C. G. Jung e o significado Pós-Moderno do “Significado”
David L. Miller
A psicologia profunda – junto com a física pós-einsteniana, a linguística estruturalista
pós-saussureana, e a filosofia pós-heideggeriana – é uma contribuidora para a revolução do significado de “significado” no século vinte. Em relação a essa revolução, certamente não é suficiente dizer, como Thomas Kuhn, que o paradigma do significado mudou. As transformações indicadas por essas disciplinas são tão radicais que tornaram o próprio paradigma de “paradigma” irrelevante, já que pertence a um significado de “significado” que implica um princípio aristotélico de identidade. Termos como “charme” na física e glissement na semiótica indicam um princípio fundamentalmente diferente trabalhando nas suas lógicas, um princípio de diferença que, como queria Bachelard, é radicalmente não-aristotélico. Foi mostrado por Jacques Lacan, Julia Kristeva e Norman O. Brown (entre outros) que as descobertas e o discurso de Freud compartilham e promovem a descentralizadora revolução copernicana no pensamento, mesmo contra a intenção de Freud e sua retórica redutiva. Embora ele tenha sido limitado pelo seu próprio uso de uma lógica mecanicista causal e uma noção cientificista habitual de “significado”, os textos de Freud revelam a natureza revolucionária do seu próprio pensamento sobre o pensamento. O mesmo é verdade em relação a Jung. Este último é totalmente participante em um momento radical no que C. K. Ogden e I. A. Richards chamaram de “o significado do significado”, e embora a dicção da linguagem de Jung disfarce as implicações revolucionárias do seu pensamento, elas estão presentes com ousadia nos seus textos. Pouco foi feito (com a exceção da obra de Paul Kugler e Ed Casey) para mostrar esse lado dos escritos de Jung, que pretendemos mostrar a seguir. Que o próprio Jung estava interessado na questão do significado do “significado”, caso isso ainda não fosse óbvio, foi estabelecido por Aniela Jaffé no seu livro O Mito do Significado na Obra de C. G. Jung. Contudo, Jaffé parece localizar o senso de suposto “significado” de Jung em um paradigma “unitário”, obscurecendo assim sua natureza radical. Ela observa que Jung identificou um senso de falta de sentido com a psiconeurose, e relata que Jung “valorizava a ansiosa esperança de que o significado iria prevalecer” sobre a falta de sentido. Sentimentos como esse são claramente regidos mais por um princípio aristotélico de identidade do que por uma perspectiva pós- moderna de diferença. Contudo, como já vemos no título de Jaffé, onde “significado” é considerado (como no próprio livro) um “mito”, há uma falha na armadura de aristotelismo protetor. De fato, Jaffé observa que para Jung o “mito do significado é o mito da consciência”, o que nos próprios termos de Jung torna “significado” unilateral ou neurótico. Além disso, Jaffé dá a um dos seus capítulos o título “A Realidade Oculta”, referindo-se ao fato de que a natureza do suposto “significado” é algo que nunca pode ser aparente ou expresso. Jaffé diz que “até o fim de sua vida Jung reservava um lugar para o significado e a falta do significado no seu esquema de coisas”. E Jaffé relata fielmente que o que Jung pensava que o “significado” era uma “conjectura”, e que certa vez, na sua velhice, ele estava conversando na sua casa com um grupo de psiquiatras dos EUA, Inglaterra e Suíça, e depois de dizer-lhes que precisavam criar um mito do significado para eles mesmos, Jung acrescentou, “então vocês precisam aprender a se tornarem inconscientes de modo decente”. De fato, embora Jung apreciasse termos suspeitosamente aristotélicos, como “identidade”, “identificação”, “união”, unio mentalis, “função unificadora”, “harmonia” e “coincidência”, e ainda que Jung frequentemente escrevesse dogmaticamente que isso é aquilo, ou que tais e tais coisas inequivocamente se referissem à “anima”, “sombra” ou “Self”, quando ele refletia sobre a natureza das suas próprias reflexões psicológicas, das palestras de Zofingia nos seus dias de estudante até o final da sua vida, há sempre um adiamento da certeza nas identificações e uma afirmação de duplicidade e diferença no interesse de autoconhecimento realista e generosidade terapêutica. Em momento algum essa fronteira radical do pensamento crítico de Jung torna-se mais explícito do que no seu uso da expressão “nada além de” (nichts als). Foi de William James que Jung pegou emprestada essa expressão, usada por ele com tanta frequência. James havia escrito no seu livro sobre pragmatismo que “quando o que é superior é explicado pelo que é inferior e tratado sempre como um caso de “nada além de””, o raciocínio é defeituoso. Jung ampliou o uso de James dessa expressão para incluir o