Você está na página 1de 11
Revisiio: Otacilio Nunes Jr Marina Tronca Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio Cen») (Camara Brasileira do Livro, sp, Brasil) a. _—_——_ Flores da escrivaninha : e Perrone-Moisés — Sio Paulo 3 Letras, 1990. nsaios / Leyla + Companhia das Bibliografia ISBN 85-7164-117X 1. Gritiea literaria 2. Ensai ios. brasileiros 1, Titulo. cop - 801.95 | 90-1386 869.945, Crp 0g Indices para catilogo sistema 1. Critica lteraria 801.95 2. Ensaios :Século 20 :Literat 869.945 3.Século 20: Ensaios : it 869.945 teratura brasileira Todos 0s direitos desta edigig reservados & EDITORA scuWARC7 LtDA, Rua Bandeira Paulista, 702, oj. 32 4532-002 — Sio Paulo sp fone: (11) 3707-3500 (11) 3707. 9 NENHURES Consideracées Psicanaliticas a margem de um conto de Guimaraes a a SA — Liinconscient — dréle de mot! ae Freud n en a pas trouvé de meille; i pas a revenir. Ce mot a Vinconvé re ae nie i i; ce qui permet d’y supposer ae négatif, ‘ imporie i monde, sans compter le reste, Pouriuiot tga chose inapercue, le nom de : > Partout convi¢ i bien que de nulle part. ee J. Lacan, Télévision’ A grande limitagao da leitura psicanalftica dos textos lite- rarios € a transformagao da singularidade e generalidade e, inver- samente, 0 enquadramento forgado de um discurso plural em um esquema prévio, visando a “verdade” de um significado tltimo e origindrio. O que ainda agrava essa limitagao € 0 fato de essa “yerdade” ser freqiientemente atribuida a pessoa do autor, quan- do se sabe que, em sua travessia escritural, o grande escritor € co- mo 0 navegante de Fernando Pessoa: “Aqui ao leme sou mais do que eu”. Além disso, as “verdades” a que se chega a psicandlise literaria so pouco variadas: a explicagéo sera sempre de ordem sexual; os signos verbais, considerados como sintomas, levardio a uma classifi- cago dentro de um pequeno repertdrio de psicoses & neuroses, de- pendentes de alguns complexos classicos, dentre os quais 0 dg Edipo sera praticamente inevitavel. O proprio Freud reconhecia “@ Monotonia das solugdes oferecidas pela psicandlise” mong que nao perturba o terapeuta, mas torna © analista-esent0r ee s Como bom estilista que era, Freud sabia que a repelig ‘a fraqueza escritural, e é desta que ele se desculpa. Ii __Apesar desses inconvenientes da leitura psicanalitica do texto literdrio (¢ sem falar do maior, o absurdo da psicandilise de um de- funto ou de um ausente, isto €, uma fala sem resposta), n: 0 pos- sivel, atualmente, enfrentar um texto que carreie lembrangas, so- nhos, afetos, desejos (€ que obra literdria se faz fora disso?), sem levar em conta a descoberta freudiana. Se, no trato com esses fendmenos psiquicos, ignorarmos o saber psicanalitico, acabare mos por recorrer (ou por subentender) vagas nogdes de psicolo- a, datadas de pelo menos um século, marcadas pelo id classico e pelo moralismo a ele inerente. A recente contribuigio de Lacan e seus diseipulos a ciéncia psicanalitica oferece-nos a possibilidade de evitar alguns escolhos da leitura psicanalitica de uma obra literaria. Ao colocar, como ponto de partida de sua teoria, que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, ¢ ao propor um trabalho de tipo sintatico, que busca captar a cadeia de significantes € ndo o significado titi mo (vazio), essa corrente psicanalitica nos permite: (1) lembrar que o texto literdrio é, antes de mais nada, obra de linguagem; (2) abandonar a miragem de uma interpretagio ultima e definitiva; (3) privilegiar a produgao do sentido ¢ nao a troca enganosa de sentidos plenos e prévios; (4) dispensar 0 biografismo, que con- funde individuo falante com enunciador. Uma critica literdria de inspiracio lacaniana buscar, no uma realidade desejada e representada pelas palavras, mas a realidade processual do desejo, inscrita e ocultada nas palavras e em seus in- tersticios, desejo tornado letra; nao a arqueologia desse desejo (na historia pessoal do escritor), mas 0 aqui e agora de sua inscrigao no discurso. Estas consideragdes prévias poderiam estender-se longa- mente, para apresentar de modo mais completo, mais preciso € mais sutil 0 que € particular (e para nés, estudiosos do literario, vantajoso) na psicaniilise lacaniana, Mas nosso objetivo, aqui, ¢ ingir a reflexao tedrica ao minimo, para passar a pratica de ise particular que poderd, na melhor das hipdteses, su- gerir 0 alcance de uma eritica inspirada no lacanismo, Escolhemos, como objeto de anallise, um conto de “Nenhum, nenhuma”.’ ‘Como todas as escolhas, esta tem suas razdes conscientes ¢ in- conscientes. As inconscientes tém a ver com 0 “desejo do ana- Fuimaraes: Rosi 12 lista”, © isto foge A competénci leitores. Quanto as conscientes; de uma anélise decifradora de nhos”) e diagnosticadora de duvi ia do analista © ao interesse dos Para evitar a facilidade enganosa simbolos (tipo “Chave dos so. 1dosos traumas ou neuroses, esco. auto-andlise € que apresenta ex. nsciéncia) © mais cléssico dos com- “Nenhum” ¢ “Nenhuma” sio Papai sentaglo “real” (‘meus Pais”, p, 51) e ect mn om sua repre- “ideal” (0 Mogo e a Moca). As volta com ene case ns pla representagio, est 0 Menino, que ama a Me nea 0, por Sbvias raz6es: “Ah, ele tinha ira desse mars ge lidades” (p. 57). Estamos, pois, dispensados de ung suite desemboque no famoso complexo; ele jé nos é dadndompee to” ; omplexo; io de saida, © préprio processo utilizado por Guimardes Rosa para escre- ver 0 conto é semelhante ao de uma cura psicanalitica freudianas Tecuperar as lembrancas mais remotas, arrancar do fundo de meméria as imagens esquecidas (recaleadas), para aleancar uma libertagdo uma autoconciliagdo: “Se eu conseguir recordar, ga- nharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeito real, jd havido. Infancia € coisa, coisa?” (p. 51), Nosso interesse, portanto, nio € 0 de interpretar o conto, bas- tante claro para o leitor medianamente atento as questoes siquicas e medianamente familiarizado com a linguagem de Guimaries Rosa (esta, alids, menos “estranha” aqui do que em outras obras do autor), Quando dizemos que o sentido do conto é claro, néo quere- mos dizer que ele tem um tnico sentido, e sim que seu campo de significacao é claramente delimitado a uma primeira leitura, e que esse campo é satisfatoriamente esclarecido pelo principio do com- plexo de Edipo: 0 Menino, em viagem, presencia o relacionamen- to amoroso de um Mogo ¢ uma Moga; esse relacionamento per- manece no terreno ideal do sentimento (0 qual, segundo a Moca, deve durar até a morte, e talvez para além dela, sem passar pela realizado sexual, resistindo até mesmo a separacaio dos amantes); © Menino se identifica com 0 Mogo, em “ira de rivalidades”; 0 Menino volta a casa paterna e “desconhece” seus pais, que “se es- queceram de tudo 0 que, algum dia, sabiam”, isto é, censura seus izado 0 ato a que a Moga se negou. Mas, como, rnascimento ao Menino, ao desconhecer seus ‘e a si mesmo, se auto-anula, se torna ne- pais por terem reali foi esse ato que dev pais ele se desconhec: U3 \ i “Porque eu desconheci meus Pais — eram-me (do estra- : jamais poderia verdadeiramente conhecé-los, eu; eu?” (p. 57). A tiltima palayra do conto € esse ew interrogativo. Como tema entrelagado, aparece a experiéncia da velhice e da morte, representada pelo Velho ¢ pela “Nenha velhinha”, que o Menino encontra na mesma casa onde esto 0 Mogo € a Moca. © Velho e a Nenha dao, a0 Moco e 4 Moca, uma verticalidade hist6rica, esbogando uma genealogia ideal que desemboca no Menino, termo ainda indefinido como identidade e funcao. Dois aspectos nos interessam neste conto, para além de uma interpretacao edipiana. O primeiro é 0 da semelhanga/diferenca entre 0 processo de rememorizacao a que recorre Guimaraes Rosa e o mesmo processo num tratamento psicanalitico. O segun- do € 0 da cadeia de significantes introduzido pelo préprio titulo do