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CIÊNCIA E PESQUISA CENTRADAS NA PESSOA: TRÊS MODELOS E SEUS

EFEITOS NA CONDUÇÃO DA INVESTIGAÇÃO ACADÊMICA

PERSON-CENTERED SCIENCE AND RESEARCH: THREE MODELS AND ITS


EFFECTS ON CONDUCTING ACADEMIC INVESTIGATION
Yuri de Nóbrega Sales
Universidade Autónoma de Lisboa

ARTIGO
André Feitosa de Sousa
Universidade Autónoma de Lisboa
Francisco Silva Cavalcante Junior
Universidade Federal do Ceará-UFCE

Resumo
Este artigo busca delinear, em uma perspectiva conceitual que se vale de
aportes históricos, três modelos metafórico-imagéticos de ciência que são
distintos e que podem ser derivados da teoria de Carl Rogers. Enquanto os
dois primeiros foram consolidados antes de 1987, ano do seu falecimento, o
terceiro, aqui apresentado apenas de forma introdutória, pode ser
considerado um desafio póstumo originado do conceito de Tendência
Formativa, proposto pelo autor já na década de 1970. Parte-se da
compreensão que a Abordagem Centrada na Pessoa herdou uma dimensão
científica e uma postura acadêmica que devem ser atualizadas na
contemporaneidade ou descartadas enquanto elementos defasados. Para
realizar tal julgamento, entretanto, é preciso conhecer a racionalidade
imagética que embasa estes dois modelos consolidados de ciência, tarefa
brevemente realizada neste artigo, e conceber as possibilidades
metodológicas provindas do conceito de tendência formativa.

Palavras-
Palavras-chave:
chave terapia centrada no cliente; ciência; métodos de pesquisa;
construção de conhecimento;

Abstract
This article aims at discussing three distinct metaphorical-imagetic models
for describing scientific activity, based in an approach which recovers
historical references as to provide conceptual framework inspired on Carl
Rogers´ theory. While the first two were developed before his death in
1987, the third was mentioned here in an introductory view, considered a
post-mortem challenge inherited by the concept of Formative Tendency as
conceived during the 1970s. Understanding the Person Centered Approach
as the heir of a particular scientific dimension and academic posture the
authors argue how to actualize those templates for contemporary days as to
avoid dismissing those elements completely. In order to apply adequate
criterias, it is urgent to acknowledge the imagetic rationally supporting
those two previous scientific models and imagine the methodological
possibilities related with the concept of Formative Tendency.

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Keywords: Client-Centered Therapy; Science; Research Methods; Knowledge


Building;

Resumen
Este artículo intenta esbozar, desde una perspectiva conceptual que se
nutre de aportaciones historicas , tres modelos metafóricos de la ciencia
que son distintos y se pueden derivar de la teoría de Carl Rogers. Mientras
que los dos primeros se consolidaron antes de 1987, año de su muerte, el
tercero, que aquí se presenta sólo de manera introductoria, se puede
considerar un desafío póstumo originado del concepto de tendencia
formativa, ya propuesta por el autor en los años 1970. Se inicia con el
entendimiento de el enfoque centrado en la persona hereda una dimensión
cientifica y una postura acadêmica que deben ser actualizadas en la
contemporaneidad o retrasado como elementos obsoletos. Para hacer tal
juicio, sin embargo, se debe conocer la racionalidad imagética que subyace
de estos dos modelos consolidados de la ciencia; una tarea que se realiza
brevemente en este artículo, y concebir posibilidades metodológicas del
concepto de tendencia formativa.

Palabras
Palabras clave: terapia centrada en el cliente; ciencia; construción de
conocimiento; métodos de investigación.

Contextualizando Imagens profissionais da Abordagem Centrada na


Pessoa (ACP) aos cenários e disputas
Para os historiadores da Psicologia no acadêmicas. No que diz respeito
Século XX, é inegável a contribuição do especificamente ao caso do Brasil, parece que
pesquisador e psicoterapeuta norte- esta abordagem está perdendo sua vitalidade
americano Carl Rogers para o científica e inserção nas atividades da
desenvolvimento e difusão da Psicologia vanguarda de pesquisa e atualização de
científica, tanto pelos métodos de pesquisa conhecimentos.
desenvolvidos por este pensador, como por Acreditamos que uma parcela desta
suas descobertas no campo da psicoterapia, “diáspora acadêmica” deve-se à
processos grupais, mediação de conflitos e incompreensão da herança científica da ACP,
outras atividades do campo psicológico. bem como à dificuldade de contribuir,
Rogers está, portanto, localizado na transformar e subverter este modo histórico
genealogia dessa Psicologia Moderna, como de relacionar-se com a ciência, quiçá
um cientista de percurso acadêmico notável empoeirado de afetos enrijecidos e ideias
que fez avançar os pressupostos que herdou residuais daquela curiosidade endêmica que
da ciência que lhe foi anterior, ao tempo em Rogers e seus companheiros outrora
que contribuiu para formulações e demandas encontravam na prática da pesquisa
do seu tempo. Entretanto, para o próprio científica.
Rogers, como podemos constatar por meio da Buscando, por conseguinte, desvendar
sua biografia, a relação com a ciência sempre alguns pontos conceituais dos modelos de
foi caracterizada por certo traço de ciência apoiados e/ou praticados por Rogers
ambiguidade e tensão. nas décadas passadas e motivados com a
Nas décadas mais recentes, este possibilidade de vislumbrar uma nova
“desconforto” originalmente herdado de experiência científica e de pesquisa na
Rogers, migra para uma desvinculação de contemporaneidade, pretendemos neste

