partir desse período
começou a ser, em grande parte, sinônima
de religiosidade. Na medida em que o povo
era distanciado da Palavra de Deus, mais
Laocoonte, escultura religioso se tornava. Não há espiritualidade
Wikimedia Commons sem conhecimento de Deus por meio da sua

31
Palavra. Qualquer relação com a fé cristã que se estabeleça sem esse
conhecimento é meramente seguimento religioso, porque a fé cristã
requer consciência, como orientou Pedro em sua carta: “Santificai
ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para
responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da
esperança que há em vós” (1Pe 3.15).
O monasticismo dos chamados “Pais do deserto” (sobre os
quais veremos mais detidamente na unidade 7) surgiu nessa época
(séc. III) como movimento de espiritualidade, em reação aos rumos
excessivamente institucionais da Igreja. Ele propôs uma vivência
alternativa da fé, caracterizada pelo isolamento e reclusão, levando ao
surgimento de uma espiritualidade de caráter apofático.
Um exemplo de espiritualidade apofática nesse período é
Gregório de Nissa (viveu em Cesaréia, Capadócia em 330-395 d.C.),
como bem comprova um texto dele próprio:
Quanto mais acreditamos que, o “Bem”, por sua própria
natureza, está muito além do alcance do nosso conhecimento,
maior é nosso sentimento de tristeza por estarmos separados
desse “Bem”, que é tão grande quanto desejável, embora não
possa ser completamente contido em nossa mente (NISSA apud
MCGRATH, 2008, p. 246).

Outro exemplo de espiritualidade


nesse período é Agostinho de Hipona, um
importante teólogo dessa época e grande
influenciador do pensamento medieval,
inclusive dos reformadores. Conforme
observa Alister MacGrath (2008, p. 249),
“Agostinho argumenta basicamente que
fomos criados para a comunhão com Deus.
Quando isso não se realiza, o resultado é um
sentimento de insatisfação e inquietude”.
Nesse caso, a felicidade humana está
diretamente relacionada à dependência e
Agostinho de Hipona
Fonte:Wikimedia Commons relacionamento com o divino:

32 Espiritualidade Cristã
Para Agostinho, as verdadeiras realização e satisfação
humanas vêm somente quando Deus é adorado e conhecido. É
interessante que Agostinho admita que outras coisas no mundo
poderão oferecer pelo menos alguma aparência de felicidade;
para ele, o fato de o mundo ser criado por Deus significa que em
toda a criação existem indícios da bondade e majestade de Deus.
A criação, então, contém algum “reflexo da verdadeira felicidade”,
que poderá servir de indicação para a fonte e satisfação dessa
alegria: Deus (Ibid., p. 249).

No período Medieval
As tendências do período antigo acentuaram-se no período
medieval. O clero centralizou e exclusivizou a leitura da Bíblia. A
Teologia se distinguiu da doutrina e se tornou nas grandes escolas
uma forma de pensamento especulativo da fé. O monasticismo (a
partir do séc. VI, com Bento) se tornou a grande força missionária
e de espiritualidade da época. Aqueles que estavam fora dele,
mas compunham a cristandade, se apegaram à religiosidade e,
quando muito, ao misticismo medieval. O misticismo medieval,
caracteristicamente apofático, gerou representantes interessantes e
que são lembrados até hoje na história da espiritualidade, como por
exemplo Bernardo de Claraval (monge de Claraval, França, que viveu
entre 1090 a 1153). Conforme ele a Escritura Sagrada, pela qual possuia
grande apreço, deveria ser muito mais orada do que estudada. Seus
textos se caracterizavam pela ênfase no sentimento e na linguagem
poética, como o que segue:
Existe indubitavelmente uma espantosa analogia entre o azeite
e o nome do Amado, pelo que a comparação apresentada
pelo Espirito Santo não é arbitrária. A não ser que possais
sugerir algo de melhor, afirmarei que o nome de Jesus possui
semelhança com o azeite na tripla utilidade deste último,
nomeadamente, para iluminar, na alimentação e como lenitivo.
Mantém a chama, alimenta o corpo, alivia a dor. É luz, alimento
e medicina. Observai como as mesmas propriedades podem ser
encontradas no nome do noivo divino. Quando pronunciado
fornece luz; quando meditado, alimenta; quando invocado,
serena e abranda (Bernardo de Claraval).

33
Outro nome bem conhecido,
principalmente por ter sido o grande
inspirador de Lutero, foi Meister Eckhart
(1260-1327). Monge dominicano, filósofo e
místico, que se serviu do neoplatonismo para
explicar sua compreensão de Deus. Nessa
época surgiram também várias mulheres
que contribuíram com a mística cristã, Tereza de Ávila
como: Hildegarda de Bingen, Gertrudes a Fonte:Wikimedia Commons

Grande, Matilde de Magdehurgo, Matilde de


Hackeborn e a conhecida Teresa de Ávila.

Na Reforma Protestante
De todos os reformadores, Lutero parece ter sido o que mais foi
influenciado pela mística medieval. Seus escritos transparecem essa
forma de espiritualidade bastante dependente de uma relação mais
íntima e interna com Deus, como se pode observar pelo trechoa seguir:
A santidade cristã ou a santidade comum da cristandade é a
seguinte: quando o Espírito Santo dá às pessoas fé em Cristo,
santificando-as pela fé (Atos 15.9). Em outras palavras,
quando o Espírito cria um novo coração, uma nova alma, um
novo corpo, uma nova obra e uma nova natureza e escreve os
mandamentos de Deus em corações (2 Coríntios 3.3), não em
tábuas de pedra (LUTERO, 2001, p. 11).

No entanto, eles propuseram um


novo paradigma de espiritualidade cristã
ao afirmarem o sacerdócio universal de
todos os crentes, ou seja, que todos temos
livre acesso a Deus. Isso implica que não
dependemos de mediadores humanos para
nos relacionarmos com Deus. Podemos
fazer-lhe orações, oferecer-lhe nossas vidas
em serviço, ler a Palavra e buscar entendê-la,
Martinho Lutero
Fonte:Wikimedia Commons pois, conforme ele, o Espírito Santo ilumina

34 Espiritualidade Cristã
a todos igualmente para o entendimento das Escrituras.
Lutero esclarece ainda que o conhecimento de Jesus Cristo e sua
graça que recebemos da Palavra nos torna pessoas livres. Como seres
livres em Deus estamos prontos para
o serviço ao próximo e as boas obras,
como fruto de nossa própria liberdade.
Nisso está a verdadeira espiritualidade
cristã, na liberdade diante de Deus.
Calvino também afirmava que
o o homem somente se compreende
de fato em Deus. Menos místico,
mais filósofo e sistemático em seus
pensamentos teológicos, ele relacionava
a espiritualidade à disciplina da vida
João Calvino cristã, sua ética e reconhecimento da
Fonte:Wikimedia Commons
verdade.
O pietismo, movimento posterior à Reforma e que aconteceu
dentro do luteranismo, apresentou uma nova forma de espiritualidade.
O ortodoxismo que passou a caracterizar o protestantismo pós-reforma
foi críticado pelos pietistas, que fizeram a chamada para a experiência
da fé cristã, não somente sua confissão. Retomaram a importância da
oração e da leitura piedosa das Escrituras e ficaram conhecidos como
um movimento de espiritualidade.
Já no moravianismo, movimento interno do pietismo, aliaram
essa prática da espiritualidade à vida missionária para outros povos. A
oração serviu não somente para alimentar a vida espiritual, mas para a
vocação e a sustentação da obra missionária.

Na Modernidade
A Espiritualidade na modernidade possui várias representações.
Não há mais cristandade (uma sociedade cristã, aliada com o Estado)
no sentido medieval, pois o próprio cristianismo se apresenta na forma
de protestantismo e seus vários movimentos, catolicismo ocidental e
catolicismo oriental. Cada segmento cristão faz apresentações de suas
concepções de espiritualidade subsidiadas por teologias diversas.

35
No protestantismo tanto encontramos aquelas formas mais
racionalistas de vivência da fé, quanto aquelas piedosas e devotas.
Destaca-se nesse período o movimento evangelical. Surgiu na
Inglaterra no séc. XVIII, no interior da Igreja Anglicana e afirmava
a necessidade de arrependimento, conversão e mudança de vida,
com isso, a necessidade da evangelização e da experiência da fé. Este
movimento foi influenciador do metodismo e gerador de um esforço
missionário no séc. XIX para várias partes do mundo. Ele surgiu
no contexto dos chamados grandes avivamentos (na Inglaterra, na
América do Norte e com vários focos na Europa). Estes avivamentos
foram como que movimentos radicais de espiritualidade, voltando-se
para uma experiência de retorno ao primeiro amor, e redespertar para
uma vida cristã transformadora.

O Pentecostalismo
No início do séc. XX surgiu nos Estados Unidos um novo
movimento de espiritualidade que chamaram de Pentecostalismo, sob
a liderança de William Seymour. Afirmava a atualidade do batismo no
Espírito Santo e dos dons espirituais, até
então compreendidos como específicos
da Igreja do primeiro século.
O pentecostalismo se espalhou
por vários lugares no mundo, mas seu
impacto maior foi na Ásia, África e
América Latina. Embora tenha dado
origem a várias Igrejas até os dias de
hoje, sua importância também está na
contribuição para a revitalização da vida
cristã e do culto nas igrejas históricas.
Wiliam Seymour Originalmente, para o
Fonte:Wikimedia Commons
pentecostalismo a vida com Deus passa
por uma via pneumatológica, ou seja, do poder do Espírito Santo, bem
como a vida e missão da Igreja no mundo.

36 Espiritualidade Cristã
Um pouco de atualidade
Na atualidade temos, além do pentecostalismo que continua
a comprovar sua vigência e força de influência, os movimentos
teológicos do mundo dos dois terços que apresentam também suas
formas de espiritualidade. Elas são sempre muito relacionadas à uma
nova práxis cristã no mundo (práxis: ação tranformadora), solidária e
preocupada com a realidade concreta.
Dentre elas destacam-se a teologia da libertação (ver
“espiritualidade da libertação”, na unidade 10), e a teologia da missão
integral, que propõe uma missão e forma de espiritualidade mais
abrangente, holística e preocupada com o todo, como bem aborda o
texto de apoio desta aula. Para tanto, apresenta o contexto percebido
integralmente como lugar de onde se busca conhecer Deus e onde
realizamos nossa missão. Da mesma forma, a Escritura deve ser lida
como Palavra de Deus em um contexto, como também é contexto de
vida, deve ser visto de modo integral.

Conclusão

Nesta unidade vimos que a espiritualidade, embora tipicamente


cristã e, porranto, fundamentada em princípios que são sustentados em
comum, foi adquirindo inúmeras facetas e variações. Um passeio pelos
principais períodos da história deixou-nos uma, ainda que superficial
e breve, impressão de que o Senhor é único, Cristo, mas as expressões,
linguagens e experiências que encampam uma espiritualidade cristã
são diversas e, muitas vezes, conflitantes. O mais importante, sobretudo
se queremos pensar em uma espiritualidade humana e relevante para
nosso tempo, é que pensemos que, desde os mais remotos tempos e
situações, Deus nos convida a fincar raízes, mantendo os pés no chão
desta história, mas com os olhos fitos em Jesus Cristo e na esperança
nele depositada. Nas próximas unidades, prosseguiremos nosso estudo
olhando um pouquinho para a teologia da oração, como importante
vertente dos estudos em espiritualidade. Até lá!

37
Glossário
- A espiritualidade apofática parte da concepção teológica de
que a mente humana não consegue compreender plenamente
os mistérios de Deus e que isso condiciona sua espiritualidade.
Devido a isso ela é mais contemplativa e com ênfase no
esvaziamento e na negação dos desejos. A espiritualidade
catafática, por sua vez, baseia-se na afirmação dos pensamentos
e desejos na devoção cristã.

- Neoplatonismo usulamente se refere a filosofia de Plotino


(205-270) e aos individuos que eventualmente a ele se juntaram.
Como última grande filosofia do mundo antigo, de acordo com
Paul Tillich, “ era uma filosofia negativa, uma filosofia de escape
deste mundo. Queria a elevação da alma acima do mundo
material às alturas mais sublimes” (TILLICH, 1988, p. 109).

Referências

BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de paradigma


na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.
McGRATH, Alister. Uma introdução à espiritualidade cristã. São
Paulo: Vida, 2008.
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Leopoldo:
ASTE, 1988.
LUTERO, martinho. Como reconher a igreja. São Leopoldo: Sinodal,
2001.

38 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 5
Espiritualidade e oração (I)

Introdução

A oração sem dúvida é um dos assuntos mais tratados


na teologia e prática da espiritualidade. Aposto que não se ora
tanto quanto se fala de oração ou sobre a necessidade que o
crente tem de orar. Poucas vezes, contudo, se trata de modo
justo, honesto e bíblico da oração. Sem contar que nossas
abordagens bíblicas ao tema, muitas vezes, seguem uma
linha funcional e superficial, com citações de versículos que
supostamente falam sobre “o poder da oração”, os resultados
da vida de quem ora sempre, etc.
Assim, um aprofundamento bíblico e teológico sobre o
tema é necessário. Nas duas próximas unidades proponho uma
tentativa de traçar, por vias mais honestas e humanas, bíblica
e teologicamente, o tema da oração relacionando-o ao tema
da integridade, utilizando como exemplo a vida de Jeremias,
e fiando-se no pensamento de autores contemporâneos da
espiritualidade que têm seguido semelhante caminho.

Objetivos

1. Questionar ideias e percepções comuns sobre a


oração sustentadas na igreja;

2. Perceber as virtudes e ganhos para a espiritualidade


de se relacionar o tema da oração ao da integridade.

39
Inquietações com o tema
Poucas vezes a oração esteve entre os meus temas prediletos.
Talvez porque as exigências que quase sempre ouvia em relação a
ela soassem pesadas e grandes demais para os raros momentos de
oração que dedicava. Na adolescência, me diziam que a oração é um
elemento fundamental na vida de qualquer cristão verdadeiramente
convertido, como uma espécie de “termômetro da espiritualidade”:
quanto mais intensamente se ora, mais próximo de Deus se está, logo,
mais “espiritual” se é. Essa lógica sempre me soou muito própria do
ponto de vista da vida cristã formal – que eu tinha como referencia –
mas, ao mesmo tempo, bem imprópria levando em consideração meu
pequeno grau de adequação a esses moldes.
Fora isso, ainda tinha o desânimo
que batia ao ver (e ler) certas coisas sobre
oração que a tratavam como um negócio.
Era quase como se estivessem dizendo que
oração é fazer business com Deus. Só não
diziam que é um tipo de business do qual
Deus mesmo, geralmente, está ausente.
Afinal, porque precisamos de Deus,
não é mesmo? A oração já faz tudo: ela
liberta, expulsa demônios, gera emprego,
cura doenças, traz o marido ou a esposa
de volta, promove a prosperidade, tem o
poder de converter o coração de pessoas
e, mais do que isso, de “mover o coração
de Deus”.
Não me esqueço da primeira frase que li no livro “A oração de
Jabez”, de Bruce Wilkinson (2001, p. 2), em que o autor dizia: “Caro
leitor, quero ensinar-lhe como fazer uma oração à qual Deus sempre
atende”. Foi o suficiente para eu não querer ler mais. E nem precisava,
precisava?
Ainda hoje me impressiono positivamente ao ver pessoas,
como meu colega, professor Steve Kawamura, que são intercessoras
por natureza. Mas tenho tentado deixar de lado a ilusão de orar tanto

40 Espiritualidade Cristã
quanto elas ou de ser igual a elas, pois isso
é algo que nunca serei. Tento admirá-las
como admiro quem serve com naturalidade
e prazer, quem canta maravilhosamente,
quem apara cuida de um jardim como
ninguém, quem cozinha coisas deliciosas,
quem joga futebol magicamente, ou quem
ensina e discursa conseguindo prender a
atenção das pessoas do começo ao fim. São
Prof. Steve Kawamura dons especiais.
Mas orar não tem a ver só com o
dom de intercessão. Aprendi há algum tempo que, orar, mais do que
interceder ou falar com Deus, é viver. Paulo diz: “Orai sem cessar”
ou “orem continuamente” (1Ts 5.17). Isso significa que, mesmo
quando o falar cessa, a oração não termina; Deus continua falando, e
nós devemos continuar ouvindo a sua voz, que, apesar de inaudível,
não cala. Deus tem seus meios, os mais diversos, para falar conosco e
apontar o caminho certo. E tenho aprendido que, não obstante toda
formalidade que ainda impera nesse quesito, há também muitos jeitos
de orar, de andar e me relacionar com Ele. Além de recomendar a
oração contínua, o apóstolo ainda recomenda que se dê graças a Deus
em todas as circunstâncias da vida. T-O-D-A-S! Más ou boas, tristes ou
alegres, na carestia ou na prosperidade; num quarto fechado, na igreja,
em silêncio, reclusão ou em meio ao barulho do cotidiano, nas ruas da
cidade; por meio de cerimônia, ou dispensando qualquer cerimônia;
coletiva ou individualmente.
Assim, a oração é um ato sublime e incessante de uma vida
que ama e teme ao Senhor. Ela pode não mudar o que Deus é, nem o
quanto ele nos ama, mas NOS transforma; o nosso espírito se converte
ao Espírito de Deus. Perseverar e viver continuamente em oração não
implica em apressar Deus, nem ensinar como Ele deve agir. A demora
de Deus, para nós, implica que não conhecemos o kairos (tempo,
oportunidade, de Deus) e sua maneira de dar andamento e resolver as
coisas. Orar, finalmente, significará abrir nossa vida diante de Deus e
ser receptivo ao que tem feito e fará...

41
Jeremias
Tu me conheces, SENHOR; lembra-te de mim, vem em meu
auxílio e vinga-me dos meus perseguidores. Que, pela tua
paciência para com eles, eu não seja eliminado. Sabes que
sofro afronta por tua causa. Quando as tuas palavras foram
encontradas, eu as comi; elas são a minha alegria e o meu júbilo,
pois pertenço a ti, SENHOR Deus dos Exércitos. Jamais me
sentei na companhia dos que se divertem, nunca festejei com
eles. Sentei-me sozinho, porque a tua mão estava sobre mim
e me encheste de indignação. Por que é permanente a minha
dor, e a minha ferida é grave e incurável? Por que te tornaste
para mim como um riacho seco, cujos mananciais falham? (Jr
15.15-18).
O estilo de orar de Jeremias certamente não seria indicado a
nenhum Prêmio Nobel de Oração, se esse negócio existisse (às vezes,
mesmo que às escuras, ele parece existir); nem publicado num livro
(Best seller) como sendo a oração que
devemos repetir, porque Deus sempre
atende. Por isso, me sinto razoavelmente
confortável para falar de oração agora. Não
porque Jeremias seja modelo, mas porque
ele é um anti-modelo; até porque não creio
que oração tenha a ver com modelos, nem
com pacotes fechados.
Se não havia dissonância entre a
vida e o livro de Jeremias, como o estudo
de sua história me faz acreditar, o mesmo
parece ser verdade sobre sua vida como
Profeta Jeremias (escultura de Aleijadinho)
Fonte:Wikimedia Commons profeta e sua vida de oração. As mesmas
dores, angústias, ira, medo, lágrimas,
alegrias, prazer, tristezas, raiva e depressão geradas por seu ministério
profético eram matéria de suas conversas, nem sempre cordiais ou
piedosas, com Deus. Em outras palavras, ao orar, Jeremias mostrava
que era humano e, precisamente por isso, que precisava de Deus.

42 Espiritualidade Cristã
Vejamos alguns pontos interessantes na oração acima exposta.
Primeiro, ele se mostra carente, rejeitado (pelo pecado e
indiferença do povo), e impaciente, clamando pela intervenção divina,
que parecia retardar em função de sua paciência e longanimidade
(v. 15). É como se ele estivesse dizendo: “Você me colocou nisso, e
agora, por tua causa, eu estou sendo prejudicado. Vê se me livra dessa,
Deus!”. Jeremias se mostra aqui igualzinho a qualquer um de nós –
quando “nosso tempo compulsivo colide frontalmente com o tempo
da providência divina” (PETERSON, 2003, p. 122) – tentando ensinar
Deus a como ser soberano, e a como ser Deus!
Segundo, ele afirma ser solitário, em seu trabalho de profeta,
não tendo ocasião para se sentar com uma galera em festa, dando
risadas e se divertindo (v. 17). A tarefa de pensar, refletir, pregar e
desvendar significados é uma tarefa muitas vezes solitária, sobretudo
no caso de Jeremias. E, por mais necessário que seja, consciente e
irredutível que se esteja, a solidão bate e, com ela, o desejo de convívio.
E não havia porque esconder nada disso de Deus, já que tudo era “por
causa Dele”. E o profeta diz se sentir “oprimido” pela mão de Deus. Por
mais que fazer parte das causas Dele seja um privilégio, nem sempre é
prazeroso (e nem tem que ser, tem?).
Terceiro, ele se revela sofredor (v. 18a). Sofremos muitas vezes
por determinadas posições que ocupamos. Por mais necessárias e
reconhecidamente importantes, elas (e os tipos de reação que temos
em relação a elas) nos conduzem a lugares de sofrimento. Lembro-
me que, desde criança, sempre fui muito conseqüente. E minha
conseqüência me levava a não revidar com força (e as vezes nem
revidar), as provocações de minha irmã caçula. E, como eu não queria
revidar, para não ser injusto nem fazer besteira, esperava justiça do
meu pai. E nem sempre essa justiça vinha do modo como eu esperava.
Daí, vinha a revolta; aí a gente pensa e fala besteira, mesmo sem fazer.
Esse é o lugar de Jeremias, de revolta e dor, por razões muito maiores.
E ele quer partilhar com Deus essa dor. Através da oração ele pode
fazer isso.
Quarto, além de sofredor, ele também se mostra irado com
Deus. A sensação é de que Deus o abandonou; no começo, parecia

43
promissor andar ao seu lado. Depois, veio a decepção de ver que Deus
nem sempre age do modo como esperamos, e que ser amigo de Deus
implica em ter de conviver com inimizades outras. Então, Jeremias
destila toda sua honestidade, quando diz (na tradução A Mensagem):
“Você não é nada mais do que uma miragem, Deus; um adorável oásis
à distância, e então nada!” (v. 18b).
Sinceramente, não sei como na nova versão do livro “Corra
com os cavalos”, de Eugene Peterson (2008), os editores tiveram a
proeza de dizer, em um dos capítulos, que Jeremias é “o mais animado
dos profetas”. Não entendo isso, pelo menos não nesse sentido quase
neurolinguístico para a palavra “ânimo”. É
o mesmo que querer “achar pelo em ovo” –
e olha que tem gente por aí que “acha que
achou”, sobretudo diante da necessidade de
dar aos livros um maior “apelo comercial”.
Mas, não nos enganemos com esse
negócio de honestidade, do da qual sou
admirador, porém, consciente de que ela nem
sempre será recebida e acolhida com uma
tonalidade positiva. No caso de Jeremias,
foi uma amostra de sua intimidade, sem
desfaçatez ou pieguismo, com Deus, o que é
Livro de Eugene Peterson (2008) bom. Na oração, não precisamos de máscaras
ou disfarces; queiramos ou não, estamos nus
diante de Deus. Por outro lado, revela a perda do foco e das prioridades.
A excessiva preocupação com o que os outros pensam ou dizem sobre
nós, pode revelar uma desmedida preocupação conosco, o que pode
ser um sinal de que perdemos Deus de vista, e esquecemos de nossa
vocação, o que Ele nos chamou a ser e a fazer.
Mas, como lembra Peterson, no momento em que Jeremias
coloca esses sentimentos em oração, algo começa acontecer. Deus, além
de ouvir atentamente, o convida a rever as palavras ditas, restabelecer
prioridades e a renovar suas perspectivas, não como alguém ofendido
por sua postura, mas desejoso de vê-lo avançar e crescer. Deixar
falar os sentimentos às vezes significa, ainda que do lugar legítimo

44 Espiritualidade Cristã
da intimidade, dizer coisas que prejudicam o relacionamento. Então,
corremos o risco de dizer coisas “vis”. Mas Deus, como fez com
Jeremias, abre as portas ao arrependimento sincero, e nos chama a
separar o precioso do vil (v. 19), e recolocar o vagão de nossas vidas
nos trilhos de sua vontade.

Conclusão

Vimos nesta unidade que uma das vantagens de se relacionar


o tema da oração à vida é que, assim, ela deixa de ser uma prática
espiritual “distinta”, nos humaniza e passa a estar relacionada com
um jeito de ser no mundo, em nossa relação com os dilemas do dia
a dia e com o fato de que Deus se preocupa conosco e não está “lá no
céu” simplesmente, dispensando ou não suas bençãos de acordo com
a eficácia da oração de seus filhos. Não existe oração eficaz, senão a
oração do Espírito em nós. É ela que faz com que nossos gemidos ou
nosso silêncio chegue até Deus. Nos concentraremos especialmente
neste aspecto da oração na próxima unidade.
Até breve!

Referências

PETERSON, Eugene. Corra com os cavalos. Viçosa, MG: Ultimato;


Niterói, RJ: Textus, 2003.
_______. Ânimo: o antídoto bíblico contra o tédio e a mediocridade.
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
WILKINSON, Bruce. A oração de Jabez. São Paulo: Mundo Cristão,
2001.

45
Anotações
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46 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã
Unidade - 6
Espiritualidade e oração (II)

Introdução

Dando continuidade à unidade anterior, em que


tratamos da oração na perspectiva de uma vida humana
íntegra, quero convidá-los a prosseguir agora pensando em
formas e exemplos de oração. A forma usual de oração é aquela
que fazemos em voz alta, em público ou no secreto do quarto
(como Jesus recomendou que fosse), e tentamos exprimir em
palavras aquilo que Deus já vê bem fundo e com transparência
em nós, antes mesmo que o discurso seja formulado. Nesta
unidade, porém, gostaria que pensássemos que a oração pode
existir mesmo que não expressa, habitando viva no silêncio
da alma e do coração. Em seguida, trarei alguns exemplos de
oração que a gente geralmente não encontra na igreja, orações
honestas que expressam dúvidas, incertezas, mas também
confiança em Deus e no seu poder que, por fim, são maiores
que a própria oração e dão sentido a ela, mesmo quando não
enxergamos de cara.

Objetivos

1. Reconhecer a possibilidade da vivência da oração,


mesmo quando não há palavras, seguindo a ideia de que orar
é viver;

2. Elaborar, a partir dos referenciais de pensamento e


vida aqui pontuados, sua própria teologia da oração.

47
Oração e silêncio
Uma das percepções centrais no pensamento de Henri Nouwen
é a da oração como “modo de vida”. Ou seja,
orar seria para ele outro sinônimo para viver.
Viver a vida deixando-se ser encharcado
pela presença de Deus e por tudo o que ela
envolve. Nesta percepção, orar é um ato
do ser que se traduz em palavras, mas não
somente em palavras. Pois palavras são,
segundo Nouwen, “apenas um modo de
expressar a realidade da oração” – talvez o
mais recorrido na tradição cristã para a qual
a palavra é tão importante (para muitos,
imprescindível).
Henri nouwen
Esta visão vai ao encontro de tudo
o que temos visto até aqui, e de uma intuição pessoal, fruto não só
de experiências com a oração, mas da percepção de sua (in)eficácia
no mundo real no tocante à vida humana e seus mistérios, onde as
palavras nem sempre encontram “o sentido” ou “fazem sentido”. É a
intuição de que a oração genuína acontece (antes) no coração e pouco
pode ser captada pelo discurso. Aliás, normalmente somos traídos
pelo discurso, que tende a mascarar (no cativeiro da linguagem) o que
se passa no coração e que talvez os olhos e a expressão reflitam um
pouco melhor, embora sempre parcialmente.
Dessa forma, sinto-me impelido a, como Nouwen, “redescobrir
os momentos de oração nos rostos do homem e nas formas do mundo
em que ele vive”, de um modo que somente um contemplativo crítico
e sensível da realidade pode fazer, despido das urgências de seu
ambiente e da tendência comum em trivializar a oração, por um lado,
tornando-a um ato mecânico-religioso, e de fetichizá-la, por outro,
como uma “varinha de condão”.
Quando paro para contemplar, por exemplo, algumas histórias
de vida sofridas de estudantes (que trabalham de dia e estudam a noite,
ou que estão em busca de trabalho) e lutam diariamente para conciliar

48 Espiritualidade Cristã
múltiplas atividades, tendo de lidar com as muitas contingências
desse estilo de vida, posso perceber nas expressões e olhares cansados,
sonolentos, mas alegres, relutantes e esperançosos, muitas orações
sem palavras, pequenos e singelos gestos de uma busca que não cessa
e, na dificuldade, traz consigo
inúmeros aprendizados.
Então, em breves esforços
de compaixão, oro também, sem
palavras, com os olhos marejados
ou esboçando um sorriso, na
confiança de que o Senhor está
entre nós, partilhando conosco
de cada instante. Ali, absorto por Fonte: Depositphotos

emoções e pensamentos que pululam e gritam em silêncio, encontro


Deus, parafraseando Nouwen, na brisa suave que vem da janela –
relembrando que o Espírito sopra e age no silêncio e de que onde
houver luta, também haverá esperança – na angústia e na alegria do
outro e na solidão de meu próprio coração.
Assim, ao invés dos “punhos
cerrados” – imagem utilizada por Nouwen
para indicar tensão e auto-proteção – ouso
orar a Deus “de mãos abertas”. Pois, como
diz ele: “Uma vida imersa em oração é uma
vida de mãos abertas, em que você não se
envergonha de sua fragilidade mas percebe
que é mais perfeito um homem se deixar
guiar pelo outro do que procurar prender
tudo nas mãos” (NOUWEN, 1999, p. 79).
Fonte: Depositphotos
Portanto, na perspectiva de mãos
que se abrem, orar significará abandonar-se diante de Deus, deixando
de lado todo anseio por controle e abrindo-se para o maravilhoso e
imprevisível mundo das possibilidades do Eterno, desejando um outro
“eu” possível e crendo que “outro mundo é possível”.

