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O RUMOR TAMBÉM I- UM DIAIS

C o m o detectar os boatos? Eis u m c a p í t u l o da c r í t i c a h i s t ó r i c a cuja


i m p o r t â n c i a t e ó r i c a todos reconhecem facilmente, ainda que cada
pessoa n ã o avalie imediatamente suas dificuldades p r á t i c a s . C o m
efeito, à e x c e ç ã o das sociedades que, a exemplo da U n i ã o S o v i é t i c a ,
conseguiram e l i m i n a r oficialmente a " c r ó n i c a dos pequenos aconteci-
m e n t o s " e e l i m i n a r quase inteiramente os boatos, o rumor, sabe-se,
r e t é m toda a a t e n ç ã o do historiador no Ocidente, desde que seu saber
queira ser rigoroso e c i e n t í f i c o , ou seja, no fim do ú l t i m o s é c u l o . U m
levantamento s é r i o daquilo que a História chama de " f o n t e s " d á
necessariamente u m lugar a esses sussurros que surgem misteriosa-
mente, alastram-se em segredo e formam u m g é n e r o que n ã o é a
anedota, nem o p r o v é r b i o , nem tampouco o m i t o , se ao menos acredi-
tamos n o D r . E m i l e B e m h e i m em sua Introdução à ciência da histó-
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ria. É nesse terreno da oralidade e das sociedades tradicionais que a
i n v e s t i g a ç ã o do historiador mostra sua capacidade. E m face de c o m u -
nidades cujo passado parece disseminado no presente e disperso entre
uma m u l t i d ã o de testemunhos, o e t n ó l o g o historiador toma a iniciativa
de c o n v o c a r todos aqueles que podem e devem testemunhar sobre
a t r a d i ç ã o , assimilada a u m passado n e c e s s á r i o . Consciente de que
seu dever é autenticar os fatos, reencontrar a i m p o r t â n c i a real dos
a c o n t e c i m e n t o s do passado, o h i s t o r i a d o r e t n ó l o g o exercila-se c o m
d e s c o n f i a n ç a , suspeita de cada u m de seus testemunhos, i m a g i n a
incansavelmente r a z õ e s que p o d e r i a m i n c i t a r cada pessoa a falsear
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seu t e s t e m u n h o . C o m efeito, tais sociedades, subjugadas pelos
p r e s t í g i o s da boca e do o u v i d o , v i v e m sob a a m e a ç a constante das
i n f o r m a ç õ e s i n c o n t r o l a d a s , das m a l e d i c ê n c i a s infundadas e de tudo
que pode cativar o o u v i d o . P o p u l a ç õ e s entregues sem defesa à vontade
a r b i t r á r i a do rumor.

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108 A ESCRITA DE ORFEU O RUMOU IAMIU-M I HM IH I 109

E se compreende que para "detectar boatos" no meio de vozes N a t r a d i ç ã o grega, o K u m o i vlvli pui <i «li HN puluvius
i m p e r c e p t í v e i s , entre as palavras fluentes, os voos das palavras, as agourentas ta/.iam > < < < i i >| rnciilni (|UHIM N vo'i
n a r r a ç õ e s sem r u m o , o etno-historiador, intimado pelo e s p í r i t o c r í t i c o , reconhecida dos deuses m u r m u i i i v i In mor terrível, lUfgll leio
recorre a processos m u i t o p r ó x i m o s da i n v e s t i g a ç ã o p o l i c i a l . Aquela ao burburinho aonoro dai crialuraa humanai > i lho i loqu i • icdon
mesma que, segundo se d i z , os habitantes de Atenas aplicaram outrora encantadores, criadas sempre la gari las i cochicho* Itiali \ oli tf quandi i
para encurralar o rumor. F o i n o ano de 413 antes de nossa era, e o os rostos se d e s v i a m .
poderio m i l i t a r do i m p é r i o ateniense ia conhecer o desastre da Sicília: N o lopo d a s muralhas de T r ó i a , u m r u í d o de M > / C - . IVIumn < os
a frota d e s t r u í d a , os generais decapitados, o e x é r c i t o d i z i m a d o e os velhos sentam se no Conselho ilos A n c i ã o s . Uma asaembléla • !< I
sobreviventes acorrentados na Latomias. F o i u m barbeiro, conta Plu- faladores: " P a r e c i a m cigarras que nos bosques, |Mnisadas numa iuv<>
tarco, o p r i m e i r o a saber no Pireu, de u m escravo, u m dos que haviam re, e m i t e m sua v o z encantadora." Eles v ê e m Helena subii e m sua
escapado. Sem demora, o barbeiro saiu correndo em d i r e ç ã o à cidade, d i r e ç ã o , e, e m v o z baixa, trocam palavras aladas: " E l a tem marcada
espalhando a n o t í c i a por toda parte. P â n i c o . Os habitantes reuniram-se mente o ar das deusas imortais quando e s t á diante de n ó s . ' " Murmúrios1

