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1.
a lareira e as mulheres,
as mais velhas,
do coração.
3
2.
de veludo perdendo-se
conquistando-a.
4
3.
na gravidade de um centro
desenhado na transparência
do seu peso:
o olhar.
5
4.
e envelhece.
6
5.
faz com o pão – ou no fabrico do vidro. Mas sempre de forma quase apagada,
onde a luz raro entra. Porque, quando entra, é para mostrar a fulguração do que
era indizível, tão escondido andava de nós ou de si próprio. Assim, as coisas mais
Por isso, quando se impõem diante de nós, são como um estranho. Irredutíveis,
são um olhar de outro modo – aquela mínima dobra de sombra que nos habita.
7
6.
Vidro e fotografia
assemelham-se. A textura
como a nervura
8
7.
ou mesmo o coração.
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8.
10
9.
11
10.
resguardado na respiração
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11.
silenciosa na penumbra
tranquila, um bafo
o silêncio.
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12.
as paredes, os utensílios
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13.
um lugar de morte.
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14.
A minúcia posta nos objetos era em demasia: febril, dilacerante. Abordava-os nas
Tão-só fixar o seu perfil, a sua vaga anatomia. É claro que havia algo de
demencial nesta usura. Seria que o simples facto de os tocar lhe restituía o fulgor
de uma posse prestes a perder-se? Se assim fosse, era da ordem do desejo que
se tratava. Mas se, pelo contrário, fosse a busca do lugar certo, daquele em cujo
conhecimento que se tratava. Aí onde luz, mão, sombra são o outro nome do
olhar.
16
15.
Correm rios pelo olhar. As suas águas são mansas – ainda que, por vezes, se
olhar tão límpido. E mesmo quando se embacia, não deixa que outros o
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16.
a qualquer porto
ou das amarras
de madeira envernizada
indício de águas
as migratórias.
18
17.
da madeira ao leme,
19
18.
do vidro, a memória.
20
19.
de algumas folhas,
ou apenas a sombra
e o incendiou outrora?
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20.
iluminavam-se. Jogavam cartas e bebiam vinho. Mas, isso era dantes. Agora,
22
21.
do olhar.
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22.
24
23.
25
24.
percorrido.
26
25.
de águas desmedidas,
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26.
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invocando-o. É tempo de semear, de sulcar
29
27.
do espírito. É esconso,
e desconhece se as aves
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que vão sulcando a terra. Eis uma razão de peso
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28.
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33
O desenho da voz
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1.
da transparência, aí
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2.
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3.
não as palavras
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4.
de sangue, um estremecimento
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5.
se persegue. E, perseguindo-se,
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6.
do tempo, encontra-se
40
7.
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8.
42
9.
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10.
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11.
a água em demasia,
movimentos de agonia,
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12.
dentro, as palavras
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13.
a sombra da cegueira?
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14.
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15.
apenas opacidade,
um vento macio,
rumor, um silêncio
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16.
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17.
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18.
52
19.
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20.
a memória, os recantos
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21.
desconhecemos se da mulher
é o limite da morte.
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22.
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23.
marcou a página.
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24.
estremunhado.
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25.
59
26.
perturba-nos no limite
da fala. Prepara-nos.
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27.
é simples, quase
um sussurro. Os olhos
um dia. Da água,
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28.
apenas.
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29.
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e, silenciosos, indicam o limite dos seus contornos,
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30.
de sufocar a respiração
para o poema.
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31.
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32.
em espera. Até que uma onda qualquer lhe seja luz plena.
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33.
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34.
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35.
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como quando chega um email e não se consegue decifrar
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36.
também.
72
37.
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38.
recolheu-se em silêncio,
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Rumor de sulcos
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1.
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2.
Uma voz chama – e desconheço o apelo. Sei, apenas, que a voz chama. Como
quem diz: – «Era uma vez». Mas, ninguém pode narrar uma história para sempre
perdida. Ninguém pode dizer agora: – «Era uma vez». São palavras incapazes de
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3.
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4
presa. Indecifrável
do crer. Se possível.
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5.