49
Orações que não se ouve muito na igreja
Nesta segunda parte, gostaria de compartilhar alguns trechos
de pensamentos de autores os quais admiro não por me ensinarem 10
passos sobre como orar, ou a fórmula da oração bem-sucedida; longe
de mim coisas assim, e dos autores os quais me referirei. Admiro-os,
pois, ao falar sobre a oração, não escondem a dificuldade implícita
nessa atividade, embora a considerem preciosa e importante; nem
tampouco seguem a linha do determinismo crente, de que orar pode
mudar céus e terra ou move o coração de Deus, desde que oremos “do
jeito certo”. Definitivamente, não! Reconhecem que a oração muda a
gente em relação a Deus e não Deus em relação à gente. Tampouco
ignoram o fato de que, pessoas de oração são, antes de tudo, gente de
carne e osso, humanos, demasiadamente humanos.
E isso me encanta, porque posso me distanciar cada vez mais
do lugar religioso do cinismo, hipocrisia e da falsa piedade, e me
aproximar mais de um lugar onde posso me considerar, quem sabe,
um homem de oração, sem deixar de ser homem e nem almejar que
minha oração “mova montanhas”, ocupando o lugar de Deus. Isso é o
que ainda me mantém fascinado, ou seja, a chance de poder constatar
que a oração, em si, não tem poder algum; quem o tem é Deus. E Ele
parece não estar disposto a dividir esse posto com ninguém.
O primeiro autor a ser referendado não fala de oração (pelo
menos não aqui). Mas fala sobre ser humano ou sobre a condição
humana, coisa que nunca deixamos de ser, principalmente quando
oramos. As palavras de Paulo Freire,
admirável ser humano e brilhante educador,
me inspiram a gostar desse paradoxo que é
ser humano:
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está
dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou
ou serei decente, que testemunharei sempre gestos
puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os
outros, que não mentirei escondendo o seu valor
porque a inveja de sua presença no mundo me
incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de
ser gente, porque sei que a minha passagem pelo
Paulo Freire
mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que

50 Espiritualidade Cristã
o meu “destino” não é um dado, (sic) mas algo que precisa ser
feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de
ser gente porque a História em que me faço com os outros e
de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não
de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do
futuro e recuse sua inexorabilidade (FREIRE, 1996, p. 58-59).
A segunda referência é de Eugene Peterson, para quem oração
significa prestar atenção em Deus e manter o foco de nossa vida Nele:
Oração é, na vida de fé, o ato em que entramos diante de Deus
em postura consciente e deliberada de falar e ouvir –
relacionamento do Criador com a sua criação e dela
com Ele. A qualquer tempo que nos concentramos,
focamos os pensamentos e prestamos atenção, nós
oramos. Orar significa ter consciência, exercitar a
atenção, estimular e desenvolver a intensidade pessoal
diante de Deus. (...) A oração é linguagem ousada para
se dirigir a Deus, não para explicá-lo nem para falar
sobre Ele. É resposta. O evangelho tem a missão de nos
fazer parar de falar sobre Deus e nos levar a falar com
Ele. (...) O verdadeiro conhecimento de Deus jamais
é conhecimento sobre Ele; é sempre relacionamento
Eugene Peterson
com Ele (PETERSON, 2005, p. 128, 129).
A terceira e última referência é de Henri Nouwen, exemplo de
integridade, como foi Jeremias; o que ele escrevia, ele vivia, e o que ele
vivia era expresso com enorme e inexorável franqueza em seus escritos.
Com sua sensibilidade e brilhantismo ele deixou um legado espiritual
incomparável para nós, cristãos. Em todos os seus livros praticamente
se fala sobre oração. Mas em no Diário de seu último ano sabático,
encontrei o que, para mim, são as palavras mais humanas e livres até
então por ele escritas sobre o assunto.
Primeiro, ele começa falando sobre seu entendimento do que
vem a ser a oração:
A oração é a ponte entre a minha vida inconsciente e consciente.
Ela conecta meu pensamento com meu coração, minha vontade
com minhas paixões, meu cérebro com meu estômago. A oração

51
é a única via para deixar o Espírito vivificante de Deus penetrar
todos os recantos do meu ser. É o instrumento divino de minha
completude, unidade e paz interior (NOUWEN, 2003, p. 20).
Em seguida, ele compara essa definição com sua vida de
oração, fazendo uma confissão honesta acerca de si mesmo, um idoso
de 63 anos de idade, que passou a vida falando sobre espiritualidade e
oração, tendo um alto grau de aceitação e sucesso por isso, mas que, no
fim da vida, se vê diante da encruzilhada tenebrosa de ter que admitir
certos paradoxos em sua espiritualidade:
Se é assim, o que posso dizer sobre minha vida de orações?
Gosto de orar? É meu desejo orar? Reservo tempo parar orar?
Francamente, a resposta é “não” para todas as três questões.
Depois de 63 anos de vida e 38 de sacerdócio, minha oração
parece tão morta quanto uma pedra. (...) A verdade é que não
sinto nada de singular quando oro, se é que sinto alguma coisa.
Não há emoções intensas, sensações físicas, ou visões mentais.
Nenhum de meus cinco sentidos é tocado – nenhum cheiro
especial, nenhum som especial, nenhuma imagem especial,
tampouco algum movimento especial. Se por um bom tempo o
Espírito agiu tão claramente em minha carne, agora não sinto
nada. Vivi na expectativa de que a oração se tornasse mais fácil
à medida que eu envelhecesse e me aproximasse da morte. Mas
parece estar acontecendo o contrário. As palavras escuridão e
aridez parecem ser as melhores para descrever minha oração
hoje (NOUWEN, 2003, p. 20, 21).
Por fim, Nouwen nos brinda com a
tentativa de avaliar sua própria confissão
anterior, admitindo a grande dose de realismo
nu e cru que nela há, sem, no entanto, perder
de vista as possibilidades escondidas mesmo
em seus mais áridos desertos espirituais,
tampouco a perspectiva bíblica de que, no fim
das contas, o Espírito “nos ajuda em nossa
fraqueza, pois não sabemos como orar, mas
o próprio Espírito intercede por nós com
gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26, NVI):

52 Espiritualidade Cristã
Será que a escuridão e aridez de minha oração são sinais da
ausência de Deus, ou são sinais de uma presença mais profunda
e vasta que meus sentidos podem abarcar? A morte de minha
oração é o fim de minha intimidade com Deus ou o início
de uma nova comunhão, para além das palavras, emoções e
sensações corporais? Na meia hora em que me sento para estar
na presença de Deus e orar, não acontece coisa sobre a qual
poderia comentar com meus amigos. Mas talvez esse tempo
seja uma maneira de morrer com Jesus. O ano à minha frente
deve ser um ano de oração, embora eu diga que minha oração
está tão morta quanto uma pedra. A minha certamente está,
mas não a oração do Espírito em mim (NOUWEN, 2003, p.
21 – grifo do autor).

Conclusão

Nestas duas últimas unidades, procurou-se ressaltar que a


oração é mais do que um gesto, que um rito, que um jeito de “convencer”
a Deus sobre nossos puros desejos e sinceras intenções; antes, trata-se
de uma via sempre aberta de relacionamento com o Pai em que, para
meu benefício e das pessoas em favor de quem oro, expresso diante
Dele, por palavras, sem palavras, através de ações ou do silêncio quieto
de um quarto, o que sinto, penso e acredito, bem como minhas (nossas)
dores, alegrias, queixas e gratidão.
Nesse sentido, a oração não é algo que nos retira do contato
com as coisas comuns (ou mesmo as incomuns e trágicas) da vida
cotidiana, nem nos eleva para um plano além do mundo e da condição
humana, mas, ao contrário, é o que nos ajuda a estar mais atentos a
esta vida, que a cada momento pulsa e gira ao nosso redor, e à presença
constante e, na maioria das vezes suave e silenciosa, de Deus... No choro
de uma mãe, na alegria e sorriso de um casal, na convulsão tortuosa
do trânsito das grandes cidades, na brisa leve e fresca das manhãs no
campo, no pranto e no riso, no luto e na alegria, e assim por diante.
É assim que entendo a “Soberania”: não como a ideia de um

53
rei distante, reinando de seu “alto e sublime trono”, ditando como as
coisas devem ou não devem acontecer cá na terra, mas de um rei que se
mistura com a plebe, usa suas roupas, come na mesma mesa, enfrenta
os mesmos problemas; um rei tão nobre a ponto de não reivindicar
nobreza, e tão real a ponto de não parecer da realeza; um rei como
Jesus mostrou que Deus é. E, por isso, pôde dizer, quando um de seus
discípulos pediu para que lhe mostrasse o Pai: “Quem vê a mim, vê o
Pai” (Jo 14.9).
Agora, quando eu oro, de olhos abertos ou fechados,
balbuciando palavras ou em silêncio, tento olhar para o lado, para
a vida, a natureza, o próximo, e ali ver Jesus; e quando, pelo milagre
da fé, consigo ver a Jesus, tento imaginar como é o Pai e, assim,
percebo, como na canção “Nas estrelas”, dos Vencedores por Cristo,
que: “Ele não vive longe lá no céu, sem se importar comigo. Mas
agora ao meu lado está, cada dia sinto seu cuidar, ajudando-me a
caminhar, tudo Ele é pra mim”.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 17ª Ed. São Paulo: Paz e


Terra, 1996.
NOUWEN, Henri. Oração: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola,
1999.
_______. Diário. O último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São
Paulo: Loyola, 2003.
PETERSON, Eugene. Trovão Inverso: o livro de Apocalipse e a oração
imaginativa. Rio de Janeiro: Habacuc, 2005.

54 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 7
Espiritualidade do deserto

Introdução

Falar do tema “espiritualidade do deserto” é explorar


aquilo que, a meu ver, está na raiz de nossa vida com Deus
– como esteve em Jesus e em tantos de seus seguidores na
história. Ao mesmo tempo – e pensando no cotidiano de
pessoas em um mundo urbano e secularizado – é algo que,
em geral, se encontra ainda muito distante da maioria de nós,
em que pese nossos estilos de vida. Por isso, para falar sobre
este tema hoje, é preciso, primeiro, conceituar a questão (ou
o lugar) do deserto na vida cristã – o que é o deserto e o que
ele representa na caminhada histórica do cristianismo? É o
que gostaria que fizéssemos nesta unidade, a primeira em que
tematizaremos o lugar do deserto na espiritualidade cristã.

Objetivos

1. Conhecer alguns dos sentidos possíveis para o


“deserto” na espiritualidade cristã;

2. Reconhecer a importância do deserto na vida


espiritual de todo cristão.

55
O que se entende por deserto?
Em primeiro lugar, é claro que deserto tem sim a ver com
um “lugar”, reservado e próprio para meditação, silêncio e oração.
Ali nos afastamos da compulsão por fazer e realizar coisas, bem
como da compulsão por barulho e agitação, que tanto marcam nossa
vida cotidiana, assim como demarcam nossa identidade perante a
sociedade.
O uso do termo tem a ver com um tipo de vida que passaram
a ter alguns monges que, por volta do séc. IV da era cristã, no auge
da crise espiritual do cristianismo,
se afastaram de suas atividades
corriqueiras, e buscaram o deserto,
isto é, um lugar ermo, distante da
vida barulhenta, a fim de evitar a
conformidade com um mundo em
decadência. Esses monges ficaram
conhecidos posteriormente como
“pais do deserto”, porque serviram
Fonte: Depositphotos (e ainda servem) de inspiração
para uma forma alternativa de
cristianismo, não preocupada com poder e
status, mas com uma longa obediência numa
mesma direção, parafraseando Eugene Peterson.
E quando falo em “decadência”, me
refiro obviamente a um tipo moral e espiritual
de declínio na perspectiva de alguns cristãos.
Estes enxergavam em um dos períodos de
maior “sucesso” do cristianismo – quando
da conversão do imperador Constantino e
posterior oficialização (em 380) do cristianismo
como religião do império – tanto no que diz Fonte: Wikimedia Commons
respeito a adesão religiosa, quanto em poder e
institucionalização, um processo gradativo de perda de seus valores e
ideais originários, baseados na centralidade da vida na pessoa de Jesus
Cristo, e na fidelidade ao seu Evangelho.

56 Espiritualidade Cristã
Como explica Henri Nouwen (2004, p. 13), esses pais do deserto:
Eram cristãos que buscavam nova forma de martírio. Depois
que a perseguição cessou, já não era possível dar testemunho
de Cristo seguindo-o como testemunha de sangue. Contudo,
o fim das perseguições não significou que o mundo aceitara os
ideais de Cristo e mudara; continuou-se a preferir a escuridão à
luz (Jo 3.19). Mas, se o mundo já não era o inimigo do cristão,
então o cristão tinha de se tornar inimigo do mundo escuro.
ão tinha de se tornar inimigo do mundo escuro. A fuga para o
deserto era o meio de evitarA fuga para o deserto era o meio
de evitar a tentadora conformidade ao mundo. Antão, Agatão,
Macário, Poemen, Teodora, Sara e Sinclética foram líderes
espirituais no deserto. Ali se tornaram mártires: testemunhas
contra os poderes destrutivos do mal, testemunhas do poder
salvífico de Jesus.
Então, um dos lemas da espiritualidade do deserto passou a se
fundar nas palavras de aba Arsênio:
“Foge, fica em silêncio e ora”.
Segundo Nouwen (Ibid.), elas denotam três meios para “impedir
que o mundo nos molde a sua imagem” e se constituem, desta forma,
em três possíveis caminhos para uma vida no Espírito – embora
não sejam os únicos, nem última palavra neste quesito. Sobretudo
porque, como temos visto neste curso e como melhor veremos na
próxima aula, esta vida no Espírito não é vida “fora”: nem do mundo,
nem do corpo e muito menos dos conflitos e dilemas humanos. Pelo
contrário, é em meio ao enfretamento de todas estas outras coisas que
a necessidade do deserto se torna premente, e a espiritualidade cristã,
efetiva e relevante.

Qual é o lugar do deserto na espiritualidade


cristã?
Desse modo é que, em segundo lugar, podemos dizer que
o deserto é mais que um lugar, é uma condição auto-induzida de
sobrevivência, sanidade e busca pela maturidade e liberdade na vida
cristã. Acontece todas as vezes que reservamos espaço em nossas

57
agendas e, mais do que isso, em nossos corações para ficar em silêncio,
orar e escutar a voz de Deus. Nesse sentido, o “silêncio” é também mais
do que calar a voz da garganta, é também tentar calar as muitas vozes
que perturbam e induzem à ansiedade os nossos irriquietos corações.
E, por coração, aqui estou entendendo como no AT, isto é, não o orgão,
mas o centro da vida, orientação e vontade humanas. Por isso, como
defende Nouwen, “o silêncio do coração é muito mais importante que
o da boca”, e cita o aba Poemen:
Um homem pode estar aparentemente em silêncio, mas, se
seu coração condena outros, ele tagarela sem cessar. E pode
haver outro que converse da manhã à noite e, contudo, esteja
verdadeiramente em silêncio (NOUWEN, 2004, p. 57).
Então, pode-se dizer que é possível estar em silêncio, mesmo
diante de e em conversa com inúmeras testemunhas, ou muito falante,
mesmo estando sozinho e sem ninguém por perto. Nesse sentido, a
visão de Nouwen se encaixa com a de Ricardo Barbosa (no texto de
apoio desta aula) de que deserto, mais que uma geografia, é um “estado
do coração diante de Deus e de nós mesmos” (SOUSA, 1998, p. 97).

Conceitos importantes
Outro conceito que está conectado com o lugar do deserto na
vida cristã, é o de solitude. É preciso, primeiro, entender que solitude é
um estado que se relaciona, mas não se confunde com outros, como o
de estar sozinho e com a solidão ou isolamento. Nouwen (1997, January
18) parte do princípio de que todos os seres humanos são sozinhos,
uma vez que cada um de nós é único. Por isso, ser sozinho é o outro
lado de ser único. “Nenhuma outra pessoa irá se sentir completamente
como nos sentimos, pensar ou agir como nós”, afirma este autor. A
questão principal para ele é como tratamos a nossa condição de
sozinhos ou únicos no mundo, se deixamos com que ela se transforme
em solidão ou se permitimos que ela nos guie para a solitude.
Dessa forma, precisamos diferenciar solitude de solidão.
Solidão é um lugar de fuga: dos outros, de nós mesmos e de
Deus. É o estado em que nos encontramos quando não deixamos
espaço para que a liberdade interior cresça, para que a fé em Deus e a
relação conosco mesmos e com os outros amadureça. Então, buscamos

58 Espiritualidade Cristã
a solidão tanto quanto ela nos busca; e quando encontramos o vazio
dela proveniente, queremos preenchê-lo de modo rápido, artificial e
infrutífero. Quando os outros e Deus se tornam meios de nos entreter,
de nos tirar da solidão, longe nos encontramos de uma vida espiritual
frutífera, e logo nos tornamos impulsivos, compulsivos e até violentos.
Solitude, por sua vez, é um espaço frutífero de liberdade e
amadurecimento na fé, onde nos encontramos sós, mas não em total
isolamento, muito menos em fuga. Ao contrário, a solitude é um lugar
de encontro: com Deus em primeiro lugar e conosco mesmos, nossas
virtudes e defeitos, nossos sentimentos de raiva, frustração e decepção,
nossas inadequações, nossos “demônios” e necessidades. É um espaço
onde o confronto honesto com nossas expectativas e nosso verdadeiro
eu, em busca da graça e do amor de Deus, se faz possível. Ali não apenas
falamos com Deus, mas, principalmente, estamos abertos e dispostos
a escutá-lo através da Palavra. A solitude é um lugar da Palavra, onde
a Palavra não volta vazia, mas pode ser germinada, ruminada e, só
então, frutificar. Como expressa Nouwen (1997, January 21), solitude
é “o jardim para nossos corações, que anseiam por amor. É o lugar
onde nosso ser sozinho pode dar fruto. É o lar para nossos corpos
cansados e nossas mentes ansiosas”.
Só que não se trata de um projeto individualista. Pelo contrário,
a solitude nos conduz à comunidade e a comunidade é suportada pela
solitude, como melhor veremos na unidade 15 deste curso. “Solitude
encontrando solitude, isto é o que significa
comunidade”, defende Nouwen (1997,
January 22). Só que o anseio pela presença
do outro e a necessidade de partilhar,
quando suportados pela solitude, passam a
ser mais naturais, frutos do amor, deixando
o lugar compulsivo do controle, dos ciúmes
e da extrema carência, que transforma a
comunhão em doença (koinonite) e o amor
(livre) em possessão. À medida então que
nos movemos – num processo conflituoso
e custoso, muitas vezes – da casa da solidão
Fonte: Depositphotos para a casa da solitude, relacionamentos

59
maduros podem florescer. Mais do que isso, é na solitude do deserto
que nossos corações podem se encontrar com sua verdadeira
vocação, sentido e missão, como veremos na próxima unidade mais
concretamente através do exemplo de Jesus.

Conclusão

Retomando o que vimos até aqui:


1. Deserto, historicamente, é entendido como uma geografia, um
lugar ermo, separado da civilização e do barulho, para onde homens e
mulheres se deslocavam em busca de paz, consolo e abrigo em Deus,
ou seja, visando melhorar a sua espiritualidade.
2. Por outro lado, deserto também é mais que uma geografia, é
uma atuitude do coração, um estilo de vida, uma busca pela liberdade
e maturidade por meio da contemplação em um mundo de ação
(Merton).
3. Em nossos desertos hoje, podemos aliás introduzir uma prática
espiritual de leitura da palavra que pode ser muito útil, que á a chamada
Lectio Divina (ou leitura divina), uma prática de leitura meditativa e
responsiva da Palavra de Deus, na qual o silêncio é um dos ingredientes
essenciais. Abaixo, deixo-os com trechos do livro Meditatio, de Osmar
Ludovico, em que autor explica com mais detalhes o processo da Lectio
Divina. Boa leitura e até a próxima!

SOBRE A LECTIO DIVINA – de Osmar Ludovico


Ao usar Meditatio, fazemos referência a uma das mais marcantes
e significativas páginas da história da Igreja. É uma expressão que vem
desde a época dos pais do deserto, que foi muito utilizada e praticada
pela Monástica e sistematizada no que chamamos de Lectio Divina
pelo monge cartuxo Guigo II. Ele utiliza a idéia de uma escada para
a prática da Lectio Divina, sugerindo uma subida para um encontro
no alto, no monte de Deus, e logo uma descida para um encontro nas
profundezas, no fundo do meu coração.
Statio (preparação), Lectio (leitura), Meditatio (meditação),
Oratio (oração), Contemplatio (contemplação), Discretio

60 Espiritualidade Cristã
(discernimento), Collatio (compartilhar) e Actio (ação) são os degraus
dessa milenar tradição de ler a Bíblia. Esses passos constituem um
movimento integrado em que cada degrau conduz ao outro. Passo a
passo, lentamente saboreando cada passo em direção ao topo para, em
seguida, descer ao vale, voltar ao concreto e ao cotidiano.
Assim diz Guigo II: “A leitura — Lectio — é o estudo atento
da Escritura feito com um espírito totalmente orientado para sua
compreensão. A meditação — Meditatio — é uma operação da
inteligência, que se concentra, com a ajuda da razão, na investigação
das verdades escondidas. A oração — Oratio — é voltar com fervor
o próprio coração a Deus para evitar o mal e chegar ao bem. A
contemplação — Contemplatio — é uma elevação da alma que se
levanta acima de si para Deus, saboreando as alegrias da eterna doçura”.
E completa: “A leitura leva à boca o alimento sólido; a meditação o
corta e mastiga; a oração o saboreia; a contemplação é a própria doçura
que alegra e recria”.
(...) A Lectio Divina, que também se tornou conhecida nos
nossos dias como Meditação Cristã ou Leitura Orante, é a arte de ouvir
o coração de Deus, dizia São Gregório Magno. O objetivo não é um
estudo bíblico ou uma exegese. É leitura bíblica que nos conduz a uma
experiência de encontro com Deus e a uma experiência de oração.
Êxodo 33:11 diz: “O SENHOR falava com Moisés face a face, como
quem fala com seu amigo”.
O propósito da Lectio Divina não é simplesmente aumentar
nosso conhecimento intelectual, mas nos levar a um encontro vivo com
Jesus Cristo. Tal encontro não nos deixa ilesos, mas faz que nossa pobreza
espiritual aflore, nossos pecados venham à tona, bem como nos indica
o caminho da transformação da vida. Sem isso, podemos conhecer as
Escrituras sem que elas penetrem nas dimensões mais profundas do
nosso ser, para tocar nossa consciência, nosso coração, nossa vontade.
Na leitura meditativa, a Palavra não é interpretada, mas
recebida, uma palavra única, exclusiva, que nos ajuda a penetrar no
“mistério, que é Cristo em vocês, a esperança da glória” (Cl 1:27).
Na Lectio não empregamos a “força de vontade” ou uma disciplina
da ordem da razão ou do esforço, mas lemos a Palavra para que ela
surpreenda, para que toque a alma a partir de uma revelação pessoal,
dirigida pelo Espírito por meio de nossa intuição, nossa imaginação,
nossos afetos e sentimentos.

61
Para ler a Bíblia meditativamente precisamos de um tempo
de preparação, de corpo relaxado, de alma apaziguada, de espírito
pronto e alerta. Começamos fazendo contato com o corpo, suas dores
e tensões, procurando relaxar em uma posição confortável. Faremos,
então, contato com a alma e seus muitos ruídos internos, procurando
trazê-la de volta ao seu sossego (Sl 116:7: “Retorne ao seu descanso, ó
minha alma, porque o SENHOR tem sido bom para você!”).
Oramos ao Senhor, em quietude, com serenidade, aguardando
o Senhor (Sl 130:5: “Espero no SENHOR com todo o meu ser, e na
sua palavra ponho a minha esperança”). Então lemos a Palavra, sem
forçar nada, deixando acontecer, nos entregando a ela, iniciando um
diálogo com Deus no profundo da alma. Podemos manter um diário
com nossas meditações, nossos eventos de alma, resgatando uma
linguagem mais poética, mais metafórica, uma linguagem da alma,
dos sentimentos, dos afetos. Davi tinha um diário, que se tornou o
livro de Salmos, onde contava e cantava sua vida com Deus.
Ler a Bíblia meditativamente significa fazê-lo como quem
saboreia as palavras; significa saber parar quando um texto ou mesmo
uma palavra nos toca, nos fala ao coração diretamente, nos fortifica;
significa permanecer com essa palavra sem a necessidade de procurar
outras, e tão longamente quanto ela se mover em nós, operar em nós,
realizar em nós. Operar o quê? Realizar o quê? Gerar o quê? A alegria
de viver, a segurança da presença de Deus, de sua salvação, de seu
amor incondicional. (LUDOVICO, 2007, pp. 17-20).

Referências

LUDOVICO, Osmar. Meditatio. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.


NOUWEN, Henri. A espiritualidade do deserto e o ministério
contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2004.
____________. Bread for the journey. A daybook of wisdom and faith.
New York: HarperCollins, 1997.
SOUSA, Ricardo Barbosa de. O caminho do coração. Ensaios sobre
Trindade e Espiritualidade Cristã. 2ª ed. Curitiba: Encontro, 1998.

62 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã
Unidade - 8
O deserto na espiritualidade de Jesus

Introdução

Vimos na unidade anterior que o deserto é mais que um


lugar geográfico na espiritualidade cristã; é, principalmente, um
lugar existencial – o espaço que reservamos em nossa existência
para Deus, sua Palavra, e para um encontro conosco mesmos.
Assim, nesta veremos a importância que Jesus dava para o deserto –
um lugar para onde ele ia, mas sobretudo esse espaço reservado em
sua vida de comunhão com Deus, silêncio e escuta. Também será
significativo perceber através do relato de Lucas como o deserto
colocava Jesus em contato com aquilo que havia de mais fundamental
em sua vocação e missão, não permitindo ser levado pelos anseios e
clamores das multidões, nem pela síndrome messiânica.
Por fim, à luz do salmo 42, refletiremos sobre o deserto
como instância em que damos voz às nossas inquietudes e dúvidas,
a fim de desenvolver uma vida de honestidade com Deus, consigo
mesmo e com as pessoas. No deserto encontramos nossa identidade
de filhos e filhas amados(as) de Deus, que permite desenvolvermos
ao mesmo tempo uma relação crítica com o mundo ao nosso redor,
de suspeita e avaliação constantes, a fim de compreender melhor
nosso lugar e vocação neste mesmo mundo.

Objetivos

1. Reconhecer na pessoa de Jesus um exemplo da


eficácia do deserto na espiritualidade cristã;

2. Refletir sobre os desafios pessoais que o deserto


pode oferecer a nossa própria vida espiritual.