em assembleia e " t o d o s se e s f o r ç a r a m por remontar à o r i g e m do r u m o r dos troianos que n ã o v ê m perturbar e v o c a ç ã o alguma do p r e s s á g i o


(pheme)". O barbeiro, convocado, n ã o sabia sequer o nome de seu funesto l i g a d o ao nome de Helena: a mulher fatal, a destruidora de naus
informante; ele a t r i b u í a a n o t í c i a " a u m personagem desconhecido e (helenas), a matadora de guerreiros (hélandros), a r u í n a das cidades
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a n ó n i m o " . C ó l e r a do p o v o ; tratava-se de u m i n d i v í d u o imaginoso, ele (helêptolis), O v o o cerrado de tantas imagens surgiu com É s q u i l o
perturbara a cidade. Essa pessoa foi interrogada e torturada a t é o quando ele o u v i u o que G ó r g i a s , em seu Elogio de Helena, chama de
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m o m e n t o de chegar a n o t í c i a o f i c i a l de que a guerra estava realmente " r u m o r de u m n o m e " c o m sua m e m ó r i a viva de guerras e de grandes
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perdida. E o povo desarvorado retirou-se gemendo, enquanto o bar- infortúnios.
beiro, preso à roda de torturar, ficou sozinho meditando sobre a mania Os a n c i ã o s que falavam c o m palavras encobertas eram a v o z da
daqueles que querem a qualquer p r e ç o detectar boatos. cidade quando ela sonhava c o m a partida de Helena mas proclamava
A o menos o barbeiro de Atenas, por sua desventura, delineou uma a p r e s e n ç a de u m deus e m face da beleza perfeita. E nos m u r m ú r i o s
que s u b i a m da muralha e caminhavam ao longo das portas, era, na
silhueta v i v a do rumor: ele se identificara com seu m o v i m e n t o , e sua
verdade, a g l ó r i a de Helena que se dizia e se escutava. Quando houve
o r i g e m lhe era radicalmente cega. Havia a v o z de u m escravo cuja
c o n f r o n t a ç ã o entre Ulisses e Ajax para a entrega das armas de Aquiles
i n s i g n i f i c â n c i a era r e a l ç a d a por um rosto desconhecido e sem nome.
ao m e l h o r dos gregos, estes despacharam e s p i õ e s c o m a m i s s ã o de
U m anonimato que representava a sombra antes de o boato passar a ser
escutar o que d i z i a m os troianos. E , conta a Pequena Ilíada, eles
um r u m o r v i v o , levado pela marcha que aumenta suas f o r ç a s e o p õ e
surpreenderam uma conversa entre as m o ç a s sobre os m é r i t o s respec-
l o g o fora do alcance do i n q u i r i d o r e de seu v ã o desejo de o r i g e m . C o m
t i v o s dos gregos: uma delas., inspirada por Atena, fazia de Ulisses u m
efeito, 0 barbeiro sabia t ã o bem quanto o povo de Atenas: " o R u m o r
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e l o g i o t ã o convincente que os gregos sem demora o declararam ven-
também é u m d e u s " . C o m u m altar, u m culto, s a c r i f í c i o s , e no m e i o 8
cedor. H á nisso uma e s p é c i e de consulta de o p i n i ã o dos outros, mas
d» mu pequeno p a n t e ã o de divindades cujos nomes constituem a lista
onde s ã o privilegiadas as vozes frescas das m o ç a s , faladoras incons-
• l< Brandes ou pequenos f e n ó m e n o s p s i c o l ó g i c o s : o T e m o r , o Esqueci-
cientes e v e r í d i c a s .
mento, <> Pudor ou a Querela. E o r u m e i assim reconhecido torna
O d u p l o r u m o r troiano, enunciado n u m poema é p i c o , conduz aos
. \ hl. ntemente insignificante o detectador de boatos. Evidentemente,
caminhos seguidos em suas palavras pelo poeta, pelo aedo h o m é r i c o ,
i l< i M | M que para a l é m da linha d i v i s ó r i a entre o verdadeiro e o falso,
quando ele punha na boca de seus h e r ó i s o elogio de sua p r ó p r i a palavra
0 | nióaofoa de ontem, tanto quanto os s o c i ó l o g o s de hoje, se interro-
m e m o r á v e l . Era Aquiles dizendo a E n é i a s : "Conhecemos a o r i g e m um
guem sobre i > | H . < I < t e x t r a o r d i n á r i o dele para fazer nascer a c r e n ç a , para 9
do o u t r o ; basta-nos o u v i r as h i s t ó r i a s famosas dos m o r t a i s . " O reno-
m o b i l i z a r a o p i n i ã o e as m u l t i d õ e s , para dar t a m b é m à cidade m ú l t i p l a
me, o nome m e m o r á v e l , a g l o r i f i c a ç ã o perene s ã o nutridos e crescem
sua identidade secreta e muda em uma s ó e mesma voz.
g r a ç a s ao r u m o r da epopeia. Da mesma forma que P e n é l o p e : " O nome
O RUMOR IAMIHSI I t/M Ml