81
6.
a que se obrigam,
implicado. Lá fora,
a batalha aguarda,
estudo, olhar
olhando-se. Perdição?
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7.
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8.
Concentra os músculos, o ar
é apenas suspensão
ilumina-o, então,
impossível de configurar.
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9.
de se desembaciar? De Deus,
de Deus? E a luz,
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10.
sem nome?
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11.
aturdida revela-se
as portadas. Hesitantes,
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12.
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13.
água sendo.
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14.
Junto à campa, a campa – eis o desígnio. Pode-se discutir o perfil desse desígnio.
Mas, isso não interessa agora. Junto à campa, a campa. Rasa. Porque a rasura
da campa é, apenas, um estar rés à terra. Como quem diz: – «A terra é lugar».
Nada mais. Sol, vento, chuva são o que nos habita. Também o mar, os campos.
chuva. E da erosão dos sentidos. Do fulgor dos dedos, agora adormecidos. Tão
adormecidos quanto eles. Por isso, ave alguma diz o seu olhar. E, as que o dizem,
ficam paradas, suspensas no movimento das asas. Ei-la – a morte que chega
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15.
no seu calor brando. Que, uma vez o nó desatado, não é bem calor,
antes renúncia.
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16.
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17.
rasga.
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18.
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19.
– «E se acaso morresse
em novembro»? Íntimo,
suspende-se no ar o cheiro
quando os camponeses
se abeiram da lareira,
a morte». E descobrem-se.
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20.
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21.
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22.
Na terra seca, a poeira sobe, abstrata. Tão abstrata como o gesto de fechar uma
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23.
99
24.
100
na paisagem, mesmo os animais,
mesmo os mortos
um dia. E aguardam
a primavera, o rasgar
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uma uva, o seu fulgor. Que é deles,
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25.
a herança, o peso
na ronda do escuro,
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e o coração. E eles não vêem nem sentem. Possuídos,
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da revelação. E da morte que os aconchega, como outrora
as mães, as avós.
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26.
Está nua, ou quase, de costas viradas para a paisagem. Não é, pois, o exterior
triste, desprevenido. Está nua entre dois espelhos. No leito, uma mensagem
aberta, abandonada. Diante de si, no mais fundo de si, que a pintura não
consegue revelar, um espelho remete para outro espelho, um braço remete para
outro braço. E o rosto declina-se numa espera, que o diadema no cabelo acentua.
Há algo que dialoga, contudo. O lenço no cabelo e as nuvens. O tecido que lhe
esconde o sexo e o leito. Como quem diz: – «É algo de fora que condiciona algo
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27.
Em ti, dentro de ti, no mais fundo de ti, és nascimento e morte. Eis o peso que te é
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Regresso a casa
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I
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1.
da pedra.
111
2.
112
3.
e da borracha. O rumor
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4.
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5.
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II
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1.
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2.
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3.
119
4.
120
5.
121
6.
da casa. A casa é frágil. Nas suas margens, a palavra arrefece. Também a geada
que a manhã atordoa e os passos calcam. Por isso, o cão tenta inaugurar
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7.
ferindo o sangue.
123
8.
breve», digo. O cão, todavia, nada sabe disso. E esconde-se num canto
do portão, ocultando-se
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9.
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10.
126
11.
127
12.
que há-de morrer sem eu morrer com ele. Um que há-de vir no ardor
ele não se lembra, porque lembrar-se não é modo de ser cão. Daí o abandono
da pergunta, tão abandonada como hei-de ficar quando este cão morrer,
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13.
129
14.
de sangue. Porque o sangue fala mais alto, tão alto quanto a vertigem
que nos parece alheio. Mas, nada nos é alheio. Nem mesmo a morte. Ou o cão,
o meu.
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15.
e de mim com o cão, aturdido que fico sempre por esta névoa
a descer. Nada nos perturba. Nem mesmo o outro. A lua. O ladrar dos cães.
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16.
do ano não ser o último dia do ano, que é coisa que não existe
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17.
Sentado no alpendre por entre este sol de inverno, limpa-se a arma, o cão
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18.