63
O exemplo de Jesus no deserto (Lc 4.1-13)

Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo


Espírito ao deserto, onde, durante quarenta dias, foi tentado
pelo Diabo. Não comeu nada durante esses
dias e, ao fim deles, teve fome. O Diabo
lhe disse: “Se és o Filho de Deus, manda
esta pedra transformar-se em pão”. Jesus
respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão
viverá o homem’”. O Diabo o levou a um
lugar alto e mostrou-lhe num relance todos
os reinos do mundo. E lhe disse: “Eu te darei
toda a autoridade sobre eles e todo o seu
Fonte: Depositphotos
esplendor, porque me foram dados e posso
dá-los a quem eu quiser. Então, se me adorares, tudo será teu”.
Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus, e
só a ele preste culto’”. O Diabo o levou a Jerusalém, colocou-o
na parte mais alta do templo e lhe disse: “Se és o Filho de Deus,
joga-te daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a
seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com as mãos eles
o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”.
Jesus respondeu: “Dito está: ‘Não ponha à prova o Senhor, o
seu Deus”. Tendo terminado todas essas tentações, o Diabo o
deixou até ocasião oportuna (NVI).
No relato de Lucas, era início do ministério de Jesus, e ele deixa
o Jordão (lugar de seu batismo) direto para o deserto. Ali permanece
por 40 dias e noites, sem comer e nem beber, apenas na companhia do
Espírito e sendo tentado o tempo todo pelo Diabo. Ao final daqueles
dias, certamente num momento de grande vulnerabilidade (afinal,
foram 40 dias sem suprimento fisiológico), Lucas afirma que Jesus
“teve fome”, de modo que o Diabo, tomando por ocasião a fraqueza
física, o tentava ainda mais fortemente.
Os fatores ou elementos utilizados na tentação não foram
criados pelo Diabo – como geralmente não são. O que ele faz é
aproveitar o ensejo de fatores (humanos) já existentes em Jesus,
especialmente na condição em que se encontrava: a fome (v. 2), o fato

64 Espiritualidade Cristã
de ser Filho de Deus (v. 3), e, até por isso, de ter
poder e autoridade para gerenciar até mesmo
os anjos (v. 6), e a capacidade de realizar feitos
heróicos (v. 9).
Ali, Henri Nouwen (2002a) afirma que
Jesus resistiu a três das grandes compulsões do
mundo: ser capaz (transformar pedras em pães);
ser poderoso (ter todos os reinos do mundo
aos seus pés), e ser espetacular (atirar-se de um
enorme penhasco, ordenando aos anjos para que
Henri Nouwen o salvem).
Aqui, porém, me interessa mais o que do que o como da
espiritualidade do deserto de Jesus. Ou seja, que elementos são
fundamentais para compreender o modo como Jesus reage às
tentações pelas quais passa no deserto? Falarei daqui para diante sobre
quatro elementos: (a) Espírito Santo, (b) Intimidade, (c) Temor e
Assertividade, (d) Propósito e Identidade.
Espírito Santo. O texto de Lucas, afirma que Jesus estava “cheio
do Espírito Santo”, à medida que fora conduzido ao deserto; e que,
quando retorna a Galiléia, também o faz “no poder do Espírito Santo”
(v. 14). Ora, se a espiritualidade se configura como “vida no Espírito”,
este não é um elemento meramente ocasional, nem nesta história,
muito menos na vida e missão de Jesus. O Espírito Santo é a energia
divina que nos conduz ao deserto, e nos capacita a passar por ele. No
silêncio, no afastamento, nas durezas e lutas do deserto, e no desafio
de encarar a nós mesmos, nossos medos, vaidades e mais latentes
tentações, contamos com a companhia e poder do Espírito, sem o qual
nada podemos por nós mesmos.
Intimidade. Jesus demonstra ser íntimo de seu Pai e de sua
Palavra. E nisto ele tem uma diferença fundamental com o Diabo:
ambos demonstram conhecer a Palavra, isto é, saber partes dela. Mas
somente Jesus demonstra compromisso para com os conteúdos e a
vida que emana da Palavra. Enquanto o Diabo cita coisas da Palavra
– como quem cita versos ou conta piadas memorizadas, ao sabor do
momento e como fruto de oportunismo –, Jesus revela a Palavra,
demonstra um saber que vai além da mera letra e que integra a Palavra

65
a um viver comprometido com ela mesma. Esta intimidade não se
reduz a mimos, afagos ou meras “declarações de amor”. Jesus vai além
disso. Demonstra que ser íntimo de alguém é estar em contato com o
que há de mais profundo, essencial e verdadeiro nele(a).
Temor e assertividade. Quem teme e ama a Deus, e conhece
(por pouco que seja) a si mesmo e o que, como ser humano, é capaz,
não brinca com o poder das tentações. No relato de Lucas, vemos que
as palavras de Jesus, em resposta ao Diabo, não são lançadas ao vento;
pelo contrário, são assertivas (isto é, claras, honestas, convictas), diretas,
palavras de Deus. E nisso vemos também que ele não faz “joguinhos”
com o Diabo; ele foge, cai fora das armadilhas. A tentação não se
enfrenta (como se a força para resisti-las estivesse em nós). Da tentação
se foge e se resiste, na força que Deus supre. Não posso escolher não
ser tentado, pois isso faz parte de minha condição humana desde sua
origem. Mas posso optar por não jogar com as tentações. No final do
trecho lido, Lucas termina dizendo que o Diabo o deixou “até ocasião
oportuna” (v. 13). Ou seja, sempre existem outras oportunidades para
que as tentações estejam à espreita e para que aprendamos a lidar com
elas e trilhemos o caminho da resistência.
Propósito e identidade.
O deserto conferiu a Jesus senso
de propósito para sua vida e
ministério. Tornou-se, para ele, um
lugar recorrente de discernimento
(do que é importante, em relação
ao que é apenas trivial) e de
comunhão com Deus. Um relato
de Lucas (4.42-44), logo adiante
ao texto que estamos analisando, Fonte: Depositphotos

demonstra bem isso:


Ao romper do dia, Jesus foi para um lugar solitário. As multidões
o procuravam, e, quando chegaram até onde ele estava,
insistiram que não as deixasse. Mas ele disse: “É necessário
que eu pregue as boas novas do Reino de Deus noutras cidades
também, porque para isso fui enviado”. E continuava pregando
nas sinagogas da Judéia.

66 Espiritualidade Cristã
Atrair e ser atraído pelas multidões nos dias de hoje tem um
ar de heroísmo espiritual, protagonismo e ministério apostólico.
Pregadores que falam para multidões tendem a ser vistos como
“ungidos” de Deus, gente que foi colocada por Ele no lugar certo para
trazer a palavra, a cura e a libertação que as pessoas mais precisam. Há
um ar de nobreza em ocupar esta posição. Mas Jesus parece não ser
atraído por essa síndrome messiânica – embora ele fosse a pessoa mais
autorizada a isso, uma vez que é
o Messias (escolhido) de Deus,
que veio para salvar, libertar e
reconciliar a humanidade com
seu Criador e Redentor.
Existem inúmeras
passagens e ocorrências nos
evangelhos que demonstram
um apreço grande de Jesus pelas
multidões, por suas aflições,
Fonte: Depositphotos necessidades e insuficiências
(a exemplo de Mt 9.36, ou de Mc 6.34-46). Mas compadecer-se e dar
atenção especial às multidões não significa irrestritamente abraçá-
las com suas queixas, causas e urgências. E este texto é um exemplo
disso. O senso de propósito e missão de Jesus, forjado e fortalecido no
deserto, em comunhão com o Pai, é o que o mantinha firme e focado
em sua missão. Ao passo que, mesmo tendo sido instado a não deixar
a presença das multidões (o que é uma tentação messiânica), ele sabia
exatamente o momento certo de deixá-las e ir proclamar as boas novas
do Reino em outros lugares, ou mesmo buscar o silêncio pedagógico
do deserto.
Então, a solitude no deserto é um lugar de grandes encontros
e grandes conflitos – de luta contra as compulsões desse nosso “eu”,
forjado em pecado e pressionado pelos clamores do mundo ao nosso
redor, e de encontro com o Deus amoroso, que dá substância a nossa
nova identidade como filhos de Deus. Ali, mas não somente ali, é
claro, podemos nos libertar de qualquer reserva ou defesa, e receber o
toque e o abraço do Pai, como na Parábola do Filho Pródigo, onde o
Pai parece dizer:

67
Você é meu amado. Eu não vou te fazer perguntas. Onde quer
que você tenha ido, o que quer que tenha feito, ou qualquer
coisa que as pessoas digam a seu respeito, não importa, pois
você é meu amado. Eu te ponho protegido em meu abraço. Eu
toco você. Deixo-te seguro debaixo de minhas asas. Você pode
retornar ao lar daquele cujo nome é Compassivo, cujo nome é
Amor (NOUWEN, 1995, p. 82).
Quando, no deserto, passamos a ouvir a voz de Deus que
nos chama de amados e amadas suas, tudo passa ter um significado
diferente, e grande parte daquilo que, para nós, tinha quem sabe
enorme importância – sucesso, fama, reconhecimento, aprovação das
pessoas – agora passa a ser relativizado diante dessa voz de amor. Esta
que proporciona um reencontro com nossa verdadeira identidade,
que não é aquela que carregamos em nosso RG, nem em nossos
crachás profissionais e ministeriais, muitos
menos nos diplomas, honrarias e títulos
que acumulamos. Não. Isso é somente parte
do que somos, a ponta do iceberg. O que
realmente somos, em Deus, é muito mais do
que aquilo que realizamos. De acordo com
Nouwen (Ibid.), se mantivermos isso em
mente, “podemos lidar com uma enorme
quantidade de sucesso assim como com uma
enorme quantidade de fracasso, sem perder
nossa identidade, por que nossa identidade
Fonte: Depositphotos é a de que somos amados”.

Nossa inquietude na berlinda do deserto


Como vimos, Jesus no deserto, enquantero tentado pelo
Diabo, provou que o fundamental é aprender a ouvir a voz do Pai,
que diz (como em seu batismo): “Tu és o meu Filho amado, em ti
eu me agrado” (Lc 3.22). Diante disso, e pensando em nossas vidas,
pergunto: compelidos e remexidos por tantas vozes que nos ladeiam,
a qual escutaremos?
Diante do abatimento em que muitas vezes nos encontramos,

68 Espiritualidade Cristã
em função das grandes e pequenas questões que nos angustiam,
podemos lembrar as palavras do salmista: “Por que estás abatida, ó
minha alma? E por que te agitas dentro de mim?” (Salmo 42).
O deserto é lugar propício para travar uma conversa com a
nossa alma. Isto é o que o salmista faz no repetido verso da canção de
profunda angústia e inquietação por ele entoada no Salmo 42, na qual
convida sua alma para um bate-papo querendo entender a razão de
tanto abatimento. Uma das coisas mais sadias e razoáveis que alguém
pode fazer quando não dá conta de algo é ser honesto, consigo mesmo,
com os outros e com Deus. No caso do salmista, essa honestidade se
apresenta em forma de perguntas: Por que me sinto tão abatido? Até
quando essa situação vai perdurar? Onde está o meu Deus? Por que
permanece calado por tanto tempo?
Perguntas como essas evidenciam dúvidas e temores que
assolam até o mais seguro de si
- embora gente muito segura de
si tem uma tendência a não abrir
mão de sua fachada de austeridade
- e cujas respostas não são simples
nem exatas. Aliás, em se tratando
da vida e do sofrimento humano
nada pode ser simples ou exato. Por
isso a linguagem dos trovadores e
profetas é recheada de honestidade, paradoxos e de bela, ilógica e não
equacionável poesia.
A inquietude, quando não abafada com consolos artificiais,
atrai e torna-se parceira dos paradoxos. O paradoxo pode até existir
fora da mente, mas não pode ser reconhecido sem que (na mente) se
dê lugar à inquietude, a qual provoca o pensamento que nos desperta
quando algo não vai bem e nem, necessariamente, irá ficar bem - ao
menos não do jeito desejado, tampouco com falsas garantias, do tipo:
“Basta acreditar, que tudo vai dar certo!”.
O enfrentamento do paradoxo, por sua vez, promove, na
linguagem do poeta, o que chamo aqui de aceitação inquieta - a
aceitação que não se confunde com mera rendição. Ou seja, aceitar
uma determinada condição não implica em se render ou se resignar a

69
ela. Por exemplo: reconhecer e aceitar que a política no Brasil é permeada
por corrupção não implica em se render à falácia de que todo mundo
que nela se envolve é ou fatalmente será um corrupto, ou que nada pode
ser feito a respeito da corrupção. Ademais, a realidade não se reduz ao
que vemos. O que se vê é apenas uma parte do real, tanto quanto o olhar
em si é parcial. Como bem disse Paulo, “agora, pois, vemos apenas um
reflexo obscuro, como em espelho...” (1Co 13.12).
Assim, aceitação inquieta é aquela que indica a presença de
uma fé que não banaliza nem suprime a realidade tal como a vemos ao
mesmo tempo em que afirma (mesmo que relutando) a possibilidade e
a imperiosidade de sua transformação. Por esta razão, a linguagem dos
salmos - tão recheada de seus “por que” e “até quando” - também vem
temperada com seus “contudo”, “apesar de” e “ainda que”, denotando fé
na presença, persistência e fidelidade divinas em meio às mais variadas
circunstâncias.
O silêncio (e aparente ausência) de Deus não é sinal de
indolência ou paralisia da parte Dele, assim como minhas eventuais
dúvidas, reclames e inquietações também não são sinais da falta ou
morte da fé em mim. Pelo contrário, a inquietude não apenas provoca
na mente o encontro com os paradoxos, como já dito, como retira a
fé dos escombros da passividade e da falsa retidão, tornando-a um
organismo vivo, atuante e em constante transformação.
A maturidade, desta forma, está mais para um tesouro a ser
perseguido pelos cantos da existência e ao longo da vida na fé, que
para um porto seguro onde se pode atracar de uma vez por todas. A
soberba (ou o chamado “orgulho espiritual”) é que precisa de portos
seguros de tal natureza. A “paz que excede todo entendimento”, não
excede, mas existe paradoxalmente no meio de todo sofrimento,
dúvida e inquietude que possamos ter.
A fé bíblica se alimenta, então, de uma espera inquieta no deserto
e de uma inquietude expectante, em que uma mesma pessoa pode (em
tom realista) indagar: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que
te perturbas dentro de mim?”. E ainda assim (em tom esperançoso)
declarar: “Espera em Deus, pois ainda o louvarei” (Sl 42.11).
Portanto, mesmo em meio a inquietude que nos assola no
deserto, o chamado da voz que nos diz “filhos amados”, permanece

70 Espiritualidade Cristã
como sinal de um seguimento, o seguimento dos filhos de Deus que
andam conforme o caminho e segundo a imagem de seu Filho, na
força do Espírito. De modo que a espiritualidade cristã formada no
deserto é aquela que nos ajuda a não nos movermos mais e, sobretudo,
por aquilo que funciona, que faz sucesso, que dá ibope, boa reputação
ou agrada as outras pessoas. Igualmente, o deserto nos orienta a viver
não somente pela, mas para a vontade de Deus revelada em Cristo.
Poderemos, então, desenvolver a atitude daqueles que Nouwen
chama de “contemplativos críticos”, isto é, pessoas que, por causa de
sua autenticidade evangélica, testam e provam tudo aquilo que veem,
escutam ou tocam. O contemplativo crítico, assim, toma suas decisões
pautado não pela opinião pública, pelo desejo de popularidade ou
anseio por aprovação, mas por seu próprio senso de propósito e
vocação. Segundo Nouwen (2002b, p. 73):
Ele não permite a ninguém cultuar ídolos e convida
constantemente seu semelhante a formular perguntas
significativas, muitas vezes penosas e desordenadas, a olhar
atrás da superfície do comportamento polido e eliminar todos
os obstáculos que o impedem de atingir o âmago do assunto.
O contemplativo crítico arranca a máscara ilusória do mundo
manipulador e tem a coragem de mostrar qual é a verdadeira
situação.

Fonte: Depositphotos

71
Conclusão

Dessa forma, a espiritualidade que se forja no deserto,


proporciona esse reencontro com a minha liberdade interna,
parafraseando Nouwen. Esta liberdade me relembra que, embora
eu faça parte do mundo, posso me ver liberto de seu domínio, de
suas pulsões, vozes e compulsões, podendo assim, e somente assim,
contribuir para a sua transformação.
Essa liberdade interna, contudo, não é propriamente minha,
mas é a liberdade de Deus que faz morada em mim e me dá, sempre que
para ela desperto, um novo sentido de propósito, missão e identidade.
Como veremos na próxima unidade, ser chamado de filho amado,
liberto no e do mundo, implica em uma conversão também para o
caminho e a busca pela libertação de outros. Até lá!

Referências

NOUWEN, Henri. O perfil do líder cristão do século XXI. Belo


Horizonte: Atos, 2002a.
_________. O sofrimento que cura. 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2002b.
_________. Moving from solitude to community to ministry. In:
Leadership Magazine, Spring 1995, Carol Stream, IL.

Anotações
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72 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 9
Espiritualidade, teologia e vida

Introdução

Nas próximas duas unidades, aprenderemos um pouco


sobre o que é e em que consiste uma “espiritualidade da
libertação”. Primeiramente, dando-se conta de que é preciso
não mais dissociar espiritualidade do fazer teológico e de
nossa vida e contexto. Em segundo lugar, abrindo os olhos
para a relidade que está ao nosso redor e redescobrindo um
modo de ser cristão guiado pelo espírito, em nosso lugar e
com nosso povo. Por fim, conscientizando-nos de que viver a
espiritualidade numa perpectiva libertadora é, antes de tudo,
mergulhar de cabeça na causa de Jesus e de seu reino, tendo
consciência de que qualquer outra prioridade é secundária
frente a esta. Ser espiritual, assim, é, pela graça, abraçar as
implicações de viver com radicalidade o amor de Jesus pelas
pessoas, desmantelando o egoísmo humano e convertendo-se
um pouco mais a cada dia aos caminhos do Espírito.

Objetivos

1. Identificar algumas das falhas e lacunas de uma leitura


tradicional do tema da espiritualidade;

2. Relacionar os temas da espiritualidade, teologia e vida.

73
Espiritualidade e vitalidade humana
Quero começar trabalhando um pouco o tema da espiritualidade
e sua relação com a teologia e a vida. Antes de tudo, porém, cabe aqui
a pergunta: quais são os sentidos tradicionais que têm sido atribuídos
à teologia e prática da espiritualidade no meio cristão?
Apresento, abaixo, quatro deles:
a. Aparência exterior. A espiritualidade é avaliada e associada
às demonstrações externas (aparência, estética), mais precisamente
às performances religiosas do cristão (Ex. Dizer “aleluia” e “amém”
quando alguém está orando, ou levantar as mãos, ajoelhar e chorar
durante o culto).
b. Vida interior. A espiritualidade é meramente uma disciplina
interior, que tem relação com uma comunhão vertical (a pessoa e
Deus). As disciplinas clássicas de uma “vida espiritual”, nesse sentido
estrito, são: oração, jejum, meditação, êxtase, solitude, submissão,
serviço, confissão, orientação, contemplação, celebração, etc. Nesse
sentido, como afirma Gutiérrez (2000, p. 26): “A relação com Deus
parecia obscurecer a presença dos demais e afundava cada cristão em
sua própria interioridade (ou melhor, em determinada maneira de
entendê-la). A vida espiritual era chamada de vida interior, que muitos
interpretam como algo que se vive exclusivamente dentro de si”.
c. Legalismo farisaico. Mede-se pelo seguimento da doutrina
correta e do “reto comportamento” com base em leis (leia Cl 2.20-
23). “Vida religiosa, no sentido estrito do termo, que garantia um
‘estado de perfeição’, e supunha por consequência a idéia de estados
imperfeitos de vida cristã. Ao ‘estado de perfeição’ correspondia uma
forte e estruturada busca de santidade; aos demais, no melhor dos
casos, parcelas menos exigentes dessa espiritualidade” (GUTIÉRREZ,
2000, P. 24). Aqui está pressuposta a idéia da existência de duas classes
de cristãos: os “mais” e os “menos” espirituais.
d. Individualismo extático (ou de experiências com o
sobrenatural). Negação da adoração comunitária e cotidiana
(transformação do caráter pela renovação da mente), e afirmação
da contemplação individualista, na busca de galgar degraus na vida

74 Espiritualidade Cristã
dita “espiritual” (leia Cl 2.18-19).
Assim, uma “pessoa espiritual” é
aquela que está em proximidade
com o “mundo espiritual” (oposto
ao mundo material), como os anjos,
mantendo contato com os segredos
e revelações celestiais especiais,
em oposição às coisas e atividades
mundanas. É o modo “espiritualista”
Gustavo Gutierrez de se interpretar a vida cristã, o
qual “manifesta pouco interesse pelas tarefas temporais e revela
grande insensibilidade à presença e às necessidades das pessoas reais
e concretas que se encontram ao redor do cristão seguidor dessa
espiritualidade” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 28).
Desse modo, como aponta Moltmann (2002, p. 82), dissociamos
a espiritualidade de sua vitalidade essencial. Em nome de uma vida
focada no que está “além” e alheio a ela mesma e aos acontecimentos
do aqui e agora – mais preocupada com a “alma”, o “espírito”, que com a
matéria, o corpo e com a vitalidade integral que há na junção (se é que
podemos dividir o ser humano, como queriam os gregos) entre todas
essas partes que formam a humanidade – apresentamos ao mundo,
com efeito, um Deus distante, etéreo, transcendente, que vive longe e
despreocupado com a nossa vida aqui na terra e que está disponível
apenas aos “espirituais”, às almas mais elevadas e evoluídas. Como
consequência, assumimos uma “espiritualidade dócil”, desvinculada
dos sentidos, hostil ao corpo, à vida, separada do mundo e sem a
menor dimensão cidadã, no lugar da “vitalidade original”, judaica e
cristã, que vive a partir do Espírito Criador de Deus.
O resultado, portanto, tem sido desastroso para a vida dos
cristãos e seu testemunho no mundo. Temos provado que existe a
possibilidade de realizar a missão sem dar um bom testemunho da
graça de Deus. A imagem do Deus que é vitalidade pura, que ama a vida
e sua criação, e que transmite vida e vida abundante, em oposição às
realidades de morte, tem sido abafada pela imagem (distorcida) de um
Deus legalista e fariseu, inimigo da vida em todas as suas dimensões,
que parece apenas estar interessado em aprisionar as pessoas e evitar

75
que elas pequem a todo custo, pela imposição de normas e condutas
exigentes demais para os comuns e menos “santos”, que não conseguem
cumprir a lei.
Em contrapartida, viver a vida de Cristo, desenvolver a mente
de Cristo, sendo seus seguidores, implica na compreensão, defendida
por Moltmann (2002, p. 82), de que:
Não somos redimidos desta terra, de modo que pudéssemos
desistir dela. Somos redimidos com ela. Não
somos libertos do corpo, mas somos eternamente
vivificados com ele. Por isso a esperança originária
dos cristãos não se dirige ao além, no céu, mas
à chegada de Deus e de seu reino a esta terra.
Nós, humanos, somos criaturas terrenas, e não
candidatos a anjos. Tampouco somos hóspedes
aqui num belo planeta, para nos familiarizar com
outro após a morte. Permanecemos fiés à terra,
pois nesta terra esteve fincada a cruz de Cristo.
Sua ressurreição “dentre os mortos” também é
uma ressurreição com os mortos e com esta terra
Jurgen Moltmann
embebida de sangue. À luz da ressurreição de
Cristo já vemos os contornos da “nova terra” (Ap 21.1), na qual
“já não haverá a morte, não haverá mais luto, nem clamor nem
sofrimento”.
Outra questão que vale a pena ser comentada é sobre a relação
entre teologia e espiritualidade. Não são categorias estanques, mas
complementares. Custa-nos, como igreja evangélica, compreender
isso e a nos desintoxicarmos de nossos preconceitos, erigidos
históricamente. Entretanto, como diz o Pe. Gutiérrez, “o discurso
sobre a fé parte da vida cristã da comunidade e se orienta para ela.
Uma reflexão que não ajude a viver segundo o Espírito não é uma
teologia cristã. Toda autêntica teologia é uma teologia espiritual”
(GUTIÉRREZ, 2000, p. 52 – Grifo meu).
Já disse isso há duas aulas, e aqui apenas reitero: oração não
é um mero rito ou experimento artificial; oração é vida, é o rumor
do coração que se transforma em palavras, ou em simples silêncio,
colocando nosso mundo limitado em vivo contato com o mundo

76 Espiritualidade Cristã
ilimitado de Deus. Assim, para mim, a principal matéria-prima da
teologia é a vida, assim como orar é viver e como Deus é sinônimo
de Vida e Liberdade plenas. Só se pode conhecer a Deus à medida
que se celebra intensamente o viver, o viver junto com outros, imersos
na realidade. A teologia que se vale da experiência de Jesus (o Deus
Encarnado) está totalmente ancorada em, e em permanente relação
com, a realidade que nos cerca, tantas vezes dura e cruel. Segundo
Eugene Peterson (2004, p. 264), “Deus não se revela à realidade
para que a contemplemos como meros espectadores, mas para que
possamos nela ingressar e viver”.

Bebendo em Nosso Próprio Poço


A espiritualidade cristã, que emerge da proposta de Gustavo
Gutiérrez, é uma espiritualidade que finca raízes, isto é, que não somente
está conectada com a história humana, no sentido geral, mas com as
histórias de vida, dor, alegria, tristeza, sofrimento, sonhos, derrotas,
vitórias, agruras e conquistas vivenciadas por um povo em particular,
vinculado à uma terra, que ele quer chamar de sua, mas que, tantas vezes,
por diversas formas de exclusão e violência, é-lhe tirado esse direito à
terra e, porque não dizer, à própria vida. Esse tem sido, em grande parte,
o caso da realidade latino-americana, a partir da qual e à qual este autor
se reporta em seu livro Beber em seu próprio poço.
Segundo ele, a raiz de toda espiritualidade é que ela nasce das
experiências concretas vivenciadas por pessoas concretas, num espaço
e tempo determinados. Experiência pessoal e, ao mesmo tempo, passível
de ser expressa aos demais. Gutiérrez se baseia na idéia de Bernardo de
Claraval, o qual afirma que, nesses assuntos, “cada um deve beber em
seu próprio poço”. Dessa expressão surge a imagem do “poço de água”,
a fonte de onde não somente uma, mas um grupo de pessoas de um
vilarejo ou povoado retira a água para as necessidades da vida e para
matar a sede. Dela, também surge à pergunta: “De que poço podem
beber os pobres da América Latina?”. É uma pergunta sugestiva, pois,
conforme acredita Gutiérrez (2000, p. 53), “a espiritualidade é como
água viva que surge do fundo da experiência de fé”.
Como exemplo, um testemunho. Henri Nouwen, famoso autor

77
holandês na área da espiritualidade – sobre o qual ainda veremos
mais na próxima unidade deste curso –
expressa uma opinião muito particular sobre
essa idéia. Após um período sabático de seis
meses trabalhando com os pobres em países
da América Latina, no início dos anos 80,
mudanças fundamentais aconteceram em sua
trajetória. Nouwen sempre se mostrou um
cristão que se permitiu e admitiu passar por
diversas conversões. Os pobres da América
Latina foram parcialmente responsáveis por
uma delas. Nouwen nutria até então uma
visão mais intimista de espiritualidade, como
interioridade, solitude monástica, em função da influência de mestres
espirituais como Thomas Merton em sua jornada espiritual.
Em 1982, ele teve a oportunidade de participar de uma classe
ministrada por Gustavo Gutiérrez, em Lima, no Peru. Ali, aquele
teólogo apresentou um primeiro esboço de suas idéias sobre uma
espiritualidade da libertação, que logo iriam compor o livro Beber em
seu próprio poço. Foi um curso para agentes de pastoral, provenientes
de diversos países da América
Latina. “A espiritualidade
descrita para aqueles cristãos
latino-americanos”, testemunha
Nouwen (2001, p. 178) em seu
livro Estrada para a paz, “não
foi percebida como um modo de
pensar estranho ou importado,
mas como uma expressão do
que eles já tinham conhecido
em sua vivência diária do
Fonte: Wikimedia Commons - Lima Peru Evangelho”.
Isso é ainda mais significativo se pensarmos que o modelo de
espiritualidade que recebemos no ocidente, que se diz cristão, tanto de
católicos como de protestantes, reduziam-se a formas de religiosidade

78 Espiritualidade Cristã
importadas de lá para cá, cujas expressões faladas, cantadas e vividas
quase nunca correspondiam ao vivido e à realidade latino-americana
(embora pudessem ser válidas em seu contexto, e não desprezíveis
em seu todo). Gutiérrez, por sua vez, apresentou no referido curso
não um itinerário espiritual do nada para alguma coisa, ou “de fora”
para ser aplicado aqui, mas uma trajetória conhecida e familiar, por
meio da qual aqueles jovens pudessem se dar conta de que já haviam
encontrado o Senhor em suas próprias vivências e pela presença (talvez
antes irreconhecível) de um Deus amoroso e gracioso no meio da luta
pela justiça e pela paz no mundo.
Desse modo, Nouwen (2001, p. 178) afirma que:
Beber em seu próprio poço é viver sua própria vida no Espírito
de Jesus da forma como o tiver encontrado em sua realidade
histórica concreta. Isso não tem nada que ver com opiniões,
convicções ou idéias abstratas, mas tem tudo que ver com a
experiência tangível, audível e visível de Deus, uma experência
tão real que pode se tornar a fundação de um projeto de vida.
Como diz a primeira espístola de João: “o que ouvimos, o que
vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos
tocaram do Verbo da vida”.