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artigo discorrer sobre três modos de mineração é inconcebível sem o refugo


expressões ou metáforas científico- (p.31, grifo nosso)
metodológicas de pesquisa utilizadas na
tradição da Psicologia Humanista, A ciência tomou uma forma particular
especialmente aquelas vinculadas à história da atividade humana ocidental, da qual até
da Abordagem Centrada na Pessoa. hoje somos herdeiros, em certa medida
Cada metáfora é um conjunto imagético cúmplices de uma visão de Modernidade.
e estruturante de pressupostos sobre o que é René Descartes, eminente filósofo do
a natureza do ser humano e o conhecimento pensamento Ocidental, buscou concretizar,
produzido por ele. Estas imagens formam o com ímpeto e destreza conceitual, o ideal de
território implícito, numa combinação de uma verdade universal, capaz de garantir um
afetos, ideias e crenças, de toda concepção conhecimento seguro, formulando, para
metodológica. As duas primeiras referem-se tanto, um método com essa finalidade.
às racionalidades e aos modelos já Esta cognição experimental, seguindo o
estabelecidos na tradição da Terapia Centrada significado etimológico da palavra (método
no Cliente, sendo a terceira, para efeito desse enquanto “caminho”), visava a uma descrição
trabalho, apenas indicada enquanto esboço dos pressupostos e dos procedimentos
de uma trajetória surgida a partir de desafios necessários para alcançar-se o conhecimento
teóricos e metodológicos engendrados pelas verdadeiro.
experiências e conceitos presentes na última Para Descartes, “filosofia e pensamento
fase do pensamento de Rogers1. metódico coincidem, o que equivale a dizer
que na maioria dos casos a verdade não se
A Metáfora do Minerador revela espontaneamente, mas, antes, deve ser
garimpada por toda parte pelo
A mineração, de acordo com Bauman entendimento” (Silva, 2004, p. 12, grifo
(2005), tornou-se o símbolo da postura nosso). Obviamente, dado o esforço de todo
humana durante a Modernidade. Nesta trabalho de mineração, é preciso produzir o
atividade, refugo (separar a impureza) para chegar-se ao
objetivo almejado.
O novo é criado no curso de uma Ainda no caso de Descartes, os
meticulosa e impiedosa dissociação entre elementos humanos que se tornaram refugo
o produto-alvo e tudo mais que se desta empreitada em nome da verdade, no
coloque no caminho de sua chegada. que concerne especificamente a prática
Preciosos ou de pouco valor, metais puros
podem ser obtidos apenas removendo-se
científica, foram: o papel da corporalidade na
a escória e o borralho do minério. E só se produção do conhecimento, os pensamentos
pode chegar ao minério removendo-se e e sentimentos pessoais do pesquisador no
depositando-se camada após camada do processo de pesquisar, a metáfora de um
solo que impede o acesso ao veio – objetivo científico estável a ser alcançado.
tendo-se primeiro cortado ou queimado a
floresta que impedia o acesso ao solo [...]
A partir deste marco de fundação da
A mineração é um movimento de mão ciência moderna, deste horizonte, portanto,
única, irreversível e irrevogável. A crônica na produção de refugos, forjado
da mineração é um túmulo de veios e principalmente por Descartes e, ato contínuo,
poços repudiados e abandonados. A aprimorado em Newton, novos
desenvolvimentos científicos e metodológicos
foram sendo gestados e difundidos. Um
1
Aqui utilizamos uma divisão histórica e conceitual destes é o Positivismo (dito clássico), bastante
entre TCC (Terapia Centrada no Cliente) e ACP, ainda conhecido na história da ciência.
que entendamos, junto com John Wood (2008), que Apesar das diferenças existentes entre
não se tratam de abordagens intrinsecamente
os postulados de Descartes e do Positivismo,
distintas.

