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CASA GRANDE E SENZALA – Gilberto Freyre

" Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro."

Mestre Gilberto Freyre... Escritor pernambucano, morador de Apipucos, no Recife. Era descendente de senhores de
engenho. Conhecia bem os casarões...

Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, Gilberto Freyre publica Casa-Grande & Senzala, um
livro que revoluciona os estudos no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária.

Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do
homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças:
índios, africanos e portugueses.

Em Casa-Grande & Senzala, o escritor exprime claramente o seu pensamento. Ele diz: "o que houve no Brasil foi a
degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada" . Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição.
A relação entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.

"Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que é ser brasileiro? E
a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos
estímulos."

Havia tempos Gilberto Freyre procurava escrever sobre o ser brasileiro. Pressões políticas e familiares o levaram, entre 1930 e
1932, a viver o que chamou de "a aventura do exílio". Partiu para a Bahia e pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro
Nina Rodrigues e a arte das negras quituteiras na decoração de bolos e tabuleiros. Observou que a culinária baiana era neta da
velha cozinha das casas-grandes.

Depois da Bahia partiu para a África e Portugal. Iniciou em Lisboa as pesquisas e estudos que sedimentariam o
livro Casa-Grande & Senzala. De Portugal foi, como professor visitante, para a Universidade de Stanford, nos
Estados Unidos, onde viajou pelo Sul e pôde constatar a existência, durante a colonização americana, do mesmo tipo
de regime patriarcal encontrado no nordeste brasileiro. 

"Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho
das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que ficou
sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto-conhecida. Vinham sendo acumulados
estudos sobre ela... mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse...
um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou
um serviço de minha parte ao Brasil."

Durante o período de estudos na universidade americana, o escritor elaborou uma linha de pensamento que diferenciava raça e
cultura, separava herança cultural de herança étnica; trabalhou o conceito antropológico de cultura como o conjunto dos
costumes, hábitos e crenças do povo brasileiro.

"Gilberto Freyre diz que Franz Boas foi a figura de mestre que nele ficou maior impressão, porque foi com Franz
Boas que ele aprendeu a distinguir raça de cultura, e nessa distinção ele se baseou para escrever Casa-Grande &
Senzala. Agora, o conceito de antropologia de Freyre era muito mais amplo, ele partiu para uma interpretação
global do povo brasileiro. É uma história ao mesmo tempo econômica, religiosa, folclórica, sociológica."
Édson Nery da Fonseca, historiador (Olinda, PE) 

"Quando, em 1532, se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro
de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical.
Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração
econômica, híbrida de índio, e mais tarde de negro, na composição."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Portugal, um país largamente marítimo, recebia sempre povos de todos os lugares do mundo.
Seus portos eram rota de comércio e de migrações. O contato com estrangeiros estimulava, no
povo português, tendências cosmopolitas, imperialistas e comerciais. Na Península Ibérica as
raças se misturavam havia milênios. O encontro das culturas árabes e romana impregnava a
moral, a arte, a economia e a vida do português. Os árabes - excelentes técnicos navais - e os
judeus - financistas e com altos cargos de administração, no conselho real -, emprestavam
conhecimento e dinheiro para o empreendimento das navegações e dos descobrimentos. A burguesia comercial
ganhava mais poder que a aristocracia territorial portuguesa e buscava no além-mar terras e riquezas nunca
exploradas. 

Além da mobilidade, o português tinha a capacidade de se misturar facilmente com outras raças. Os homens vinham
sem família, sozinhos. Chegavam carentes de contato humano e começavam a se reproduzir primeiro com as índias e
depois com as negras escravas. Era preciso povoar o território. No momento em que embarcou na aventura
ultramarina, Portugal tinha três milhões de habitantes. O Brasil era imenso; então, como povoar esse território? 

"Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades que
fossem de fé católica. Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar aquela solidariedade
que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós
esplendidamente através de toda a nossa formação colonial."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Foi aqui que chegou...dia 02 de março de 1535...um português chamado Duarte Coelho
Pereira, viu essa bela vista e deu uma exclamação:Oh! linda situação para se construir uma
vila. Por isso que a cidade se chama Olinda. Antigamente chamava Marino Caetês, habitada
pelos índios. Em Pernambuco e no Recôncavo baiano, a colonização se desenvolvia à sombra
das grandes plantações de cana-de-açúcar e das casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, longe
das cabanas de aventureiros e do extrativismo predatório.
"A casa-grande do engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI, a
levantar no Brasil - grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, telhados caídos num
máximo de proteção contra o sol forte e as chuvas tropicais - não foi nenhuma
reprodução das casas portuguesas, mas expressão nova do imperialismo português.
A casa-grande é brasileirinha da silva."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Num processo de equilíbrio de antagonismos, o branco e o negro se misturavam no interior da casa-grande e alteravam as
relações sociais e culturais, criando um novo modo de vida no século XVI. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os
negócios e a religiosidade forjavam, no dia-a-dia, a base da sociedade brasileira.

A casa-grande abrigava uma rotina comandada pelo senhor de engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar
e no escravo. O suor do negro ajudava a dar aos alicerces da casa-grande sua consistência quase de fortaleza. Ela servia de
cofre e de cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão e as mulheres, que fundamentariam a colonização portuguesa no
Brasil. Embora diretamente associada ao engenho de cana e ao patriarcalismo nortista, a casa-grande não era exclusiva dos
senhores de engenho. Podia ser encontrada na paisagem do sul do país, nas plantações de café, como uma característica da
cultura escravocrata e latifundiária do Brasil.

O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a implantação de uma cultura agrícola, nos
moldes do costume europeu. O português teve então de mudar seus hábitos alimentares. A mandioca substituía o trigo; no
lugar das verduras, o milho; e as frutas davam um colorido novo à mesa do colonizador. Mas sua dieta ficava empobrecida,
devido à ausência de leite, ovos e carne, que só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. A terra foi usada para
o cultivo da cana em detrimento da pecuária e da cultura de alimentos, o que provocou a apatia, a falta de robustez e a
incapacidade para o trabalho. Males geralmente atribuídos à mestiçagem. Os portugueses não traziam para o Brasil nem
separatismos político, nem divergências religiosas, e não se preocupavam com a pureza da raça. Assim o país se formava. E a
unidade dessa grande extensão territorial com profundas diferenças regionais, garantida muitas vezes com o uso da força,
aconteceu devido à uniformidade da língua e da religião.

A Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América Latina, toda ocupada por países
de tradição católica. Nessa quase cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas desempenhavam um
papel importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com base na fé católica. Para
catequizar os índios, os jesuítas decidiram vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho
tentava escravizá-los. Nos dois casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes
da terra para o interior.

"Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nos
preconceitos de cor e de moral cristã, vieram defrontar-se na América com uma das populações mais rasteiras do
continente... Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento nem a resistência das grandes
semicivilizações americanas, como os Incas e os Astecas."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

"O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação sexual. O europeu saltava em terra
escorregando em índia nua. Os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam
o pé em carne."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

A sociedade brasileira, entre todas da América, era a que se formava com maior troca de valores culturais. Havia um
aproveitamento de experiências dos indígenas pelos colonizadores. Mesmo quando inimigo, o índio não provocava no branco
uma reação que levasse a uma política deliberada de extermínio, como a que ocorria no México e Peru. A reação dos índios ao
domínio do colonizador era quase contemplativa. O português usava o homem para o trabalho e a guerra, principalmente na
conquista de novos territórios, e a mulher para a geração e formação da família. Esse contato provocava o desequilíbrio das
relações do índio com o seu meio ambiente. 

"Eu sou índio da tribo pataxó. Eu aprendi com meus pais a fazer artesanato. A gente faz cocares..., a
gente vive só disso, de artesanato, a não ser no inverno, quando a gente tem que pescar mucussu.
Mucussu é peixe. A gente planta mandioca para fazer cuiúna, feijão e arroz. A gente fala em pataxó:
jocana baixu significa mulher bonita e jocana baixa é mulher feia."
Paturi, índio pataxó (Coroa Vermelha, BA) 

"A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi uma
presença decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português, talvez até por
motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando escrevi  Casa Grande &
Senzala, as sociedades ameríndias ou índias, inclusive a brasileira, eram sociedades que
precisavam de festivais como que orgiásticos para provocar nos homens, nos machos,
desejos sexuais. O que há de acentuar é o grande papel da índia fêmea na formação
brasileira, essa índia fêmea não só através do relacionamento mencionado sexual, mas
através do papel social que ela começou a desempenhar magnificamente, tornou-se uma
figura capital na formação brasileira."

"Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O
mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo
de coco, reflete a influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em que se embalaria o sono ou a
volúpia do brasileiro."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

A união do português com a índia havia gerado os mamelucos que atuavam como bandeirantes e, junto com os índios,
formavam a muralha movediça da fronteira colonial. O mameluco e o índio, que excediam o português em mobilidade,
atrevimento e ardor guerreiro; que defendiam o patrimônio do senhor de engenho contra o ataque de piratas estrangeiros,
nunca firmaram as mãos na enxada. Os pés de nômades não se fixavam na plantação da cana-de-açúcar.

"Essa arte é descendência dos índios, né! Aí nós somos seguidores já dos índios. A gente ficou fazendo as panelas de barro,
que eu aprendi com meu pai. Meu pai já trabalhava, aí eu fiquei trabalhando. Agora meus filhos também trabalham na mesma
arte."
Zé Galego, artesão (Caruaru, PE).

Dos costumes dos primitivos habitantes da terra eram as relações sexuais e de família, a magia e a mítica que
marcavam a vida do colonizador. A poligamia e a sexualidade da índia iam ao encontro da voracidade do português,
ainda que a vida sexual dos indígenas não se processasse tão à solta quanto o relatado pelos viajantes que aqui
estiveram. Para as tribos mais primitivas, a união do macho com a fêmea tinha época; o costume de oferecer mulheres
aos hóspedes era prática de hospitalidade, quase um ritual. A mulher nativa resgatava o sonho da ninfa, que se
banhava no rio e penteava os longos cabelos negros. Uma imagem deixada pela invasão moura na Península Ibérica e
adormecida no inconsciente do português.

"Figura vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os


imperialistas modernos. Assemelha-se nuns à do inglês; noutros, à do
espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do
conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O
tipo do contemporizador. Nem idéias absolutas, nem preconceitos
inflexíveis. ...Um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em
quedas de água..."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Os portugueses davam uma contribuição criativa ao novo mundo através da produção de açúcar. E
implantavam um sistema econômico que aprenderam com os mouros durante a ocupação da
Península Ibérica. Os mouros, de grande tradição agrícola, introduziram a laranjeira, o limoeiro e a
tangerina e implantaram a tecnologia do fabrico do açúcar em Portugal. O engenho mouro é avô do
engenho pernambucano.
Essa contribuição criativa é que diferenciava o português do holandês e do francês, que para cá
traziam apenas aperfeiçoamentos tecnocráticos. O choque das duas culturas, a européia e a
ameríndia, no Brasil colônia, se dava mais lentamente, não por meio da guerra, mas nas relações
entre homem e mulher, mestre e discípulo. A Igreja ganhava no Brasil capelas simples dentro do complexo arquitetônico da
casa-grande. Lá morava o capelão, que dela tirava seu sustento. E essa mesma Igreja, através dos jesuítas, partia maciça e
indiscriminadamente para a catequização dos índios.

O animalismo e a magia impregnavam a vida dos índios: desde o berço, quando a mãe entoava cantigas de ninar e, já meninos,
nas brincadeiras de imitar animais. Entre os jogos infantis dos curumins, o jogo de cabeçada com a bola de borracha ficava
como contribuição da cultura indígena. Apesar de crescerem livres de castigos corporais e de disciplina paterna, os meninos
estavam sempre em contato com rituais da vida primitiva. Na puberdade eram levados para o baíto, a casa secreta dos
homens, onde passavam por provas de iniciação à fase adulta. Para os padres da Companhia de Jesus, os índios acreditavam
em tudo e aprendiam e desaprendiam os ensinamentos rapidamente. Havia uma enorme quantidade de aldeias espalhadas
pela floresta, que falavam diferentes línguas. Era preciso unificar as tribos para poder pregar a doutrina católica. O menino
indígena servia de intérprete aos jesuítas, que aprendiam com ele as primeiras palavras em tupi. Os padres puderam então
escrever uma gramática, unificando a língua dos Brasis. Estava criando o tupi-guarani.

Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o índio no sistema de colonização que iria
criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat natural, o índio não se adaptava como escravo: morria de infecções, fome e
tristeza. Para suprir a deficiência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano
começavam a importar negros caçados na África. Agora, as escravas negras substituíam as cunhãs tanto na cozinha como na
cama do senhor. Na agricultura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado
internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava finalmente o interesse do Reino de Portugal.