Durante seu período na América Latina,


Nouwen (1993) já vinha refletindo sobre sua
vocação. Perguntava a si mesmo e a Deus em
seu diário: “O Senhor está me chamando para
trabalhar na América Latina nos anos que estão
por vir?”. Sua visão de espiritualidade, após esse
tempo, havia mudado radicalmente. Segundo
ele, sua intenção tinha sido de ir até lá para
dar. Mas acabou recebendo de volta algo muito
mais precioso do que podia oferecer, por seus
tantos anos de sacerdócio. A marcha dos pobres
Henri Nouwen
mostrara-lhe outro tipo de sacerdócio, o de
um compromisso mais profundo com Cristo, com os olhos fitos na
realidade e os pés atolados na lama da história. Em seu relato dessa
experiência, ele afirma:

79
Os pobres com quem convivi revelaram-me os tesouros de
uma espiritualidade cristã que estivera escondida de mim
em meu mundo abastado. Mesmo tendo pouco ou nada, eles
me ensinaram a verdadeira gratidão. Mesmo lutando com
desemprego, desnutrição e muitas doenças, ensinaram-me a
alegria. We Drink from Our Own Wells é um livro importante
não só por ser uma apresentação inteligente e perspicaz de
uma espiritualidade latino-americana, porém mais ainda por
ser um presente dos pobres que, por meio do ministério de
solidariedade de Gustavo Gutiérrez, torna-se agora disponível
para a conversão de nós que sempre nos consideramos auto-
suficientes (NOUWEN, 2011, p. 185).
Falar da espiritualidade como algo que surge da experiência de
fé, não significa que essa mesma fé exclua o discurso ou a racionalidade,
isto é, que não necessite de uma “inteligência”, que proponha, organize,
retrate e elabore uma teologia como resposta, como “segundo ato”. Mas,
ao mesmo tempo, a reflexão teológica que não nasce da experiência
concreta do povo de Deus, não servindo, portanto, à vida em comunidade,
pode tornar-se uma reflexão vazia e estéril.
Uma teologia que não se situe no contexto de uma vivência de
fé corre o risco de se converter em uma espécie de metafísica
religiosa, em uma roda que gira no ar sem mover o veículo...
A reflexão teológica só adquire seu pleno sentido no seio
da Igreja, a serviço de sua vida e de sua inserção no mundo
(GUTIÉRREZ, 2000, p. 58).

http://desenvolturasedesacatos.blogspot.com.br

80 Espiritualidade Cristã
Conclusão

Gutiérrez (2000, p. 168) conclui, e assim com suas palavras


concluo também, reafirmando um aspecto essencial da vida espiritual
de um povo: “A espiritualidade é uma aventura comunitária. Passos de
um povo que faz seu próprio caminho nos seguimentos a Jesus Cristo
através da solidão e das ameaças do deserto. Experiência espiritual que
é o poço do qual temos que beber. Ou talvez, na América Latina de
hoje, nosso cálice, promessa de ressurreição”.

Referências

BARRO, A. C. Afinal, quem é o espiritual? In: BOMILCAR, Nelson. O


melhor da espiritualidade brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005, pp.
275-289.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Itnerário espiritual de
um povo. São Paulo: Loyola, 2000.
MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida. O Espírito Santo e a teologia da
vida. São Paulo: Loyola, 2002.
PETERSON, Eugene. Transpondo Muralhas: espiritualidade para o dia-a-
dia dos cristãos. Rio de Janeiro: Habacuc, 2004.
NOUWEN, Henri. Estrada para a paz. Escritos sobre paz e justiça. São
Paulo: Loyola, 2001.
________. Gracias! A Latin American Journal. New York, USA: Orbis
Books, 1993.

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Anotações
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82 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã

Unidade - 10
Espiritualidade da libertação

Introdução

O propósito central desta unidade não é outro senão o


de enfocar o tema da espiritualidade na perspectiva teológica
da libertação. Para tanto, a problemática inicial é: existiu ou
ainda existe uma preocupação da Teologia da Libertação
(TdL) em relação ao tema “espiritualidade”? Se existe, como
ela se configura? Como essa “espiritualidade da libertação”
responde à fome de Deus na alma do povo latino-americano? Toda
essa conversa de libertação não leva a uma “politização do
Evangelho”? Será que a TdL, como questiona Daniel Migliore,
não acaba por negar a natureza intensiva e pessoal de ser
cristão: a experiência do perdão divino, a relação pessoal com
Cristo, a prática da oração e outras disciplinas da vida cristã?
Essas são algumas questões que devem nos mover aqui.

Objetivos

1. Compreender o lugar e importância de uma


espiritualidade da libertação no contexto latino-americano;

2. Conscientizar outras pessoas acerca da necessidade


de uma espiritualidade mais ampla, que seja encarnada,
cristocêntrica e solidária.

83
Gutiérrez e a espiritualidade libertadora
Quero dar, porém, especial destaque à obra de Gustavo
Gutiérrez, que, dentre os teólogos da libertação, foi um dos que melhor
desenvolveu a, assim batizada, “espiritualidade da libertação”.
É a espiritualidade que
nasce da assumpção da tarefa de
libertação integral do povo, em
especial dos pobres, na América
Latina. É uma espiritualidade da
superação. Sobretudo, superação da
dicotomização do evangelho e do
discipulado cristãos, isto é, desse
negócio, que a gente não inventou,
Gustavo Gutierrez mas se apropriou (sem respaldo
bíblico), de separar corpo e espírito, igreja e mundo, teologia e vida/
espiritualidade, e assim por diante.
Essa dicotomia se encontra do lado oposto da vida na fé e
da causa libertadora. Segundo Daniel Migliore (1980, p. 83): “A
luta pela libertação da vida humana em sua dimensão política e
socioeconômica e a dádiva da nova vida e liberdade em Cristo não
são processos separados mas interdependentes”. Uma espiritualidade,
como define Gutiérrez (1986, p. 172), “é uma forma concreta, movida
pelo Espírito, de viver o evangelho. Maneira precisa de viver ‘diante
do Senhor’ em solidariedade com todos os homens, ‘com o Senhor’ e
diante dos homens. Ela surge de uma experiência espiritual intensa,
depois tematizada e testemunhada”. Essa espiritualidade consiste,
ainda, numa nova noção do compromisso e relação com Deus e com
seu reino: compromisso de ouvir a palavra de Deus “a partir de baixo”,
e de desenvolver-se, enquanto cristão, em solidariedade para com os
pobres.
As implicações dessa visão são amplas e diversas. Uma
espiritualidade da libertação, observa Migliore (1980, p. 93), deverá
incluir (e não excluir ou negar) muitos dos elementos da espiritualidade
cristã tradicional: leitura da Bíblia, oração, meditação, comunhão em
torno da palavra e sacramentos, exercício dos dons espirituais, serviço

84 Espiritualidade Cristã
ao próximo. Porém, afirma ele, essa nova espiritualidade vai fazer uma
releitura desses elementos, atribuindo-lhes novos significados e usos,
pois eles estarão intimamente relacionados com a práxis de liberdade
em solidariedade com os pobres.
Dessarte, Migliore (1980, p. 94) afirma que “essa nova
espiritualidade da libertação é uma espiritualidade política”, não
orientada a atender as demandas
particulares de programas e ideologias
político-partidárias, porém, direcionada
rumo à “nova comunidade” (nova
Jerusalém), a completa realização da
vida humana em comunhão com Deus
e com outros.
Esse câmbio, de uma
espiritualidade preocupada com o “eu” Fonte: Depositphotos
para uma espiritualidade solidária para com os pobres e oprimidos
leva, necessariamente, à uma nova compreensão do arrependimento,
conversão, mortificação, novo nascimento e do compromisso cristão.
De acordo com Gutiérrez, a conversão evangélica é a pedra de
toque de toda espiritualidade. À luz do pensamento e práxis libertadora,
Gutiérrez expõe um sentido mais amplo de conversão. Para ele,
conversão significa
Radical transformação de nós mesmos, significa pensar,
sentir e viver como Cristo presente
no homem despojado e alienado.
Converter-se é comprometer-se com
o processo de libertação dos pobres e
explorados, comprometer-se lúcida,
realística e concretamente. Não só com
generosidade, mas também com análise
de situação e com estratégia de ação.
Converter-se é saber e experimentar
que, contrariamente às leis do mundo
Jon Sobrino
da física, só estamos de pé segundo o
evangelho quando nosso centro de gravidade passa fora de nós
(GUTIÉRREZ, 1986, p. 173).

85
Concretamente, de acordo com Jon Sobrino (1988, p. 69), “na
América Latina, uma pessoa espiritual é alguém que vê os pobres com
os olhos de Deus e lida com eles como Deus lida”. E quem seriam esses
cristãos comprometidos e solidários? Como identificá-los? Na opinião
de Sobrino (1988, p. 58):
Aqueles que realmente se vêm como amados de Deus, poderão
igualmente amar seus irmãos e irmãs melhor. Aqueles cuja
visão tem sido purificada por Deus, verão o mundo dos pobres
com maior pureza. Aqueles que têm experienciado o perdão e
a misericórdia de Deus de maneira mais profunda, identificar-
se-ão melhor com a realidade dos pobres.
Nesse sentido, “crescimento espiritual e processo de libertação
estão tão intimamente ligados quanto estão os mandamentos de amar
a Deus e amar ao próximo como a nós mesmos”
(MIGLIORE, 1980, p. 95).
Em síntese, como poderíamos relacionar
as principais características e contribuições de
uma espiritualidade da libertação? Henri Nouwen
(2001, pp. 180-183) aponta três elementos
principais que fundamentam e distinguem a
espiritualidade da libertação, enquanto produto
de uma ortopráxis cristã latino-americana, dos
demais modelos de espiritualidade vigentes no
Henri Nouwen continente.
3.1. A espiritualidade da libertação é integral. É integral porque
“toca todas as dimensões da vida”. Deus é o doador da vocação para
a liberdade aos seres humanos e maior interessado em que ela seja
cumprida integralmente em sua vivência histórica. Isto significa
que, onde quer que haja injustiça, opressão, escravidão, sofrimento e
morte, existe, em oposição, uma centelha divina incendiando, com as
chamas da indignação, compaixão e solidariedade, a luta pela justiça
e libertação do ser humano, no caso o pobre e o oprimido, que vive
nessas condições. Pobreza, na acepção de Gutiérrez, significa morte.
Por isso, fazendo coro com a leitura de Nouwen, é impossível reduzir
a teologia da libertação a um movimento meramente político, pois a

86 Espiritualidade Cristã
luta para a qual Deus nos chama é uma luta pela vida, em todas as suas
dimensões, contra as forças de morte.
3.2. A espiritualidade da libertação é cristocêntrica. Seu cerne e
modelo é Jesus Cristo. Gutiérrez (2000, p. 11) inicia seu livro dizendo
que “seguir Jesus define o cristão”. Nouwen pondera que aqueles
que não compreenderam a centralidade de Jesus na luta pela plena
liberdade humana sempre interpretarão mal a TdL e a espiritualidade
da libertação. Jesus é o centro da luta pela liberdade. “Ele ama tanto o
opressor quanto o oprimido e entrou na história para libertar todos os
homens e mulheres”. Na visão de Nouwen (2001, p. 182), a proposta da
espiritualidade da libertação se coaduna com a de Jesus, à medida que
“a boa nova que Jesus anuncia é a nova de que o amor é mais forte do
que a morte e que o mal do ódio, destruição, exploração e opressão só
pode ser vencido pelo poder de Deus”.
3.3. A espiritualidade da libertação é contextual. Ou seja, é
originada da experiência cotidiana concreta das comunidades cristãs
da América Latina. Não é uma espiritualidade estática, isto é, pensada
e praticada uma só vez para ser aplicada definitivamente em todo e
qualquer contexto, mas dinâmica, situacional e, por isso, requer escuta
constante das necessidades dos pobres para que se possa responder
a elas de modo efetivo. Embora a participação humana seja muito
importante no processo de libertação, essa espiritualidade, como
ressalta Nouwen, não conclama as pessoas à salvar o mundo por si
mesmas, mas reconhece que é a gratuidade do amor do Deus revelado
em Jesus que nos liberta para trabalhar a serviço do Reino.
Para concluir essa parte, vale a pena
destacar a maneira como Nouwen relata
a própria relação entre ação-reflexão-ação
percebida no compromisso espiritual radical
com o Deus da Vida, através da solidariedade
com os pobres da América Latina, do Pe.
Gustavo Gutiérrez:
Gustavo Gutiérrez não escreveu simplesmente mais
um livro sobre a vida espiritual. Por muitos anos,
ele participou com todo o seu ser da dolorosa luta
Gustavo Gutierrez

87
de seu povo. A partir dessa solidariedade íntima, foi capaz de
identificar os traços de uma nova espiritualidade, traços que
podia ler no rosto das pessoas com quem conviveu. As palavras
que ele escolheu para esses traços pertencem ao tesouro
da tradição espiritual cristã: conversão, gratuidade, alegria,
infância espiritual e comunidade (NOUWEN, 2001, p. 183).

Conclusão

Não restam dúvidas quanto à contribuição da teologia da


libertação para a teologia e prática da espiritualidade na América
Latina. Talvez tenha havido distorções e reduções da mensagem
evangélica, através de algumas propostas expandidas por outros
teólogos e seguidores da TdL. Mas, da mesma forma, é inegável que
houve distorções da mensagem cristã entre os primeiros cristãos, no
decorrer dos séculos, até os dias atuais. Nosso trabalho não se torna
mais fácil porque negamos essa patente realidade de violação das
Escrituras. A exegese e hermenêutica bíblica nos ajudam a diminuir
nossa ingerência sobre o texto e a
nos aproximarmos um pouco mais
do trabalho original dos autores.
Mas nunca faremos uma reprodução
literal dessa intenção, isso é ilusão.
A iluminação do Espírito Santo é o
diferencial que nos ajuda a discernir e
aplicar a Palavra à nossa vida e missão
no mundo contemporâneo.
Na introdução do livro Beber
em seu próprio poço, Gutiérrez (2000,
p. 12) afirma que é um grave erro
histórico reduzir o que acontece
hoje no contexto latino-americano
a um problema social ou político.
Com efeito, dizer que os desafios à

88 Espiritualidade Cristã
espiritualidade são somente aqueles que brotam da relação entre fé
e política é reducionismo imperdoável e “falta de perspicácia cristã”.
Parece-me, portanto, que esse autor reconhece os perigos de que uma
espiritualidade militante, se assim podemos chamar, torne-se mais
militância que espiritualidade; perca os valores do reino em nome de
interesses políticos e partidários e transforme a fé cristã e a utopia
possível do reino em mera luta política e social.
Segundo Gutiérrez (2000, p. 120), essa, no entanto, é uma
compreensão sumária e simplista da perspectiva libertadora, pois
“o movimento de solidariedade com os pobres e explorados não
escamoteia o significado dessa etapa de rupturas reclamada pelo
evangelho como condição para que aceitemos a mensagem do
Reino. Antes, o evidencia ainda mais”. “Etapa de rupturas” é como o
autor chama o processo de conversão pessoal como condição para a
existência cristã, para que estejamos conscientes do que o pecado e o
arrependimento significam em nossas vidas.
Tudo isso ele explica para enfatizar que a TdL, na verdade, não
nega essas realidades, mas as reforça, ao contrário do que se pode
pensar. Muitos de nós pensamos assim, primeiro, por causa de alguns
autores e movimentos vinculados à TdL, que parecem dar a entender
que o compromisso social e político de libertação dos pobres é sua
“tábua de salvação”, e, segundo, concordando com Gutiérrez, também,
na mesma medida, porque lemos pouco e mal os teólogos da libertação.
Nossas críticas parecem provir muito mais de leituras e
informações secundárias do que de nosso próprio esforço em
conhecer e compreender essa teologia. Como contrapartida, é preciso
ler com abertura e atenção de diferentes fontes teológicas, para nosso
próprio crescimento, e é preciso humildade, especialmente por parte
de teologos evangelicais no Brasil, para reconhecer a dívida teológica
e metodológica que temos com a perspectiva trazida pela teologia da
libertação, para que possamos, com honestidade intelectual e ética
cristã, prosseguir em nosso caminho e propor novos desafios à igreja
em sua vivência espiritual e missionária na América Latina.
Que Deus nos ajude, dando discernimento e lucidez para essa
tarefa!

89
Glossário

1. - Gutiérrez dedica um capítulo em sua obra Teologia da Libertação (1986),


para falar de uma espiritualidade da libertação. Posteriormente, dedicou
uma obra inteira para tratar do assunto: Beber em seu próprio poço (2000).
As possíveis referências a Gutiérrez no decorrer desta aula, reportar-se-ão
a estas duas obras.

Referências

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação: perspectivas.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
________. Beber em seu próprio poço. Itnerário espiritual de um
povo. São Paulo: Loyola, 2000.
MIGLIORE, Daniel L. Called to Freedom. Liberation Theology and
the Future of Christian Doctrine. Philadelphia, USA: The Westminster
Press, 1980.
NOUWEN, Henri. Estrada para a paz. Escritos sobre paz e justiça.
São Paulo: Loyola, 2001.
SOBRINO, Jon. Spirituality of liberation. Toward political holiness.
New York, USA: Orbis Books, 1988.

90 Espiritualidade Cristã
Espiritualidade Cristã
Unidade - 11
Espiritualidade e a busca pela felicidade

Introdução

Esta unidade aborda a questão da felicidade em perspectivas


filosófica e teológica, fazendo relação com a vida e espiritualidade
cristãs. Parte do princípio de que, no mundo atual, a felicidade se
configura menos como princípio e telos (ou finalidade de existência)
do ser humano, e mais como uma busca e/ou uma ambição, da qual
jamais se deve perder a esperança de um dia encontrar, mesmo que
num relance momentâneo, inacabado e fugídio. Dessa forma, ao
comparar essa busca e seus ideais com a perspectiva cristã, analisar-
se-á o tema da felicidade a partir de sua relação com três eixos
hermenêuticos: a realidade, o outro e Jesus Cristo.
Uma das considerações finais, que veremos na unidade
seguinte, é a de que, para o cristão, felicidade não é objeto, nem fim
e nem pretexto, mas fruto (não casual e não artificial) do encontro
com Deus (consigo e com o outro) no caminho das desventuras
bem-aventuradas da vida.

Objetivos

1. Conhecer algumas das maneiras de se conceber a


felicidade no mundo atual.
2. Identificar na realidade, no outro e em Cristo pontos
de partida para uma análise e percepção possíveis da questão da
felicidade.
3. Comparar a noção de felicidade que vige em nosso
contexto com a percepção cristã, ou comparar a busca e realidade
com o ideal cristão sobre “ser feliz”.
4. Desenvolver um modo cristão de associar (ou de
dissociar) o caminho de nossa espiritualidade com os caminhos
da felicidade.

91
O ser humano e a busca pela felicidade
A chave para a felicidade e o antídoto da miséria é
manter viva a esperança de ficar feliz (Zygmunt
Bauman).
Dentre todas as buscas e ambições
humanas, a que tem como alvo a felicidade
talvez seja a mais comum e recorrente; e é
também um dos mais remotos anseios. Os
antigos (filósofos, poetas, sofistas, etc.) se
ocuparam em responder questões como
“O que é a felicidade”, ou “O que é preciso
Zygmunt Bauman
para ser feliz”? Uma diferença básica é que,
nos dias atuais, o conceito ou a definição de
felicidade parece menos importante que o “ser feliz” em si ou o anelo,
a busca e “a esperança de ficar feliz”, como diz Bauman na epígrafe
acima.
Neste ponto, aliás, parece se encontrar a tese e principal descoberta
deste sociólogo em seu livro A arte da vida. Em suas palavras:
Não sendo possível atingir um estado seguro de felicidade, só a
busca desse alvo teimosamente esquivo é que pode manter felizes
(ainda que moderadamente) os corredores. Na pista que leva à
felicidade, não existe linha de chegada (BAUMAN, 2009, p. 17).
Para Bauman, portanto, na era pós-moderna (ou, como ele
prefere, líquido-moderna) o “estado” de felicidade foi substituído pela
“busca” (sem fim) pela felicidade. O permanente anseio e a expectativa
de vir-a-ser é que consola (ou distrai) o desespero de ainda não ter
alcançado, ou quem sabe ter experimentado somente de relance, por
um momento fugidio, essa tal de felicidade.
Na busca, porém, impõe-se um “ideal de felicidade” - que varia
de pessoa, caso e circunstância - de onde provém parte da substância
dos conceitos. E é impressionante o quanto nossos ideais humanos de
felicidade são:
Efêmeros: fundam-se nas vaidades relacionadas ao gozo e ao bem-
estar - saúde, bens, status, poder, fama, glória. Tem uma estrutura

92 Espiritualidade Cristã
frágil, portanto, porque sempre de passagem.
Sensualistas: são baseados nas sensações, nos desejos e nas
condições que nos permitem experimentar somente o prazer na
vida. Felicidade, aqui, é igual a prazer e alegria sempre e dor nunca.
Individualistas: concentram-se no suprimento do “eu” e no suposto
“direito” que cada indivíduo tem de ser feliz. O mundo e os outros
são meios, muitas vezes, descartáveis: servem-me desde que (e
enquanto) me façam feliz.
Ao me deparar com esses (intercambiáveis) ideais e tentando
relacioná-los com uma ética cristã, pergunto se o cristianismo é um
caminho para a felicidade ou uma antítese da felicidade nestes moldes?
Com qual felicidade é possível identificá-lo (se é possível)?
Para responder a tais indagações, gostaria de propor aqui três
associações (cristãs) básicas da felicidade: com a realidade, com o
outro e com Cristo.

A felicidade no encontro com a realidade


De que maneiras a felicidade está relacionada com a realidade?
O que é o real? Ele se dá a conhecer?
Para começo de conversa, não há definição (e compreensão)
possível da realidade que não passe pelo jogo do espelho. Quando nos
olhamos no espelho, o que vemos: a apresentação de quem realmente
somos ou uma projeção distorcida? Alguns hoje dizem que a televisão
mostra as pessoas de modo enganoso, assim como as revistas de moda,
fitness, fofoca e pornografia - tudo por causa dos efeitos da produção
e do photoshop: uma corzinha de mais, uma ruguinha e estriazinha de
menos, e por aí vai.
Por sua vez, o espelho também produz algo ilusório. Basta
pensar nas muitas versões que temos de nós mesmos diante do
espelho, a depender do ângulo pelo qual nos fitamos. Assim também é
com a realidade. Segundo Paulo, não vemos as coisas claramente, mas
“como em espelho” (1Co 13.12). Então, a realidade - “esse conjunto
dos acontecimentos designados para a existência” (ROSSET, 2008, p.
29) - é aquilo que existe e acontece não somente como nossos olhos
e mente captam, mas muito além deles. A realidade, tal como é, me

93
escapa; ao mesmo tempo, é indelével, porque chamada a se produzir a
despeito de todos os esforços feitos para impedi-la, negá-la ou evitá-la.
Ou seja, a realidade é apresentada como aquilo que “é”
independente de qualquer conceito, queixa ou rejeição. Da relação
que estabeleço com este real depende minha felicidade; à medida que
a realidade situa o ser que a (felicidade) deseja. A vida real, portanto,
me remete ao inevitável confronto entre a felicidade desejada ou
prometida e a felicidade possível.
Se, porém, Bauman estiver certo em sua tese de que a felicidade
nunca deixa de ser um alvo desejável aos artistas da vida enquanto
estes perseveram na estrada que supostamente conduz até ela, então
nem o real, por mais trágico que seja, seria capaz de destruir seu
“sonho de felicidade”; no máximo, o que ele pode fazer é adiar o sonho.
Nesse caso, para os paladinos pós-modernos da felicidade, a esperança
(individualista) é a última que morre.
Em todo caso, ainda que não se
possa acabar com o sentimento trágico da
existência, é possível oferecer o narcótico
adequado para suportá-lo ou sublimá-lo.
Clément Rosset, em sua reflexão
filosófica sobre o tema da alegria - que subjaz
e pode ser associada ao tema em questão -
propõe, em contrapartida, a afirmação da
alegria (que ele chama de “força maior”)
enquanto um abraço jubiloso na existência
Clément Rosset (no real), não importa em que qualidade. A
isto ele chama de paradoxo central da alegria: “A alegria é um regozijo
incondicional na existência e a propósito da existência” (ROSSET,
2000, p. 22). Para Rosset, a alegria, nesse sentido, ou é paradoxal ou
não é alegria, uma vez que está em contradição com a realidade e
consigo mesma, muitas vezes. É um inexplicável e misterioso regozijo
que se experimenta, mesmo em meio ao sofrimento, de tal modo que
se torna “impenetrável aos olhos daquele que sente seu efeito benéfico”
(ROSSET, 2000, p. 27).
Já a atitude dos corredores que estão em busca da felicidade,
tal como Bauman apontou, Rosset (Ibid.) rotula como sendo uma

94 Espiritualidade Cristã
“negação neurótica”, pois consiste não em se acomodar, mas em negar
a realidade, considerando a infelicidade não como inelutável, mas
como “provisória e sujeita à eliminação progressiva”. Assim, a alegria
proposta por Rosset se situa além do lugar comum da felicidade
líquido-moderna, analisada por Bauman; ou poderíamos concluir que
tal alegria é uma antítese (uma “força maior”) que a felicidade nesses
moldes.

A felicidade no encontro com o outro


Quem é o outro? Objeto, meio ou parte integrante de nossa
busca pela felicidade?
Bem, essa não é uma aula sobre alteridade, e sim sobre a
intersecção entre espiritualidade (cristã) e felicidade. Não pretendo
aqui explorar múltiplas compreensões e significados do outro - como
Levinas e Buber, por exemplo, já o fizeram e muito bem - mas apenas
situá-lo em relação à busca em questão. Então, no tocante a tal busca,
diria, em primeiro lugar, que o outro é tanto aquele que possibilita
como o que interdita o “meu” caminho rumo à felicidade. Quero dizer
com isso que não há felicidade possível sem a presença (complementar)
do outro, tanto no sentido egoísta e privatista - do outro como
aquele que promove, aplaude ou inveja a “minha felicidade” - seja no
aspecto altruísta da solidariedade e do companheirismo, do outro
que compartilha da vida comigo e só assim ela tem sentido, tanto na
alegria, como na dor, como se diz na poesia “Tomara”, de Vinícius de
Moraes: “E pense muito que é melhor se sofrer junto que viver feliz
sozinho”.
Mas o outro (que pode ser uma mesma pessoa) cumpre essa
função dúbia e paradoxal da possibilidade e da interdição. Ser o outro
de alguém ou ter alguém como o seu outro implica, dessa forma, em
aceitar e aprender a lidar com as frustrações, decepções e infelicidades
provocadas invariavelmente na relação. Nessas horas, na mesma
medida em que outrora sentimos necessidade da presença do outro,
também sentimos - meses, dias, horas depois (e até simultaneamente)
- repulsa e desejo de que ele ou ela vá embora pelas portas do fundo
para que, quem sabe, a felicidade retorne pelas portas da frente.