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o primeiro traz para si os princípios de uma idealizada, possuíam uma base explicitamente
verdade universal, configurada a partir de positivista, semelhante às várias outras
interações mecanicistas, capaz de ser pesquisas desenvolvidas no campo da
apreendida em sua ordenação natural, por Psicologia norte-americana, o que possibilitou
um conhecedor “purificado” de seus que a Terapia Centrada no Cliente adquirisse
elementos subjetivos, derivando, em grande um status de cientificidade em seu ambiente
medida, estes componentes de uma Filosofia acadêmico da época (Hall & Lindzey, 1984).
Cartesiana. Entretanto, já em 1953, no clássico
No caso do Positivismo, entretanto, o texto “Pessoa ou ciência: uma questão
método para obter-se essas condições é filosófica”, posteriormente inserido no livro
científico e não propriamente filosófico- Tornar-se pessoa (Rogers, 1997), Rogers
metafísico, concluindo que, através da explicita o confronto que vivenciava entre
observação e da explicação, “tudo que uma perspectiva científica, baseada nesta
pudesse ser provado por meio de metáfora do minerador, e a sua experiência
experiências seria científico” (Chaves Filho & direta como psicoterapeuta, sustentada em
Chaves, 2000, p.72). outro campo relacional.
É importante fazer esse pequeno Na verdade, este modelo de ciência
retrospecto sobre o papel de Descartes e do aplicado por Rogers à época anula a
Positivismo na ciência moderna, ainda que experiência, elemento chave da sua
bastante sucinto e superficial, já que foi no Abordagem Centrada na Pessoa (Rogers,
contexto de uma ciência psicológica de 1997) e da atividade do psicoterapeuta-
orientação positivista e de cunho Sherpa (Bowen, 2004), tornando-a
funcionalista, amplamente difundida nas meramente um dos refugos liberados. Não
universidades norte-americanas, que Rogers casualmente, Rogers vivia este conflito entre
primeiramente utilizou o método científico duas partes de si mesmo (os compromissos
para corroborar a sua inovadora abordagem do terapeuta e do cientista): uma vez
em aconselhamento, então denominada de terapeuta, sua experiência era marcada por
não-diretiva, no surgir dos anos 1940. momentos de inteira disponibilidade para
Discorrendo sobre a teoria da Terapia com o outro, abandono de si na relação
Centrada no Cliente, Messias & Cury (2006) interpessoal e o sentimento de
afirmam que a racionalidade conceitual desta interconexão/integração; enquanto, por
prática preservou “elementos de uma visão outro lado, a partir de suas próprias
positivista sobre as relações interpessoais, premissas e requisitos de rigor metodológico,
compreensíveis à luz da formação acadêmica seu papel de cientista exigia controle, análise,
de Rogers, fortemente sustentada em pilares repetição, observação e experimentação.
de uma tradição anglo-saxônica funcionalista” A interpretação de Rogers sobre esta
(p.355). dualidade é que ela apenas se torna possível
As várias descrições das pesquisas feitas quando a Ciência é grafada com letra
por Rogers, guiadas por referenciais maiúscula, como uma entidade metafísica, ou
positivistas, estes, por sua vez, alicerçados na uma instituição por si, depositário abstrato de
metáfora do minerador, demonstram que toda a verdade do mundo – que é justamente
ideias como objetividade e neutralidade do o que faz a metáfora do minerador.
pesquisador estavam presentes nas suas A “verdadeira” ciência, entretanto,
primeiras incursões científicas, aquela com letra minúscula e de qualidades
principalmente nas investigações que congruentes, é feita por pessoas-cientistas e,
concernem ao estudo da psicoterapia. deste modo, qualquer conhecimento
As pesquisas com a Técnica Q, produzido em seu território de transparência
adaptadas por Rogers para compreender as surge a partir da própria experiência do
relações entre o self e a sua imagem pesquisador. Esta conclusão pode ser

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observada até mesmo nas formas mais sutis pesquisa inovadoras que então foram
de comportamentos do pesquisador, em desenvolvidas na segunda metade do século
vista, por exemplo, de optar por um método XX e que pretendiam inserir a experiência do
de investigação e não outro. pesquisador e do sujeito pesquisado no cerne
Dito de outra maneira, o processo de dos métodos vigentes, o próprio Rogers
terapia e a produção de verdades científicas afirmou que o embate entre os positivistas e
estão encarnados no homem através de os pós-positivistas fora encerrado (O´Hara,
experiências concretas e dependem da 1985). Contudo, sem o obstáculo do
abertura/disponibilidade dele para adentrar a positivismo e de sua correspondente
sua própria existência. Como afirma Rogers metáfora do minerador, em que direção a
(2008), “ciência não é uma coisa impessoal, interseção entre ciência e a Abordagem
mas simplesmente uma pessoa vivendo uma Centrada na Pessoa estava encaminhando-se
outra face de si mesma” (p. 141). à época?
Obviamente, esta reconsideração sobre a
atividade científica desloca Rogers para outro A Metáfora do Agricultor
território imagético e metafórico de ciência
que não aquele tradicionalmente positivista. Um teórico importante nesse processo
Simultaneamente a este desconforto de mudança de concepções científicas e
em relação à “estreiteza experiencial” da metodológicas na ACP foi Michael Polanyi
ciência, novos conceitos e racionabilidades (Coulson & Rogers, 1973). A partir de sua
foram emergindo na ACP, alterando conceituação sobre a presença ubíqua de
drasticamente, no âmbito propriamente uma dimensão humana tácita em toda forma
teórico, essa relação entre um positivismo de conhecimento, ou seja, de aspectos do
científico e uma perspectiva de trabalho saber que não são passíveis de descrições ou
profundamente centrada na pessoa: explicações2, esse filósofo do conhecimento
sublinhou a importância do pesquisador,
Apesar de confirmar a validade do enquanto elemento ativo do processo de
método Positivista, Rogers iniciou conhecer, inclusive, e sobretudo, no
gradativamente questionamentos com
relação a sua utilização e às opções
empreendimento científico.
dentro das quais ele é praticado, tendo Polanyi afirmava que também o nosso
como referência a sua experiência como corpo exercia um papel essencial na produção
terapeuta e a dimensão múltipla, do saber, atuando como elemento da
complexa e paradoxal do processo dimensão tácita a partir da atividade de
terapêutico [...] À medida que Rogers vai
abrangendo toda a amplitude dos temas
indwelling, ou seja, a atividade de
que vem trabalhando, vai gradativamente subsidiariamente residir e deslocar-se, a partir
formulando conceitos mais amplos que, de uma qualidade corporal, na experiência do
vinculados ao seu processo experiencial, outro (Cavalcante Junior, 2008).
vai transformando, ainda que de forma De uma forma prática, sua teoria teve
bastante inicial, segundo ele próprio, sua
visão de mundo, de realidade e de
conseqüências ao defender o papel essencial
ciência. Este processo vai sendo descrito do pesquisador na ciência, tanto no que
através de novas formulações que concernem as escolhas referentes às etapas
demonstram uma tentativa de libertação de pesquisa, quanto ao próprio processo de
dos postulados positivista e descoberta científica. Polanyi buscava
fundacionistas, como é o caso da
formulação do conceito de Tendência
construir uma teoria do conhecimento que
Formativa (Barreto, 1999, p.35 e 38, grifo
nosso) 2
A filosofia do conhecimento tácito, que remonta ao
diálogo entre Sócrates e Meno, escrito por Platão,
Neste sentido, referindo-se ao
afirma que nós sabemos mais do que podemos
surgimento de várias metodologias de comunicar (Polanyi, 1962).

