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O ESTADO SOCIAL

Larissa Barbosa Nicolosi Soares n.USP 6767900

RESUMO

Ressalta-se neste trabalho a busca pela construção de um conhecimento mais


percuciente a respeito da introdução dos direitos sociais e do modo conflituoso, porém
interdependente, como esses e outros direitos se dispõem na Constituição cidadã de 1988. A
fim de entender essa composição “propositadamente dissonante”, faz-se necessária uma
compreensão prévia a respeito da história constitucional europeia, principalmente dos marcos
relativos à história do Estado Constitucional: o Estado Liberal e o Estado Social, na medida
em que essas transformações explicam, em parte, e auxiliam o entendimento sobre os diversos
compromissos assumidos na carta brasileira de 1988.

INTRODUÇÃO

Assumiremos, no presente trabalho, a existência evolutiva de 3 perspectivas, que ao


distorcer, em parte, a realidade da história evolutiva da era dos direitos, ressaltam as
parcialidades necessárias para o melhor entendimento a cerca dos direitos fundamentais: o
paradigma do Estado Liberal de Direito, o do Estado Social de Direito e o do Estado
Democrático de Direito, aprofundamo-nos apenas nos dois primeiros para ressaltar seus
fundamentos sociológicos, axiológicos e sua estrutura jurídica1, importantes na medida em
que esclarecem as diversas dimensões do texto constitucional.

DESENVOLVIMENTO

1.Estado Liberal

O Estado Liberal enquadra-se entre o primeiro Estado Constitucional importante a ser


posto em destaque, cujas expressões formais se deram com as Constituições de 1787, fruto do
processo revolucionário iniciado com a Revolução Gloriosa e posteriormente com a norte-
americana em 1776, e, principalmente por seu caráter universalizante, a francesa de 1791,
cujos valores anti-absolutistas, entre outros, haviam sido memorados pela Revolução Francesa
de 1789. Essa última carta fortificou a consequente forma política que se deu para a noção de
“Estado”, específico do mundo moderno ocidental, e a afirmação de direitos individuais.

1HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. Ed alameda


Estado, de Estado Liberal de Direito, no sentido de uma “estabilidade” dotada de
finalidade ética e destino histórico, reconstruída a partir do reconhecimento da liberdade no
homem moderno, em contraposição ao homem medieval, ressaltando, entre outras, uma
característica fundamental: a legitimidade do poder, que se confirma na existência de um
contrato consensual, entre os governantes e os governados, como já havia pretensão na
Grécia, mas também no elemento essencial que é a, já mencionada, finalidade ética de
promover e garantir juridicamente direitos fundamentais com a pretensão à universalidade,
como fora percebido na declaração de direitos do homem e do cidadão de 1789.1

A declaração de independência e a constituição dos Estados Unidos da América do


Norte representaram o ato inaugural da democracia moderna que se baseava, em poucas
palavras, na representação popular e na limitação de poderes governamentais.2 Mas a
declaração francesa acrescia de um valor universal dado aos direitos que se afirmavam,
ultrapassando a nacionalidade daqueles que eram os destinatários da carta. A universalidade já
estava sendo questionada e construída entre os antigos na medida em que relacionavam o
homem com a natureza e como um igual entre si, porém, há uma retomada nessa relação na
medida em que são direitos inerentes ao homem, que se antecipam à própria declaração.3

O direito natural, portanto, como emanação da natureza humana, e esta, por sua vez,
torna-se base para os direitos individuais, ambas as cartas representaram a formalização do
que o processo revolucionário do final do século XVII e século XVIII inteiro significou, sob o
horizonte do iluminismo, o pensamento de Locke, cuja defesa do Estado e das leis se fazia
solução para a insegura convivência humana, nitidamente se verificava em letras, ou mesmo
Rousseau, no equilíbrio entre autonomia e Estado forte, cuja lei se faz fruto da vontade geral e
ainda, Montesquieu, com a separação dos poderes, estrutura fundamental para limitar o
exercício do poder do Estado.4

Mas o valor central da época era, sem sombra de dúvida, “liberdade”. Tanto a
liberdade, no sentido negativo, aquela que afasta do poder do Estado o domínio privado, se
identificando no próprio espaço não coabitado pela ação estatal, como aquela que decorre
apenas da razão e se percebe ao dar leis a si próprio, a autonomia do indivíduo,
ontologicamente, o ser humano.

1HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. Ed alameda


2COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. Ed Saraiva, 5ªed
3HORTA.
4Ibidem
Havia a necessidade de não perpetuar a sociedade estratificada, marcada pelos
privilégios do nascimento, sendo assim, foram institucionalizadas garantias judiciais que
substituíram a proteção familiar estamental e religiosa pela segurança da legalidade, contrária
ao abuso dos governantes. O direito à ampla defesa, por exemplo, foi prática inaugurada nesse
período.

A propriedade privada estava garantida aos proprietários, pois ela mesma assumia um
caráter da pessoa e o direito à igualdade tornava-se elemento central da carta, porém não
único, atrelava-se à necessidade de um regulamento da atividade estatal para que essa não
interferisse e prejudicasse a realização humana. O Estado Liberal, portanto, comprometia-se
com o indivíduo na medida em que não agia diretamente, não interferia nas relações privadas
e, principalmente, não intervinha na econômica. Tangenciavam-se os vínculos sociais, tidos
como elementos de menor importância, pois o humano era considerado uma abstração
metafísica, uma unidade singular de sentido, um ser desenraizado, diferentemente de um ser
humano historicamente situado, com desejos e anseios diretamente ligados à realidade
comunitária.5

A estrutura jurídica pautava-se em concentrar no Estado o poder de criador de direito,


na soberania como base do novo conceito de nação e a primazia pela escrita e sistematização,
a exemplo da codificação, evidenciando a positivação do direito pelo Estado. Ao
despersonalizar o poder, objetivo almejado e fruto da racionalização do Estado, as
constituições liberais surgiam para organizá-lo e promover direitos que implicavam no
reconhecimento da pessoa como a fonte da atividade do direito, direitos esses que se tornavam
o centro teleológico, ao qual todo um ordenamento jurídico se voltava.

A aceleração da produção com a máquina a vapor fortificando a indústria capitalista, a


rapidez evolutiva nas transformações na relação entre o capital e o trabalho, dos meios de
produção, a circulação de ideias impressa consequentes dos diálogos entre a filosofia da
cultura, o historicismo e os movimentos sociais decorrentes da exploração humana dentro das
fábricas, formaram um complexo explosivo em revoluções ao longo do século XIX que
jamais se conseguirá descrever ou observar de maneira analítica, tamanha influência teve na
própria maneira de pensar humana e tamanha reorganização causou na própria ordem social.

Sabe-se que a fundamental afirmação de direitos individuais nas cartas constitucionais


era incapaz de continuar, considerando que assegurou a alguns, assegurando uma vida
humana pautada na dignidade, e mais, mostrava que mesmo a própria conduta anterior de

5BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito. Ed Malheiros,20ªed


formalizar a promoção se dava apenas a uma parcela da população controladora dos próprios
meios de produção, a igualdade material entre os setores da população inexistia, apenas
poucos, e burgueses, seriam faticamente livres, iguais e possuidores de propriedade. 6 As
cartas, ainda que repudiassem as velhas formas nobres de se organizar, não desejavam
verdadeiramente uma sociedade democrática e igualitária.

2.Estado Social

O Estado Liberal, ao não determinar meios efetivos de garantias dos próprios direitos
afirmados, tornando-os meramente formais e limitados a uma parcela restrita de pessoas
dotadas de capital, mostrando-os incompatíveis com a realidade social, evidenciava ser um
Estado abstrato omisso com a própria sociedade. Fazia-se necessário que o Estado garantisse
condições mínimas materiais e existenciais, por meio de políticas públicas, para que mais
pessoas, inclusive as não-proprietárias e as sem-capital pudessem ser efetivamente iguais e
livres.7

A doutrina de Karl Marx e F. Engels, principalmente o Manifesto Comunista de 1848,


marca a transformação, na medida em que anuncia o próximo paradigma a ser estudado neste
trabalho, o Estado social de Direito, este surge dentro desse mesmo processo, cujas primeiras
normas aparecem na Inglaterra8, frente à intensa luta do proletariado que toma consciência de
sua classe, influenciado pelo socialismo e cansado da impossibilidade de agir dentro do seu
grupo econômico-social, como a incapacidade de associar-se e se organizar dentro do
trabalho, lutando por melhores condições. Já no caso da França, e sob o mesmo horizonte, a
Constituição de 1848 premeditava essa necessidade e outras como àquelas que pressupunham
uma intervenção maior por parte do Estado, pois ao resistir à introdução dos direitos sociais
na carta, ensejou-se uma discussão a respeito do tema e o próprio artigo 13 carta apontava
para a criação desse Estado comissivo:

