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108 A ESCRITA DE ORFEU O RUMOU IAMIU-M I HM IH I 109
E se compreende que para "detectar boatos" no meio de vozes N a t r a d i ç ã o grega, o K u m o i vlvli pui <i «li HN puluvius
i m p e r c e p t í v e i s , entre as palavras fluentes, os voos das palavras, as agourentas ta/.iam > < < < i i >| rnciilni (|UHIM N vo'i
n a r r a ç õ e s sem r u m o , o etno-historiador, intimado pelo e s p í r i t o c r í t i c o , reconhecida dos deuses m u r m u i i i v i In mor terrível, lUfgll leio
recorre a processos m u i t o p r ó x i m o s da i n v e s t i g a ç ã o p o l i c i a l . Aquela ao burburinho aonoro dai crialuraa humanai > i lho i loqu i • icdon
mesma que, segundo se d i z , os habitantes de Atenas aplicaram outrora encantadores, criadas sempre la gari las i cochicho* Itiali \ oli tf quandi i
para encurralar o rumor. F o i n o ano de 413 antes de nossa era, e o os rostos se d e s v i a m .
poderio m i l i t a r do i m p é r i o ateniense ia conhecer o desastre da Sicília: N o lopo d a s muralhas de T r ó i a , u m r u í d o de M > / C - . IVIumn < os
a frota d e s t r u í d a , os generais decapitados, o e x é r c i t o d i z i m a d o e os velhos sentam se no Conselho ilos A n c i ã o s . Uma asaembléla • !< I
sobreviventes acorrentados na Latomias. F o i u m barbeiro, conta Plu- faladores: " P a r e c i a m cigarras que nos bosques, |Mnisadas numa iuv<>
tarco, o p r i m e i r o a saber no Pireu, de u m escravo, u m dos que haviam re, e m i t e m sua v o z encantadora." Eles v ê e m Helena subii e m sua
escapado. Sem demora, o barbeiro saiu correndo em d i r e ç ã o à cidade, d i r e ç ã o , e, e m v o z baixa, trocam palavras aladas: " E l a tem marcada
espalhando a n o t í c i a por toda parte. P â n i c o . Os habitantes reuniram-se mente o ar das deusas imortais quando e s t á diante de n ó s . ' " Murmúrios1
a n ó n i m o " . C ó l e r a do p o v o ; tratava-se de u m i n d i v í d u o imaginoso, ele (helêptolis), O v o o cerrado de tantas imagens surgiu com É s q u i l o
perturbara a cidade. Essa pessoa foi interrogada e torturada a t é o quando ele o u v i u o que G ó r g i a s , em seu Elogio de Helena, chama de
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m o m e n t o de chegar a n o t í c i a o f i c i a l de que a guerra estava realmente " r u m o r de u m n o m e " c o m sua m e m ó r i a viva de guerras e de grandes
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perdida. E o povo desarvorado retirou-se gemendo, enquanto o bar- infortúnios.
beiro, preso à roda de torturar, ficou sozinho meditando sobre a mania Os a n c i ã o s que falavam c o m palavras encobertas eram a v o z da
daqueles que querem a qualquer p r e ç o detectar boatos. cidade quando ela sonhava c o m a partida de Helena mas proclamava
A o menos o barbeiro de Atenas, por sua desventura, delineou uma a p r e s e n ç a de u m deus e m face da beleza perfeita. E nos m u r m ú r i o s
que s u b i a m da muralha e caminhavam ao longo das portas, era, na
silhueta v i v a do rumor: ele se identificara com seu m o v i m e n t o , e sua
verdade, a g l ó r i a de Helena que se dizia e se escutava. Quando houve
o r i g e m lhe era radicalmente cega. Havia a v o z de u m escravo cuja
c o n f r o n t a ç ã o entre Ulisses e Ajax para a entrega das armas de Aquiles
i n s i g n i f i c â n c i a era r e a l ç a d a por um rosto desconhecido e sem nome.