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comprovasse a presença de valores pessoais clarificar um problema, questão ou tema


na ciência, permitindo a formação de uma escolhido (p.40, tradução nossa).
sociedade de exploradores seguindo
Apesar de Moustakas (1990) referir-se
tacitamente suas intuições como elementos
ao Método Heurístico mais como uma atitude
legitimados do conhecimento,
do que um método, basicamente o caminho
desmantelando, assim, a premissa ilusória de
heurístico oferece um trajeto sistematizado
um conhecimento científico puramente
para o engajamento num processo de auto-
objetivo (Gill, 2000) – leia-se, aqui, a metáfora
descoberta que possibilita descrição e análise
do minerador.
dos dados produzidos: toda pesquisa
A partir de uma filosofia da ciência pós-
heurística parte de uma pergunta ou dilema
crítica elaborada por Polanyi (1962), dentre
existencial, apreendido e delineado por meio
outros movimentos de contestação
dos difusos elementos da experiência
epistemológica daquele momento do século
presentes na consciência, para, então,
XX, ocorridos particularmente no bojo das
alcançar a resolução ou a compreensão dessa
ditas ciências naturais, pesquisadores
questão.
humanistas puderam elaborar métodos de
Por ser um método baseado em
pesquisas qualitativos que buscassem
princípios autobiográficos que buscam
compreender os fenômenos a partir da
delinear os significados de determinada
perspectiva pessoal dos sujeitos investigados
experiência humana pessoal, a prioridade de
onde a experiência do próprio pesquisador,
sua epistemologia está em permitir, em
em maior ou menor grau, também exercesse
termos metodológicos, a liberdade do
um papel ativo neste processo de
pesquisador, ao invés de impor regras ou
investigação.
mecanismos que impediriam o fluxo de auto-
Muitos destes métodos já foram
descoberta.
utilizados inúmeras vezes e possuem
O método heurístico não busca um fim
aplicações suficientemente descritas, além de
específico ou a priori considerado como
pesquisas que discutem acerca da pertinência
universalmente válido, na medida em que se
e validade, capazes de comprovar sua eficácia
apresenta como um guia técnico para
(Marques-Teixeira, 2004). Utilizando em
potencializar a emergência da auto-
grande parte as teorias e pensamentos de
compreensão de um fenômeno. Ainda para o
Michael Polanyi, juntamente com a teoria de
Método Heurístico, é nas imediações do self,
Eugene Gendlin, um renomado psicólogo
enquanto espaço de mobilização afetiva e
humanista, que teve participação ativa na
intuitiva, que irão ser desenvolvidas as
fundação deste movimento, criou o Método
atitudes de auto-exploração e auto-diálogo,
Heurístico (Moustakas, 1990). Tendo como
buscando compreender camadas pessoais
critério sua utilização pelos acadêmicos de
significativas de determinado fenômeno
Psicologia Humanista, podemos afirmar que o
pesquisado.
método heurístico de Clark Moustakas
É necessário para isso um movimento
tornou-se um dos mais consistentes nos
constante de apreensão do fenômeno e de
objetivos da Psicologia Humanista. De acordo
retorno ao (auto-)diálogo – seja este feito
com Douglas & Moustakas (1985),
pelo pesquisador consigo mesmo ou deste
A pesquisa heurística é uma busca pela
com os co-pesquisadores3 – para verificar os
descoberta do sentido e da essência em
experiências humanas significativas. [O 3
Co-pesquisador é um nome utilizado por Moustakas
método] instala um processo subjetivo de
(1990) para substituir antigas denominações, como
reflexão, exploração, peneiramento e
sujeito pesquisado. A premissa que perpassa esta
elucidação da natureza do fenômeno sob
mudança de vocabulário é de que existe uma
investigação. Seu propósito último é
ambientação relacional entre os atores da pesquisa
heurística.