I 10 A ESCRITA DE ORFEU

A q u i , é uma fraae; cm outro lugar, i uma palavri i frequentemente


de suas virtudes jamais se e x t i n g u i r á e os deuses m u r m u r a r ã o aos u m nome próprio, dc b a u g ú r i o IIIM I i i " i< i l>id liaia
homens cantos graciosos para a tranquila esposa de Ulisses. Nesse mente. C o m o na embaixada doa Imlo qt * < n< < < os
í n t e r i m , para a filha de T í n d a r o , a criminosa que matou o esposo de gregos a se aliaiem n < l< l o n t t i i o hitil \ Irenli do enviados,
sua j u v e n t u d e , u m canto de ó d i o se e l e v a r á no m u n d o , dando m á fama um sâmio c h a i m u l o i //./(.' eoiiiluior ili r a r r e l i o u ; c -.ulula
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à s f r á g e i s mulheres e a t é à s mais v i r t u o s a s . " O l o u v o r da esposa fiel mente u m dos Interlocutor) •• lhe pi rgunl 11 o i icV"
encontra a i n s p i r a ç ã o dos deuses, enquanto a censura d i r i g i d a a C l i - seja porque quisesse lirar um p i r \ s n | I< u n ir-q \ ¡ porque
temnestra sobe da terra c o m o uma v o z odiosa. agiu casualmente sob a i m p u l s ã o di uni • ! |x r< i I* i o
Existe a í uma atividade de m e m ó r i a na qual a r e p u t a ç ã o de q u e m é a u g ú r i o de um aliado que se proclama e h r l i I |M I l fdl la
bem afamado está t ã o p r ó x i m a do alarde elogioso e a n ó n i m o que o de H e r ó d o t o fala em "receber o passam poi n p i . i^io . m u i
poeta, agente do m e m o r á v e l , leva o nome de Phêmios,' ' o h o m e m do palavra alada e o frágil clamor dc um nniiii <l< Ixi .> traço de
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r u m o r " . É u m dos aedos da Odisseia, o mais famoso, segundo se d i z , uma asa. M a i s ainda: os rumores o r a r i i f u c i r m ii < I<>MII>II<>

