A entrada de Millerand para o gabinete Waldeck-Rousseau merece ser estudada
do ponto de vista da tática e dos princípios tanto pelos socialistas franceses como pelos estrangeiros. A participação ativa dos socialistas em um governo burguês é em todo caso fenômeno que ultrapassa os moldes da atividade habitual do socialismo. Trata-se aqui de uma forma de atividade tão justificável e tão oportuna para os interesses do proletariado como, por exemplo, a atividade no Parlamento ou no Conselho municipal, ou, ao contrário, de uma ruptura com os princípios e a tática socialistas? Ou então será a participação dos socialistas no governo burguês um caso excepcional, admissível e necessário em determinadas condições, mas condenável e mesmo nefasto em outras? Do ponto de vista da concepção oportunista do socialismo, tal como se manifestou nestes últimos tempos em nosso partido e particularmente nas teorias de Bernstein — isto é, do ponto de vista da introdução progressiva do socialismo na sociedade burguesa — a entrada de elementos socialistas no governo deve parecer tão desejável como natural se se pode introduzir progressivamente por pequenas doses, o socialismo na sociedade capitalista, e se o Estado capitalista pode por si mesmo, pouco a pouco, transformar-se em Estado socialista, a admissão cada vez maior de socialistas no seio do governo burguês seria mesmo consequência muito natural do desenvolvimento progressivo dos Estados burgueses, correspondendo inteiramente à pretensa evolução destes para uma maioria socialista nos corpos legislativos. Se destarte a participação ministerial de Millerand corresponde à teoria oportunista, não é menos concordante com a prática oportunista. Uma vez que a linha diretora desta prática é constituída pela obtenção de resultados imediatos e tangíveis, por quaisquer meios, a entrada de um socialista no governo burguês deve significar um sucesso inapreciável para os "políticos práticos". Com efeito, o que não saberá realizar um ministro socialista no terreno das pequenas melhorias, de harmonização e apaziguamento social de toda sorte! Se, ao contrário, se partir do ponto de vista que só com a ruína da ordem capitalista pode ser encarada a introdução do socialismo, e que a atividade socialista no presente se reduz à preparação objetiva e subjetiva desse momento, por meio da luta de classe, põe- se de outro modo a questão. É sem dúvida evidente que a social-democracia, para que sua ação seja efetiva, deve galgar todas as posições acessíveis no Estado atual e que deve ganhar terreno de todos os lados. Mas com uma condição: que essas posições permitam a continuação da luta de classe — a luta contra a burguesia e o seu Estado. Ora, desse ponto de vista, há uma diferença essencial entre os corpos legislativos e o governo de um Estado burguês. No Parlamento, quando os operários eleitos não conseguem o triunfo de suas reivindicações, podem pelo menos continuar a luta persistindo numa atitude de oposição. O governo, contrariamente, tendo por tarefa a execução de leis, a ação, não comporta em seus moldes uma oposição de princípios; tem de agir constantemente, e por cada um de seus órgãos; deve, por conseguinte, mesmo quando formado de membros de partidos diferentes, como o são há alguns anos na França os ministérios mistos, ter constantemente uma base de princípios comuns que lhe dê a possibilidade de agir, isto é, à base da ordem reinante — em outras palavras, à base do Estado burguês. Em suma, pode o mais extremo representante do radicalismo burguês governar ombro a ombro com o mais reacionário dos conservadores. Um adversário por princípio do regime existente encontra-se diante da seguinte alternativa: ou fazer constantemente oposição à maioria burguesa do governo, isto é, não ser de fato membro ativo do governo, ou então colaborar, desempenhar cotidianamente as funções necessárias à conservação e à marcha da máquina estatal, isto é, não ser de fato socialista, pelo menos nos limites de suas funções governamentais? Sem dúvida, o programa da social-democracia contém reivindicações que — abstratamente falando — poderiam ser aceitas por um governo ou por um Parlamento burguês. Por isso, à primeira vista é possível que se imagine que, um socialista pode, no governo como no Parlamento, servir à causa do proletariado, esforçando-se por arrancar em benefício deste tudo que for possível obter no domínio das reformas sociais. Mas, aí ainda, vem à cena um fato que a política oportunista sempre esquece, o fato de que, na luta da social-democracia, não é o que, mas o como o que importa. Quando os representantes sociais-democratas procuram realizar reformas sociais nos corpos legislativos, têm, pela sua oposição, simultânea ao governo e à legislação burguesa em conjunto — o que vem achar expressão clara, por exemplo, na recusa do orçamento — ampla possibilidade de dar igualmente à luta pelas reformas burguesas um caráter socialista e de princípio, o caráter de luta de classe proletária. Ao contrário, procurando introduzir as mesmas reformas sociais como membro do governo, isto é, sustentando ao mesmo tempo o Estado burguês, o social-democrata que o faz é reduzir de fato o seu socialismo (na melhor das hipóteses) a um democratismo burguês ou a uma política operária burguesa. Assim, enquanto o progresso dos sociais-democratas nas representações populares conduz ao reforçamento da luta de classe, a sua penetração nos governos só pode trazer às fileiras da social-democracia a confusão e a corrupção. Em um só caso podem os representantes da classe operária entrar num governo burguês, sem renegar a sua razão de ser: para apossar-se dele e transformá-lo em governo da classe operária senhora do poder. Sem dúvida, na evolução, ou antes no declínio da sociedade burguesa, pode haver momentos em que a tomada final do poder pelos representantes do proletariado ainda não seja possível mas onde, todavia, a sua participação no governo burguês se apresente necessária: por exemplo, quando se trata da liberdade do país ou de conquistas democráticas tais como a república, numa ocasião em que o governo burguês esteja precisamente comprometido e já desorganizado demais para que o povo se resolva a segui-lo, sem o apoio dos deputados operários. Num tal caso, bem entendido, os representantes do povo trabalhador não teriam o direito de se esquivar à defesa da causa comum, por simples amor abstrato aos princípios. Mas, mesmo nesse caso, a participação dos sociais-democratas no governo deveria ser feita de forma a não deixar a menor dúvida, nem à burguesia nem ao povo, sobre o caráter passageiro e a finalidade exclusiva de sua ação. Em outras palavras, a participação dos socialistas, mesmo nesse caso, não deveria ir até a solidariedade, em geral, com a atividade e existência deste último. Não me parece que seja esta a atual situação em França, pois que os partidos socialistas, de antemão e sem considerar a participação ministerial, se tinham declarado prontos a apoiar qualquer governo republicano, ao passo que hoje, com a entrada de Millerand no ministério, entrada essa que se deu, em todo caso, sem o assentimento de seus colegas, esse apoio assusta até certo ponto os socialistas. Seja como for, não se trata aqui, de julgarmos o caso especial do gabinete Waldeck-Rousseau, e sim de deduzir de nossos princípios fundamentais uma regra de conduta geral. Desse ponto de vista, a participação socialista em governos burgueses se apresenta como experiência que só pode resultar num grande prejuízo para a luta de classe. Na sociedade burguesa, a social-democracia, pela sua própria essência, está destinada a desempenhar o papel de partido de oposição; só passando por cima das ruínas do Estado burguês poderá ela ter acesso ao governo.