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novos elementos que emergiriam durante o ocorreria maior apreensão dos significados da
encontro com o fenômeno pesquisado. Nessa experiência do pesquisador e dos co-
circularidade, busca-se descrever novos pesquisadores. Toda mudança, ou insight, é
sentimentos, pensamentos e sensações que abalizada, avaliada e integrada a partir de
foram registrados no decorrer do processo de elementos do próprio self que servem como
pesquisa. demarcadores processuais.
Para Sela-Smith (2002), o objetivo do Em termos imagéticos, poderíamos
método heurístico é uma espécie de jornada comparar este processo a um alpinista
interior (self-search) com finalidade subindo uma montanha: cada nova
metodológica, produzindo um mapeamento descoberta é um calço encravado na fenda da
fluído dos sentimentos e processos rocha, dificultando uma queda brusca, ou não
experienciais do próprio pesquisador. programada, e auxiliando o escalador a seguir
Holanda (2006) parece concordar com este seu caminho mais ou menos planejado.
entendimento, quando afirma que a principal Ainda que mudanças de percurso
característica do referido Método é o seu possam ocorrer – e elas realmente ocorrem,
foco na auto-descoberta, ou seja, no papel do muitas vezes produzindo espanto, medo e
self do pesquisador no decorrer de todo o insegurança – estas sempre serão delimitadas
processo científico4. e referenciadas pelos aspectos significativos
O método heurístico é, portanto, uma (calços) fixados e estabelecidos
plataforma atitudinal que visa ao anteriormente pelo self (do alpinista); ou seja,
aprofundamento da relação de si (self do trata-se de um movimento orgânico em que o
pesquisador) consigo mesmo e de si com os processo anterior, se não determina, pelo
outros, sempre partindo do ponto de menos conduz fortemente o movimento
referência interno do pesquisador. Trata-se posterior, a partir da exigência de integração
de um processo primordialmente de num todo inter-relacionado.
crescimento, a partir de uma jornada por Neste sentido, o self do pesquisador é o
excelência para descoberta de novos ator, diretor, palco e o próprio cenário de
significados, que, por sua vez, possibilitariam atuação neste que é um processo de auto-
a emergência de significados adicionais no construção, como identifica o próprio criador
futuro. do Método Heurístico:
Há uma premissa implícita, neste
método, de um processo de crescimento Como pesquisador, eu sou a pessoa que é
progressivo em que, paulatinamente, desafiada a apreender o significado das
coisas e a dar a estes significados um
movimento vital. Eu ofereço a luz que
4 guia a explicação de algo e o
É importante apenas salientar que Sela Smith (2002) conhecimento deste algo. Quando
acredita que há uma ambigüidade no método entendo seus elementos constituintes
heurístico que provoca rupturas internas. De acordo algo emerge como sólido e real
com ela, muitas vezes Moustakas parece afirmar que o (Moustakas, 1990, p.12, tradução nossa)
objetivo do método não é a auto-descoberta dos
sentidos de uma determinada experiência para o
pesquisador, mas a busca por uma essência desta Em termos metafóricos, esta expressão
experiência, potencialmente desconectada do seu self. heurística poderia, em muitos pontos,
Esta última postura ela entende como sendo aproximar-se da postura do agricultor
representativa do método fenomenológico. Neste sedentário, no exercício de cultivar a terra,
sentido, existem muitos pontos obscuros relacionados
em um processo sempre conectado e
as diferenças e similaridades entre dois métodos –
fenomenológico e heurístico. Apesar disso, Douglas & crescente de integração com a natureza.
Moustakas (1985) afirmam categoricamente serem Nessa atividade de cultivo, pode haver
métodos distintos. Pesquisas nessa área, ainda que mudanças no plantio, como pressupõe o
incipientes, já foram iniciadas (Castelo Branco et al., modelo de rotatividade, porém de forma
2009).

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integrada e de acordo com a situação do solo denominações da ACP, aos aspectos da


e necessidades do agricultor. personalidade5.
Se o modelo de mineração é Entretanto, desde o final da década de
caracterizado por uma unidirecionalidade, o 1970, Rogers já havia formulado o conceito
modelo de agricultura apoia-se na perspectiva de tendência formativa, ampliando e
de um movimento integrado e orgânico. modificando uma premissa de alteridades
Bauman (2005), discorrendo sobre a postura geológicas que já estava implícita no conceito
do agricultor, afirma que a agricultura: de tendência atualizante, embora muitas
vezes esquecida: a experiência não está
Devolve deliberadamente o que extrai da circunscrita a personalidade, possuindo, na
terra [...] representa a continuidade: um verdade, laços de co-constituição com outros
grão é substituído por outros grãos, uma
ovelha dá luz a mais ovelhas. O
arranjos vitais dentro e fora do organismo,
crescimento como ratificação e processos com expressões mais amplas e seus
reafirmação do ser ... um crescimento sem modos complexos de constituir relações.
perdas ... nada se perde no caminho. À Como afirma Sousa (2008),
morte segue-se o renascimento. Não
admira que as sociedades de agricultores Muito embora conteúdos, demandas,
tivessem como certa a eterna dificuldades e bloqueios da personalidade
continuidade dos seres (p. 30-31, grifos estejam inseridos nos processos de
nossos). atualização pessoal e de auto-realização,
a expressão total (ou funcionamento
No método heurístico, o trânsito de pleno) da natureza humana e seu
mudanças, reguladas por abalizadores do self, potencial de Vida não estão restritos as
numa apropriação crescente da vida a partir configurações, às motivações e às
exigências dessa personalidade (p.97)
dos significados atribuídos pelo pesquisador,
fomenta um crescimento e continuidade que
É preciso, então, contextualizar a
se assemelha a do agricultor, em eterno
importância do conceito de tendência
processo de integração: significados dão
formativa e os desafios e possibilidades que
origem a novos significados, que alteram os
ele apresenta às questões metodológicas em
antigos, que criam novos significados e assim
pesquisa na ACP, já que Rogers afirmou
sucessivamente, seguindo um caminho de
explicitamente que a tendência formativa e a
atualização dos potenciais.
tendência atualizante eram as pedras
Trata-se de um circuito de movimento
basilares da Abordagem Centrada na Pessoa
onde não há propriamente perdas ou mortes,
(Rogers, 1983).
já que o organismo exerce sua capacidade de
Para o criador da ACP (Rogers, 1983),
produzir sentido, este sendo nada mais que
um vínculo que ata elementos díspares, de
forma contextualizada e integrada, a partir de 5
Historicamente podemos definir que a Terapia
uma auto-referência (organísmica, no caso). Centrada no Cliente (TCC) possuía seu foco na
De fato, o método heurístico, por meio personalidade enquanto a Abordagem Centrada na
da fundação de uma metáfora da agricultura Pessoa ultrapassa esse escopo ao levar a radicalidade o
como processo de conhecimento, possibilitou conceito de tendência atualizante e formular o
conceito de tendência formativa (Sales, 2010). Na
a criação de etapas metodológicas e
concepção de Castelo Branco (2010), a Abordagem
conceitos para o andamento de uma pesquisa Centrada na Pessoa se caracteriza pela transição de
que se interesse pelos significados sempre uma perspectiva funcionalista para uma perspectiva
moventes (atualizantes) de caminhos sistêmica. Uma demonstração da conexão e
experienciais no self. Essa perspectiva parece equivalência entre TCC e Método heurístico foi a
utilização deste método em algumas pesquisas
estar intimamente relacionada, conforme
relacionas a este modelo de terapia (Moustakas, 1990),
mas isto não inclui exatamente pesquisas envolvendo a
ACP

