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SALCEDO
1
PRINCENTHAL. "Silence seen". In: PRINCENTHAL; BASUALDO; HUYSSEN, 2000. p. 40.
2
A artista fala sobre esse e outros trabalhos em conversa com Elaine Scarry, moderada por Mary Schneider, à
ocasião da abertura da exposição "Doris Salcedo: The Materiality of Mourning": Lecture – Doris Salcedo
Materiality of Mourning, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yFe5oRC4Dms. Acesso em 25 de
julho de 2018.
proposital, uma negação intencional da verdade. 3 Salcedo procura manter viva a memória
coletiva sobre a qual pouco ou quase nada se falava até aquele momento e tornar público o
luto pelos "deslembrados".
Figura 1 – Noviembre 6 y 7
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/184788390937875238/
Como uma arqueóloga que busca por objetos esquecidos, perdidos sob camadas de
terra, Salcedo escava em busca de lembranças adormecidas – em alguns casos
propositalmente abandonadas – e mantém viva a memória suprimida dos colombianos nesse
trabalho que pode (e deve) ser considerado como um ato de luto, de homenagem e de
celebração daqueles que perderam suas vidas. Ela considera imoral esquecer o massacre e
acredita que nós, os vivos, temos responsabilidade não só com o futuro, mas também com o
passado, e cabe à arte resgatar essas memórias abandonadas e recontar o episódio violento
3
Judith Butler discorre sobre Disremember, trabalho de Doris Salcedo (2014), e sobre o termo empregado pela
artista no título. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9o9_ZP2Z7aI&feature=youtu.be. Acesso
em 15 de novembro de 2018.
a fim de retomar a dignidade perdida. 4 Salcedo parece nos dizer: "Estas vidas também devem
ser lembradas e enlutadas." Seu posicionamento está alinhado com as palavras de Jacques Le
Goff sobre a relação entre passado, presente e futuro e de como a memória está relacionada
com a construção de uma sociedade democrática. Segundo ele, "a memória, na qual cresce a
história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao
futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para
a servidão dos homens." 5 Para que sejam livres, senhores de suas histórias, os sujeitos devem
problematizar o passado, articulá-lo com o presente e compreender os contextos em que
estão inseridos, sem a incumbência de somente descrevê-lo, para que, então, seja possível
vislumbrar o futuro. Assim, a memória é um poderoso instrumento na construção da
identidade individual e coletiva sendo, portanto, um eficiente objeto de poder: aquele que
organiza, registra, edita e conta a "história oficial" domina os sujeitos e as sociedades e ainda
determina quais vidas são passíveis ou não de luto.
Logo, a ação de Doris Salcedo no Palácio da Justiça é uma importante manifestação de
resistência frente ao esquecimento, àqueles que não desejam recontar tal episódio, 6 às vozes
oficiais. É uma resistência à violência sofrida pelos mais diversos setores da sociedade
colombiana como um evento diário. É preciso fazer o pequeno (porém efetivo) gesto
individual de se lembrar. Lembrar para resistir, lembrar para se afirmar.
No dia 11 de outubro de 2016, 14 anos depois, a artista retorna à Plaza de Bolívar em
Bogotá – onde está situado o Palácio da Justiça –, importante espaço de manifestações e de
mobilizações políticas da capital colombiana. Salcedo foi impulsionada pela incredulidade
diante do resultado do plebiscito ocorrido poucos dias antes (no dia 3 de outubro) em que foi
votado o acordo de paz entre o governo e o grupo guerrilheiro FARC (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia), prevalecendo o "não" por uma pequena diferença: dos 37% da
população que compareceram às urnas, 50,2% rejeitaram o acordo de paz, contra 49,8% que
votaram favoráveis. Diante do resultado, a artista escreve com cinzas em pedaços de tecido
4
Idem.
5
LE GOFF, 2003. p. 471.
6
A Comissão da Verdade colombiana publicou, somente em 2009 – 24 anos após o confronto –, um relatório
sobre o caso.
branco com 2,5 metros de largura 1.900 nomes de vítimas da violência naquele país. Os
tecidos foram costurados entre si e, ao final de 12 horas, ocuparam o chão da praça.