95
O problema é que, seguindo esse raciocínio, ela não retorna sem
o outro - provocador e interruptor da felicidade. Nesse interregno, há
uma grande chance de que desejemos pagar um preço cada vez menor
nessa relação com o outro. Se ser feliz é o que há de mais importante
na vida, então o outro não passaria de uma peça na engrenagem, que
serve unicamente a este propósito. E se não servir, vamos atrás de
outro que sirva e satisfaça, mesmo que com prazo de validade - muitos
dos casamentos atuais que o digam. Como diz a canção de John Mayer
(“I’m gonna find another you”): “Eu vou agora fazer algumas coisas
que você não me deixaria fazer, eu vou achar um outro de você”. No
mundo em que temos vivido é assim: na mesma proporção em que se
descarta um amor, por exemplo, se consegue outro - só não consigo
entender como ainda se pode falar em “amor” nestes termos.
Na perspectiva da fé cristã, o outro é também chamado de
“próximo”. Mas o que significa ser próximo de alguém?
Lucas conta uma história emblemática a este respeito. Certa
vez, um legista ou perito na lei se aproxima de Jesus e, desejando testá-
lo, pergunta acerca do caminho para a vida eterna. Jesus, por sua vez
(e como de costume), responde com outra pergunta: “O que diz a lei?”.
Então o legista cita o mandamento do amor (cf. Levítico 19.18), que
termina com um “ame teu próximo como a ti mesmo”. Quando Jesus
confirma ser este o caminho, dizendo “vá, faça isso e encontrarás vida”,
vem a pergunta: “Quem é o meu próximo”?
Com a nova pergunta em mente, Jesus conta então a parábola
do samaritano (ver Lucas 10.29-37). Todos já conhecemos o enredo da
parábola; o que me interessa destacar aqui é a pergunta final de Jesus
diante da história e a resposta do legista. Jesus pergunta qual dos três
caminhantes (se o sacerdote, o escriba ou o samaritano) foi o próximo
do homem quase morto à beira do caminho. A resposta do legista
(embora lacônica no que diz respeito à pessoa do samaritano) vai direto
ao ponto: “Foi aquele que deu prova de bondade para com ele”.
Como comenta Segundo Galilea, o samaritano foi irmão do
ferido. E assim foi não por sua religião (o levita e o sacerdote eram
religiosos, o samaritano era considerado herético), nem por sua raça
(tida como impura e inferior por parte dos judeus), mas por sua
bondade e dedicação aquele homem. Assim, nas palavras de Galilea

96 Espiritualidade Cristã
(1979, p. 47): “O meu próximo não é aquele que compartilha minha
religião, minha pátria, minha família ou minhas ideias. O meu próximo
é aquele com o qual eu me comprometo”.

A felicidade no encontro com Cristo


Finalizar esta discussão com a questão da felicidade de Cristo
é fascinante e, ao mesmo tempo, muito difícil. Isto, porque entendo
que a felicidade em perspectiva cristica é um paradoxo. Nesse sentido,
é insuficiente (e até desonesto) sair por aí dizendo coisas como “só em
Jesus encontramos felicidade” ou “vem ser feliz com Jesus”. Afinal, no
“frigir dos ovos”, como dizem por aí, o que isto significa? Que espécie
de felicidade é essa?
Bem, Jesus afirma (não como promessa, mas como um tipo de
conforto realista aos discípulos) que eles seriam felizes - abençoados ou
bem-aventurados - enquanto vivenciassem uma série de situações nada
confortáveis e que, até por isso, estão e sempre estarão em franco contraste
com o entendimento mais ou menos comum que as pessoas têm de
felicidade. Vejamos alguns trechos deste discurso - conhecido como “As
bem-aventuranças” - na tradução - The Message”, de Eugene Peterson.
Segundo Jesus, felizes são:
...aqueles que se encontram no fim da linha. Com menos de si
mesmo, sobra lugar para mais de Deus e de sua lei.
...aqueles que sentem terem perdido o que há de mais precioso
para eles. Só assim poderão ser abraçados por Aquele para o
qual são o que há de mais precioso.
...aqueles que desenvolveram um bom apetite por Deus. Sua
comida e bebida serão a melhor refeição que já tiveram.
...aqueles cujo comprometimento com Deus provoca
perseguição. Esta os conduzirá mais profundamente ao Reino
de Deus (Mt 5.3,4,6,10).
A felicidade que quero que você visualize aqui tem a ver,
antes de tudo, com um modo de ser, no qual está embutida uma
aceitação (jubilosa) da irremediável condição em que os discípulos se
encontrariam à medida que tentassem ser fiéis aos valores e modo de
vida radical que Jesus depois apresenta ao longo do Sermão do Monte.

97
Façamos, em primeiro lugar uma análise desses versículos, para depois
pensar nas implicações disso para uma concepção cristã da felicidade.
Pensando na felicidade no encontro com Cristo, gostaria de
destacar algumas coisas que me chama atenção somente nos trechos
de Mateus elencados acima.
1. Primeiro: que ser feliz não tem (diretamente) nada a ver com
satisfação (pelo menos não ao modo imediatista, que quer
tudo de bom aqui e agora) ou com bem-estar, mas se parece
mais com um “contentamento descontente” (lembrando
aqui da poesia de Camões).
2. Segundo: que o que está em jogo não chega nem perto
de uma busca pela felicidade, uma vez que não são a
pretensão ou a ambição que dão o tom, mas o abandono e a
despretensiosidade dos despossuídos.
3. Terceiro: que, entre perdedores e ganhadores, aqueles que
perdem serão consolados com a esperança de encontrar
alguma vantagem na desvantagem.
4. Quarto: que a realização dos felizes não se encontra tanto na
conquista da autonomia quanto na graça da dependência.
Como disse C. S. Lewis (2005, p. 66), “o próprio Deus é o
combustível que nosso espírito deve queimar, ou o alimento
do qual deve se alimentar”, e ainda que -Deus não pode dar
uma paz e uma felicidade distintas dele mesmo, porque fora
dele elas não se encontram”.
5. Finalmente, o centro da existência dos felizes ou bem-
aventurados não está neles, ou em qualquer “vitória”
que possam conseguir aqui e agora, mas em Deus e na
construção de seu reino, não somente nesta história, mas
também dentro dela. Se a felicidade pousa em seus ombros
não é pela e nem na busca, mas em meio ao gradativo
desprendimento da vida simples e a liberdade interior de
quem se deixa ser guiado mais pelo sopro do Espírito da
vida que pelos ecos e ventanias do espírito do tempo.

98 Espiritualidade Cristã
Na vida cristã, felicidade não é objeto, nem fim e nem pretexto,
mas fruto (não casual e não artificial) do encontro com Deus (consigo
e com o outro) no caminho das desventuras bem-aventuradas da vida.
Dessa forma, hoje posso dizer que não sou e nem me sinto tentado a
ser discípulo do Cristo pela proposta fisiologista - e propagandística
(desculpem o pleonasmo) - para “ser feliz com Jesus”. Primeiro, porque
essa “promessa” inexiste no Evangelho. Segundo, porque nem sempre
sou, estou ou me sinto alegre ou feliz, e isto não é nem de perto sinal de
que deixei de estar com Cristo - está na hora de parar com essa balela
doentia! Terceiro, porque você não encontra uma palavra sequer
nos discursos de Jesus, ou dos apóstolos, mesmo os de ânimo, que
tente mostrar uma realidade diferente do que ela é. O que vejo é um
realismo esperançoso e uma esperança realista. Por fim, ainda tem o
nó, que prefiro não desatar, de pessoas que conheço que garantem ter
uma vida saudável e feliz sem nunca ter passado pelo apelo ou dito “eu
aceito”. Há mistérios que nem a mais pretensiosa ou competente das
teologias pode desvendar. E é muito bom que assim seja, do contrário
não seria mais teo-logia e sim diabo-logia.
Tornei-me seguidor de Cristo pela misteriosa e graciosa atração
por seu amor, demonstrado na cruz do calvário, e pela consciência que
passei a ter, pelo Espírito, do consequente compromisso com o caminho
da cruz. Se encontrei a felicidade nesse caminho é pela simples alegria
de a ele pertencer, de poder ser chamado de e amado como filho, e
pela imensa gratidão e contentamento que de mim brotam - não sem
lutas, revoltas ou sofrimentos, afinal sou humano - em meio às mais
variadas circunstâncias.
Para Paul Tillich (1972), o que cria a alegria em alguém é a
afirmação do “ser essencial” desse alguém a despeito de desejos e
ansiedades. Não estou seguro se concordo que a alegria é “criada”, pois
isto pode dar certo tom de artificialidade ao processo; prefiro uma
palavra que Tillich mesmo usa depois: aprendizado. Lembrando do
que disse Paulo aos Filipenses: “Aprendi o segredo de viver contente
em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo
muito, ou passando necessidade” (Fp 4.12b - NVI). Isso mesmo, alegria é
aprendizado. Dito isto, podemos retornar a Tillich (1972, p. 11):

99
Lucílio é exortado por Sêneca a fazer sua ocupação, o “aprender
como sentir alegria”. Não é à alegria de desejos satisfeitos que
ele se refere, porque a alegria real é “assunto sério”: é a felicidade
de uma alma que é “elevada acima de todas as circunstâncias”
A alegria acompanha a auto-afirmação de nosso ser essencial,
a despeito das inibições provocadas em nós pelos elementos
acidentais. Alegria é a expressão emocional do corajoso Sim ao
verdadeiro ser próprio de uma pessoa.
Esta alegria se expressa no pranto tanto quanto no riso; e nos
mais recônditos de nossa alma, ainda que muitas vezes ferida, triste,
sem horizontes, existe uma alegria escondida, a alegria de que ser
é o suficiente, pois felizes podem ser aqueles que aprendem que na
vida não precisamos ter ou fazer tantas coisas. O mais importante é
caminhar, e de modo mais despretensioso possível, para que os sonhos
e as pretensões de Deus encharquem nossos corações, mobilizando-
nos para uma jornada mais compassiva, sensível e agradecida.
A alegria de simplesmente ser-em-Deus nos ajuda a experimentar
do gozo do trabalho e da vida material com mais naturalidade e
menos apego, ilusão e dependência. Vale recordar aqui algumas das
constatações do autor de Eclesiastes, de que “não há nada melhor
para o homem do que desfrutar do seu trabalho, porque esta é a sua
recompensa (3.22), e que “poder comer, beber e ser recompensado
pelo seu trabalho é um presente de Deus” (3.13).
Auxilia-nos, ainda, a aprender a como lidar melhor (e até
debochar, sem grandes culpas ou neuroses) das eventuais convulsões do
ego, vaidades e mesquinharias como sendo parte indissociável dessa arte
(torta) de ser humano - levar a sério o pecado não implica em se levar a
sério demais o tempo todo, o que pode ser tão doentio quanto o descaso
para consigo e suas responsabilidades. Descobrir esta alegria é aprender
a viver sabendo que basta a cada dia o seu próprio mal, e também o seu
próprio bem, e a desfrutar dos pequenos, simples e belos momentos do
cotidiano como sendo especiais e repletos de singularidade.
A esperança cristã, contudo, também é paradoxal; nela não se
separam o gosto de viver a vida que se tem (aceitação) do anseio pela
ressurreição e a vida eterna (inquietude). A ética da aceitação jubilosa,
presente na visão trágica de Rosset, por exemplo, se dissocia da visão
cristã quando se resigna ao provisório, quase como que dizendo que

100 Espiritualidade Cristã


essa vida aí, da forma como é, está boa, e não se deve querer nada
diferente disso. Segundo Rosset (2000, p. 28,29), a alegria é a “força
maior” precisamente porque dispensa a esperança - entendida por ele
apenas como atração pelo gozo de uma “outra vida” e, por isso, “força
mais do que duvidosa”.
Entretanto, perguntaria a Rosset como a aceitação jubilosa pode
resistir sem a esperança? É ela quem a alimenta; a aceitação só pode
ser, por assim dizer, “jubilosa”, contente, porque não apenas aceita a
provisoriedade em si, mas a provisoriedade do que é provisório. Em
outras palavras, quero dizer que a esperança cristã aceita e convive com
o provisório, mas não relega a ele a última palavra. Duvido que Rosset
fique jubiloso com minha apropriação de sua “aceitação jubilosa”.
Por outro lado, a felicidade no encontro com Cristo, como
temos visto, também incorpora a dimensão trágica na medida em
que não a nega, mas propõe o enfrentamento e a convivência. É
parceira das tristezas, injúrias e dores e, às vezes no “olho do furacão”,
de modo incompreensível, ressurge como fênix, como “socorro bem
presente”. Aqui talvez seja válida a recorrência (ainda que deliberada)
a Rosset (2000, p. 27), quando ele afirma que esse “socorro da alegria”
permanece, para nosso bem, misterioso, “impenetrável aos próprios
olhos daquele que sente seu efeito benéfico”. Segundo ele (Ibid., p. 8):
“O homem verdadeiramente alegre pode ser reconhecido,
paradoxalmente, por sua incapacidade de precisar com o que
fica alegre e de fornecer o motivo próprio de sua satisfação”.
A felicidade, nesse sentido, faz (e se desfaz) em um misto de
satisfação e alegria com e, aparentemente, sem motivo. Podemos estar
obviamente alegres por uma linda razão, mas também “rindo à toa”.

Conclusão

Nessa unidade observou-se que, das buscas humanas, a busca


pela felicidade continua sendo atual e recorrente. Também que esta
busca tem a ver com a agenda do tempo em que temos vivido, de
tendências sensualistas, individualistas e efêmeras. No confronto com
a realidade, com o outro e com Cristo, vimos que a felicidade se vê

101
num jogo paradoxal em que a busca pela felicidade e seus ideais nem
sempre condizem com o modo como a vida se nos apresenta nestas
diferentes instâncias. A felicidade, na perspectiva cristã, é incompatível
com os caminhos do privatismo pós-moderno; de igual modo, não se
equipara à hipocrisia e alienação de representações religiosas como as
da parábola. Afirma, sem ser piegas, a necessidade do outro, assumindo
e reconhecendo sua condição (demasiado humana) de provocador e
interruptor da felicidade.
Contudo, mais do que requerer o outro para mim, sinto-me
estimulado por esta perspectiva a ser o outro, o próximo, de alguém. Só que,
quando isso acontece, a felicidade deixa de ser um fim. Mais do que isso,
pensando no caminho da espiritualidade do discípulo, que é um caminho de
renúncia e cruz, a felicidade não deve se tornar uma ambição por um suposto
direito natural de todo ser humano, mas fruto despretensioso do próprio
caminhar. Daí a compreensão de que felicidade não é objeto, nem fim e
nem pretexto, mas resultado (não casual e não artificial) do encontro
com Deus (consigo e com o outro) no caminho das desventuras bem-
aventuradas da vida.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.


LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979.
PETERSON, Eugene. The Message: The Bible in contemporary language.
Colorado: NavPress, 2005.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaios sobre a ilusão. 2ª ed. revista.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
_______. Alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.

102 Espiritualidade Cristã


Espiritualidade Cristã
Unidade - 12
Nouwen e a espiritualidade da imperfeição

Introdução

Como vocês devem ter percebido pela minha abordagem


até aqui, a percepção de espiritualidade nela expressa advém
de várias fontes. Mas, especialmente, de um escritor: Henri
Nouwen. Esta unidade consiste na leitura, discussão e
aprofundamento de temas ligados à espiritualidade cristã, a
partir da vida e obra de Nouwen, conhecido não apenas por
sua brilhante e sensível leitura da condição humana sob a ótica
da espiritualidade, mas, também, por sua história e exemplo de
vida radical. Objetiva proporcionar aos estudantes um maior
contato com o pensamento deste autor, e a possibilidade de
uma identificação mais ampla através da leitura de seus livros
disponíveis em língua portuguesa.

Objetivos

1. Conhecer um pouco sobre a vida e obra de Henri


Nouwen;
2. Aprofundar-se em temas da espiritualidade
de Nouwen, a partir de uma abordagem de questões
contemporâneas;
3. Desenvolver atitudes de compaixão e solidariedade
para com a condição humana, desde a perspectiva cristã e
pastoral, em situações específicas.

103
Quem foi Henri Nouwen?
Padre, professor, psicólogo e escritor, Henri J. M. Nouwen nasceu
na Holanda, em 1932, e faleceu em 1996, também em sua terra-mãe.
Desde os cinco anos de idade, Nouwen falava sobre suas pretensões
de ser padre, e ele estava decidido a isso.
Formou-se em teologia e psicologia na
Holanda, tendo sido ordenado pouco
tempo depois, aos 32 anos, em 1957.
Nouwen passou os primeiros cinco anos
de seu ministério realizando algumas
de suas notáveis ambições: estudou
na renomada clínica psiquiátrica de
Karl Menninger (EUA), lecionou nas
universidades de Notre Dame e Yale e
viajou muito como conferencista. Por sua
Foto de Henri Nouwen por Frank Hamilton.
ênfase ecumênica e relativamente aberta
em relação à fé cristã, Nouwen teve o privilégio de falar tanto para
católicos como para evangélicos, tendo trânsito livre entre estes dois
grupos. Até hoje ele é muito respeitado e lido tanto em uma como em
outra vertente religiosa. Certamente é um dos pensadores cristãos do
século XX que exercitou com maestria a arte de cruzar fronteiras. Como
testemunha, Philip Yancey diz que “ele ignorava as recomendações de
Roma para que apenas os católicos participassem da eucaristia, e a
celebrava diariamente com amigos, alunos ou estranhos, onde quer
que estivesse” (YANCEY, 2004, p. 304).
Como vimos na unidade 9, Nouwen passou um período
sabático de seis meses viajando pela América Latina, passando por
diversos tipos de conversão diante da realidade dos pobres, o que
alterou não apenas seu modo de enxergar a espiritualidade, mas
também de lidar com a sua própria vocação, perguntando-se muitas
vezes se seria a vontade de Deus que ele permanecesse na América
Latina colocando seus dons e talentos à serviço dos pobres. Gustavo
Gutiérrez, um de seus mentores neste período, o aconselhou, contudo,
a retornar aos Estados Unidos e falar sobre tudo o que ali vira, sendo
uma voz profética no mundo opulento e imperial norte-americano.

104 Espiritualidade Cristã


Ao regressar para a América do Norte, Nouwen recebeu convite
para lecionar em Harvard, e passou a se engajar mais ferrenhamente
em movimentos pelos direitos humanos, tendo a oportunidade de
fazer o que ele chamou de “missão reversa”, seguindo o conselho de
Gutiérrez. Nesse tempo sua fama e prestígio como professor, escritor e
conferencista já percorriam o mundo, e em todo lugar por onde passava
ele era bastante respeitado. Todavia, tudo isto não bastava para amenizar
o profundo vazio espiritual e as feridas pessoais que há muito carregava e
que, com o tempo, só aumentavam, tudo isso combinado a uma vida de
fama, glória, agenda lotada de compromissos e atividades mil, levando
Nouwen a um ponto de colapso total num espaço de três anos.
Até que ele compreendeu, à luz da experiência de Jesus, que o
caminho para subir é descer. Assim, abandonou sua brilhante carreira
numa das melhores universidades dos EUA, para compartilhar
sua vida com os necessitados, servindo em uma comunidade para
deficientes mentais, a Arca - O Amanhecer, em Toronto no Canadá.
Sua vocação era mesmo entre os pobres, que viviam noutra espécie de
miséria, revelando-lhe, contudo, a face da alegria e do poder de Cristo,
escondidos por trás de suas vidas limitadas e sofridas. Conforme o
próprio Nouwen disse em seus escritos, “ali ele não foi para dar,
mas para receber; não por causa de excesso, mas por falta. Foi para
conseguir sobreviver” (YANCEY, 2004, p. 306).

Por que Nouwen?


Porque em Nouwen descobri um modelo de espiritualidade
não focado em performances para Deus, mas em vida, abertura e
entrega. Uma vida baseada na honestidade, uma abertura recheada
de autenticidade, e uma entrega movida pelo amor e pela paixão de
Cristo. Ele foi e continua sendo um modelo atual, pois conseguiu
reunir em sua pessoa uma intelectualidade frutífera com o sentimento
sincero, de quem vive intensamente tanto “por fora” quanto “por
dentro”, e a experiência da orientação sábia junto com uma postura
de constante quebrantamento diante de Deus e da vida. Sua existência
foi um protesto contra o superficialismo e um rompimento com os
dualismos perniciosos que se propagaram no cristianismo. Nele vejo

105
o paradoxo belo de uma coerência desarmônica, de uma resiliência
frágil e de uma melancolia esperançosa.
Usando uma expressão de Zygmunt Bauman (2009, p. 70ss),
para mim Nouwen foi um “artista da vida”. Primeiramente porque
ele foi alguém profundamente fascinado pela vida e pelas pessoas,
por conectar-se e relacionar-se. Parte de sua veia artística está em ter
conseguido pintar de modo tão brilhante, sensível e inspirador sua teia
particular de relações com a vida e com Deus. Um resumo das coisas
que Nouwen mais amava fazer pode ser encontrado, em suas próprias
palavras, no Diário de seu último ano sabático: “Escrever livros, fazer
amigos, criar comunidade, partilhar histórias” (NOUWEN, 2006, p. 170).
Nouwen foi um santo-homem. Sua santidade estava não em
feitos sobrenaturais, mas na forma íntegra com que efetuou as coisas
mais naturais da vida - como amar, orar, sofrer, se alegrar, celebrar,
morrer. Ele foi um pastor sensível e compassivo, atento a cada encontro
e a singularidade de cada pessoa. Mas também foi um ministro
vulnerável, ao ponto de escancarar sua vida, suas feridas e limitações
de um modo às vezes até constrangedor para quem o lê.
Foi um discípulo radical e apaixonado por Jesus. Extremamente
consciente de sua dependência de Deus e também de seu inacabamento,
nunca deixou de estar em busca, a caminho, ansioso por entender o
que o Senhor queria para ele e para onde desejava conduzi-lo. A ele
cabem as sábias palavras do frei Carlos Mesters: “A luz só se faz é na
travessia e na escuridão”. O mais impressionante é que tanto a luz quanto
a escuridão de Nouwen serviram como canais de benção e de cura para
muitas pessoas. Elas, mais que os livros, são seu maior legado.

O que aprendi com Nouwen?


Dividirei este breve passeio naquilo que aprendi com Nouwen por
temas, que são, portanto, temas importantes na vida e obra deste autor.

1. Vocação
Aprendi que, embora seja Deus quem chame, confirme e
capacite - o que dá um peso enorme à questão - o processo de despertar
para e prosseguir em uma vocação não é estático, mas dinâmico. A

106 Espiritualidade Cristã


certeza do caminho vem enquanto caminhamos. Não somos chamados
primordialmente para um lugar ou uma função, mas para andar com
Jesus em serviço ao seu reino. Isto significa que a pergunta pela vocação
nunca será respondida inteiramente; na caminhada estaremos sempre
tentando discernir os caminhos.
É o que Nouwen fez sua vida toda, como em sua passagem
pela América Latina, ou em sua trajetória de uma carreira acadêmica
prestigiada em Harvard para uma vida fora dos holofotes entre os
deficientes da Arca, em Toronto. Assim ele resumiu: “Tentei discernir a
voz de Deus; e, no meio de uma grande variedade de minhas respostas
interiores, tentei encontrar o caminho para ser obediente àquela voz”
(NOUWEN, 1993, p. xvii).

2. Sofrimento e integridade
A vida do ser humano (e do cristão) pode não ser (e como poderia
ser?) apenas sofrer, mas indubitavelmente envolve sofrer. Aprendi com
Nouwen que privar-se ou tentar se proteger do sofrimento é como que
privar-se da própria vida - e de tudo o que podemos aprender com
ela. Entendi que o sofrimento pode nos fazer mais humildes enquanto
gente - ou uma gente da mais amarga espécie, dependendo de como o
encaramos.
O sofrimento me aproxima da, e me ensina a aceitar a
fragilidade de minha condição. Também me aproxima de Deus e me
faz vê-lo como um Todo-Poderoso vulnerável, que nem sempre vai me
livrar das dores da vida e do mundo, mas que sofrerá comigo sempre
que tiver de enfrentá-las, oferecendo inexplicável conforto. Aprendi
também que mesmo um ser ferido pode se tornar fonte de cura para as
pessoas. E que, como ministro da cura, preciso desfazer-me da ilusão
de que serei capaz de explicar o mistério da dor do outro ou de aboli-
la; ou de que poderei conduzir alguém para fora do deserto sem tê-lo
experimentado em minha própria pele.
Além disso, para enfrentar o sofrimento propriamente, preciso
me afastar da ideia de um Deus indolente e distante, isto é: se Deus não
é pessoal e, por isso, aberto para chorar comigo em minhas tristezas,
tampouco será capaz de rir ao meu lado em minhas alegrias ou se

107
regozijar na minha prosperidade. Em Jesus, assim como na experiência
de Jó e de tantos outros, não consigo ver um Deus intocável e insensível
de tão poderoso que possa ser, mas, por ser tão poderoso, enxergo um
Deus que se “rebaixa” se for preciso para ter compaixão e misericórdia
da minha miséria e que caminha comigo quantas milhas for preciso
para meu amadurecimento.
Esse é o sentido da espiritualidade para Nouwen. Não se resume
na simples ideia de realizar performances e sacrifícios para Deus, mas
em convidá-Lo a entrar em nossas vidas de modo que Ele possa chorar
com a nossa aflição ao mesmo tempo em que sofremos com as dores
de Seu Filho e, consequentemente, compartilhemos do sofrimento
do amor de Deus por um mundo ferido e proclamemos libertação.
Conforme ressalta,
assim como Jesus, quem proclama a libertação é convidado não
só a cuidar dos próprios ferimentos e dos ferimentos do outro,
mas também a fazer de seus ferimentos uma fonte maior do
poder que cura (NOUWEN, 2001, p. 119).
Para Nouwen, um ministro ferido pode e deve ser também
um ministro que cura. Mas, para sermos “servos da cura”, antes é
preciso identificar, entender e aceitar nossa própria dor. “Nenhum
ministro pode esconder sua experiência de vida daqueles aos quais
quer ajudar”, afirma ele (2001, p. 127), ao mesmo tempo em que não
se pode empregar mal o conceito de ministro ferido defendendo uma
forma de “exibicionismo espiritual”. Esse é um tipo de equilíbrio que
este autor encontrou contra possíveis questionamentos daqueles que
porventura acharem que o conceito de ministro ferido é mórbido e
doentio, contradizendo, por exemplo, a ideia de auto-realização, auto-
estima, auto-preservação etc., tão usadas no contexto individualista
moderno (o que inclui as igrejas). Ou seja, vivemos nossas “vidas
espirituais” como alpinistas de egos, parafraseando Philip Yancey.
Michael Ford, biógrafo de Nouwen, e o escritor Philip Yancey,
que dedicou um capítulo do livro Alma Sobrevivente exclusivamente
para falar de sua admiração por Nouwen e apontá-lo com um de
seus mentores, afirmam que o “espinho na carne” desse padre, essa
profunda dor que ele dizia “encarar nos olhos” e sobre a qual fazia

108 Espiritualidade Cristã


questão de falar em seus textos, possivelmente era resultante de uma
homossexualidade reprimida e, não sem muitas lutas, renunciada.
Enfim, o fato mais importante a se tratar com isso é que todos nós
possuímos feridas; algumas estão expostas, outras escondemos o
máximo para que ninguém descubra, nos julgue ou aponte-nos como
sendo “menos espirituais” por isso. Outras, quem sabe ainda estão
obscuras, num campo menos conhecido de nossas vidas.
Tenho de reconhecer que não estou acostumado e nem gosto
de falar de minhas próprias mazelas, nem tampouco de expô-las
para que os outros vejam. Mas aprendi com Nouwen que “defeitos e
fidelidade não suplantam um ao outro, mas coexistem”. Com Philip
Yancey, falando sobre Nouwen, também testemunho meu aprendizado
de que sofrimento e alegria podem caminhar juntos, que Deus pode
usar todas as situações de nossa vida, até mesmo a dor que nunca
vai embora (YANCEY, 2004, p. 328). Até porque, como bem nos faz
lembrar o apóstolo Paulo, “o poder se aperfeiçoa na fraqueza”, de modo
que “quando sou fraco então é que sou forte (2 Co 12.9,10).
E porque esta espécie de ministro, defendida por Nouwen,
pode ser chamado de um “ministro curador”, ou um “ferido que cura
feridas”? Vou deixar com que Nouwen mesmo responda com suas
palavras, escritas no livro O Sofrimento que Cura:
É curador porque afasta a falsa ilusão de que integridade pode ser
dada de um ser para outro. É curador porque não extrai a solidão
e a dor do outro, mas convida a reconhecer sua solidão em um
plano que possa ser partilhada. Muitas pessoas nesta vida sofrem
porque estão procurando ansiosamente pelo companheiro,
pelo evento ou encontro que as livrará da solidão. Mas, quando
entram em uma casa de real hospitalidade, percebem logo que
seus próprios ferimentos devem ser entendidos não como fontes
de desespero e amargura, mas como sinais de que têm que
caminhar para frente, obedecendo aos sons do chamado de seus
próprios ferimentos (NOUWEN, 2001, p. 133).
O sofrimento, assim, pode ser um convite “a depositar nossas
feridas e mãos maiores”, e para ver “Deus sofrendo por nós” e nos
chamando a compartilhar este sofrer de seu amor por um mundo
ferido (NOUWEN, 2003, p. 10).