conto, “Nenhum, nenhuma”. Este segundo aspecto remete para aquilo que Lacan chama de “a ordem da letra”.! O processo pelo qual se desenvolve o conto é 0 da “remem- branga”, que consiste em arrancar, a custo, da memoria um epis6- dio fundamental da infancia. Nao é outro o processo do tratamen- to freudiano: levantar o recalque, a fim de desnudar a fixagdo que explicaria a hist6ria psiquica ulterior do individuo (ou a falta dessa histéria, j4 que a neurose se caracteriza pela repetigio a-hist6rica). A tomada de consciéncia daquilo que. até entao, per- manecia inconsciente, € o caminho da cura: “Poder-se-ia definir 0 tratamento psicanalitico como uma educacao progressiva para su- perar, em cada um de nds, os residuos da infancia”.’ Intimeras so as obras literdrias nascidas de tal trabalho de re~ memorizacao, mas poucos sao os escritores que apresentam, como Guimaraes Rosa, téo nitida consciéncia do proceso, das resistén- ias que devem ser vencidas e do objetivo salvador que deve ser alcangado. Quando 0 relato é uma reconstituigdo racionalizada do pa: do, toma formas coerentes, légicas, fui facilmente — falsamente. E 0 que ocorre nas memGrias de infancia “clissicas”, relatos “completos” © “indiscutiveis” do que “realmente” se passow. Quando a meméria pretende abrir caminho para o inconsciente. levantando recalques ¢ incidindo nos dolorosos pontos de fixaco, © processo € Arduo, penoso, e a narrativa vacilante. Em i “Nenhum, V4 nenhuma”, as lembrangas dos “irreversos fragmentariamente, em “reflexos, relampa dos em obscuridade”. Segundo Freud, os dados mais obscuros cor tos em que o trabalho de recalque foi mais inte Rosa apresenta essas lembrangas de infancia como a ficilmente da obscuridade, nao porque clas sejam di tempo (Freud mostrou que no ha motivo, a ndo ser o para que nos esquecamos de nossa infancia),* mas porqu sistem ao esforgo da consciéncia. Esse trabalho obstinado se festa, no conto, pela reiteraedo de verbos com o prefixo re: dar, religar(-me), remembrar, retroceder, reter, revolver, nhecer, recuperar, retomar, representar, que lutam com: retardar, refugiar(-me), reperder. ee Guimaraes Rosa vé bem o que hi de insidioso no jogo entre as lembrangas nitidas e as lembrancas vagas, desconfiando das primeiras ¢ insistindo em penetrar as segundas: i Na propria preciso com que outras passagens lembradas se ofere- cem, de entre impressOes confusas, talvez se agite a maligna astdcia da porgio escura de nds mesmos, que tenta ineompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade [p. 51]. Tee igmund nao o diria melhor. % O narrador rosiano também percebe que, por vezes, o melhor caminho é adormecer a consciéncia, num estado de semi-sono que facilite 0 afloramento dos “grandes fatos” encobertos: “Venho a me lembrar. Quando amadorno” (p. 55). jogo da meméria é um esconde-esconde: os “relémpagos” © “lampejos” sfio constantemente toldados por “nuvens”, “serras ¢ serras”, por “uma muralha de fadiga”. E 0 que chega a conscién- cia vem de muito longe, filtrado e enfraquecido: “S6 agora é que assoma, muito lento, o dificil clardo reminiscente, ao termo talvez am até nés, de outro modo, as estrelas” (p. 51).. (O recalque, que concilia precariamente 0 ego com o inco ciente, tolda 0 que a consciéncia nao suportaria: “As nuvi para nao serem vistas. Mesmo um menino sabe, as vezes, di fiar do estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir beirando entre a paze a angtistia” (p. 52). VIS caminho da remembranga deve ser percorrido de trés para baixo ima: “como um riachinho, as voltas, que : bee Sataata”( (e508 exatamente 0 que diz Freud: _ “Era preciso reproduzir cronologicamente toda essa cadeia de __ lembrangas patogénicas, mas na ordem inversa, @ ultima primeiro ffeinicira no fim"? OO afrontamento entre a intengio de consciéncia © a forca reativa do recalque 6, mais do que um jogo, uma luta. As lem. brangas afloram, mas sao imediatamente recobertas: Ento, 