“Art.13. A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de


trabalho e de indústria. A sociedade favorece e encoraja o
desenvolvimento do trabalho, pelo ensino primário gratuito, a
educação profissional, a igualdade nas relações entre o patrão e o
operário, as instituições de previdência e de crédito, as instituições
agrícolas, as associações voluntárias e o estabelecimento pelo
Estado, os Departamentos e os Municípios, de obras públicas capazes

6http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/andre_liguori_de_cerqueira.pdf
7SARMENTTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Lumen Iuris,2004
8BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito. Ed Malheiros,20ªed
de empregar os braços desocupados; ela fornece assistência às
crianças abandonadas, aos doentes e idosos sem recursos e que não
podem ser socorridos por suas famílias”
Além de, nessa mesma carta, conter avanços constitucionais como a abolição da pena
de morte e a proibição da escravidão em todas as terras francesas. Deve-se falar da doutrina
social da igreja, marcada na época pela Rerum Novarum, que também inspirou os adeptos ao
combate contra o Estado Liberal e do incomensurável impacto que teve a Revolução Russa, o
planejamento estatal, a ascensão das classes menos beneficiadas, tornando-se marco, teórico e
prático de uma possibilidade real frente às decepções do Estado de Direito e à crise do
capitalismo, no século XX.

Mas sem dúvida alguma as primeiras Constituições mais influentes, dentro do


paradigma social, foram a Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, promulgada
em 5 de fevereiro de 1917, seguida da Constituição Alemã de 1919, de Weimar. A primeira,
fruto dos anseios expressados pela própria Revolução Mexicana de 1910 e pelos manifestos
do movimento Regeneración, tinha como fonte ideológica o anarcossindicalismo difundido
em países como a Rússia, a Espanha e a Itália, além de garantir as então costumeiras
liberdades individuais e políticas, garantia também a expansão do sistema de educação
pública, a reforma agrária, a limitação da propriedade de acordo com o interesse público e a
proteção do trabalhador assalariado, limitando, por exemplo, a jornada de trabalho.9

Sua importância histórica advém de ter sido a pioneira em atribuir aos direitos
trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, de ter proposto a desmercantilização do
trabalho e ter estabelecido a igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e
empresários na relação contratual, protegendo os cidadãos do desemprego e protegendo a
maternidade. Segue um trecho desta:

“XVI - Tanto os operários quanto os empresários terão direito


a se associarem em defesa dos seus respectivos interesses, formando
sindicatos, associações profissionais etc.”

A Constituição de Weimar adquiriu uma estrutura mais elaborada, ainda que ambígua
e imprecisa, fruto dos intensos debates entre os partidos socialistas e capitalistas, na tentativa
de conciliação de ambas idéias, comunistas com liberais capitalistas da civilização ocidental,
representou melhor defesa da dignidade humana ao final complementar direitos civis e
políticos com direitos econômicos e sociais, institucionalizando a democracia social, sua

9http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewArticle/161/249
estrutura era formada por duas partes: a primeira atribui-se à organização do Estado e a
segunda à declaração de direitos e deveres fundamentais, liberdades individuais e os novos
direitos de material social.10

Os grupos sociais passam a exigir então uma atitude afirmativa, uma orientação
determinada do Poder Público na política econômica e distribuição de bens o que implica em
mãos visíveis atuando perante o mercado, cabe lembrar a repercussão da teoria keynesiana, e
uma redistribuição de renda pela via tributária. Distinguiram-se as diferenças das
desigualdades, sendo que estas deveriam ser constantemente combatidas enquanto aquelas
eram fundamentais para a compreensão da realidade social.