109
Aprendi com Nouwen que ser cristão tem a ver com
desenvolver-se como um ser humano inteiro, aceitando-se a si mesmo
como amado de Deus, da maneira como se é e com a vida que lhe
foi dada. Isto não significa que tenho que me resignar a um modo
de ser torto. Pelo contrário, implica que toda a minha vida pode ser
abraçada como um processo em que, pela graça, estou a caminho de
me tornar a pessoa que Deus projetou; nada vem fácil ou é instantâneo
e nem se confunde com o meramente superficial. Parte-se, portanto,
da compreensão de que o ser como um todo, bem como “tudo na vida,
por mais insignificante ou difícil que possa parecer, abre-nos para a
obra de Deus em nós” (NOUWEN, 2003, p. 15).

3. Alegria e tristeza
Na vida e pensamento de Nouwen, pode-se notar, desse modo,
um rompimento com dualismos perniciosos. Dentre eles, como já
deve ter ficado claro, está o dualismo que opõe alegria e tristeza. Em
nosso mundo, costuma-se pensar que a alegria não pode conviver
na mesma casa em que a tristeza está. Assim, a alegria significaria
ausência de tristeza e a tristeza, ausência de alegria, parafraseando
Nouwen. Quando, porém, olhamos para a vida em sua complexidade,
vemos que muitas vezes elas andam juntas e estão até misturadas. E
diria mais: a alegria que se vive se torna mais profunda quando se
conhece o que é tristeza (retornarei a esse argumento na conclusão).
Acredito que uma das principais virtudes que Nouwen cultivava
– mais acuradamente a partir dos últimos 10 anos de sua vida, em
que ele conviveu de perto com o sofrimento e as limitações de seus
amigos da Arca – foi a de falar abertamente de suas próprias tristezas
e alegrias, não só através dos muitos livros que escreveu, mas também
nos relacionamentos interpessoais, como testemunham algumas
pessoas que com ele conviveram. Ele afirma no livro Podeis Beber
do Cálice que conviver diariamente com os membros deficientes da
comunidade Daybreak, o pôs em contato com suas próprias feridas e
tristezas internas. Por outro lado, testemunha ele, “a alegria que surge
ao viverem juntos em uma comunidade de fracos faz a tristeza não
apenas tolerável, mas uma fonte de gratidão”.

110 Espiritualidade Cristã


Nas palavras de Nouwen (1996, p. 40, 41):
Minha necessidade de ter amigos, afeição e aceitação estão
exatamente aqui para que todos possam ver. Jamais vivi tão
profundamente a verdadeira natureza do ministério pastoral:
estar com o próximo em compaixão. O ministério de Jesus é
descrito na carta aos Hebreus como sendo de solidariedade
com o sofrimento humano. Chamar a mim mesmo de padre,
hoje, me desafia radicalmente a abandonar qualquer distância,
todo e qualquer pequeno pedestal e toda e quelquer posição de
poder, e me desafia a associar minha própria vulnerabilidade à
daqueles com os quais vivo. E que alegria isso traz! A alegria de
pertencer, de fazer parte de algo, de não ser diferente.
Nouwen diz que nossa concepção sobre a alegria é baseada
no sucesso, no progresso e nas soluções fáceis para nossas mazelas
e problemas. Volta e meia ouvimos na igreja que a alegria deve ser a
marca distintiva do crente. Mas muitas vezes isso se torna algo do
tipo “kit-viagem para o país das maravilhas com Alice e o coelhinho”,
ou quem sabe não seria uma espécie de “selo de qualidade cristã”: se
você tem, tudo bem, mas se não tem, algo deve estar errado com sua
fé. Quantas vezes, confesso, cheguei até a me culpar por ser induzido a
pensar desse modo nada realístico com que alguns cristãos tratam de
alegria e felicidade hoje, nada diferindo inclusive da alegria ópio que o
mundo atual tem proposto, do sorriso estampado no rosto, pensamento
positivo, muito dinheiro no bolso e “saúde para dar e vender”.
Não preciso contra argumentar muito para dizer que isso, apesar
de muito comum, é uma perversão infantil do caminho subversivo
de Jesus. Para Nouwen, o cristianismo de nossos tempos, hedonista,
procura se desconectar completamente da realidade do sofrimento
e da renúncia, ou mesmo da vida abnegada. É um cristianismo que
busca vitórias sem esforços. Almejamos, de acordo com ele,
Crescimento sem crise, cura sem dores, ressurreição sem cruz.
Não é de admirar que gostemos de assistir a desfiles militares
e de aplaudir heróis que retornam, operadores de milagres e
recordistas. Também não é de admirar que nossas comunidades
pareçam organizadas para manter o sofrimento à distância. As
pessoas são sepultadas de maneira a disfarçar a morte com
eufemismos e ornamentação rebuscada (NOUWEN, 2002, p. 08).

111
A maneira de Jesus, porém, é tão diferente. Isto porque, como
afirma Nouwen (1997, p. 128), Jesus “foi o homem das dores, mas
também o homem da total alegria”. Ele não veio eliminar as dores,
mas ajudar-nos a enfrentá-las com o realismo e a esperança que a vida
nesse mundo requer, na perspectiva da graça e do amor de Deus, que
padece junto com o sofrimento da humanidade. Ora, mas esse Jesus em
nome de quem declaramos, determinamos, fazemos brados de vitória,
repreendemos o inimigo, os infortúnios e as doenças que nos assolam,
choramos, gritamos, esperneamos, rimos, batemos palma, rolamos
no chão, nos declaramos perdidamente apaixonados por ele, não é o
mesmo Jesus que disse: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom
ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33)? E tudo isso, lembrando, ele disse
aos discípulos para que estes tivessem paz. Porém, será que em nossa
compreensão triunfalista da fé e ilusória da alegria, existe lugar para se
conceber uma paz que não significa apenas “ausência de conflito”, mas
que se faz presente especialmente nos lugares de dor? Como podemos
ser honestos com a vida, com as pessoas, com Deus e com nossos
próprios sentimentos diante das perdas, e ainda assim, celebrar?
Em lugar de toda a balbúrdia espiritualista, Jesus (e Nouwen)
nos convida a abandonar a frivolidade do caminho fácil e também
do fatalismo e desesperança, a deixar de lado nossos falsos gritos de
“Aleluia”, ao mesmo tempo em que oprimimos nosso povo fabricando
ilusões religiosas e, com elas, crentes imaturos e doentes, para seguir
seus passos e viver em seus caminhos, a romper as cadeias que ele
rompeu, sofrer nossas próprias dores, não só as inerentes à vida, mas
também aquelas inseparáveis do exercício da fé cristã na vida. Nas
palavras de Nouwen:
Cristo convida-nos a permanecer em contato com os muitos
sofrimentos de cada dia e a experimentar o começo da esperança
e da nova vida, justamente aí onde vivemos, no meio das
feridas, dores, falência. (...) terei menor tendência a negar meu
sofrimento quando aprender que Deus o usa para moldar-me e
atrair-me para mais perto de si. Deixarei de ver minhas dores
como interrupções dos meus planos e serei mais capaz de vê-
las como meios de Deus fazer-me pronto a recebê-lo. Deixarei
Cristo viver junto às minhas dores e perturbações (2002, p. 09).

112 Espiritualidade Cristã


Aprendi com ele, portanto, que “o cálice da vida é o cálice
da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual tristezas e
alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias
não pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais
poderia ser bebido” (NOUWEN, 2002, p. 42).

4. Comunidade
Vida cristã é vida em comunhão. Comunhão que cria a
comunidade a partir do desejo que Deus cria em nós: “O Deus
que vive em nós faz com que reconheçamos o Deus em nossos
semelhantes”(NOUWEN, 2005, p. 62). Comunidade que se manifesta
em formas concretas: no perdão, na reconciliação, no gesto de amor,
compaixão, preocupação com o outro, na repreensão e no conflito, na
intimidade, na amizade, no partir do pão. Com Nouwen, aprendi que
a eucaristia é muito mais que mero ritual, é um “gesto humano” que
relembra uma presença, a do Cristo com quem me comprometo, e a
do irmão e da irmã com os quais me envolvo por causa de Cristo.
Segundo Nouwen, mais do que a eucaristia, a “vida eucarística”
é que faz a diferença no dia a dia, a cada gole, a cada gesto, como
uma celebração constante no seio da graça e na casa de Deus, que
existe onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome.
Essa compreensão permitiu com que Nouwen respirasse e vivenciasse
a experiência de ser igreja até mesmo em reuniões íntimas com
familiares e amigos. Ele disse:
Todos os dias celebro a eucaristia. Às vezes na igreja de minha
paróquia, com centenas de pessoas presentes, às vezes na capela
de Daybreak, em Toronto, Canadá, com minha comunidade, às
vezes em um quarto de hotel, com alguns amigos, e às vezes na
sala de estar de meu pai, apenas ele e eu (NOUWEN, 2005, p. 9).
O resumo que eu faria da mensagem de Nouwen sobre a
comunidade dá o tom de sua espiritualidade:
Não há um só ser humano que não receba o convite permanente
para participar do banquete de celebração do amor do Pai.
Sua paixão por Jesus e pelas pessoas se expressou em um

113
enorme apreço e fidelidade à Igreja, como pouco se vê em nossos
dias. Embora fosse um contemplativo crítico da realidade, era raro ver
Nouwen fazendo críticas muito duras ou usando de acidez e sarcasmo
para falar da Igreja. Mesmo em sua verve profética era possível
perceber uma ternura sábia e um olhar esperançoso. As maiores
transgressões de Nouwen eram transgressões de si mesmo, sempre que
falava abertamente de seus pecados, idiossincrasias e temores. Essa foi
também a sua maior arte, seu jeito de ser discípulo e ser humano, e sua
forma de tomar a cruz.

Conclusão: ser menos


Nessa unidade, aprendemos, a partir do exemplo de vida de
Henri Nouwen, seu legado deixado por meio de seus muitos escritos e,
em especial, na vida de tantos que por ele foram direta e indiretamente
tocados, que a espiritualidade cristã é um caminho de integridade, no
qual nos empenhamos em ouvir a voz que nos chama de “amados”
e a obedecê-la, por onde quer que andemos, resistindo aos muitos
apelos do mundo ao nosso redor. Por ser um caminho de integridade,
a vida do discípulo ou do espiritual não é uma vida dividida, mas é
uma vida em que corpo e espírito são uma e a mesma coisa, em que os
traços da humanidade caída nos perseguem ao mesmo tempo em que
perseguimos o caminho de santidade para o qual fomos graciosamente
chamados. Esta indivisibilidade, portanto, não nos permite separar
tristezas de alegrias, sofrimento de vitórias, assim como no caminho
de Jesus não se separam a cruz e a ressurreição.
Por essa razão, e reverberando um pouco mais do pensamento
de Nouwen, posso dizer que artes da vida que ainda quero aprender,
uma tem ocupado especial lugar ultimamente: a arte de “ser menos”.
As grandes aspirações e o desejo de “ser mais” a mim têm parecido
tanto mais superficiais, quanto inúteis. Tudo é fumaça, diz o pregador!
Quanto mais controle sobre a vida quero, menos vida tenho. Quanto mais
saber e poder almejo, menos humanidade e amor dou e obtenho. O saber
pretensioso estultifica. Faz do inteligente o pior dos tolos.
Não sei bem a razão, mas acho que nunca quis ser tanto gente
comum quanto hoje. Talvez porque nosso mundo esteja tão rodeado
e preocupado com questões, e bem pouco preocupado com pessoas,

114 Espiritualidade Cristã


com gente – como certa vez observou Nouwen.
Hoje vale mais ganhar um debate, provar uma tese, do que
fazer um amigo.
Cansei de tentar vencer; meu negócio agora é tentar amar. Pois
somente o amor “gentifica”, constrói e liberta.
O problema é que o desejo de amar deve ser proporcional à disposição
para perder. Somente quem ama sabe mesmo o que é sofrer. Somente quem
conhece a dor do choro, é também capaz de consolar quem chora. Somente
quem passa pela tristeza profunda, reconhece o que é alegria.
Quando decidi “ser menos”, aprendi o quanto a grande maioria
de minhas ambições foram e são vazias. Com elas, gostaria de sepultar
também sonhos de sucesso, desejos doentios de aprovação, e o anseio
fútil por alguns minutos de fama, a serem derretidos no vórtice do
próximo instante.
Tentarei não mais alimentar a necessidade quase antropofágica
dos outros de consumir meus talentos, pois essa é só mais uma maneira
disfarçada de enterrá-los, ou de jogá-los fora.
Estou interessado em provar minhas escolhas, e a descobrir e
perseguir quantas delas me conduzem à integridade, sem ter de falsear
a realidade de quem sou.
Finalmente, quero aprender andar com Deus sem desaprender
a andar com os outros. Não há nada mais inútil que gritar “Hosana
nas alturas” sem estender as mãos a quem precisa aqui, nesse chão da
história. Quero a espiritualidade trans-imanente de Jesus de Nazaré, que
me ensinou chamar a Deus de “paizinho” e ao estranho de “meu irmão”.
Que desdenha do poder para caminhar com os pequeninos da terra.
Quem sabe eu já esteja pedindo muito; quem sabe eu já tenha
escrito demais. Quem sabe o
desejo de ser menos não passe do
velho anseio de querer ser mais.
Quem sabe? Eu não sei. Mas de
uma coisa sei: não é possível ser
menos sem a maior de todas as
transgressões... a transgressão de
si. Jesus foi capaz disso. Nouwen
também.

115
Referências

(Indico também outros livros de Nouwen e escritos sobre ele em português)


BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
FORD, Michael. O profeta ferido: um retrato de Henri J. M. Nouwen. São
Paulo: Paulinas, 2005.
NOUWEN, Henri. Gracias. A Latin American Journal. Maryknoll, New
York: Orbis Books, 1993.
______. A Volta do Filho Pródigo. A história de um retorno para casa. São
Paulo: Paulinas, 1997a.
______. Nossa maior Dádiva. São Paulo: Loyola, 1997b.
______. Mosaicos do presente. Vida No Espírito. São Paulo: Paulinas, 1998.
______. Cartas a Marc sobre Jesus. São Paulo: Loyola, 1999a.
______. A Voz íntima do amor. Uma jornada através da angústia para a
liberdade. São Paulo: Paulinas, 1999b.
______. Oração: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999c.
______. Espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo. São
Paulo: Loyola, 2000a.
______. Crescer: os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas, 2000b.
______. Adam, o amado de Deus. São Paulo: Paulinas, 2000c.
______. O Sofrimento que cura. São Paulo: Paulinas, 2001a.
______. Intimidade: ensaios de psicologia pastoral. São Paulo: Loyola, 2001b.
______. Memória viva. Apostolado e oração em memória de Jesus Cristo.
São Paulo: Loyola, 2001c.
______. Estrada para a paz: escritos sobre paz e justiça. São Paulo: Loyola, 2001d.
______. Podeis beber do cálice? São Paulo: Loyola, 2002a.
______. O perfil do líder cristão do século XXI. Belo Horizonte: Atos, 2002b.
______. Transforma meu pranto em dança. Rio de Janeiro: Textus, 2003.
______. Diário: o último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo:
Loyola, 2006.
______. Ministério criativo. Brasília: Editora Palavra, 2008.
______. Tudo se fez novo: um convite à vida espiritual. Brasília: Editora Palavra,
2007.
SHAW, Lucy. Henri Nouwen: a escalada para Deus. In: YANCEY, Philip. &
SCHAAP, J. C. Muito mais que palavras. São Paulo: Vida, 2005.
YANCEY, Philip. Henri Nouwen: o ferido que cura feridas. In: Alma
Sobrevivente. Sou cristão apesar da igreja. São Paulo: Mundo Cristão: 2004.

116 Espiritualidade Cristã


Espiritualidade Cristã
Unidade-13
Espiritualidade e Comunidade

Introdução

Estamos chegando reta final do curso de Espiritualidade


Cristã! Para os propósitos desta unidade em espcífico, gostaria
de retomar algumas coisas. A tese defendida ao longo das aulas
foi a de que a espiritualidade tem a ver com a qualidade de
nossa relação com Deus, seja como vida vivida na fé, seja como
cumprimento de um dos propósitos de Deus desde a criação,
que é o de caminhar e ter intimidade com Ele. Assim, vimos
que espiritualidade pode simplesmente ser descrita como o
modo de ser do cristão guiado pelo Espírito. Se esse modo de
ser é relacional, e se as relações são dinâmicas, então não há
regras gerais ou modelos que dêem conta, e teremos tantos
“modos de ser” quantas são as pessoas numa comunidade de
fé. E porque é relacional e dinâmica, a espiritualidade depende
da vida do/com o outro. Nesse sentido, esta unidade vem com o
intuito exatamente de falar da importância que a comunidade
tem e o papel que desempenha em nossa formação espiritual.

Objetivos

1. Conhecer de onde procede a comunidade cristã e


qual seu alvo e razão de existir.

2. Identificar maneiras de como a comunidade


contribui efetivamente para a espiritualidade.

117
Qual é o lugar do outro na espiritualidade
cristã?
Entendendo que investimos uma boa parte da unidade
anterior falando sobre o lugar que o outro e a diferença ocupam em
nossa caminhada, serei aqui bem
pontual e objetivo.
Em primeiro lugar, a
espiritualidade só existe por
causa do Outro, que é Cristo. Ou
seja, Cristo é a razão de ser da
espiritualidade cristã; nossa vida
é originada pela vida de Cristo,
Fonte: Depositphotos iluminada por sua Palavra, e
guiada pelo seu Espírito. “Porque dele e por ele, e para ele, são todas as
coisas; glória, pois, a ele eternamente” (Rm 11.36).
Em segundo lugar, essa vida, que é originada, iluminada
e guiada em Cristo, encontra seu melhor sentido no encontro com
o outro, o próximo, o irmão de caminhada. Meu encontro com o
camarada Cristo me conduz inevitavelmente ao encontro com meus
camaradas de história, e muitas vezes se dá precisamente através dele.
Desde o princípio Deus fez essa escolha: “Não é bom que o
homem esteja só” (Gn 2.18). Dois é sempre melhor que um: na alegria
ou na dor, na celebração ou no luto. A esta vida partilhada é que o
salmista se refere quando diz: “Como é bom e agradável viverem
unidos os irmãos... ali o Senhor ordena a sua benção e a vida para
sempre” (Sl 133.1,3).
Espiritualidade, nesta perspectiva, é o encontro com o Outro
(Deus) por meio do outro (próximo).

Quando e como passa a existir a comunidade?


Existe comunidade quando sou convidado a partilhar a minha
vida com outras pessoas, a partir do evento do Cristo Ressurreto.
Eugene Peterson (2007, p. 269) afirma que a ressurreição é ponto de
partida da comunidade do Espírito Santo. A ressurreição e ascensão
de Cristo ao Pai conduziram aquele grupo de discípulos à reunião em

118 Espiritualidade Cristã


Jerusalém; e Lucas afirma que eles perseverarem unânimes em oração,
com as mulheres e com os irmãos de Jesus (At 1.13-14).
Após a descida do Espírito Santo, o discurso de Pedro e a
conversão e batismo de milhares de pessoas, nós vemos agora uma
comunidade do Espírito, também
perseverando em oração, no ensino
dos apóstolos e no partir do pão. A
oração simboliza essa incessante busca
comunitária pela vontade e presença de
Deus; o ensino apostólico representa
o compromisso com a Palavra e com
o crescimento na fé; e o partir do pão
aponta para a comunhão com Cristo
em comunidade.
Logo, o relato de Atos prossegue
dizendo que “todos os creram estavam
juntos e tinham tudo em comum”;
partilhavam seus bens e acolhiam
aos necessitados; louvavam a Deus e
Fonte: Depositphotos contavam com a simpatia do povo. E,
enquanto tudo isso ocorria, o Senhor acrescentava, dia a dia, os que
iam sendo salvos (At 2.42-47, 4.32).
Então, Peterson parece estar certo. Todos estavam juntos
porque algo os juntou, e este algo foi a ação do Espírito movida
pela ressurreição do Senhor. Sem a ressurreição não há vida e nem
esperança; pela ressurreição o Espírito passa atuar entre os discípulos,
e cria a comunidade cristã. A comunhão, portanto, não é algo que se
promove artificialmente, mas é fruto da ação do Espírito. E o louvor
a Deus brota da mutualidade, o “nós” é mais importante que o “eu”,
porque o “eu” não existe sem o “nós”.
É um (lamentável) sinal dos tempos que hoje nos foquemos
tanto no “eu” (individual) e menos no “nós” (coletivo); a igreja
deixa de ser comunidade do Espírito quando ela passa a existir para
satisfazer uma “ditadura do eu”: eu sou abençoado, eu sou amado,
eu sou próspero, eu fui chamado, o Senhor guia o meu ministério,
Deus me cura, me salva, me liberta, me, me, me... Tá cansado? Então
imagina Deus...

119
A comunidade do Espírito e seus líderes em Atos não estão
preocupados criando estratégias para fazer a igreja crescer. Mas ela
crescia como nunca, em meio à completa ausência de qualquer plano
pretensioso de crescimento. O crescimento se dá em um processo
integral natural (apropriando-me aqui das clássicas categorias de
Orlando Costas): quanto mais a comunidade perseverava e crescia
na comunhão e no ensino (crescimento conceitual e orgânico),
mais isto a impelia a se acercar
e a acolher às necessidades do
entorno (crescimento diaconal), e
a contar com a simpatia do povo.
E “enquanto tudo isso ocorria”, o
Senhor acrescentava dia a dia mais
pessoas à comunidade dos salvos
(crescimento numérico).
Então, quando vemos a
Fonte: Depositphotos explosão de crescimento na igreja
evangélica hoje, devemos nos perguntar não tanto sobre métodos,
estratégias ou números, mas no quê e no como está crescendo
(qualidade). De nada adianta uma igreja grande no tamanho, mas
pequena na maturidade cristã.
Certa vez recebi um email de um aluno, que me perguntava: É
teologicamente correto dizer que a igreja é um tipo de sociedade ou
comunidade alternativa? Eis minha resposta:
Sem dúvida, em minha compreensão isso não só está teologicamente
“correto”, como historicamente tem marcado a vida da igreja-comunidade
do reino, daquela que não se rende aos ditames do institucionalismo;
sempre que ela resolve ser fiel ao seu chamado de sinalizar o reino no
mundo, ela se constitui como uma “sociedade alternativa”, não no modo
hippie “paz e amor” dos anos 70, ou no sentido de que seria uma “ilha”
apartada do resto, onde podemos nos alienar do mundo, mas enquanto se
mantém como ponto de esperança bem no meio do mundo. 
Ali nossos conflitos não são diminuídos porque somos cristãos – como
afirma essa versão sofisticada da teologia da prosperidade, anti-crise e
sofrimento. Pelo contrário, eles aumentam, à medida que não vivemos
de acordo com os termos do mundo e sim do reino, como o próprio

120 Espiritualidade Cristã


Jesus advertiu aos discípulos (João 15), para que não se admirassem se o
mundo os odiasse; é que eles não vivem segundo os meandros do mundo,
nem os obedecem; se vivessem de acordo com tais termos, o mundo os
amaria e os aprovaria. E, veja bem, tudo isso acontece porque estamos no
mundo, porque Deus amou o mundo, e porque nos chama a proclamar a
reconciliação em nossa vida no mundo.

Penso, assim, que a comunidade deveria ser idealmente


a alternativa do Espírito para os cansados, feridos oprimidos  e
sobrecarregados do mundo; ser agente profético de denúncia à
corrupção e injustiça, sob que forma elas apareçam; ser agente de
transformação integral. Por outro lado, sempre que a igreja deixa, por
alguma razão, de exercer esse papel, o Espírito, inadvertidamente, não
deixa de agir. Isso significa que o Espírito cria a comunidade, mas não
é monopólio dela.
Não é Ele quem acompanha os movimentos (e patacoadas) da
igreja, mas é exatamente o contrário, a igreja que, como comunidade
dos carismas, deve acompanhar o sopro do Espírito, onde quer que ele
esteja soprando, e ouvir a sua voz, ainda que não saiba dizer de onde
vem e nem para onde vai (cf. Jo 3.8).
No fim das contas, o que interessa não é tanto “para onde”, mas
“com Quem” vamos. Vamos com o Espírito!

Como a comunidade pode melhorar minha


espiritualidade?
Primeiro: a comunidade me aproxima do sentido mais
profundo de quem eu sou e de quem Deus é.
A comunidade me “engravida de Deus”, de muitas formas:
quando adoramos, servimos, escutamos a Palavra, debatemos,
ensinamos e somos ensinados, consolamos e somos consolados,
confrontamos e somos confrontados, quando carregamos os fardos
uns dos outros e quando nos corrigimos mutuamente em amor.
A comunidade me aproxima mais da vontade do Senhor:
quando lemos, interpretamos e partilhamos a Palavra e construímos
uma hermenêutica comunitária. E como precisamos mais disso,
especialmente num contexto autoritário e centrado na palavra de “um”

121
em detrimento da “visão de muitos”.
A comunidade me faz mais humano, pela proximidade com
os outros, seus pecados e virtudes e com as minhas próprias. É
comunidade de santos-pecadores. E chega um tempo, como lembra
Peterson (2007, p. 165), em que é “mais difícil aturar os santos do que
os pecadores”. E tem horas que a gente acaba preferindo a companhia
de gente de fora da comunidade, que parece ser tão menos complicada.
Só que logo a gente sente falta, e percebe que as nossas preferências
não necessariamente condizem com as de Cristo.
A comunhão precisa viver as decepções óbvias da convivência,
para que ela cresça como uma comunhão entre seres humanos
pecadores, mas salvos pela Graça, e não entre anjos ou semideuses.
Nas palavras de Dietrich Bonhoeffer (2006, p. 17):
Somente a comunhão que passa pela grande decepção, com seus
maus e desagradáveis aspectos, começa a ser o que
ela deve ser diante de Deus, começa a apossar-se na
fé da promessa recebida. Quanto mais cedo a pessoa
e a comunidade passarem por esta decepção, tanto
melhor para ambas. Uma comunhão que não suporte
e não sobreviva a uma tal decepção, que se agarre a
seu ideal quando ele é para ser destruído, perde na
mesma hora a promessa de comunhão duradoura,
e se desmanchará mais cedo ou mais tarde. (...) A
pessoa que ama mais seu sonho de uma comunhão
cristã do que a própria comunhão cristã, destruirá
qualquer comunhão cristã, mesmo que pessoalmente
essa pessoa seja honesta, séria e abnegada.
Segundo: a comunidade melhora minha espiritualidade à
medida que oportuniza a mútua correção.
Quem tenta viver sua fé fora da comunidade, pode até
sofrer menos, mas também progride menos. Fora da comunidade
(comunidade digo, e não templo), somos como que senhores de nosso
próprio destino, mas não temos com quem contar no momento em
que precisamos que a nossa rota seja corrigida. Tendemos a estagnar.
No tocante ao amor fraternal, Paulo se dirige a comunidade
de Tessalônica, dizendo (mais ou menos) estas palavras: “Não há

122 Espiritualidade Cristã


necessidade de falar muito, pois vocês já foram bem instruídos quanto
a se amar mutuamente; mais do que isso, vocês já estão vivendo isso
intensamente, entre os irmãos e irmãs da comunidade. Mas, auto
lá! Continuem progredindo; corram como se ainda nada tivessem
alcançado. Não tomem esses momentos de fraternidade e mutualidade
que há entre vocês como motivo para se orgulharem de si mesmos”
(Paráfrase de 1Ts 4.9-10).
Isso deve nos levar a entender a comunhão de amor como um
compromisso progressivo, inacabado e em permanente construção,
que se dá em e não fora da comunidade.
Neste sentido, é tarefa de todos, pastores ou leigos, homens e
mulheres, encontrar “mentores espirituais” na comunidade. Alguém
com que você possa partilhar suas dores e alegrias, que possa te ajudar
a recuperar a visão quando ela se perde por alguma razão, que possa
te abraçar e se compadecer contigo em meio a um grande sofrimento,
mas que também seja capaz de apontar seus pecados quando você não
mais os enxerga ou reconhece e convidar ao arrependimento.
Este encontro passa pelo reconhecimento de que, por mais ou
menos que saibamos, todos carecemos de “guias” espirituais, gente
que nos ajude a atravessar o caminho:
Não há como ser peregrino solitário neste caminho. Precisamos
desesperadamente de orientação, de direção dentro dele. Hoje,
confesso, minha alma necessita mais do que nunca entregar-
se a alguém que já conheça e tenha experimentado muito mais
intensamente os altos e baixos desse caminhar, os atalhos a ser
evitados, a direção certa nas muitas encruzilhadas, os momentos
iluminados do caminho, bem como a ‘noite escura da alma’, quando
as sombras nos convidam a desistir (PEDREIRA, 2005, p. 305).
Nesse sentido, o mentor precisa ser um mestre na acepção da
Palavra, que, a exemplo de Cristo, sabe ouvir, dar lugar à partilha, à
fala do outro – mesmo que essa fala seja de lamúria confusa – acolher,
ser solidário e simplesmente estar ao lado do outro. O mestre não é
somente mestre por sua postura austera de quem ministra ou faz um
monólogo, mas, sobretudo, por sua presença, que pode ser silenciosa,
que muitas vezes faz mais perguntas do que se preocupa em responder

123
logo e despedir “em paz” (e com a consciência tranqüilizada) o
discípulo, sua cobaia passiva.
Assim, um mentor é quem pode me ajudar a me conhecer
melhor na comunidade, é quem, nas palavras de James Houston
(2003, p. 141), me ajuda a “desmascarar certos traços de auto-ilusão e
a sondar meu interior mais profundamente do que eu talvez estivesse
disposto a fazer voluntariamente”.