Figura 2 – Sumando Ausencias
Fonte: http://www.semana.com/amp/criticas-a-la-obra-de-doris-salcedo-sumando-
ausencias/498873
Foto: Sara Malagón
7
“Com o suor do teu rosto comerás teu pão, até que te tornes ao solo. Pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao
pó tornarás.” Gênesis 3, 19. E também: “Tudo caminha para um mesmo lugar; tudo vem do pó e tudo volta ao
pó.” Eclesiastes 3, 20.
perpetuação da memória. De acordo com Rosani Ketzer Umbach, no antigo Egito a escrita era
vista como "o meio mais eficiente contra a segunda morte, a morte social, o esquecimento". 8
Doris Salcedo retoma essa prática com intuito de fazer com que esses sujeitos sejam
lembrados e que se façam presentes na praça e na história colombiana. Grafar seus nomes é
resistir ao esquecimento, mas também tomar para si e para aqueles que participaram da ação,
ainda que de maneira simbólica, o poder de contar uma parte da história daquele país –
mesmo que dolorosa – e retira das forças de poder a voz única que se encarrega de contar a
história oficial. Mais uma vez, Le Goff fala sobre a importância e a urgência de se dominar e
contar o próprio passado:
[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das
forças socias pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento
é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os
silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da
memória coletiva (LE GOFF. Op. cit.. p. 422).
Assim, aquilo que se opta por esquecer e também por se lembrar, ou seja, editar o
passado, nos diz, portanto, a respeito daquele que escreve e nos conta os fatos e muito pouco
sobre aqueles que, de fato, viveram, sobreviveram e morreram. As reais testemunhas não têm
voz na história oficial.
Nas duas ações apresentadas neste breve artigo, e como observamos no conjunto de
sua obra, Salcedo não diferencia os mortos: são todos vítimas da mesma violência que assola
políticos liberais e conservadores, guerrilheiros e sociedade civil. A dor e o sofrimento da
perda que afligem parentes e conhecidos das vítimas são iguais, a morte e o luto são iguais
para todos. A artista não problematiza ou propõe soluções para o conflito armado, não se
posiciona politicamente ao lado dos liberais ou dos conservadores. Ainda assim, seu trabalho
é extremamente político, não no sentido partidário, mas no sentido de questionar os
contextos sociais vivos e de instigar as comunidade a refletir sobre eles. Para ela, cabe à arte
também a função de lidar com as variáveis que atuam, modificam e marcam as sociedades.
"Estando em um país violento, você não pode agir como se a violência não estivesse
8
UMBACH. "Violência, memórias da repressão e escrita". In: SELIGMAN-SILVA; GINZBURG; HARDMAN. 2012. p.
217.
acontecendo", Salcedo diz em depoimento para o Museu de Arte Contemporânea de
Chicago. 9 A violência há muito tempo está posta e faz-se necessário e urgente falar sobre ela.
Ao tratá-la como tema e não como contexto, a artista, longe de "banalizar o mal", estabelece
um outro meio para refletirmos, ainda que sem propor soluções, a respeito do contexto
colombiano. Judith Butler encontra na arte esse espaço de reflexão sobre a violência:
[...] embora nem a imagem nem a poesia possam libertar ninguém da prisão,
nem interromper um bombardeio, nem, de maneira nenhuma, reverter o
curso da guerra, podem, contudo, oferecer as condições necessárias para
libertar-se da aceitação cotidiana da guerra e para provocar um horror e uma
indignação mais generalizados, que apoiem e estimulem o clamor por justiça
e pelo fim da violência (BUTLER, 2015. p. 27).
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Obras escolhidas; v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
CORNELSEN, Elcio Loureiro; VIEIRA, Elisa Maria Amorim; SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.).
Imagem e memória. Belo Horizonte: Rona Editora: FALE/UFMG, 2012.
9
Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xdt2vZ9YpwE&list=LLl1hska-
8PN5gWn6gCzMU7A. Acesso em 25 de julho de 2018.
10
BENJAMIN, 1994. p. 224.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.