mas, c o m certeza, o mais parecido c o m o poeta da corte, constrangido a u t ó n o m o , se n ã o seu p r ó p r i o santuário. Em l . bi ha\ li Apolo
a cantar para os senhores do dia e a pedido do a u d i t ó r i o . U m a v o z d ó c i l chamado "das C i n z a s " porque o altar do deus ol.nuli.i M ,I U ,
canta a morte de Ulisses, a v i a g e m i m p o s s í v e l , diante dos pretendentes c r e m a ç ã o das v í t i m a s dos animais, l i paia . •. . .1. u-., H i m m i i . ...
no banquete, mas t a m b é m o retorno do h e r ó i quando a mesa e as lajes duas formas de a d i v i n h a ç ã o se correspondiam uma pi I n • m/J . OUtfl
11 pela v o z . Não a excelsa palavra do Senhor di D. I I . . . n i . i vlbracói
sonoras cobrem-se do sangue dos participantes dos j a n t a r e s . E o aedo
da v o z , os sons fugitivos, as palavras levada-. |» I , . \ . m . i aqm l >. qui-
Phêmios traz e m seu nome, c o m o u m p r e s s á g i o seguro, a p o t ê n c i a da
se escutavam perto do altar tebano de A p o l o r l i a m a i l . . .1. i m / a s
v o z , una e m ú l t i p l a , que d á o renome e a g l ó r i a . U m a g l ó r i a que os
Tantas vozes dispersas que s ã o convocadas t rei lai Igualmenti no
gregos chamavam de klêos, " o r u m o r que c o r r e " , uma palavra seman-
s a n t u á r i o das vozes-presságios, diante da cidade dc Bamlma fon da
ticamente v i z i n h a da que significa " o chamamento, o nome proclama-
m u r a l h a s . E para consultar esse o r á c u l o tios rumon . -< W düvidl <
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d o pela v o z " , o u seja, kledon. Nesse ponto, o r u m o r , e m seu estado


procedia c o m o era usual em Fara, perto de Pairas, BO MpaCOCOtuagra
socializado, confina c o m as p r á t i c a s oraculares onde sons singulares e
do a Hermes e a Hestia. Barbudo e de pedra quadrangular, •> deui da
vozes errantes tornam-se p r e s s á g i o s e parecem os prolongamentos de
p r a ç a p ú b l i c a estava colocado diante da Lareira Imóvel dl I I . I M Era
um r u m o r v i n d o dos deuses.
n e c e s s á r i o e n t ã o passar-lhe a pergunta furtivamente, em v o / b a i x a , sair
A alguns passos de F ê m i o , na noite do p a l á c i o , Ulisses dirige-se a
precipitadamente da agora c o m os ouvidos tapados, e | \ . / fon I
Zeus c o m as m ã o s e r g u i d a s : ' 'Se os deuses, em m e i o a tantos males na
primeira v o z o u v i d a era o o r á c u l o do d e u s . " Hermes era >> .1« us dos
terra e no mar, quiseram trazer-me enfim de volta à m i n h a terra, faze
sussurros, das palavras cochichadas, como D e m e t é r <> n a dof > .puros,
com que nesta casa uma palavra (pheme) seja pronunciada pelas
a p r o p ó s i t o dos quais se lhe a t r i b u í a o m é r i t o de havei assinalado
pessoas que despertam, e que u m sinal mandado por t i a p a r e ç a lá f o r a . " 16
p r i m e i r o a i m p o r t â n c i a oracular.
I j n seguida à sua fala, u m raio infla a g l ó r i a do O l i m p o : p r o d í g i o com Para quem sabe escutar, todo r u m o r faz sinal. É eniao uma v o /
que o deus d o c é u lhe responde; e da h a b i t a ç ã o bem p r ó x i m a se eleva p o n t u a l , i n s t a n t â n e a , como u m á t o m o de Rumor constituído, daquele
a voz de uma m u l h e r extenuada pelo trabalho no m o i n h o , moendo que, passado de boca em boca e de o u v i d o em ouvido, sr m e i a m o r l o
< evada e trigo para a mesa dos pretendentes i n s a c i á v e i s . A servente do seia e m n a r r a ç ã o j á formal, cada pessoa acrescentando lhe ou tirando
palácio pede que nesse mesmo dia os pretendentes desfrutem o ú l t i m o lhe qualquer coisa, por u m procedimento inconsciente mas sempre
.1. .(iis banquetes. Desejo de morte que Ulisses transforma logo em numa c r i a ç ã o m ú l t i p l a . Se o consulente singular podia dar sentido a
iii.il (sema), em palavra eficaz. E essa v o z desconhecida, caminhan-
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uma frase p r é - e s c o l h i d a n u m enxame de sons, era seguramente porque