pensamento sobre algo cuja natureza é incognoscível como se pudesse ser conhecido e, mais simplesmente, pensar ou falar sobre algo de uma maneira unilateral ou definida quando uma humilde reticência ou generoso agnosticismo teria sido mais apropriado. Jung admitiu que o mundo prefere um “significado” regido pelo princípio de identidade, que torna noções de “nada além de” possíveis. Ele escreveu: “pacientes e médicos querem ouvir que a neurose é um “nada além de””. Contudo, ao contrário da maioria das pessoas e da sua profissão, Jung era intensamente – ou mesmo apaixonadamente – oposto a tal pensamento sobre seu próprio pensamento. Ele atribuía ao pensamento “nada além de” adjetivos como “repressor”, “insalubre”, “neurótico”, “unilateral”, “desalmado”, “banal”, “mefistofélico”, “obsessivo”, “infantil”, “histérico”, “destrutivo”, “estéril”, “reducionista” e “barato”. A linguagem de Jung é forte, e depõe contra os junguianos, tanto quanto os freudianos, quando os primeiros caem no hábito de dizer, “este é um problema da anima”, ou “aquele é um complexo pai-filha”, acreditando assim que alguém disse alguma coisa. Não surpreende que Jung tenha dito “graças a Deus eu... não sou junguiano” e tenha até mesmo afirmado, “só posso esperar e desejar que ninguém se torne “junguiano””. De fato, no caso de Freud, Jung observou que o pensamento “nada além de” frequentemente é, nas suas palavras, “o destino da segunda geração” dos seguidores de grandes pensadores. Jung vinculou explicitamente a “certeza”, no sentido cartesiano, com o pensamento “nada além de”, e preveniu que tais fantasias em relação ao próprio conhecimento e compreensão eram mecanismos de defesa e proteção contra a ameaça percebida do desconhecido. Jung, por sua vez, era “claro” quanto a não ser claro. Ao falar sobre o pensamento “nada além de”, observou: “acredito não ter dado espaço para o mal-entendido de que sei qualquer coisa sobre a natureza do “centro” [do Self] – pois ele é simplesmente incognoscível...” Novamente, Jung escreveu: “todos nós temos demais o ponto de vista da psicologia “nada além de”, isto é, ainda pensamos que o novo futuro que está forçando a porta pode ser espremido para caber na moldura do que já é conhecido”. Em uma carta, ele observa que “não há como aprender psicologia analítica estudando o seu objeto, já que ele consiste exclusivamente daquilo que você não sabe sobre si mesmo”. Quando Heinrich Zimmer dedicou um livro a Jung com as palavras “mestre daqueles que sabem”, Jung escreveu a Zimmer, censurando-o por dizer isso: “sua gentil dedicatória... contudo, oculta que tudo que eu sei vem do meu domínio do não-saber”. Jung corrigiu outro admirador pelo correio, dizendo “o conceito do inconsciente não propõe nada, só designa o meu desconhecimento”. Nas suas memórias, Jung observou que ao utilizar o termo “inconsciente”, o discurso da psicologia profunda está “admitindo que não sabe nada sobre ele, pois ele não pode saber nada sobre a substância da psique quando o único meio de conhecer alguma coisa é a psique”. E em “Resposta a Jó”, Jung escreveu “estou ciente de que me movo em um mundo de imagens, e que nenhuma das minhas reflexões toca a essência do incognoscível”. Coerente com essa deferência baseada no princípio da diferença, Jung afirma, no fim de suas memórias, que concorda com Lao Tzu: "Todos os seres possuem clareza; só eu permaneço obscuro". Ou seja: todos estão com Descartes e Aristóteles, mas “significado” para mim tem um significado diferente. Em 1906, Jung escreveu em apoio às “leis de associação... simultaneidade... [e] similaridade” de Aristóteles. Esse era o período em que Jung estava trabalhando com testes de associação de palavras. Mas à medida que sua vida e trabalho evoluíram, sua visão contra Aristóteles tornou-se tão dura quanto sua visão contra a natureza adamantina do pensamento “nada além de”. Já em 1964 ele prevenia contra as pessoas que hesitavam em jogar fora pressupostos filosóficos anteriores, e em 1938 em Eranos ele argumentou que um “raciocínio aristotélico” produz um “nominalismo” no pensamento que de modo geral trabalha contra a psicologia profunda e particularmente contra o conceito de arquétipo. À medida que Jung avançou no seu interesse posterior na lógica da alquimia como um análogo para a lógica da psicologia profunda, suas declarações contra os princípios aristotélicos do raciocínio tornaram-se ainda mais fortes. Ele cita o alquimista Dorn: “aquele que deseja aprender a arte alquímica não deve aprender a filosofia de Aristóteles, mas sim aquela que ensina a verdade... pois os seus ensinamentos... são os melhores mantos para mentiras”. E Jung menciona com aprovação o pedido e Padrizi ao Papa Gregório XVI de permitir que Hermes substitua