ao m e l h o r dos gregos, estes despacharam e s p i õ e s c o m a m i s s ã o de
U m anonimato que representava a sombra antes de o boato passar a ser
escutar o que d i z i a m os troianos. E , conta a Pequena Ilíada, eles
um r u m o r v i v o , levado pela marcha que aumenta suas f o r ç a s e o p õ e
surpreenderam uma conversa entre as m o ç a s sobre os m é r i t o s respec-
l o g o fora do alcance do i n q u i r i d o r e de seu v ã o desejo de o r i g e m . C o m
t i v o s dos gregos: uma delas., inspirada por Atena, fazia de Ulisses u m
efeito, 0 barbeiro sabia t ã o bem quanto o povo de Atenas: " o R u m o r
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e l o g i o t ã o convincente que os gregos sem demora o declararam ven-
também é u m d e u s " . C o m u m altar, u m culto, s a c r i f í c i o s , e no m e i o 8
cedor. H á nisso uma e s p é c i e de consulta de o p i n i ã o dos outros, mas
d» mu pequeno p a n t e ã o de divindades cujos nomes constituem a lista
onde s ã o privilegiadas as vozes frescas das m o ç a s , faladoras incons-
• l< Brandes ou pequenos f e n ó m e n o s p s i c o l ó g i c o s : o T e m o r , o Esqueci-
cientes e v e r í d i c a s .
mento, <> Pudor ou a Querela. E o r u m e i assim reconhecido torna
O d u p l o r u m o r troiano, enunciado n u m poema é p i c o , conduz aos
. \ hl. ntemente insignificante o detectador de boatos. Evidentemente,
caminhos seguidos em suas palavras pelo poeta, pelo aedo h o m é r i c o ,
i l< i M | M que para a l é m da linha d i v i s ó r i a entre o verdadeiro e o falso,
quando ele punha na boca de seus h e r ó i s o elogio de sua p r ó p r i a palavra
0 | nióaofoa de ontem, tanto quanto os s o c i ó l o g o s de hoje, se interro-
m e m o r á v e l . Era Aquiles dizendo a E n é i a s : "Conhecemos a o r i g e m um
guem sobre i > | H . < I < t e x t r a o r d i n á r i o dele para fazer nascer a c r e n ç a , para 9
do o u t r o ; basta-nos o u v i r as h i s t ó r i a s famosas dos m o r t a i s . " O reno-
m o b i l i z a r a o p i n i ã o e as m u l t i d õ e s , para dar t a m b é m à cidade m ú l t i p l a
me, o nome m e m o r á v e l , a g l o r i f i c a ç ã o perene s ã o nutridos e crescem
sua identidade secreta e muda em uma s ó e mesma voz.
g r a ç a s ao r u m o r da epopeia. Da mesma forma que P e n é l o p e : " O nome
O RUMOR IAMIHSI I t/M Ml
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r u m o r " . É u m dos aedos da Odisseia, o mais famoso, segundo se d i z , uma asa. M a i s ainda: os rumores o r a r i i f u c i r m ii < I<>MII>II<>
mas, c o m certeza, o mais parecido c o m o poeta da corte, constrangido a u t ó n o m o , se n ã o seu p r ó p r i o santuário. Em l . bi ha\ li Apolo
a cantar para os senhores do dia e a pedido do a u d i t ó r i o . U m a v o z d ó c i l chamado "das C i n z a s " porque o altar do deus ol.nuli.i M ,I U ,
canta a morte de Ulisses, a v i a g e m i m p o s s í v e l , diante dos pretendentes c r e m a ç ã o das v í t i m a s dos animais, l i paia . •. . .1. u-., H i m m i i . ...
no banquete, mas t a m b é m o retorno do h e r ó i quando a mesa e as lajes duas formas de a d i v i n h a ç ã o se correspondiam uma pi I n • m/J . OUtfl
11 pela v o z . Não a excelsa palavra do Senhor di D. I I . . . n i . i vlbracói
sonoras cobrem-se do sangue dos participantes dos j a n t a r e s . E o aedo
da v o z , os sons fugitivos, as palavras levada-. |» I , . \ . m . i aqm l >. qui-
Phêmios traz e m seu nome, c o m o u m p r e s s á g i o seguro, a p o t ê n c i a da
se escutavam perto do altar tebano de A p o l o r l i a m a i l . . .1. i m / a s
v o z , una e m ú l t i p l a , que d á o renome e a g l ó r i a . U m a g l ó r i a que os
Tantas vozes dispersas que s ã o convocadas t rei lai Igualmenti no
gregos chamavam de klêos, " o r u m o r que c o r r e " , uma palavra seman-
s a n t u á r i o das vozes-presságios, diante da cidade dc Bamlma fon da
ticamente v i z i n h a da que significa " o chamamento, o nome proclama-
m u r a l h a s . E para consultar esse o r á c u l o tios rumon . -< W düvidl <
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u m antro o c o , em ondas sempre renovadas para formar um enxame que como m e m ó r i a c o m u m , que Platão encontra "a poténcii admirável do
sem demora adeja por cima das flores p r i m a v e r i s " . Ossa, a enviada de r u m o r (pheme), quando n i n g u é m se a r r i s c a r i a s e q u e r I respirai de
Zeus, estava l á , flamejando e compelindo-os a marchar a t é o m o m e n t o 2
maneira diferente da que a l e i q u e r . " ' E somente p e r m i t e m falai
dele imagens que evocam sua natureza quase meteorológica na
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em que todos se encontravam r e u n i d o s " .