Entre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior
não só à dos índios como também à da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e
viviam quase sem nenhuma instrução, que para escrever uma carta necessitava da ajuda do
padre-mestre. O movimento malê da Bahia, em 1835, foi considerado um desabafo da cultura
adiantada, que era oprimida por outra menos nobre. Contava-se que os revoltosos sabiam ler e
escrever em alfabeto desconhecido. Eram negros que liam e escreviam em árabe.

"Pode-se juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua predisposição como
que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões quentes.
Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta
tropical."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
O Brasil importava da África não somente o animal de tração que fecundou os canaviais, mas também
técnicos para as minas, donas de casa para os colonos, criadores de gado e comerciantes de panos
e sabão.Os negros vindos das áreas de cultura africana mais adiantada eram um elemento ativo,
criador e pode-se dizer nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela condição de
escravos. O negro escravo e a cana-de-açúcar fundamentavam a colonização aristocrática e a
estrutura básica do mundo dos coronéis se repetiria nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais,
Rio de Janeiro e São Paulo, com o mesmo fundamento: a ocupação da terra.
 
Na sociedade escravocrata e latifundiária que se formava, os valores culturais e sociais se misturavam à revelia de
brancos e negros. Sua convivência diária favorecia o intercâmbio de culturas e gerava sadismos e vícios, que
influenciavam a formação do caráter do brasileiro. A escravatura degradava senhores e escravos.

"Na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça de qualquer povo se fundam, parte nas sua instituições
religiosas e políticas, e parte na filosofia, por assim dizer doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o
Brasil quando o consideramos debaixo desses dois pontos de vista?"
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

O senhor de engenho, um homem extremamente rico e poderoso, passava a maior parte do


tempodeitado na rede, cochilando e copulando. Quando saía, a passeio ou em viagem, o negro era
seus pés e mãos. O sinhô não precisava levantar-se da rede para dar ordens aos negros, bastava
gritar. 
Os negros veteranos, os ladinos, iniciavam os recém-chegados na moral e nos costumes dos brancos.
Ensinavam a língua e orientavam nos cultos religiosos sincretizados. Eram ainda os ladinos que
ensinavam aos boçais a técnica e a rotina na plantação da cana e no fabrico do açúcar. 

A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares. Além dos trabalhos forçados,
ele era usado como reprodutor de escravos: era preciso aumentar o rebanho humano do senhor de engenho. As crias
nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A Igreja, esteio dos poderosos, agia da
mesma forma no tratamento dado ao negro. A mulher escrava fazia a ponte entre a senzala e o interior da casa-grande
e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas e
domésticas. Objeto dos desejos sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra sofria por
parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta
mandava arrancá-los. A escrava adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, mas cumpria as
tarefas que normalmente estariam destinadas à mãe de família. As damas da sociedade se casavam entre os doze e os
quinze anos com homens muito mais velhos. O conhecimento que tinham da vida de casada, os acontecimentos de
fora do engenho e outras histórias - nem sempre românticas - elas ouviam da boca das mucamas. As sinhazinhas
sentadas à mourisca, tecendo renda ou deitadas na rede e as escravas a lhes catar piolho ou fazendo cafuné. Cedo se
casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos ou se tornavam matronas aos dezoito anos. O ócio e a vida
reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas. E ignorantes: era raro encontrar uma que soubesse ler e escrever. A
presença da negra na vida do menino vinha desde o berço, quando ela o amamentava e acalentava o seu sono. A ama
de leite ensinava as primeiras palavras num português errado, o primeiro "pai nosso", o primeiro "oxente", e amaciava
com a própria boca a comida do menino de engenho. Os sofrimentos da primeira infância - castigos por mijar na cama
e purgante uma vez por mês os meninos descontariam tornando-se pequenos diabos. O moleque, o pequeno escravo,
companheiro do sinhozinho em brincadeiras e aventuras, servia também de saco de pancadas. Tornava-se objeto do
prazer mórbido de tratar mal os inferiores e os animais, prazer de todo menino brasileiro filho do sistema escravocrata.
Criança mimada e educada para ser o herdeiro todo-poderoso, o menino desde o início da adolescência era entregue
aos cuidados eróticos da fulô. 

"Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes
de se haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse
contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo
dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens sobrinhas; exagerava-se, então, o
sentimento da propriedade privada. As heranças eram disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Aos filhos
bastardos, gerados nas casa-grande e paridos na senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer os libertava. Nomes e
sobrenomes se confundiam: os escravos mais próximos, que ganhavam a simpatia do senhor, conseguiam adotar o sobrenome
dos brancos. Na tentativa de ascensão social, os negros imitavam dos senhores as formas exteriores de superioridade. Mas
muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos apelidos indígenas e africanos das propriedades rurais - a terra recriava
os nomes dos proprietários à sua imagem e semelhança.
A música, o canto e a dança dos escravos tornavam a casa-grande mais alegre. A risada do negro
quebrava a melancolia e o silêncio infinito do senhor de engenho. As mães negras e as mucamas,
aliadas aos meninos, às moças das casas-grandes e aos moleques, corrompiam o português arcaico
ensinado pelos jesuítas aos filhos do senhor. A nova fala brasileira não se conservava fechada nas
salas de aula das casas-grandes, nem se entregava de todo à maior espontaneidade de expressão da
senzala. Mas o modo carinhoso do brasileiro colocar os pronomes: me diga, me espere... vem do
africano. Também do seu modo de falar ficaram as formas diminutivas: benzinho, nézinho, inhozinho.

Era um novo jeito de falar, um novo jeito de andar, um novo jeito de comer... A culinária da senzala aproveitava as sobras de
carnes da casa-grande, usava o aipim indígena e as verduras, misturava aos temperos africanos, principalmente o dendê e a
pimenta malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá. Alimentos que combinavam com a dureza do trabalho no
cativeiro. As crenças e magias trazidas pelos portugueses eram transformadas em feitiçaria nas mãos dos africanos. Aos
negros feiticeiros recorriam os senhores brancos idosos a procura de afrodisíacos; as jovens sinhás, que não conseguiam
engravidar; e as belas mucamas, que aprendiam a receita do café mandingueiro, um filtro amoroso feito com café bem forte,
muito açúcar e sangue de mulata. 

Na religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo praticado aqui era uma religião
doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros
certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro. Nasciam então as
religiões afro-brasileiras: São Jorge é o orixá Ogum e Nossa Senhora é Iemanjá. 

"Esse terreiro tem 110 anos. A minha avó era descendente de escravos. Tinha uma aldeia que se
chamava Catongo. Nessa aldeia ela também cultivava os orixás, quando chegavam assim os
escravos chicoteados de outros lugares, fazendas, engenhos, essas coisas. Aí ela curava com aquelas difusões de ervas, né,
aqueles remédios das folhas, e curava esses escravos, que ficavam gratos e acabavam ficando com ela. Quer dizer, ela era
assim uma espécie de protetora desses escravos. E a minha mãe falava que era uma senzala, onde ela abrigava esses
escravos." 
Ilza R.P. Santos, mãe-de-santo (Ilhéus, BA) (??) 

"Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram
comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de
muitos. O banzo - a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram, mas
ficaram penando."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Os negros, muitos agora, libertos pela alforria, pela revolta ou pelas fugas, unidos nos quilombos, lutavam pelo fim da
escravidão. Aliavam-se aos ideais libertários os filhos de poderosos senhores de engenho que se tornavam abolicionistas por
motivos econômicos, humanitários ou, simplesmente, pelo apego que tinham às suas mães de leite. 

" Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como no
Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa
nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela pudesse ser doce em
algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na
perspectiva de quem estivesse na senzala." 
Florestan Fernandes, cientista social. 

Em 1984, numa de suas últimas entrevistas, o escritor Gilberto Freyre resumia o seu pensamento
sobre a situação presente do negro, lembrando o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco: 
"O problema é que a abolição da escravatura, embora tenha sido fato notável na história da formação brasileira, foi
muito incompleta."

  Com a abolição, os problemas do negro estariam apenas começando. Mas quem se interessou por isso? Ninguém se
interessou. O negro livre deixou as fazendas e os engenhos e foi inchar as periferias das cidades. Abandonado, constituiu-se
num sub-brasileiro. 

"Todo mundo... não quer se encontrar com os pretos,


não quer, só quer se ligar aos brancos. Mas isso naquela época a Princesa Isabel libertou! Cabou-
se, né! esse negócio de não querer se encontrar com o negro.
Porque tristes dos brancos se não fosse o sangue do negro."
Maria Madalena Correia, cantora (Ilha de Itamaracá, PE).

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