i meio da noite, torna -se uma palavra m â n t i c a (kledon) na qual se os deuses n ã o cessavam de fazer sinais aos homens enviando-lhes
.1. Ixa o u v i r , em contraponto c o m o raio d i v i n o , a maneira humana da senhos, mandando-lhes voos de p á s s a r o s , mensagens que eram ao
• • ilo grande Zeus.
112 A E S C U T A DE OKFEt O R U M O U lAiniii M i UM ou 111

i m i t a r os atenienses di 11 1 <'. que Imaginavam estar eliminando <>


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mesmo tempo vozes oraculares. T o d o rumor, e n t ã o , encontrava sua
fonte n o deus soberano do c é u chamado "senhor das v o z e s " , o Zeus r u m o r agarrando pela gol I I lof d( l.il.nl | . i lllpido dl l Stai
dos p r e s s á g i o s conhecido t a m b é m pelo nome de Phêmios como o aedo propagando boatos Método polli I ii. n Im i nl ida ii 11 ti mpo i»>r
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no p a l á c i o de í t a c a . E era j u n t o a Zeus que se mantinha d ó c i l e pronto historiadores b e m inti ii. i . . l i n l " m i CJUI . >• r li li da R e p ú b l i c a
para partir o r u m o r mensageiro, a divindade chamada Ossa, cujo nome a p l i c a m c o i n u m a p a r v o i e e l o l a l i l a n a , l a l a n d o . 111 . I n u m a i lodo 0
é associado a uma e s p é c i e de a d i v i n h a ç ã o pelos sons (otteia). fabricantes de m i i o s , de histói las, de novidades qui nl m pondes
R u m o r que conduzia uma m u l t i d ã o , a dos aqueus indo para a sem aos comunicados o f i c i a i s , aos " i n i l o l o g e n u i s " dn mitologia do
assembleia, " c o m o vemos as abelhas em grupos compactos s a í r e m de Estado. É nas Leis, com 0 projelo de repensai i t f a d i ç l o I I l lllturi
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u m antro o c o , em ondas sempre renovadas para formar um enxame que como m e m ó r i a c o m u m , que Platão encontra "a poténcii admirável do
sem demora adeja por cima das flores p r i m a v e r i s " . Ossa, a enviada de r u m o r (pheme), quando n i n g u é m se a r r i s c a r i a s e q u e r I respirai de
Zeus, estava l á , flamejando e compelindo-os a marchar a t é o m o m e n t o 2
maneira diferente da que a l e i q u e r . " ' E somente p e r m i t e m falai
dele imagens que evocam sua natureza quase meteorológica na
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em que todos se encontravam r e u n i d o s " .
R u m o r que reunia e procedia em s i l ê n c i o ou a meia-voz, enquanto e d u c a ç ã o dos j o v e n s postos a pastar n u m prado que d e v e s e r s e m
no ú l t i m o canto da Odisseia ele se tornava tagarela, corria a cidade defeitos, o r u m o r é a brisa que sopra de r e g i õ e s salubres, é o e f l ú v i o ,
1 q
"contando o fim h o r r í v e l e a morte dos pretendentes". L o g o outra o h á l i t o da terra e das á g u a s , e penetra nos seres v i v o s pelos o l h o s
m u l t i d ã o subia para o p a l á c i o de Ulisses, o sangue bradava por vingan e pelos o u v i d o s . C o m o uma v o z p ú b l i c a que seria o e l e m e n t o mais
ç a . C o m a figura monstruosa de Fama no horizonte, o R u m o r da s u t i l do ar a m b i e n t e , e d o q u a l o essencial e s t á no quase s i l ê n c i o
Eneida: " T e m e r o s o ao nascer, ele se eleva depressa aos ares...; seus d a q u i l o que P l a t ã o chama de " u m a palavra m u i t o p e q u e n a " . Em
p é s correm no c h ã o , e sua c a b e ç a se oculta no m e i o das nuvens...". cada pessoa ele é uma l e i n ã o escrita e que n ã o t e m necessidade
Durante o dia ele fica em o b s e r v a ç ã o , postado na Cumieira das casas; a l g u m a de falar: quer se trate de n ã o ser mesmo a f l o r a d o por u m
à noite levanta seu voo entre o c é u e a terra, estridente na sombra. "Sua desejo incestuoso porque todo m u n d o aponta u m ato destes c o m o
alegria, e n t ã o , era encher o e s p í r i t o dos povos de m i l n o t í c i a s nas quais t o t a l m e n t e í m p i o , o d i o s o à d i v i n d a d e , infame entre os infames; o u
ele anunciava igualmente o que tinha acontecido e o que n ã o t i n h a . " quer se trate, no m o d o p o s i t i v o , de ter em vista no casamento o
Sua natureza monstruosa resplandecia na v i s ã o de u m corpo cheio de aspecto que serve à cidade e n ã o aquele que tem p r e f e r ê n c i a s
o l h i n h o s , inteiramente recoberto de l í n g u a s e de penas, e r i ç a d o de í n t i m a s . É no r u m o r , e somente nele, que se aloja o segredo da
orelhas e de bocas: " E l e tem tantos olhos penetrantes quantas penas u n a n i m i d a d e profunda, das c r e n ç a s mudas partilhadas e m c o m u m ,
sobre seu corpo e, sob as penas - ah! p r o d í g i o s ! - outras tantas l í n g u a s da a d e s ã o i n t e i r a de uma cidade a p r i n c í p i o s , a n a r r a ç õ e s fundado
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c bocas sonoras e orelhas e r e c t a s . " ras, a isso que P l a t ã o chama de " m i t o l o g i a " .
Quanto à s Leis por m e i o das quais se conta e se escreve a respeito
dos caminhos de Creta, a cidade sonhada pelo filósofo, elas se abrem
I ¡gura esguichada de u m pesadelo ou sonhada para a tela de u m pintor e se fecham a p r o p ó s i t o do b o m rumor: voz de o r á c u l o concedida a
surrealista, mas cuja força imaginativa encontra no m u n d o grego a M i n o s , o modelo dos legisladores de outrora, no antro onde, a cada
análise espectral que lhe deu P l a t ã o , o filósofo das(Leih, o ú n i c o , sem nove anos, ele v i n h a ao encontro de seu pai Zeus, o senhor das vozes; 24