Que implicações essa perspectiva de uma


espiritualidade comunitária pode trazer?
Tentarei apresentar aqui algumas implicações a partir de três
níveis: vida pessoal, vida comunitária, vida em sociedade.
Vida pessoal. Parto aqui de mais uma afirmação de Bonhoeffer
(2006, p. 58-59), quando ele diz que: “A pessoa que não suporta a
comunhão deve tomar cuidado com a solidão... O contrário também
é verdadeiro: a pessoa que não se encontra na comunhão deve
tomar cuidado com a solidão”. A implicação, portanto, é: cultivar a
solidão ou solitude (estar a sós com Deus), mas não deixar que ela
se transforme em individualismo e uma estrada à auto-suficiência; e
cultivar a comunhão (estar com o outro), mas não permitir que ela
se transforme em “koinonite” (doença), e nos feche para o mundo ao
nosso redor (sectarismo).
Vida comunitária. É preciso firmar um compromisso com a nossa
comunidade de fé: de amá-la, sustentá-la em oração e financeiramente,
e de servir “na força que Deus supre” e conforme a diversidade de dons.
Comprometer-se é amar o outro, é pagar o preço de ter de lidar não
somente com as alegrias, mas com as decepções próprias de qualquer
relacionamento. A Bíblia é repleta de histórias assim, de pessoas que
ferem umas as outras, de comunidades que perdem o fio da meada, mas
também da persistência divina, que deve inspirar a nossa persistência
em superar as dificuldades no temor de Deus e avançar.
Vida em sociedade. Vivemos num tempo em que as pessoas
anseiam por comunidade, pois ela é sinônima de segurança. Como

124 Espiritualidade Cristã


podemos atrair essas pessoas? Não apenas falando bem da comunidade
ou da sua igreja, mas vivendo de modo que nossa própria vivência fale
mais alto – pelo testemunho público. Sendo abertos e inclusivos, como
foi Jesus, seja para conversar com a Samaritana à beira do poço, ou com
o Nicodemos na calada da noite. Como diz Eugene Peterson (2007, p.
265), “Jesus não parece muito seletivo na escolha dos filhos que ele
deixa entrar em sua cozinha para ajudar a preparar as refeições”. E
assim precisa ser conosco...
Jesus quando roga ao Pai em sua oração sacerdotal, o faz não
somente pelos que são “seus”, mas também por aqueles que ainda não
são dele, mas que um dia virão a crer em seu nome por intermédio
da Palavra. Isto inclui judeus, gregos, romanos, homens, mulheres,
senhores e escravos, patrões e empregados, gente de todo tipo de classe,
Gênero, cor e etnia, etc., a fim de que o mundo, toda a terra habitada,
creia em seu nome. “Rogo”, disse ele: “... para que todos sejam um, Pai,
como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós,
para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21). Que assim seja!

Conclusão

Nesta unidade, vimos que a comunidade cristã não é um


mero acaso da história, nem é fruto de iniciativas artificiais ou táticas
institucionais humanas, mas é forjada pelo Espírito de Cristo, conforme
o caráter divino (trinitário) de comunhão eterna. A comunidade nos
ajuda a descobrir então o melhor sentido de quem Deus é, e também
de quem somos e para que existimos. Porque o Espírito forja a
comunidade, não significa que ela seja perfeita. Não, a comunidade é
de seres humanos, por isso é imperfeita e ainda marcada pelo pecado.
Por outro lado, é ela quem também proporciona a mútua correção e,
com isso, a possibilidade de superação das situações em que o pecado
age, rumando para o crescimento na fé. Dessa forma, pode-se dizer
que se a fé não depende da comunidade para existir, ela sim depende
para crescer, amadurecer e dar frutos. Por isso, no começo o Senhor
disse: “É bem melhor serem dois ao invés de um”, dois no riso, dois no
pranto, na vitória ou na derrota.

125
Referências

BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. 6ª ed. São Leopoldo, RS:


Sinodal, 2006.
HOUSTON, James. Mentoria espiritual. Rio de Janeiro: Textus, 2003
PEDREIRA, Eduardo Rosa. Comunhão com o Santo na comunhão com
os santos. In: BOMILCAR, Nelson (Org.). O melhor da espiritualidade
brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
PETERSON, Eugene. A maldição do Cristo genérico. A banalização de
Jesus na espiritualidade atual. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

Fonte: Depositphotos

126 Espiritualidade Cristã


Espiritualidade Cristã
Unidade - 14
Espiritualidade e sexualidade (I)

Introdução

Como vimos até aqui, este curso faz uma abordagem


de vários tópicos da espiritualidade, desde os mais trabalhados
e constantemente endereçados pela literatura cristã a nosso
dispor, até outros praticamente ignorados. Dentre os desta
última categoria, está o tema da sexualidade. Aparentemente,
para muitos cristãos, é um tema que nem entra na agenda de
nossas discussões eclesiais sobre a fé, muito menos teria algo
a ver com espiritualidade. Isto, pois, como procuro explicar
nestas duas unidades, compreendemos muito mal o tema, bem
como os sub-temas com ele relacionados, tais como “corpo”
e “espírito”, por exemplo. Logo, desenvolvemos uma visão
dualista e esquizofrênica de espiritualidade, que separa aquilo
que Deus juntou, que diz ser ruim aquilo que Ele declarou
bom. De que maneira superar essa drástica perspectiva em
nosso modo cristão de compreensão? Eis o que pretendo
discutir aqui.

Objetivos

1. Reconhecer o lugar da sexualidade em nossa


espiritualidade.
2. Compreender melhor as noções de “corpo”, “alma”,
“carne” e “espírito” na visão cristã.

127
Espiritualidade: humanizar ou espiritualizar?
Quero aqui fazer uma abordagem ao tema desta aula por uma
via que poderíamos chamar de humanizadora. E por humanizadora
aqui estou entendendo uma forma de pensar e agir que promove
e viabiliza a vida e o bem-estar do ser humano, e não aquela que o
reifica e que tem mais a ver com o projeto humanista. Nem toda via
humanizadora é cristã, mas, neste caso, é possível pensar que, sendo
cristã, deve ser humanizadora e encarnacional.
No campo da espiritualidade, tem a ver com a busca – que
endereço em meu livro: Humanos, graças a Deus! (2013) – por uma
espiritualidade encarnada,
isto é, que não preconiza um
improvável êxodo do espírito
(sopro de vida) e do “espiritual”
da matéria humana, isto é,
da carne – aqui no sentido
veterotestamentário, como
“sensibilidade da criatura”
(SEGUNDO, 1987, p. 85). Com
Jonathan Menezes efeito, a defesa básica aqui será
de uma perspectiva teológica em que não mais se possam desconectar
a espiritualidade da sexualidade, pois ambas são parte da vida do
ser humano e em seu corpo estão integradas. Daí, a espiritualidade
“encarnada” pode ser entendida como o modo de vida do ser que,
corporal e sexuado, encontra-se no caminho da transformação
proposta no Evangelho, que passa pela “encarnação da experiência de
Cristo na história e nas atividades cotidianas” (GALILEA, 1982, p. 15).
Antes de tudo, começo relembrando que espiritualidade, para
mim, tem a ver com um modo de ser, pensar e agir daquele ser que
nasceu de novo, nasceu do Espírito, e agora é “espírito” (ser novo
vivente). Isto não significa que se desencarnou ou desumanizou.
Pelo contrário, ele/a se re-humanizou no Espírito, nasceu de novo,
é novo humano. Jesus, em seu diálogo com o fariseu Nicodemos no
Evangelho de João, disse que: “A não ser que alguém se submeta a essa
criação original, a criação na qual ‘o vento pairava por sobre as águas’,

128 Espiritualidade Cristã


o invisível movendo o visível, um batismo para a nova vida, não lhe
será possível entrar no reino de Deus”, e que “a pessoa que tem um
nascimento interior é formada por algo que você não pode ver nem
tocar – o Espírito – e se torna espírito vivo” (Jo 3.5-6 – Tradução A
Mensagem).
No começo de toda vida espiritual, portanto, está a experiência
de criação de um novo ser pelo Espírito, ser este que não mais se rende
à sua própria vontade, mas à vontade do Pai, revelada em sua Palavra
e encarnada na Pessoa de Jesus Cristo.
Na prática, porém, “espiritualidade” é um tema muito mal-
elaborado e também muito mal-compreendido. Nossa forma de
compreender e elaborar nossas “espiritualidades” é marcadamente
cultural. E nossa matriz cultural de concepção da espiritualidade
ainda, salvo exceções, é platônica e dualista. O platonismo (ou o
neoplatonismo) fez um grande estrago na visão (teológica) cristã
(o que inclui a espiritualidade); isto, pois
negou a corporalidade (como dimensão
essencial humana), a materialidade, nos
afastando desse mundo para um plano
ideal, transcendente ou futuro. A inevitável
associação da palavra com um mundo à
parte, para o qual migramos, de tempos em
tempos, em busca de enlevo e paz na alma,
fez com que essa espiritualidade perdesse
qualquer contato mais significativo com
a situação vivida. Daí provém muitas das
críticas a alguns modelos de espiritualidade
como sendo “alienantes”, “desencarnados”,
sem repercussão na vida e sem conexão com
a missão. Daí a necessidade de superar nossos
dualismos e esquizofrenias platonizantes.
Essa superação, porém, segundo certa
interpretação, seria algo improvável, pois o
próprio Paulo havia gerado um dualismo
Marionete
permanente à fé. Há uma confusão, nesse
Fonte:Wikimedia Commons caso, entre dualidade e dualismo. Dualidade

129
é a convivência inevitável entre dois elementos distintos, dois modos
de existência ou orientação da vida – como o de Carne e de Espírito. O
dualismo, aqui entendido, indica uma polarização entre dois elementos
– bem e mal, matéria e alma, o que gera uma esquizofrenia, pois a
pessoa vive no corpo, mas é ensinada que mais importante é a alma; seu
ser é corporal, mas o espiritual pertence à dimensão do transcendente,
onde somente o espírito ou a alma são elevados. Ao corpo é relegado o
status de habitat do pecado – especialmente
os ligados à luxúria.
O equívoco desta percepção está
não apenas de subtrair a materialidade
da espiritualidade, mas em atribuir
responsabilidade pelo pecado – ou a lei que
habita em nossos membros, como diria
Paulo (Rm 7) – somente à corporalidade.
É um equívoco, pois o entendimento
paulino de carne provavelmente advém
da compreensão do AT, que engloba o
ser humano como um todo-indivisível.
Gottfried Brakemeier
Segundo José Comblin (1990, p. 77), em
Paulo “carne” não significa apenas o corpo como que distinto da alma,
mas “o homem todo na sua fraqueza, mortalidade, tentação de pecado.
Assim, a carne está mais no intelecto e na vontade que na matéria”. Ser
“carne” e ser “espírito”, nesse aspecto, são modos coexistentes, embora
distintos, de vida. O primeiro é o modo de quem busca suficiência em
si, e o segundo que encontra a suficiência em Cristo.
Como esclarece Gottfried Brakemeier (2002, p. 118),
Se o ser humano, à parte da fé, é integralmente carnal, com
inclusão de seu espírito, o corpo já não mais pode ser o
exclusivo culpado do pecado. Não se pode incriminá-lo de
segurar a pessoa nas esferas inferiores do pecado e de impedir a
ascensão a Deus. O pecado é ‘ato coletivo’ de todas as faculdades
humanas, com destaque à vontade, ao coração, ao espírito.
Jeremias (capítulo 17) foi quem disse que o pecado de Judá
estava gravado no coração com ponta de diamante. A palavra aqui

130 Espiritualidade Cristã


usada diz respeito a uma ofensa, não verbal,
mas “gravada” no coração (centro da vontade e
decisão do ser). Tem uma dimensão espiritual,
mas aqui é identificado com coisas muito
concretas no povo de Israel (idolatria, injustiça,
impiedade). Como se Deus estivesse dizendo:
“Para onde você vai, olha ou toca, fica ali um
rastro do teu pecado. Se as tuas ações não o
refletem, seu coração já o faz”. Então isso afeta
a integralidade de nosso ser; não somente
Bishop Leslie Newbigin uma parte ou área da vida, como os dualistas
insistem em querer nos fazer crer. Como ressalta Comblin (1990, p.
77), “no evangelho cristão tudo no homem é corporal, tudo é espiritual,
tudo é alma. Não há nada fora do corpo. Pois o espírito está também no
corpo, ele é o corpo humano como orientado sob a moção de Deus”.
Leslie Newbigin (Apud. BOSCH, 1979, p. 13) chamou a visão
dualista de espiritualidade de Pilgrim’s Progress Model (o modelo do
peregrino), cujo ponto de partida é de não-envolvimento e escape
do mundo. Já David Bosch chamou esse tipo de espiritualidade de
espiritualidade monofisista – pois o Cristo dessa espiritualidade é de
uma natureza só, a divina. Ele prossegue dizendo que
Levou muitos e muitos séculos para
que chegássemos à conclusão que o
homem não pode ser dividido em uma
psyche (alma) e uma soma (corpo),
que muita doença envolve tanto uma
quanto a outra. Embora tenhamos
achado que fizemos um progresso
realmente tremendo descrevendo
certas doenças como ‘psicossomáticas’,
este mundo duplo revelou que não
fomos bem-sucedidos em superar
nosso pensamento dicotômico.
Tampouco fomos bem-sucedidos
em vencer essa dicotomia em nossa
teologia (BOSCH, 1979, p. 16).

131
Ouvimos de alguns que não se pode nem “humanizar”, nem
“espiritualizar” as coisas – cacoetes do discurso evangélico que
denotam nossa compreensão média de espiritualidade, ainda dualista,
pois separa o humano do espiritual e o espiritual do humano – o
mesmo se poderia dizer da santidade.
Mas quem é o santo? Não é um anjo ou ser espiritual ou elevado
que se desumanizou. Antes, é um ser humano que encarnou a vida de
Deus, e que tornou concreta a obediência ao Deus da vida.
Então, sem novidades nisso, nossa espiritualidade continua
desprezando a imanência e estigmatizando o corpo – embora toda a
eletricidade, as fortes emoções, as fruições e pirações espirituais ela
sinta no corpo. Os desejos, os ímpetos e as paixões, porém, prosseguem
debaixo de muita desconfiança.

Conclusão

Resultado disso tudo, em suma, é que a sensualidade só é licita


no universo das sensações espirituais, mas não no da sexualidade.
Neste ínterim, a espiritualidade não pode se desenvolver na mesma
casa em que dormita a sexualidade, por isso ou transportamos a
espiritualidade para outro lugar – se no corpo ou fora do corpo, Deus
o sabe – ou fazemos de tudo para manter adormecidos os estímulos à
sexualidade, tentando anulá-la no ser. Temos, assim, de um lado, uma
sexualidade desespiritualizada (neologismo)
e uma espiritualidade assexuada e, como tal,
desencarnada. O problema disso tudo é, de
novo, que continuamos criando gente mais
esquizofrênica, doente e mal resolvida, com
rostos envernizados num ambiente altamente
hipócrita de negação, culpa, sublimação e
vigilância. E as pessoas vão fingindo que são
felizes com seus casamentos sexualmente
mornos, com seus namoros monitorados (até
Carlos Eduardo Calvani certo ponto), com suas escapadas culposas,

132 Espiritualidade Cristã


e com a sua escolha por esperar o momento certo e o príncipe ou
princesa encantados que Deus reservou, dentre tantos/as pretendentes
no mundo, exclusivamente para elas. 
Como bem analisa Carlos Eduardo Calvani (2010, p. 131),
Sem dúvida alguma, a herança platônica no cristianismo,
associada ao terror pela sexualidade, às frustrações sexuais de
muitos teólogos patrísticos e à rigorosa e infeliz moral puritana,
acarrateram muitos problemas de ordem sexual para as
pessoas. somos tão melindrosos nesse assunto que certamente
muitos podem ter se escandalizado ao perceber que a Bíblia
trata desse tema com bastante naturalidade. Isso é sinal de que
há algo doentio em nós e que ainda nos oprime em relação à
sexualidade.

Uma espiritualidade sadia começa com o entendimento de que


o maior pecado talvez seja o de desnaturalizar, segmentar, segregar ou
esquartejar aquilo que o Criador fez para que se mantivesse unido e
declarou como sendo bom e natural. Nossa mentalidade religiosa ou
teológica é tão viciada nos preconceitos
culturais que somos capazes de
aconselhar a pessoa (ou digamos, um
casal) para que ore à beira da cama
antes do coito nupcial, mas torcemos o
nariz e somos moralmente judiciosos
quando alguém narra a história de
outro alguém que se sentiu excitado
(com “tesão”) na igreja durante o louvor
ou a pregação. Isso é esquizofrenia
hipócrita e desumanizante, caros/as
companheiros/as. E o resultado está
bem diante de nós, dentro de nossos
Fonte: Depositphotos
simples ou suntuosos templos! Como
remediar esta situação? Eu gostaria de sugerir duas coisas na próxima
unidade: (a) que rompamos com o dualismo que separa sexualidade e
espiritualidade; (b) que abracemos a condição humana na perspectiva
com que o próprio Deus a abraçou em Jesus.

133
Referências

BOSCH, David. A spirituality of the road. Scottdale: Herald Press,


1979.
BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade.
Contribuições para uma antropologia teológica. São Leopoldo:
Sinodal; São Paulo: Paulus, 2002.
CALVANI, Carlos Eduardo. Cântico dos Cânticos – notas erótico-
exegéticas para estudo em comunidades cristãs. In: CALVANI, Carlos
Eduardo (Org.). Bíblia e sexualidade: abordagem teológica, pastoral
e bíblica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
COMBLIN, José. Antropologia cristã. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1990.
GALILEA, Segundo. Renovação e espiritualidade. São Paulo:
Paulinas, 1982.
MENEZES, Jonathan. Humanos, graças a Deus! Rio de Janeiro:
Novos Diálogos, 2013.
SEGUNDO, Juan Luis. Teologia aberta para o leigo adulto. Vol. 2:
Graça e condição humana. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1987.

Anotações
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134 Espiritualidade Cristã


Espiritualidade Cristã
Unidade -15
Espiritualidade e sexualidade (II)

Introdução

Prosseguindo com a reflexão da última unidade, nesta


devemos atentar para a relação entre os temas da teologia,
espiritualidade e sexualidade. Você já deve ter percebido que
eles estão mais relacionados do que antes imaginava, não? A
questão é: por que fazemos tão pouco essa relação? Qual é a
razão pela qual nossos líderes e comunidades têm se disposto
tão medíocremente (quando o fazem) a discutir esse assunto?
Meu palpite tem sido o de que nossa compreensão do tema é
fraca; nossa visão da sexualidade e da vida humana (no corpo) é
desumanizadora. Ou seja, a razão é mais cultural que teológica
– ainda que assuma contornos teológico-doutronários. Como
sair desse imbróglio? É o que você deve estar se perguntando.
Não tenho respostas prontas pra isso. O que assumi como
tarefa pedagógica e pastoral é não ter receio de endereçar o
tema – na academia, na sociedade e especialmente na igreja
– custe o que custar. A pergunta é: quem está disposto ao
mesmo? Espero que você saia destas unidades encorajado a
debater o tema com sua comunidade, amigos, irmãos, família
e assim por diante.

Objetivos

1. Identificar caminhos possíveis de intersecção entre


espiritualidade, sexualidade e teologia;

2. Desenvolver uma nova compreensão de sexualidade


e espiritualidade a partir de uma visão humanizadora.

135
Repensando nossa visão sobre a sexualidade
No livro Deus sexo, Rob Bell propõe uma síntese interessante
sobre a interação entre espiritualidade e sexualidade. Quando levamos
em consideração a indivisibilidade prática – e
menos a divisibilidade teológico-doutrinaria
– do ser humano, torna-se natural e obvia esta
conexão, pois elas estão juntas, queiramos
ou não. Então, pensar teologicamente, agir
pastoralmente e viver integramente a partir de
tal junção torna-se um meio de corrigir rotas
esquizofrênicas.
Primeiro, porque as histórias da Bíblia
convergem para a “conexão”, de um Deus que
a todo o momento deseja relacionar-se com
seu povo e sua criação, mas cuja intenção
Rob Bell
nem sempre é genuinamente correspondida.
Isso, devido aos muitos obstáculos criados pelo ser humano, que o
conduziram ora a um relacionamento superficial com Deus, de
barganha, legalismo e expectativas, ora a uma rejeição prática, à
medida que se assentiu ao convite tentador da
serpente para ser “como Deus”, declarando,
assim, sua (nossa) independência.
Segundo, porque as pessoas de nosso
tempo estão cada vez mais “antenadas” a tudo
que acontece ao seu redor, e cada vez menos
capazes de contrair experiências duradouras e
profundas, vivendo, portanto, uma história sem
raízes, relacionamentos descartáveis, vidas que
não se conectam a outras vidas.
A posição de Bell, todavia, é
suficientemente clara: você pode, de diferentes maneiras (e o sexo
é uma delas), “estar” com um número variado de pessoas e não
permanecer conectado a nenhuma; de igual modo, pode-se ter uma
gama apreciável de performances rituais e “espirituais” para Deus ou
até gabaritar na prova de conhecimentos bíblicos, sabendo a Bíblia “de

136 Espiritualidade Cristã


cabo à rabo”, e não saber absolutamente nada sobre Deus, visto que
Deus é amor, e está muito mais interessado na intensidade de nosso
amor que na quantidade de nosso conhecimento, sendo o verdadeiro
saber – dádiva Divina – qualidade inerente daquele que ama, conforme
Deus ama (ágape).
E o amor pressupõe conexão e profundidade. E o sexo com
amor é o prazer que conecta, liberta e completa os amantes para serem
um do outro e um para o outro. Não foi assim que Deus designou no
princípio? Da costela do homem, Deus havia criado a mulher. Eles
não apenas tinham a mesma natureza (húmus – pó – humano), mas
haviam sido criados para viver em permanente conexão entre si, e com
seu Criador. “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher,
tornando-se os dois uma só carne” (Gn 2.24).
O sexo é uma dessas bonitas e benditas expressões da
sexualidade. Duas pessoas diferentes e especiais se unem; seus corpos
se tocam, se interpenetram; de duas carnes, uma só se faz. E a conexão
não está apenas nos corpos que se juntam, mas nas almas que se
encontram (onde está o corpo está a alma). Assim, pode-se dizer como
a mulher no Cântico dos Cânticos: “Eu sou do meu amado, e o meu
amado é meu”. E assim se completa o desejo do Senhor: pela realização
do ser humano, como mais fina expressão de seu amor e presença
Nele e com Ele. Logo, esse amor não pode ser algo abstrato ou virtual,
como um beijo que se manda pelo Skype ou uma mensagem pelo
Facebook. Mas é a presença de Deus reverberando em nós, através de
relacionamentos vivos e reais entre pessoas de carne e osso; é o Deus-
concoso-aqui-já-sempre.
O pecado, portanto, não habita na sexualidade ou no sexo em si,
nem em nada que lhe diga respeito. Ele habita, sim, no ser indivisível.
Enquanto o ser estiver corrompido, todas as suas relações também
estarão. O amor, por sua vez, é o “vínculo da perfeição”, como diria
João. Onde houver amor, haverá o sólido convite e possibilidade para
que vivamos a plenitude de Deus com alegria, gozo e liberdade, como
expressa a célebre frase de Agostinho: “Ame e faze o que quiseres”. Sem
amor nada somos e tudo o que fazemos torna-se sem sentido, parte
de uma precária provisoriedade. Ademais, penso que se Deus nos fez
sexuados para que, na prática, fugíssemos de nossa sexualidade, esse
Deus só pode ser sádico ou um louco.

137
Um caminho: abraçar a condição humana
As considerações até aqui feitas são óbvias, básicas e elementares
ao pensamento cristão sobre o tema. Mas o óbvio e o básico há muito
têm sido negados na prática histórica das igrejas. Penso que o filósofo
cristão Sorën Kierkegaard há um século e meio, em 1844, compreendeu
muito bem o problema do cristianismo com a sexualidade, de modo
geral, e com o sexo em particular, quando escreveu:
Todo o problema da importância da sexualidade
nos mais diversos domínios tem sido, até o
presente, insuficientemente tratado e, sobretudo,
raras vezes no tom justo. Produzir gracejos a este
respeito não passa de uma arte bem miserável;
fazer de censor é demasiado fácil; extrair daqui
sermões, passando por cima da dificuldade, não
é menos doentio; mas falar sobre o problema
de maneira verdadeiramente humana, eis o que
constitui toda uma arte.
Uma arte que os cristãos do século
XXI - sobretudo os da igreja brasileira - de
Fonte: Depositphotos modo geral ainda não aprenderam. Para
tanto, precisaríamos levar em consideração a multiplicidade de fatores
que envolvem o ser humano, para analisar o sexo não da forma míope
e legalista com que há muito temos feito, e sim sob múltiplos pontos
de vista. O problema é que buscamos o conhecimento como redenção,
paz perpétua, e não como conflito. Por isso, caímos nos risco de dizer
“sexo é...”; “isso não é...”; “isso é pecado”, “aquilo é absoluto”, e assim
por diante.
Penso que o sexo foi criado por Deus para ser benção. E ser
benção implica ser concebido num contexto de amor e responsabilidade,
afinal de contas “tornar-se uma só carne” não é algo banal, embora
em nosso mundo tenha se tornado. O que me encabula demais é que
a igreja transformou a sexualidade em sua “pedra de toque” (que,
aliás, ninguém pode tocar); ela tem as interpretações corretas e as
vias certas a se seguir. Nada pode sair desse eixo, muito menos cabe
questionamento. E assim, vamos transformando em maldição aquilo

138 Espiritualidade Cristã


que Deus declarou como sendo benção. Cortamos as verdades de
Deus do tamanho de nossa mente teológica auto-suficiente e assim
perdemos a dimensão de honestidade intelectual, que deveria ser tão
cara a qualquer cristão. Tão focados nos costumes e nos dogmas, nos
omitimos de nos acercar da realidade e respondê-la com relevância.
Não deveríamos, por exemplo, ser cínicos ao ponto de ficar
dizendo “sexo é bom”, do nosso confortável mundo matrimonial, e
olhar para os jovens e dizer “mas você não pode, viu”. É como colocar
um pote de sorvete, com tudo o que se tem direito, em frente a uma
criança, dizer “hum, está muito gostoso”, para em seguida afirmar:
“Ah, mas você não pode, porque ainda não tem idade pra comer essas
coisas”. É torturante, desonesto e uma negação da vida. Diálogos
honestos e conscientes, tanto da realidade, quanto da complexidade
que envolve o tema, são necessários. Falar do tema de uma maneira
verdadeiramente humana, como diz Kierkegaard, é necessário.
Mas, para falar de maneira humana, é preciso amar e aceitar
a humana condição – onde vige tanto a luz quanto as trevas, tanto a
porção simbólica quanto a porção diabólica. Pois, como lembra Galilea,
o que não pode ser assumido não pode ser redimido. Cristo assumiu
nossa condição para, só então, poder redimi-la. E é precisamente
aqui que, de acordo com Galilea (1979, p. 23), reside a originalidade e
autenticidade da espiritualidade cristã:
Em que seguimos um Deus que assumiu a condição humana,
que teve uma história como a nossa, que viveu nossas
experiências, que fez opções, que se entregou a uma causa, pela
qual sofreu, experimentou êxitos, alegrias e fracassos, pela qual
entregou sua vida, esse homem, Jesus de Nazaré, igual a nós
menos no pecado, no qual habitava a plenitude de Deus, é o
modelo de nosso seguimento.
Abraçar nossa condição é uma forma de humanização
da espiritualidade cristã, pois nela somos convocados a assumir
jubilosamente quem somos, como e para quê fomos criados,
reconhecendo também o desvio em que vige a fraqueza e a deficiência
que nos são inerentes. Uma humanidade mais divina (espiritual) e
mais humana ao mesmo tempo é aquela que não teme suas obvias

139
deficiências, mas as reconhece; é aquela em que a vacância ou o
esvaziamento de poder (humano) é um convite ao poder divino e a
um divino caminhar, em que não apenas trilhamos por caminhos, mas
criamos caminhos onde já não há mais caminho. E esta é uma atitude
tremendamente libertadora, pois abandonamos o controle, a ânsia por
poder e por dominação, para encontrar o livre caminho do amor.
Outra vez cito Galilea (1983, p. 195):
Nós nos humanizamos na medida em que deixamos que Deus
seja Deus, amor gratuito, não passível de manipulação e, por
isso mesmo, capaz de deixar o homem ser plenamente homem,
também livre e não passível de manipulação.