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Quando criamos um clima psicológico que montanhas? O que mudaria se os seres


permite que as pessoas sejam – sejam humanos em um grande número
elas clientes, estudantes, trabalhadores sentissem, genuinamente, um apreço
ou membros de um grupo – não estamos positivo incondicional de coração inteiro a
participando de um evento casual. respeito do reino animal? O que
Estamos tateando uma tendência que aconteceria se permitíssemos a nós
permeia toda a vida orgânica – uma mesmos, em massa, experienciar
tendência para se tornar toda a abertamente o que está presente dentro
complexidade que um organismo é capaz. de nós quando enxergamos uma floresta
Em uma escala ainda maior, creio que ser derrubada, ou um vazamento químico
estamos sintonizando uma tendência lançado em nossos rios e oceanos,
criativa poderosa, que deu origem ao permitir a nós mesmos sentir a
nosso universo, desde o menor floco de solidariedade intrínseca que temos
neve até a maior galáxia, da modesta porquanto, nós, também, somos produtos
ameba até a mais sensível e talentosa das da natureza e dirigidos a frente pelo
pessoas [...] Este tipo de formulação é, aspecto humano de tendência formativa
para mim, uma base filosófica para a universal? (...) Esse é, para mim, o
Abordagem centrada na Pessoa. Ela coração do centramento na pessoa (p. 8,
justifica meu engajamento com um jeito tradução nossa).
de ser que é afirmativo da vida (p.134).
Essas qualidades da experiência
A partir da elaboração deste conceito, formativa acima descritas trazem-nos um
Rogers (1983) menciona: “nossas experiências sentido de multi-direcionalidade da
na terapia e nos grupos, está claro, lidam com experiência, reconhecendo que essas
o transcendente, o indescritível, o espiritual” inúmeras direções não apenas partem do self,
(p. 131). Fala-se, então, de posturas mais como uma tentativa de apreender as marcas
abertas ao desconhecido, ao mistério, à feitas em si (simbolizadas) a partir do mundo,
ambiguidade, às incertezas (Wood, 2008); de mas da própria vida que marca e diretamente
abertura ao fluxo vital da Vida e estabelece trocas com o organismo.
intumescência (Sousa, 2008); de presença, Na verdade, o organismo pode ser
silêncio e flexibilidade para novas criações da compreendido como a vida em uma
vida (Sales, 2008); de aspectos configuração singular e específica de
orgânicos/humanos e inorgânicos/não- múltiplas interações passíveis de mudanças.
humanos previstos no conceito de tendência Daí as descrições que versam sobre incerteza
formativa, refletindo sobre como ultrapassar e amplitude como elementos constituintes da
a percepção da personalidade e das fronteiras ACP, pois as experiências formativas não
do corpo programado (Neville, 1999); de restringem seu escopo aos limites da
múltiplos sistemas e sua complexidade (Kriz, pessoalidade e sua estrutura (personalidade):
2006); fala-se sobre interdependência novas formas e movimentos são criados a
(Cornelius-Whyte, 2007); enfatiza--se, enfim, cada momento relacional-experiencial,
sobre o humano como resultado de trazendo novas formatividades, novas
interações e processos vitais amplos e expressões de configurações diferentes da
constantes (Ellingham, 2006). anteriormente apresentada; enfim, novos
Richard Bryant-Jefferies (2005) tablados experienciais que arregimentam
interpela-nos com a experiência concreta, sob condições distintas para a atualização de
um prisma eminentemente da Tendência potenciais totalmente imprevisíveis.
Formativa: Portanto, de acordo com os conceitos e
objetivos do Método Heurístico,
O quão amplo podemos conduzir a anteriormente apresentados, pode-se afirmar
abordagem centrada na pessoa em suas
aplicações? (...) O que significa ter uma
que as experiências formativas não podem
sensibilidade empática em relação às ser investigadas por este método, já que seu
árvores e os pássaros, os oceanos, as escopo é a dinâmica muito específica da