Entre outros progressos constitucionais, evidenciando posteriormente a enorme


influência sobre as instituições políticas ocidentais, ao regular a vida econômica, além da
educação e da escola, a vida individual, mas também comunitária, houve, por exemplo, o
estabelecimento da igualdade jurídica entre marido e mulher, a equiparação dos filhos frutos
da relação matrimonial aos das não-matrimonial, a família estava protegida junto à juventude,
a educação pública e os direitos trabalhistas. Segue um trecho desta:

“Art. 163. Sem prejuízo de sua liberdade pessoal, todos os


alemães têm o dever moral de utilizar suas forças físicas e espirituais
para o bem da comunidade. A todo alemão dá-se a possibilidade de
prover a sua subsistência pelo seu trabalho. Enquanto não se lhe
puder proporcionar uma oportunidade de trabalho, cuidar-se à de
suas necessidades de subsistência. As particularidades locais serão
atendidas mediante leis especiais do Estado Central”

Estado Social surge então para além dos direitos individuais, estes que continuam
sendo direitos fundamentais, já que não há como falar da manifestação de direitos sociais sem
o direito à igualdade, à liberdade e à propriedade, ainda que esses direitos sejam
ressignificados pelo novo paradigma. O sentido desses novos direitos não surge para se
somar, num processo matemático, à significação dos direitos de primeira geração, como se a
Constituição fosse uma “colcha de retalhos”, mas aparecem para coexistirem de maneira
tensa, comunicando-se e se estabelecendo numa dinâmica de interdependência com relação
aos direitos individuais conquistados, fazendo com que se construam novos sentidos dados
aos ambos direitos.

10 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. Ed Saraiva, 5ªed
Esse Estado, preocupado com o bem estar dos cidadãos, fora marcado pela
interferência nas relações privadas, visto que essas estavam em inerte desequilíbrio,
significativo era o constrangimento social e econômico que as rodeavam e impediam a
igualdade e o equilíbrio e, por último, fora marcado pela ação econômica tornando-se um
agente indutor de direitos, comprometido com a realização do humano e, portanto com a vida
pautada na dignidade, princípio central e ordenador do Estado Democrático de Direito.

O problema enfrentado por esse Estado interventor é que, com a positivação dos
direitos sociais por meio dessas políticas afirmativas, deve-se ressaltar o fato de que ensejam
maiores dificuldades, devido à resistência ideológica que existe entre os grupos e pessoas
acostumados a se adequarem em instituições tradicionais e, não menos importante, devido à
necessidade de recursos públicos escassos.

Faz-se importante agora, dentro ainda desse assunto, levantar uma crítica do sociólogo
Zygmunt Bauman, reiterado por outros autores a respeito da inserção dos direitos sociais pelo
Estado do Bem-Estar Social. Quando há afirmação de direitos sociais, por parte do Estado,
através de políticas públicas, tende-se à centralização do poder, na esfera executiva, devido à
intensidade e a rapidez desse processo, corre-se o risco de aniquilar a dignidade humana,
durante a sua ocorrência, por conta da mitigação dos direitos individuais.11

Isso acontece pois há uma transformação na relação do homem com o Estado, esta
que antes era meramente uma relação política e fora construída para tal, passa a ser
essencialmente uma relação econômica, paradoxalmente, torna o homem menos ser humano
do ocidente, deixa-se o status de cidadão, pois ele se limita a receber do Poder Público
proteção ao invés de garantia. O Estado, ao fornecer essa proteção, em substituição à devida e
legal redistribuição da riqueza nacional, alimenta essa condição de não-cidadão do homem,
contribuindo para o aumento da insegurança e consequente dependência dele frente a si,
Estado, absorve-se assim parcela dos poderes normativos e gera um desequilíbrio na
separação das funções, comprometendo a própria estrutura política e se distanciando
efetivamente do povo.

O predomínio do público sobre o privado, o aumento da intervenção estatal e a


regulação coativa dos comportamentos individuais, por conta dessa afirmação imperativa e
vertical do coletivo sobre o individual, da margem, como já anunciado na História, a uma
disposição excessiva pelo controle, dando abertura a práticas totalitárias por parte do Estado.

11BAUMAN, Zygmunt. EUROPA. 20a. Ed Jorge Zahar


Sem dúvida, a presença futura dos Estados totalitários contribuiu para compreender com mais
profundidade que valores como a igualdade e a democracia não aparecem para nós apenas, e
simplesmente, por meio de textos legais ou por meio da força política fruto da vontade, mas
fazem parte de um processo intenso e contínuo na sua constante superação e radicalidade.

BIBLIOGRAFIA:

BAUMAN, Zygmunt. EUROPA. Ed Jorge Zahar,20ªed

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito. Ed Malheiros,20ªed

COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. Ed


Saraiva, 5ªed

HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. Ed alameda

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. Companhia das Letras,


1988.

SARMENTTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Lumen


Iuris,2004

http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewArticle/161/249

http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/andre_liguori_de_cerqueira.pdf

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