0 fato se dissolve. As lembrancas so outras distancias, Eram ‘coisas que paravam ja beira de um grande sono [..] [p. 55] Reperdida a remembranga, a representagao de tudo se desorde- na: 6 uma ponte, ponte, — mas que, a certa hora, se acabou, parece’ que. Luta-se com a meméria [p. 56]. Nos momentos em que a dificuldade de se lembrar de pessoas ‘e acontecimentos se acentua, o narrador apela para os objetos que ‘aS cercavam. Processo de metonimia, apontado por Freud como Tiquissimo material analitic Sabemos que, em muitas pessoas, as primeiras lembrancas de infén ia tem por contetido impressdes quotidianas e indiferentes, que nao puderam produzir um efeito afetivo no vivido, mesmo numa crianga. © que, no entanto, foram anotadas com todos os pormenores, poderfamos dizer: com um luxo de pormenores — enquanto episé. dios contempordneos nao eram conservados na meméria, mesmo se, na época, segundo testemunho dos pais, estes haviam impressionado intensamente a crianga* E Freud dé, como exemplo, um professor de filologia que se “esquecera” totalmente da morte da avé, mas se lembrava nitida- mente de uma taca de sorvete sobre uma mesa, imagem contem- poranea a perda da parente querida ‘No conto de Guimaraes Rosa, os desfalecimentos da memoria com relacao a pessoas sdo imediatamente compensados por um Tuxo de pormenores relativos a objetos. O “homem sem aspecto”, encontrado na casa de fazenda, € suprido, metonimicamente, pela “escrivaninha vermelha”, objeto verbal to importante na estrutu- ta do conto que reservamos para mais tarde sua andlise. Quando as lembrangas relativas a Nenha e 4 Moga tendem a esvaziar-se, uma Série de objetos invade o campo da meméria: casticais, batis, arcas, 16 canastras, 0 oratério, registro: sltas camas ds torneadentca eee pene retratos de prido espeto de ferro na mio da preta, 6 batedar get 9 com= jacarand4, alguidares, pichorras, eanecos de estan es SHoeolate Com extraordinario faro psicanaltico, o narmy 22) processo de usar as coisas como intermedirias: soy PCa CSS mais ajudando, as coisas, que mais perduram” (ps4 “mais perduram”, ndo materialmente — 9 Meming oes Soa voltou” aquela casa, portanto ndo € a persistencig one Mais coisas que 0 ajuda a lembrar-se: as coisas mais potent oe memOria, gragas a0 processo de deslocamento on Te a fer 0 professor de filologia citado por Freud lembrar se to bem, da taca de sorvete. ee Uma andlise superficial dos objetos recuperados pe calor do conto bastaria para revelarnos sua simbologe hat i porém 0 que aqui nos interessa ndo € esse tipo de facilidade ter 4 pretatva, mas & riqueza e a autoconsciéncia do processode nin, # camento, ue sempre se manifesta, no conto, quando ha urna se i culdade maior de meméria. “Cerra:se a névoa, 6 escurcede ta : uma muratha de fadiga. Orientar-me! [..] Havia um fio de pes } bante, que & gente enrolava num pauzinho” (p. 54). A imagem seguinte é a da Moca, coerente com a metéfora do barbante weedy também por Freud para figurar a relagao da crian bobina, 0 jogo do fort-da). Hi, portanto, evidentes semelhangas entre 0 processo eseri- tural posto em funcionamento no conto de Guimaraes Resa eo processo utilizado pela psicandlise freudiana: o relato de antigos acontecimentos, a associacao livre, a luta com a censura ¢ One, Entretanto, Guimaraes Rosa, como todo eseriton est menos entregue & interpretagdo de outro — € menos “inocente” — do que o paciente médio da cura psicanalitica; o escritor € muito mais manhoso € muito menos passivo do que qualquer pa- siente, seu relato é uma auto-andlise carregada de um saber psi- canalitico que se adianta ao saber do analista, ou o dispensa, Tu- do se passa como se o escritor ji deixasse ao critico psicanalitico eventual indicagdes precisas para o encaminhamento da anélise, numa auto-andlise ja tio avangada que parece orientada pelo co- nhecimento da Psicandlise (nao interessando aqui averiguar se 0

Você também pode gostar