R u m o r que reunia e procedia em s i l ê n c i o ou a meia-voz, enquanto e d u c a ç ã o dos j o v e n s postos a pastar n u m prado que d e v e s e r s e m
no ú l t i m o canto da Odisseia ele se tornava tagarela, corria a cidade defeitos, o r u m o r é a brisa que sopra de r e g i õ e s salubres, é o e f l ú v i o ,
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"contando o fim h o r r í v e l e a morte dos pretendentes". L o g o outra o h á l i t o da terra e das á g u a s , e penetra nos seres v i v o s pelos o l h o s
m u l t i d ã o subia para o p a l á c i o de Ulisses, o sangue bradava por vingan e pelos o u v i d o s . C o m o uma v o z p ú b l i c a que seria o e l e m e n t o mais
ç a . C o m a figura monstruosa de Fama no horizonte, o R u m o r da s u t i l do ar a m b i e n t e , e d o q u a l o essencial e s t á no quase s i l ê n c i o
Eneida: " T e m e r o s o ao nascer, ele se eleva depressa aos ares...; seus d a q u i l o que P l a t ã o chama de " u m a palavra m u i t o p e q u e n a " . Em
p é s correm no c h ã o , e sua c a b e ç a se oculta no m e i o das nuvens...". cada pessoa ele é uma l e i n ã o escrita e que n ã o t e m necessidade
Durante o dia ele fica em o b s e r v a ç ã o , postado na Cumieira das casas; a l g u m a de falar: quer se trate de n ã o ser mesmo a f l o r a d o por u m
à noite levanta seu voo entre o c é u e a terra, estridente na sombra. "Sua desejo incestuoso porque todo m u n d o aponta u m ato destes c o m o
alegria, e n t ã o , era encher o e s p í r i t o dos povos de m i l n o t í c i a s nas quais t o t a l m e n t e í m p i o , o d i o s o à d i v i n d a d e , infame entre os infames; o u
ele anunciava igualmente o que tinha acontecido e o que n ã o t i n h a . " quer se trate, no m o d o p o s i t i v o , de ter em vista no casamento o
Sua natureza monstruosa resplandecia na v i s ã o de u m corpo cheio de aspecto que serve à cidade e n ã o aquele que tem p r e f e r ê n c i a s
o l h i n h o s , inteiramente recoberto de l í n g u a s e de penas, e r i ç a d o de í n t i m a s . É no r u m o r , e somente nele, que se aloja o segredo da
orelhas e de bocas: " E l e tem tantos olhos penetrantes quantas penas u n a n i m i d a d e profunda, das c r e n ç a s mudas partilhadas e m c o m u m ,
sobre seu corpo e, sob as penas - ah! p r o d í g i o s ! - outras tantas l í n g u a s da a d e s ã o i n t e i r a de uma cidade a p r i n c í p i o s , a n a r r a ç õ e s fundado
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c bocas sonoras e orelhas e r e c t a s . " ras, a isso que P l a t ã o chama de " m i t o l o g i a " .
Quanto à s Leis por m e i o das quais se conta e se escreve a respeito
dos caminhos de Creta, a cidade sonhada pelo filósofo, elas se abrem
I ¡gura esguichada de u m pesadelo ou sonhada para a tela de u m pintor e se fecham a p r o p ó s i t o do b o m rumor: voz de o r á c u l o concedida a
surrealista, mas cuja força imaginativa encontra no m u n d o grego a M i n o s , o modelo dos legisladores de outrora, no antro onde, a cada
análise espectral que lhe deu P l a t ã o , o filósofo das(Leih, o ú n i c o , sem nove anos, ele v i n h a ao encontro de seu pai Zeus, o senhor das vozes; 24
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