Aristóteles como o filósofo da Igreja! Nas suas memórias, Jung diz que no início da sua carreira ele “ainda não havia encontrado a linguagem certa” para o seu trabalho, masque com a alquimia ele descobriu “uma imaginação mitopoética”, em oposição ao pensamento “nada além de”. Jung escreveu: “... percebi a concordância entre esse mito poético [a lenda do Graal] e o que a alquimia tinha a dizer sobre o unum vas, a una medicina, e a unus lapis”. Assim, Jung chegou a uma compreensão poética, mítica, simbólica e metafórica do significado do “significado” no seu próprio discurso psicológico. A unidade nunca mais poderia ser concebida sob o princípio aristotélico da identidade. A maneira como Jung lidou com o conceito da unus lapis, a “pedra [filosofal], “mostra o pensamento de Jung regido pelo princípio não da identidade, mas da diferença, já que, em relação à ideia da lapis philosophorum, Jung afirma diretamente que não é possível tirar dela algum sentido com o raciocínio “nada além de”. A “pedra filosofal”, diz Jung, era a meta da opus alquímica, e, por analogia, era a meta da terapia (isto é, individuação) também. Jung gostava de citar a injunção alquímica “transformem-se em pedras filosofais vivas!” Mas o que isso quer dizer? O que é essa pedra? É muitas coisas, com certeza, mas é uma só. De fato, ela é o um e os muitos, e ao mesmo tempo o mediador entre o um e os muitos. É um pássaro, e é a sua comida. É seu corpo e carne, e é espírito e vida. É a dor, e, na forma do Cristo, é a salvação da dor. Acima de tudo, é uma pedra (comum e rejeitada pelas pessoas como sendo sem importância), e, no entanto, não é uma pedra. Jung frequentemente citava a fórmula “lithos ou lithos”, a pedra que não é uma pedra. Fica claro que nenhum significado do “significado” que baseado em um princípio de identidade está implicado nisso. De fato, embora a “pedra” tenha fala, ou seja linguagem, seu discurso, de acordo com Jung, é o da imagem e metáfora. Todo o conhecimento da “pedra” e por meio da “pedra” é metafórico ou, como Jung gostava de dizer, simbólico. Jung enfatizou isso repetidamente. Se a alquimia, na própria visão de Jung é a pista para a natureza da lógica do seu discurso psicológico, se o lapis philosophorum é o “tesouro” daquele discurso que fala por si mesmo, e se voltar-se para a lógica da alquimia para uma psico-lógica profunda significa afastar-se de Aristóteles e do pensamento do tipo “nada além de”, então uma transformação radical do significado do dito “significado” é implicado nos textos maduros de C. G. Jung. Não surpreende que a simbologia da pedra tenha sido uma pista para o sentido radical de Jung do significado do “significado”. Ele nos conta como na sua infância ele costumava sentar-se em uma pedra específica diante do muro do pátio quando se sentia perturbado por questões de “significado”. Sentado na pedra, sua perplexidade era substituída por um novo enigma. Nas palavras de Jung, “a questão então surgia: ‘sou eu quem está sentado na pedra, ou sou eu a pedra onde ele está sentado?’”. Mesmo na meia-idade, Jung voltava àquela pedra e sentava-se nela, perguntando-se “se ela era eu ou se eu era ela”. Jung relata que sempre que pensava sobre o “significado secreto” da pedra, o conflito entre o significado e a falta de significado cessava. A pedra, disse Jung, era “o Outro em mim”. Foi certamente este outro Jung, falando “como poeta”, como Russell Lockhart explicou tão bem, que disse: “a vida no seu cerne é aço sobre pedra”. Em relação à “substância desejada, a lapis”, a unidade representada por ela enquanto meta, segundo Jung, “não é realmente uma questão de identificação”. O princípio da identidade de Aristóteles não é aplicável. Antes, como diz Jung, é na verdade uma questão do sicut hermenêutico – “como” ou “semelhante a”. Por meio dessa estratégia, observa Jung, “o alquimista... realça... a humildade”. Assim, Jung viria a dizer que o Self, que é como a “pedra” que não é uma pedra, é de tal natureza que o discurso psicológico “preferiria não falar dela”. Nesse sentimento, Jung estava repetindo um comentário sobre a lapis feito em Eranos em 1935 por Rudolf Bernoulli. Este disse: “não existem palavras ou imagens adequadas para comunicar isso... e os poucos que a conheceram só encontraram um modo de expressão: o silêncio”. Não é preciso dizer que esta perspectiva corresponde à visão de Jung da função do conceito de “inconsciente” na psicologia profunda. Ela também corresponde à noção de Jung do que ele chamava de “o arquétipo do significado”. Esse complexo psicológico era representado, para Jung, por figuras como a Velha Sábia e o Velho Sábio. Mas como essas figuras sempre se apresentavam com dois lados – isso é, como diferença simultânea – o significado do “significado” expresso em tais figuras imaginais tinha de ser constantemente evitado, tornando o psicólogo – como o alquimista – agnóstico, irônico e humilde. Jung, como Heidegger, veio a perceber que se insistíssemos demais no “significado” do tipo Aristotélico, seria apenas uma questão de tempo até que esse próprio “significado”, através daquilo que Jung chamava de uma “ousada enantiodromia”, se transformasse no seu oposto. A falta de significado está integrada no próprio arquétipo do significado. O caminho da sabedoria consiste em evitar o julgamento unilateral em relação ao significado. Essa evitação no interesse da diferença individuada é exatamente o que o neologismo différance de Jacques Derrida pretende sugerir. Sua intenção é realçar tanto a “diferença” ontológica, como fizeram Kierkegaard e Heidegger, e sugerir a permanente “evitação” humana das identificações com e apegos a pretensões de verdade e alegações de “significado”, tudo no interesse do respeito à vida e saúde, sem falar nas boas maneiras. A ideia nesse deslocamento da identidade à diferença é viver entre “unidades de diferença [na vida] que não oferecem ressonância de relação” sem exigir de si mesmo ou do seu objeto uma concordância ou identificação. A atmosfera de diferenciação (ou individuação, como Jung a chamava), em vez de identificação, consiste em deixar as coisas serem, permitindo que mundos se apresentem, colocando entre parênteses a questão de “significado” ou “falta de significado” do modo como fazem essas filosofias orientais que enfatizam a “ipseidade” (suchness) [N.T.: também traduzida como “talidade”). A obsessão com a certeza, com a verdade e o dito “significado” dariam lugar a viver no maravilhoso mundo da multiplicidade, sendo com tais mundos como eles são, em um modo de generosidade e humildade em relação à verdade e “significados”. A maneira de Jung de expressar essa différance pré-derrideana foi usar o termo “simbólico”. “Cada ponto de vista”, ele escreveu, “que interpreta a expressão simbólica como sendo análoga a uma designação abreviada para alguma coisa conhecida é semiótico. Um ponto de vista que interpreta a expressão simbólica com a melhor formulação de uma coisa relativamente desconhecida, que por esse motivo não pode ser expressa de modo mais claro ou característico, é simbólico”. Essa é uma distinção bem conhecida entre sinais e símbolos que ocorre nos meios junguianos, tillichianos e em outras ortodoxias pós-kantianas do início do século vinte. Os sinais apontam para algo conhecido; os símbolos participam daquilo para o qual apontam e envolvem profundidade, mistério e o desconhecido. Eles são o modo apropriado para a humildade epistemológica. Mas como James Hillman, entre outros observou, com o passar do tempo o simbolismo se afastou do desconhecido na direção do conhecido. Na ortopraxia psicológica junguiana, sabemos que gatos nos sonhos dos homens “significam” a anima, que ovos nos sonhos de uma mulher “significam” a fecundidade, e assim por diante. Aristóteles e seu princípio de identidade retornam, e Jung e a profundidade da sua psicologia são perdidos. Há uma ironia nisso. Na linguística pós-saussureana, a semiologia indica a natureza radicalmente cheia e hiatos ou paratática do dito “significado” onde o princípio da diferença é honrado. O simbolismo agora indica a presença de uma segurança semântica residual baseada no princípio de identidade de Aristóteles. Se Jung fosse fazer hoje sua observação sobre um discurso psicológico implicando um “desconhecimento”, ele teria de chamá-lo de “semiótico” para proteger a radicalidade da natureza do seu significado do destino da segunda geração que lida com símbolos, não simbolicamente, mas como significações de conhecimento. Então, não é surpresa que Jung, de modo positivamente pós-moderno, quando tinha cinquenta e quatro anos, tenha escrito: “a vida é louca e significativa ao mesmo tempo. E quando não rimos sobre o primeiro aspecto e especulamos sobre o outro, a vida é excessivamente monótona, e tudo é reduzido à menor escala. Há então pouco senso e muito pouco nonsense. Quando pensamos sobre o assunto, nada tem significado, quando não há ninguém para pensar, não há ninguém para interpretar o que aconteceu. Interpretações são apenas para aqueles que não compreendem...” Vinte e nove anos depois, aos oitenta e quatro anos, Jung acrescentou: “o elemento que pensamos ter mais peso que o outro, seja o significado ou a falta de significado, depende do temperamento... Provavelmente, como todas as questões metafísicas, ambos são verdadeiros: a vida é – ou tem – significado e falta de significado”. O dito “significado” é para sempre evitado. A diferença psicológica e a diferenciação são afirmadas. A “pedra” não é uma pedra.