duvida, a ter compreendido que o R u m o r n ã o era u m ^ á e u s c o m o outro 25


mas t a m b é m r u m o r sussurrante das l e i s que canta nos ouvidos das
qualquer. C o m efeito, n ã o eram pueris os habitantes de Atenas, e r i g i n - c r i a n ç a s , que se infiltra nos cantos infantis, que se insinua nas conver-
do u m altar a R u m o r porque, no mesmo dia da v i t ó r i a obtida por um sas entre a p r a ç a e a casa.
general numa r e g i ã o l o n g í n q u a , toda a cidade ficou em festa esponta E o r u m o r , quando v e m dos deuses - como o das Leis, retransmitido
IH intente? C o m o se a divindade de Pheme se limitasse a transmitir por M i n a s - , exigia u m c e r i m o n i a l adequado. T r ê s coros correspon-
ubltamente, e a muitos dias de n a v e g a ç ã o , uma n o t í c i a boa o u m á . 2 1
dendo a três faixas e t á r i a s , d i r i g i a m suas e n c a n t a ç õ e s à s almas dos
S r m d ú v i d a , é verdade que, na República, P l a t ã o havia c o m e ç a d o por c i d a d ã o s . P r i m e i r o , os meninos, consagrados à s Musas, entoavam as
114 A ESCRITA DE ORFEU