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personalidade, dentro de uma matriz desenvolvimento de teorias e o avanço de


metafórica do orgânico e da agricultura. práticas, provendo novas constatações férteis
É preciso, então, outra postura que não à produção de conhecimento.
seja exclusivamente a do agricultor. Não há dúvida de que o conceito de
Propomos, então, uma terceira tendência formativa provoca abalos
metáfora/imagem para pensarmos um profundos nos pressupostos que alicerçavam
modelo de ciência que leve em consideração os modelos científicos das duas metáforas
o conceito de tendência formativa: uma anteriores. O sentido, este umbigo
postura de “jardineiro que contempla a antropocêntrico, é radicalmente questionado
harmonia preconcebida para além da barreira na metáfora do jardineiro, já que a ligação
do seu jardim privado” (Bauman, 2009, p.2). entre organismo e “ambiente” torna-se muito
mais complexa do que um vínculo significativo
Em busca da metáfora
metáfora das jardinagens e de sentido pode permitir.
formativas na ciência Este laço pressupõe a capacidade
humana de derivar de uma relação apenas
A partir das noções metodológicas já aquilo que é significativo, qualidade atribuída
consolidadas na ACP, e diante dos desafios pelo próprio organismo no campo do valor,
apresentados pelo conceito de Tendência enquanto uma experiência formativa é uma
Formativa, faz-se mister discorrer sobre uma pluralidade de feixes vitais constitutivos que
potencial nova concepção de ciência pautada ultrapassam a capacidade humana de
por uma lógica investigativa particular às fornecer uma ordem ou funcionalidade a
demandas epistemológicas desse partir das necessidades particulares do
pensamento transversal de Carl Rogers. organismo.
Um primeiro desafio desta perspectiva, Isto significa que a noção básica que
que aqui denominamos de “jardinagens perpassa os métodos de pesquisa utilizados
formativas”, pois o jardineiro é aquele na ACP, qual seja, a da representação, é
“situado num ponto intermediário entre o dramaticamente insuficiente para esta
mundo dos humanos e o mundo dos metáfora metodológica, já que o que se
vegetais” (Bastos, 2007, p. 81), é delinear o representa é sempre um duplo do sentido. O
conceito de experiência no interior do pressuposto de que marcas, pontes ou
complexo estrutural e teórico que surge junto resquícios dos sentidos estão presentes no
com a noção de tendência formativa; ou seja, self do entrevistado e que podem ser
se a experiência não é mais aquela localizada captados pela sua fala infere
ou identificada no self do cliente, ou do antecipadamente que sendo o sentido uma
colaborador da pesquisa, cabe agora apontar produção do organismo, este pode também
quais as características e modos de dizer ou exteriorizá-lo, explicá-lo ou apontá-
funcionamento desta experiência formativa, lo.
para assim ser possível vislumbrar a criação Na experiência formativa, porém, a
de um plano metodológico de pesquisa capaz linguagem não é um referente para dado
de “apreender” este fenômeno. sentido experiencial gestado no organismo,
Isso significa, na prática, a criação de mas o veículo para expressar as colisões
racionalidades metodológicas novas, mas múltiplas do homem com a vida. Não há
também a inovação de procedimentos de direção e não há sentido que possa ser
coletas e análises de dados que, até o organizado pelo homem num fluxo formativo
presente momento, não foram desenvolvidos onde as esferas orgânicas e inorgânicas
com essa intencionalidade. Esta tarefa entrelaçam-se em modos de expressão
mostra-se urgente, haja vista que, no âmbito singular.
da ciência, é a capacidade metodológica de Da mesma forma ocorre com outro
investigação que possibilita o pressuposto básico das metodologias de

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Ciência e pesquisa centradas na pessoa _____________________________________________________________________________________

pesquisa centrada na pessoa: a concepção de nas proposições, ou seja, a capacidade de


que a experiência pertence ao indivíduo projetar um mundo novo, ainda que fluido, a
pesquisado e cabe ao pesquisador coletá-la, partir das palavras. Trata-se muito mais de
com o máximo de neutralidade possível. Está um manifesto sonhado, ou de um sonho
implícito nesta lógica de pesquisa que, antes manifestado, compartilhado em voz alta na
mesmo da experiência, já há um indivíduo busca de uma ciência formativa.
que possa ser detentor ou responsável pelo
movimento experiencial. Manifesto para uma Ciência Centrada
Em uma concepção formativa, todavia, nos Jardins: quatro teses em movimento
o que se denomina “indivíduo” (um
fenômeno emergente da personalidade e Primeira tese: abdicar da estratégia
seus laços) passa ser apenas uma conjunção metodológica usual que busca representar,
de fluxos vitais móveis que não se constituem, através de gravação de entrevistas ou outra
necessariamente, como facetas privilegiadas forma de suporte de captação da fala, o fluxo
da experiência. Só há individualidade e da experiência. Partimos da ideia de que toda
organicidade no campo dos processos representação é apenas uma imagem da
formativos e estes são uma composição plural experiência, já que representar é desacelerar
de temporalidades e fatores. Na prática, isso o presente tornando-o passado imobilizado,
significa que no processo de pesquisa não há fato que sugere a preocupação das
uma experiência a ser relatada para o metodologias representativas em apenas
pesquisador, mas apenas uma experiência a investigar os fantasmas pálidos que
ser forma(tiviza)da com o pesquisador. caricaturam a experiência no seu processo
Estas e outras revisões teóricas mesmo, isso que, afinal, realmente importa à
realizadas através do conceito de tendência ACP. Ao invés de enfocar a representação,
formativa exigem, também, uma série de então, a pesquisa neste modelo de ciência
adequações metodológicas para os aponta como diretriz uma qualidade de
procedimentos de pesquisa em Abordagem presentificação (Heron, 1996), conduzida por
Centrada na Pessoa. corpos situados na presença (Cavalcante
Ainda que não possamos apresentar, Junior, no prelo).
neste artigo, metodologias práticas de Segunda tese: Conceber como “objeto”
pesquisa advindas da metáfora do jardineiro, de investigação um panorama de experiência
desafio que já iniciamos em outros trabalhos que não esteja restrita à personalidade
(Sales, 2010; Sales & Cavalcante Junior, no humana, legitimando elementos constituintes
prelo), pretendemos elencar quatro teses, da experiência que estejam localizados muito
ainda de cunho mais imagético do que lógico, mais em um campo formativo circundante do
que possam esculpir, pelo prisma da metáfora que em qualquer esfera personalizada de um
das jardinagens formativas, um primeiro processo de atualização individual. Neste
esboço desse rosto epistemológico- sentido, o interesse de uma pesquisa
metodológico ao fazer que caracteriza uma centrada na pessoa, gestada no interior da
Abordagem Centrada na Pessoa. metáfora do jardineiro e da experiência
Antes de ser um programa de formativa, não deveria apreender os
consolidação desta metáfora, as quatro teses significados ou sentidos da experiência, estes
a seguir formulam uma tentativa de suscitar sempre metabolizados no self, segundo o
indagações, experiências e colisões enfoque centrado na pessoa, mas localizar
especulares capazes de dinamizar a discussão arquiteturas experienciais capazes de
sobre a investigação no campo da ACP. Neste dinamizar a própria experiência do
prisma, não será priorizado o rigor das pesquisador, dos co-pesquisadores e dos
afirmações, este que sempre gera a solidez a potenciais leitores da pesquisa; fazê-las, por
partir do passado, mas sim o vigor semiótico

