Você está na página 1de 1

Tranças e cerejas

A morte vem depois do susto animal, advinda de um excesso não matemático de


vendavais de sonhos, insultos sucessivos às quimeras das infâncias, soluços de tristeza
escondidos sob os panos antigos e brilhosos da comédia.
É sob esta bandeira que caminha Ariadne, seus pés como que de um vidro
entremeado de bolhas de ar – quase maleável – mastigando o chão, sem silêncio.
E mal sabia ela que, por debaixo das tranças descuidadas, estaria uma música
que lhe traria de volta uma alegria nova, alegria nova, mas de volta porque foi o que
nunca dantes sentiu que se repetiria... por não ser da coisa, ela não nutria nada pelo
reflexo do sorriso leve, emprestado das santas, que molhava o seu rosto num
emaranhado de estrelas que cheiravam ao talco... ao talco que quisera ter recebido,
quando pequena, da mãe que quisera ter conhecido.
Mas o coalhar do Sol na varanda, arrastava um arraial de semelhanças que
puxavam fotos de família... o parto dos arrepios fugidios singrando o íntimo fulgor em
seus olhares para si mesma e pros seus olhares nas fotos apagadas, com manchas de
bolo de cereja – como ela adorava cereja – fê-la ser novamente a criança no parquinho
antigo, voando no foguete aeroespacial (pra onde jamais soube), mas o propósito era seu
coração-que-era-um-mundo de descobertas felizes na trama bioquímica de seus cinco
anos, misturando-se no ir-e-vir da roda gigante, por detrás de suas tranças, lá longe...
estava o caminho pra cidade que naquela altura, era o único brinquedo.
Dance antes do fim, depois do começo. Dance comigo. Porque dançar é a
melhor forma de fazer companhia a alguém, ela sempre dizia. Porque é a forma de dois
serem um, como no amor. E é o amor, lembrava, o supremo negador de tudo, o fim de
todos os fins, o alvorecer do efêmero, o deusificar caleidoscópico dos dedos, se
entrelaçando, a queda da Torre de Babel na unificação das línguas, o sentido pra tudo, a
saudade imensa que mergulha, como a baleia, no oceano que a faz pequena... o botão de
unir todas as coisas e desunir depois pra unir melhor. A respiração sagrada dos seres
desconhecidos de si mesmos, que nos acenam, no brilho do entardecer onde ela se
descobria, Ariadne, criança e deusa, vontade e algodão doce, tranças e cerejas.

Você também pode gostar