grandes m á x i m a s diante da cidade reunida. E m seguida, as pessoas


adultas do sexo masculino c o m menos de trinta anos i n v o c a v a m A p o l o
P e ã para t o m á - l o c o m o testemunha da verdade dos grandes p r i n c i p i o s 2
e espargir sobre a idade j o v e m sua g r a ç a e sua força persuasiva. Os
terceiros coristas, por seu turno, eram homens de idade m a d u r a . M a s 26
O MITO, PA RA MAIS (Hl l'A RA MENOS
o papel mais importante era confiado aos a n c i ã o s , aos idosos de mais
de sessenta anos: por n ã o serem capazes de suportar o peso do canto,
eles contavam h i s t ó r i a s sobre os comportamentos m e m o r á v e i s e sobre
27
os grandes p r i n c í p i o s . Consagrados " m i t ó l o g o s da c i d a d e " esses
a n c i ã o s , dispensados de cantar, t i n h a m a m i s s ã o de encantar, de deixar
filtrar o r u m o r que os deuses lhes inspiravam. D i a l é t i c o s do s i l ê n c i o ,
os contadores de mitos harmonizavam os três coros insuflando-lhes
" u m a s ó e mesma v o z " na qual a comunidade se reconhecia ao longo
de toda a sua e x i s t ê n c i a por meio de seus cantos, suas n a r r a ç õ e s e seus
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discursos. Nos m i t ó l o g o s d e p o s i t á r i o s d ó Tumor fundador encarnava- Caberia a uma sociologia da cultura ensinar-nos em sua linguagem por
se a vtrTude da eufemia, o m o v i m e n t o i m p e r c e p t í v e l dos l á b i o s de quem que a m i t o l o g i a , c o m o u sem m i t o , tem para n ó s a autoridade de um
r e t é m sua v o z quando o s i l ê n c i o é d o m í n i o e plenitude do sopro. E o fato natural, enquanto h á tanto tempo - dois s é c u l o s no m í n i m o - a
horizonte u t ó p i c o do m o d e l o de P l a t ã o se fecha sobre a v i s ã o dos filosofia, a h i s t ó r i a das r e l i g i õ e s e a ú l t i m a s e m i ó t i c a se revezam à
contadores de mitos metamorfoseados em meninos de cabelos brancos, 1
procura de uma e s s ê n c i a fugitiva e i n a p r e e n s í v e l do m i t o . E seria
c o m o se o homem idoso, dizendo belas e e x t r a o r d i n á r i a s h i s t ó r i a s , se desconhecer a lucidez dos observadores de nossa cultura crer que eles
tornasse pelo encantamento de sua p r ó p r i a v o z semelhante ao m e n i n o n ã o e s t ã o atentos à f a s c i n a ç ã o que hoje exercem a palavra e o saber
que o escuta e se extasia. M a n e i r a de mandar embora o tempo e de p s i c a n a l í t i c o s , t ã o convencidos de que o m i t o designa o f e n ó m e n o
esquecer o a l e a t ó r i o do p o r v i r . M a s t a m b é m c o n v i c ç ã o de que o r u m o r , r e l i g i o s o superior. A ponto de certos analistas, ousadamente mas sem
longe de ser uma a l t e r a ç ã o menor do real, é uma grande divindade c o n s e q u ê n c i a s , o identificarem c o m o fantasma e c o m sua virtude
s u b t e r r â n e a , constitutiva d a q u i l o que se tem por verdadeiro, das cren- 2
o r i g i n á r i a de esquema organizador, dando-nos assim, novamente, a
ç a s profundas nas quais a t r a d i ç ã o v i v a v a i buscar á g u a ; e de que suas c o n f i r m a ç ã o de que os gregos foram sempre os deuses de nossa
modalidades de t r a n s m i s s ã o e de d i f u s ã o , pondo em j o g o a aprendiza- m i t o l o g i a e ao mesmo tempo os precursores discretos de nosso saber
gem pelo o u v i d o e pela boca, s ã o meios, m í d i a conspiradora e perma- 3
i m p l í c i t o do inconsciente. M a s , relembrando essas e v i d ê n c i a s , harmo-
nente, de tal maneira que n ã o se pode achar coisa alguma de mais certo nizadas c o m outras de maneira a t o r n a r s e p a r â m e t r o s , nossos contem-
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na sociedade. p o r â n e o s s o c i ó l o g o s n ã o nos oferecem qualquer r a z ã o decisiva para
colocar seus discursos sobre nossas maneiras de receber a mitologia
afastada ou fora de uma exegese que p o d e r í a m o s chamar de i n d í g e n a
porque ela é sempre a mais intimamente nossa, sem d ú v i d a , mas
t a m b é m a mais cega à natureza a p o r é t i c a de seu objeto, se n ã o de seu
pretexto, o u seja, disso que a leva a falar c o m tanta prolixidade.
T a l v e z conviesse, a fim de levantar este o b s t á c u l o de e v i d ê n c i a
e p i s t e m o l ó g i c a , transportar-nos a outra sociedade e escolher u m m e i o
social e intelectual afastado d o nosso para nos tornar estranhos a n ó s
mesmos, p o r é m bastante p r ó x i m o para nos p e r m i t i r entender m e l h o r
nele maneiras de pensar que s ã o imediatamente as nossas. A s s i m
fazendo, apenas estaremos ajustando-nos à p r á t i c a familiar dos e t n ó -

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