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assim dizer, colidir em Instalações formativos experienciais que os perpassam,


Experienciais (Sales, 2010). mas são mais amplos do que a personalidade
Terceira tese: Abdicar das tentativas de e até mesmo a organicidade dos envolvidos.
compreender e de interpretar a experiência, Portanto, mais do que confirmar ou invalidar
posturas ainda contaminadas pela perspectiva hipóteses, esta forma de pesquisa pretende
cognitivista e pela postura dominadora do confundi-las e, assim, permitir a emergência
logos tipificado na ciência moderna. Neste de um frescor estésico capaz de envolver os
sentido, enfatiza-se que, na metáfora do “sujeitos” e os “objetos” da pesquisa num
jardineiro, os verbos que regem a atividade mesmo vórtice de formatividade, onde o
científica são “intumescer” e “implicar”, imprevisível, tantas vezes abordado por John
designações compatíveis à atividade de um Wood (Rogers, Wood, O´Hara & Fonseca,
jardineiro, afinal, este não compreende a vida 1983), possa fazer-se presente.
vegetal. Embora se relacionando com esta
sabedoria orgânica e inorgânica, em termos Referências
simbólicos e míticos, o jardineiro é por ela
tomado e acalentado. Nesta perspectiva, Barreto, C. (1999). A compreensão e o lugar
pode-se dizer que toda pesquisa que tenha da Abordagem Centrada na Pessoa no espaço
como foco determinada experiência científico-sóciocultural contemporâneo.
formativa, no sentido atribuído pela ACP, está Revista Symposium, 3. Recuperado em 15 de
destinada a produzir uma nova experiência agosto, 2009, de
que não se dirige à atualização de conteúdos www.unicap.br/Arte/ler.php?art_cod=682.
imediatos da personalidade. O que significa Bastos, G. (2007). Monteiro Lobato: Perfis e
que uma pesquisa centrada na pessoa é
versões. Tese de doutorado, Programa de
sempre uma pesquisa “experienci-ação”6. Pós-Graduação em Letras, PUC – Rio de
Quarta tese: Sendo, então, toda Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
pesquisa centrada na pessoa uma espécie de
enzima experiencial, na medida em que Bauman, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. Rio
potencializa novas experiências e forma novos de Janeiro: Zahar Editora.
tablados experienciais, o critério principal de Bauman, Z. (2009). A Utopia Possível na
validade de uma pesquisa, vista pelo olhar do Sociedade Líquida. Revista Cult, 138.
jardineiro-pesquisador, é a criatividade que Recuperado em 10 de agosto, 2009, de
esta engendra e a capacidade de transformar http://www.opee.com.br/Arquivos/Clipping/a
uma experiência-objeto, um movimento que rq_20100407112000445A%20utopia%20poss
circunscrito a uma hipótese racional %C3%ADvel%20na%20sociedade%20l%C3%A
elaborada pelo pesquisador, numa Dquida%20%20Revista%20Cult%20%20Edi%C
experiência-sujeito, categoria que pode ser 3%A7%C3%A3o%20138%20Ano%2012.pdf.
avaliada através da complexidade que reside
nesta nova experiência – complexidade Bowen, M. (2004). Psicoterapia: o processo, o
entendida aqui no seu sentido etimológico de terapeuta, a aprendizagem. Em A. Santos, C.
“tecer juntos”. Se na experiência-objeto o self Rogers & M. Bowen (Orgs.). Quando fala o
delimita seus contornos, na experiência- coração: a essência da psicoterapia centrada
sujeito todos os participantes da pesquisa são na pessoa (pp. 69-83). São Paulo: Vetor
tomados e conduzidos por processos Bryant-Jefferies, R. (2005). Person-
Centredness: A heartening experience.
6
“Experienci-ação” aqui não faz alusão ao conceito de Person-Centred Quartely - The magazine of
Eugene Gendlin, mas brinca com a palavra the British Association for the Person-Centred
“experiência” para demonstrar a aproximação desta
proposta com a da pesquisa-ação, no sentido de que
Approach. Recuperado em 10 de dezembro,
ambas buscam modificar o seu próprio objeto de 2008, de
pesquisa.

110 Rev. NUFEN [online]. v.4, n.2, julho-dezembro, 99-112, 2012.


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