Conclusão

Finalmente, andar com Deus é o modo mais eficaz e sublime


de se humanizar e de se obter dignidade humana. Pois não são nossos
recursos, trabalho e inteligência, ou nossas identidades periféricas e
de gueto (ser evangélico, ser negro, ser gay, etc.) que nos “dignificam”,
mas é a graça que nos dignifica e que dá sentido à vida.
De igual modo, o espírito de gratidão e de gratuidade nos
dignifica, à medida que representam a admissão de que fora de Deus
não temos mais que uma mera ilusão de realização, enquanto em Deus
nos realizamos em simplesmente sermos aceitos como seus filhos e
filhas. É na obtenção dessa dignidade em especial que nos capacita
para, e legitima a, luta pela dignidade de nossos irmãos e irmãs de
caminhada na vida, como um processo recebido, gestado e orientado
em e para Deus e sua justiça, vontade e glória.

Referências

GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979.


_______. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1983.

140 Espiritualidade Cristã


Espiritualidade Cristã

Unidade -16
Espiritualidade e Prodigalidade

Introdução
Chegamos à última unidade deste curso. Você perceberá
que a forma de escrita e metodologia nela utilizadas são um
pouco diferentes das demais. Utilizei a forma narrativa, pois
seu ponto de partida e chegada, cuja temática principal é
“espiritualidade e juventude”, é a Parábola do Filho Pródigo.
Um pré-requesito, portanto, é: antes mesmo de ler o conteúdo
da aula, releia e medite sobre Lucas 15.11-32. Dessa forma,
o foco do texto será, num primeiro momento, recontar e
explorar criativamente a história; num segundo momento,
oferecer algumas imagens e percepções interessantes que
ela nos traz em particular e; por fim, como releitura, dar um
recado específico para a juventude atual à luz das implicações
dessa história. Minha expectativa é que você perceba como essa
história entrelaça os temas da juventude e da espiritualidade e
como ela pode nos ajudar a reencantar nosso modo de olhar
para a juventude atual a partir do modo de olhar de Deus.

Objetivos

1. Refletir sobre a relação entre espiritualidade e


juventude tendo como ponto de partida a narrativa da Parábola
do Filho Pródigo.

2. Identificar, a partir de elementos da narrativa e da


atualidade desafios e oportunidades que temos de compreensão
e abordagem à juventude atual.

141
Preâmbulo
Certa vez, um grupo de religiosos – ou de gente que se considerava
bastante justa – viu um de seus mestres acompanhado de uma galera
que eles consideravam ter uma “reputação duvidosa”. E vocês sabem
o quanto gente religiosa costuma se preocupar com reputação. Então,
começaram a fofocar entre eles sobre o absurdo daquela situação.
Fico imaginando a fala deles: – “Onde já se viu, este que se diz um
dos nossos, andando com aqueles pecadores como se fossem bons e
velhos amigos!”. – “Realmente” – disse outro concordando – “como
alguém pode ser considerado ‘justo’ se
tem comunhão com gente injusta, impura,
que vive uma vida perdida e sem rédeas?
É como diz o ditado: diga-me com quem
andas e eu te direi quem és”.
Ouvindo atento àquela conversa,
mas sem responder às acusações ou se
preocupar com os rótulos que recebera só
de aparência, aquele homem, um perito
em contar histórias, resolveu emendar
umas duas ou três parábolas, que falavam
de “perdição” – assunto, aliás, que não saía
da agenda daquele grupo, afinal gente que
se acha justa demais se preocupa tanto
Fonte: Depositphotos
em arbitrar sobre o fato de uma pessoa
ser perdida, que se esquece de espalhar a
boa-nova de ser achado – mas também, voltando às histórias, falavam
de reencontro, perdão e celebração. Uma me chama a atenção em
especial, que gostaria de retratar aqui.

A história recontada...
É a história de um pai que tinha dois filhos. Curiosamente ou
não – já começo observando – a mãe não aparece. Consideremos a
hipótese de que essa mãe pode ter morrido cedo, deixando marido
e filhos. Só uma possibilidade, pode haver outras. O pai então, um
fazendeiro bem-sucedido e rico da região, teve que assumir os dois
papéis, sendo mãe e pai, algo que certamente soaria estranho a

142 Espiritualidade Cristã


qualquer um de seus contemporâneos.
Falando dos filhos. O mais velho era um daqueles tipos
dedicados, trabalhador responsável, fazia tudo direitinho e gostava de
ver tudo nos conformes. Perfeccionista que era, quase nunca faltava
na escola e era o primeiro de sua turma. Cedo mostrou interesse
em ajudar o pai a tocar os negócios da fazenda, mas fez questão de
trabalhar duro para mostrar serviço e comprometimento.
O mais novo era o oposto de seu irmão, o típico “ovelha negra” da
família. Irreverente, extrovertido, criativo – se focava mais em pessoas
que em tarefas – encantado pela música, tinha um “fraco” evidente
por mulheres, nunca fez questão de ser o melhor nos estudos, mas
sempre dava um jeito de tirar a nota necessária pra “passar raspando”.
Ao contrário de seu irmão, nunca demonstrou grande interesse pelos
negócios da família. Seu irmão e empregados mais chegados o viam
como um “bon vivant” (alguém que vive a vida pra valer), “cabeça
de vento”; por vezes era possível ver o mais velho indignado quando
pegava o caçula saindo mais cedo do batente só pra contemplar o cair
da tarde da varanda ao som de boa música, poesia, vinho e diversão
com os amigos até altas horas. Embora reprovasse veementemente o
comportamento desregrado do irmão, em seu íntimo, silenciosamente,
nutria certa inveja da vida que ele levava...
O pai procurava entender e lidar com o jeitão e as aptidões
de ambos, cuidando meio que à distância, tentando possibilitar a
vocação de seus filhos, sem frustrar-lhes a liberdade, mas obviamente
preocupado com o futuro dos dois, especialmente com o do caçula,
que era quem menos dava margem pra intervenção do pai. Certo
dia ele lhe deu um susto. Primeiro, quando fez um inusitado pedido:
queria antecipadamente a parte que lhe cabia na herança que um
dia receberia. O pai, tentando ser generoso e justo ao mesmo tempo,
embora desolado e aflito com o significado daquele ato, o atendeu.
Dividiu a herança em partes iguais entre os dois filhos. Dias depois
vieram o susto e a desolação maiores: repentinamente o filho mais
novo surgiu com a ideia de deixar a casa do pai.
O que efetivamente aconteceu e ele partiu para um país distante.
Enquanto em casa, vivia com a sensação de que estava desperdiçando
a vida, de que havia muito pra ver; quando partiu, foi com um único

143
desejo em mente: aproveitar a vida! E quem o condenaria por isto?
Não é este o imperativo da juventude? Não estava ele se adequando à
sabedoria de Eclesiastes (11.9), que diz: “Jovem, aproveite ao máximo
a juventude...”?
Por que a juventude? Talvez porque seja uma fase em que mais
avulta a pretensão a auto-suficiência do ser humano. Pense em um
jovem adolescente, descobrindo um universo de coisas novas sobre si,
sobre o mundo... Mas pense também em um jovem adulto, entre seus
25-35 anos, sentindo-se dono de sua vida, vivendo como se aquele
vigor fosse durar para sempre, gozando de sua própria produção, como
quem faz tudo acontecer por si mesmo. O que ele poderia querer com
o Criador?
Mas, a dura realidade (ou a boa notícia, exceto para a geração
“Peter Pan” da vida) é que ninguém será jovem para sempre. A
juventude e a primavera da vida são vaidade (passageiras/ transitórias/
passam como um vento), diz o questionador de Eclesiastes. Então o
conselho é: “Aproveite o máximo dessa vida, viva intensamente, siga os
impulsos do teu coração. Mas saiba que não vai passar batido, e você
vai prestar contas ao Criador sobre cada pedacinho do que viveu” (ver
Ec 11.9-10). Vejam que o autor de Eclesiastes não é contra o prazer e
a felicidade. Não é contra aproveitar a vida – afinal, Ele é o inventor
e mantenedor disso tudo, não é? A questão me parece ser a de como
aproveitamos a vida? E sem uma
relação de amor ao Criador e tudo o
que Ele fez, resta perguntar: o que fica
disso tudo que temos vivido?
O problema é que havia (e
sempre há) muito prazer pra se sentir
para possibilidades sempre limitadas
de satisfação. A tragédia do homem,
lembrando o que disse um sábio
padre francês (Michel Quoist), é
que ele é limitado em seus meios e
Michel Quoist ilimitado em seus desejos. Mesmo
sabendo que nada – fora de Deus – pode nos realizar por completo na
vida, nós decidimos nos jogar em busca de mais realização, mas nunca
estamos e nunca estaremos plenamente saciados. E foi isso que o filho
fez: consumiu, aproveitou, curtiu a vida “adoidado”, experimentou os

144 Espiritualidade Cristã


extremos, e, sem se dar conta, torrou toda a grana que tinha. O seu
muito virou bem pouco diante da imensidão de possibilidades e das
escolhas que fez.
Logo veio uma fome que atingiu toda a região onde ele se
encontrava. E ele não havia se preparado pra aquilo. Sem dinheiro,
sem teto, sem abastecimento e sem emprego, ele teve que trabalhar
pesado – coisa que até então não conhecia, pois nunca tinha feito
na casa do pai – tomando conta de porcos. De repente se viu tão
esfomeado que já estava até desejando saborear a iguaria comida pelos
porcos. Mas nem aquilo podia ter. Foi quando se deu conta do absurdo
daquela situação. Resolveu voltar, pedir perdão ao pai, assumir sua
transgressão e esperar pela misericórdia de, pelo menos, poder ser
achado como mais um entre nos empregados da fazenda do pai.
Alguns dias depois, estava o pai sentado na fazenda de sua
casa, exatamente pensando em seu filho, sangrando a dor da distância,
corroído pela saudade, aturdido por imaginar que o filho estava
perdido, ou quem sabe morto. Fechou os olhos por um momento o
cochilou. Acordou com uma revoada de pássaros e a ventania e, na
estrada, para além do portão da fazenda, ainda distante, avistou o
maltrapilho filho caminhando, ou melhor, cambaleando, de volta
pra casa. O coração do velho disparou. Ele não quis esperar, já tinha
esperado demais, e saiu correndo ao encontro do filho e, chegando, o
abraçou e o beijou. O filho, sem entender muito bem o calor daquela
recepção, tentou começar o discurso de retratação que havia preparado.
O pai cobrindo-o de beijos e ele, por sua vez, tentando das explicações!
Sem ouvir o que ele dizia, ainda coberto de euforia, o pai
gritou aos seus empregados e ordenou: – “Venham, tragam roupas e
o vistam. Coloquem o anel da família no seu dedo e calçado em seus
pés. Apanhem o melhor e mais gordo carneiro e o assem. Nós teremos
festa! É tempo de celebrar! Meu filho está aqui – dado como morto,
agora vive! Dado como perdido, agora foi encontrado!”. E foi a maior
festança... O que acontece no Skol Beat não chega nem perto da alegria
que havia ali.
Mas não nos esqueçamos que havia outro filho, que tinha
permanecido em casa. Ele voltava do campo naquele dia, cansado do
trabalho. Se aproximando da casa, percebeu um movimento incomum
na parte dos fundos, música, gente falando e rindo alto. Logo foi
informado que o pai oferecia uma festa em comemoração ao retorno

145
de seu irmão pródigo, a quem dava por totalmente perdido. Quando
se deu conta, já estava revoltado e, é claro, recusou participar da festa.
O pai, atento a tudo, sentindo a ausência do outro filho, foi
atrás dele e tentou conversar. Mas seu primogênito não o ouvia. Só
conseguia sentir mais raiva, até que disse: – “Olha pai, por quantos
anos eu permaneci aqui te servindo, nunca te dando uma dor de
cabeça sequer, e você jamais ofereceu uma festa dessas pra mim e meus
amigos?!”. O pai ficou em silêncio por alguns segundos, demonstrando
tristeza com aquelas palavras. Mas logo, com misericórdia e paciência,
típicas de pai, ele olhou para o filho e disse:
– “Filhinho, você não entende! Você está comigo esse tempo
todo e tudo o que é meu é seu também. Mas esse é um momento único,
maravilhoso, e temos que festejar! Porque seu irmão estava morto, mas
reviveu! Estava perdido, mas foi achado!”. Duvido que ambos tenham
voltado para a festa naquele dia...

Imagens e percepções da história...


Essa história é uma das mais impactantes e que melhor
resumem o espírito do Evangelho, e o espírito de Jesus Cristo: é a
história do amor do Pai nos encontrando onde quer que seja em qual
seja a condição em que nos achemos. E nos abraça com um amor que
não se pode medir, substituir ou comparar!
Algumas imagens ou representações dessa história me chamam
a atenção.
1. A imagem de Jesus, rodeado por gente perdida
Aqui vemos a motivação da história: as pessoas com quem
Jesus andava – as ovelhas perdidas de seu aprisco – e o consequente
escândalo dos fariseus. Ou seja, a razão de ser da missão de Jesus,
era motivo de escândalo para a religião de seus pais. E me pergunto:
será que não continua sendo? Quero dizer, será que em grande parte
a vocação do nazareno, viva pelo Espírito, não continua sendo uma
pedra no sapato para algumas “formas elementares da vida religiosa”
(Durkheim) no presente século?
Mas, conhecendo o Evangelho e o que ele revela sobre nós,
seres humanos, percebemos que o “X” da questão é precisamente o
inverso: não é saber, apontar ou identificar os perdidos da história. A
questão é saber quem não é, ou quem nunca foi, perdido...

146 Espiritualidade Cristã


Então, antes de tudo, percebe-se que esta é uma história para
ninguém em específico e para todo mundo em geral; pois, em alguma
dimensão da vida, todo mundo é pródigo (parafraseando Gerson
Borges). E é aos pródigos, aos maltrapilhos, aos pobres de espírito, aos
pequeninos que o Senhor, paradoxalmente, escolheu convidar para
o banquete do reino. Em outras palavras, o que Jesus estava fazendo
enquanto andava com aquelas pessoas não é em nada incoerente com
o que ele anunciou a vida toda. Tomemos dois exemplos, um de João
e outro de Lucas:
“Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me
conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai; e
dou a minha vida pelas ovelhas. Tenho outras ovelhas que não
são deste aprisco. É necessário que eu as conduza também. Elas
ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor”
(João 10.14-16 – NVI).

“Naquela hora Jesus, exultando no Espírito Santo, disse: “Eu te


louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas
coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos. Sim,
Pai, pois assim foi do teu agrado” (Lc 10.21 – NVI).

2. A imagem dos dois filhos perdidos


Primeiro, o filho mais jovem. Este era o filho evidentemente
perdido. Por muito tempo se ocultou que ele não era o único.
Interpretações mais recentes mostram que o mais velho também
estava perdido a seu modo. O mais novo, porém, toma uma decisão
impulsiva que tem por trás uma nada estranha filosofia: “Há uma só
vida para se viver e não há tempo a perder”.
Baseado em Eclesiastes, capítulo 12, realmente não há. Por isso
ele usa a palavra “antes”. Antes do quê? Antes que chegue o inevitável
momento da vida em que (o que segue é uma paráfrase dos versos 2-7):
... Não tenhamos mais prazer
... A luz da vida perca seu brilho e seja tomada por uma
escuridão sem fim, e nossos olhos já não vejam mais
... Na velhice, nossos corpos já não nos sirvam como antes
... Não tenhamos mais força, e até mesmo aquilo que é
relativamente fraco (como um gafanhoto) seja peso para nós

147
... Que toda aquela potência de antes se transforme em
impotência e fragilidade
... E nossos amigos e família comecem a fazer planos para nosso
funeral, e os “zés” e “marias” velório da vida comecem a chorar pela
nossa partida “desta para melhor” (ou pior, quem sabe?).
Eclesiastes refere-se aqui, portanto, ao tempo em que ainda
somos jovens, temos vida e vigor de sobra, para que vivamos a vida
honrando ao Criador já, sem deixar para amanhã. É bom ressaltar que
a velhice aqui é uma metáfora da decadência, do fim. Alguns têm essa
experiência bem antes da velhice. Um acidente ou uma doença podem
provocar isso. E como teremos vivido? Então, o que há para viver, o que
é possível viver – ou o que o Criador espera que a gente viva – que se
decida viver hoje, de preferência já, porque o
amanhã não existe ainda e nem sabemos se
existirá (para cada um dos viventes). Como
já disse o poeta Renato Russo, “é preciso
amar as pessoas como se não houvesse
amanhã, porque se você parar pra pensar, na
verdade não há”. O que há depois de hoje?
Ora, o amanhã. A pergunta é: para quem?
Dessa forma, o tempo que temos, é o
tempo da oportunidade, é hoje. O problema
é que essa filosofia é traduzida numa
valorização excessiva daquilo que, na vida,
não nos oferece nada de mais profundo e
não nos leva a lugar algum. Então, a questão
Fonte: Depositphotos
não é deixar de aproveitar a vida, e sim como
aproveitar a vida? O que é melhor levar em consideração? O Pregador
é muito claro nesse sentido: leve em alta consideração o Criador, antes
que venham os maus dias e neles não haja mais vida pra se viver.
Por isso, é importantíssima no filho mais jovem a atitude de
reconhecimento, também crucial a todos nós, em que se admite:
“Estou perdido”! Sem isso, não há encontro possível. Quem nunca se
sentiu perdido na vida não pode reconhecer a alegria e a satisfação de
ser encontrado... É preciso honestidade para se identificar com o filho
mais novo, como fez Henri Nouwen (1997, p. 48) quando declarou:
“Sou o filho pródigo toda vez que busco amor incondicional onde não
pode ser encontrado”.

148 Espiritualidade Cristã


Segundo, falando do mais velho, essa é uma alegria que ele não
foi capaz de conhecer. Sua imagem me remete diretamente aqueles
religiosos a quem Jesus se dirige nesta parábola: de austeridade,
segurança, pureza. De quem decidiu ficar na casa do pai, servindo-o,
dando sua vida por isso, fazendo o seu melhor. É um exemplo de que
é possível estar presente e ainda assim distante. De que é possível até
saber muita coisa sobre Deus, sem sequer nunca tê-lo experimentado,
em espírito e em verdade. Esse é o drama dessa geração, segundo
Marcelo Gualberto (2005, p. 232):
A maioria desta geração segue a Jesus de longe; conhece alguma
coisa a respeito de Deus, que está com o coração aberto para o
espiritual, mas não conhece a Deus pessoalmente como Senhor
e Salvador. A relação estabelecida com Deus é principalmente
utilitarista: salvação, sim, mas Salvador, não. Por isso, faz
sentido dizer que se trata de uma geração que também tem na
espiritualidade um fator de fracasso.
Se fosse analisar sinceramente, na atual circunstância de minha
vida, como esta geração, eu diria que estou bem mais próximo do mais
velho que do mais jovem... Deus o sabe.
3. A imagem do pai, perdido de amor por seus filhos
O que mais tem me chamado a atenção, ao reler esta parábola
ultimamente, é que não somente os dois filhos são as figuras
vulneráveis e perdidas da história. O pai também é. Não da maneira
dos filhos, é claro; o pai é “perdido de amor”. É essa imagem de Deus
que a parábola me revela: a imagem de um Deus de amor, que também
se encontra “perdido” em busca de seus filhos perdidos e não descansa
até que, finalmente, os encontre. Um Deus que nos ama com um amor
incondicional, incansável, imponderável, às vezes tolo, insano e nada
justo aos nossos olhos.
Aposto que todos nós já tivemos o sentimento de irmão
mais velho, dizendo: – “Eu estou esse tempo todo aqui, ralando, me
esforçando pra não pisar na bola, e nunca recebi nada ‘extra’ por isso,
enquanto esse meu irmão ferra com tudo, enfia o pé na jaca feio, e
ainda é recebido com festa! Simplesmente não é justo!”. Agora eu
pergunto: quem disse que o amor é justo? Se o amor fosse justo, como
imaginamos que deva ser, o que seria de nós? Como qualquer um de
nós poderia receber e dar amor?

149
É para esse tipo de loucura que Deus está nos chamando, para
amar conforme um tipo de amor que o mundo desconhece, que é motivo
de espanto, escândalo, e até mesmo frustração. É um amor que não força,
não se apossa, agarra ou empurra; é um amor que liberta da obrigação
do amor, para a possibilidade do amor. Possibilidade de abraçar ou de
rejeitar. Por isso amar às vezes dói, por isso nos deixa vulneráveis. Mas
ainda é esse amor que nos identifica como filhos de Deus.
“Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em
ação e em verdade. Assim saberemos que somos da verdade; e
tranqüilizaremos o nosso coração diante dele quando o nosso coração
nos condenar. Porque Deus é maior do que o nosso coração e sabe
todas as coisas” (I Jo 3.18-20 – NVI).
Se nossa consciência nos acusa, se nosso coração nos condena,
como o do pródigo, lembremos: Deus, o Pai de amor, é maior que
nosso coração, e sabe o que é melhor pra mim e pra você...

Recado para a juventude: o Pai quer celebrar!


O cristão não é, pelo menos em tese, um seguidor de leis
e códigos morais, e que tem a Bíblia como sua “regra de fé” ou de
qualquer outra coisa. Até porque,
regra se obedece ou não; ninguém
se debruça sobre regras, faz esforço
de crítica e discernimento, busca
iluminação através delas ou as
trata com reverência. Não. O
cristão vive pela fé, sustentado pela
e na graça de Deus e em busca de
discernimento mediante a escuta:
Fonte: Depositphotos
do clamor das necessidades de seu
contexto imediato e da voz do Espírito. No que diz respeito à juventude,
precisamos nos arrepender e reconhecer que, como igreja, temos sido
negligentes tanto em nossa tarefa de discernimento e compreensão
– quem sabe porque nos aferramos demais às “regras”, velhas ou
novas – como de acolhimento de suas demandas. Pelo contrário, nos
acomodamos cegamente com manutenção, repetição e preservação,
evitando a todo custo riscos de qualquer natureza.

150 Espiritualidade Cristã


Subestimamos nossa juventude, seja quando a rotulamos e
marginalizamos como “perdida”, “rebelde” ou “desinteressada”, seja
quando abraçamos a causa de arrebanhá-la oferecendo, numa versão
subcultural da “sociedade do espetáculo”, menos alimento e mais
entretenimento. Não é à toa que muitos – refiro-me aos que não se
encaixam no esquema “pão, circo e salvação” – sintam arrepios só
de ouvir falar a palavra “Igreja”, ou quando se dão conta de que tem
alguém querendo “pregar para eles”. Parafraseando José Comblin,
essas ovelhas perdidas do aprisco (da igreja, não necessariamente de
Deus) não se mantêm longe dela por razões de distância ou falta de
comunicação – até porque, muitas igrejas têm feito “direitinho” a lição
de casa de comunicação na era cibernética; se afastam simplesmente
porque preferem desse jeito, porque sabem que a igreja tem feito, há
um bom tempo, um grande esforço de frustração de suas aspirações
à liberdade, salvo exceções (COMBLIN, 1996, p. 78). Com medo dos
riscos da (vivência da e teologia sobre) liberdade, esquecemos quase
completamente de seu lugar fundamental no evangelho como uma
vocação.
Tem faltado tanto aos jovens “de dentro” do aprisco, como aos
alheios à igreja, gente que comunique mais, com intencionalidade e
sem ficar “pisando em ovos”, a boa notícia de que o Pai não é contra
a vida, contra a festa ou a se aproveitar o dia. Pelo contrário, o Pai
quer ter a chance de poder celebrar a vida conosco como convidado
de honra, sem enchê-la de mais peso, castigo ou obrigações, mas
oferecendo uma nova noção de compromisso, que tem a ver com
vida e não com escravidão. Falta gente com a revelação encarnada e
presente para esses jovens de um Deus gracioso, que os convida para
uma caminhada de alegria e liberdade no espaço largo de sua casa, que
mais que um lugar, é uma condição de existência e relacionamento na
qual possam entregar seus corpos, muitas vezes marcados e feridos
por nossas escolhas e pela dureza de suas curtas vidas, para serem por
Ele sarados e restaurados integralmente. Como lembra Nouwen (1997,
p. 123), “a comemoração faz parte do Reino de Deus. Deus não só
oferece perdão, reconciliação e cura, como deseja que aqueles a quem
esses dons são conferidos o recebam como uma fonte de alegria”.
Que possamos anunciar para a juventude de nosso tempo a boa

151
notícia de que o Pai quer celebrar e comemorar a vida com eles/as, e
que o Pai nos auxilie e impulsione a abraçar nossa vocação como pais
e mães de filhos biológicos, adotivos ou na fé. Pessoas a quem Deus
ama, filhos a quem Ele nos dá o privilégio de co-amar-gerar.

Para aprofundar...
A volta do filho pródigo, de Henri Nouwen (1997).
A espiritualidade pode ser vista, nesta obra prima de Henri
Nouwen, baseada na parábola de Lucas e na obra de arte do pintor
Rembrandt, que levam o mesmo nome, como uma constante busca
de reconciliação do Divino com o humano; como resultado de um
retorno para casa, para os braços ternos do Pai. O Pai, na visão do
autor, não é agressivo, nem opressor ou arbitrário, mas compassivo
e solidário com a forma humana de ser, tendo paciência paterna de
esperar pelo retorno do filho pra casa, uma espera semelhante a do
horizonte pelo pôr-do-sol todas as tardes; seja o que for, aconteça o
que acontecer, ele estará lá, no mesmo “lugar” de sempre, esperando
ansiosamente pelo retorno do amado. Enquanto houver sopro de vida,
haverá possibilidade para o arrependimento.

Referências

COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de


libertação. São Paulo: Paulus, 1996.
________. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998.
GUALBERTO, Marcelo. Juventude evangélica: religiosa no discurso,
mas incrédula na prática. In: BOMILCAR, Nelson (Org.). O melhor da
espiritualidade brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
NOUWEN, Henri. A volta do filho pródigo. São Paulo: Paulinas, 1997.

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