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19.
135
20.
um arrepio.
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21.
o cão dorme.
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22.
o cão ao lado.
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23.
muda de sítio.
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24.
o cão olha-me.
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25.
prestes a perder-se.
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26.
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27.
uma promessa.
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28.
à boca.
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29.
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30.
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31.
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32.
absoluto.
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33.
na evidência.
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34.
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a erva húmida cheirando a outro animal
como a melancolia,
se é que o há.
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35.
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36.
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37.
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38.
de labuta.
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39.
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III
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1.
até à morte, estreita porta? Ou a porta estreita é a dos trilhos que nos ensarilham
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e húmida. Deixam-se. E, nesse abandono, testemunham a sua morte
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2.
mesmo de passagem.
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3.
161
4.
na prece tardia dos mestres. Não assim, os cães, que desconhecem o olhar
no regresso a casa.
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5.
gaivota, areia,
163
e olhei para dentro da culpa, onde eu ia crescendo
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6.
da música, da chuva
na tarde, iluminando
no cansaço. A música,
se é que o há,
165
7.
166
8.
olham-me. E o olhar,
ternura é. Vindo,
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9.
168
IV
Do leitor
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1.
170
2.
no regaço, filho,
171
3.
um bicho, talvez,
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4.
O poema é um poema,
um bicho. E o leitor
envolve-o de memórias
é indicador.
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5.
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6.
175
7.
a morte aguarda.
176
8.
177
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No silêncio, a poeira
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1.
180
2.
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3.
182
4.
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5.
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6.
sou-me bicho». Mesmo quando passavam por entre a luz das rodas
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7.
o estranho.
186
8.
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9.
e arde.
188
10.
também.
189
11.
190
12.
da pedra, a memória
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13.
ou vinho abrindo-se
no silêncio? No sangue,
ainda adormecido,
192
14.
e a palavra névoa?
193
15.
e, dentro do silêncio,
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16.
195
17.
196
18.
197
19.
198
20.
199
21.
200
22.
tão antiga como poço, raiz. Que não são espelhos. O espelho
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o regresso a casa, onde o poema é luz, seja meio-dia
202
23.
no poema.
203
24.
204
25.
205
26.
206
27.
nelas. Nem os bichos. Nem algum poema inacabado, como todos os poemas o
são
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28.
208
29.
209
30.
fruteiras e vides são marcos para os bichos e uma que outra sombra,
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31.
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32.
que o desenhou
ao calor, à atenção
da casa, cobrindo-a
acolhimento.
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33.
213
34.
que é sopro.
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35.
215
36.
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o pão. Os livros, esses, são avessos à lâmina,
de mulher.
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37.
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38.
como uma rosa». Fechou o livro. Era um livro antigo, espécie de missal
bordado com iluminuras, onde a palavra era definitiva. Ser palavra ronda o
abismo,
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39.
memória de pobreza.
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40.
221
41.
um acaso.
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42.
223
43.
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Em sombra de sombra
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1.
[a propósito de Nossa Senhora com o Menino e dois anjos, de Álvaro Pires de Évora, segunda
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2.
228
3.
229
4.
230
5.
231
6.
232
7.
233
8.
234
9.
circunspectas no ofício
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10.
atravessou os portões
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11.
237
em si. Era o ano dois. E o cinzento esverdeado
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12.
a abrir. Escreve-se
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13.
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14.
o cavaleiro – inconsequente.
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15.
breve faísca.
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16.
os bichos. Morrem
vizinhas. Na primavera
a sua chegada
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244
Nota
integram, foram escritos entre 1985 e 2022. Corrigidos agora, uma vez mais,
Por outro lado, a estes poemas apenas se juntam, enquanto corpo poético, os de
Aí a sombra: o dizer (ed. Caminho, Lisboa, 1990), escritos antes de 1985. E mais
nenhuns.
245
Índice
1. Matéria do olhar
2. O desenho da voz
3. Rumor de sulcos
4. Regresso a casa
5. No silêncio, a poeira
6. Em sombra de sombra
7. Nota
246
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