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Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro

Formação de professores: aspectos históricos


e teóricos do problema no contexto brasileiro*

Dermeval Saviani
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação

Aspectos históricos 1
mal Primária, para preparar os professores do ensino
primário. Assim é que Napoleão, ao conquistar o Norte
A necessidade da formação docente já fora pre- da Itália, instituiu, em 1802, a Escola Normal de Pisa
conizada por Comenius, no século XVII, e o primeiro nos moldes da Escola Normal Superior de Paris. Essa
estabelecimento de ensino destinado à formação de escola, da mesma forma que seu modelo francês,
professores teria sido instituído por São João Batista destinava-se à formação de professores para o ensino
de La Salle em 1684, em Reims, com o nome de Se- secundário, mas na prática se transformou em uma
minário dos Mestres (Duarte, 1986, p. 65-66). Mas instituição de altos estudos, deixando de lado qualquer
a questão da formação de professores exigiu uma preocupação com o preparo didático-pedagógico.
resposta institucional apenas no século XIX, quando, Além de França e Itália, países como Alemanha, In-
após a Revolução Francesa, foi colocado o problema glaterra e Estados Unidos também foram instalando,
da instrução popular. É daí que deriva o processo de ao longo do século XIX, suas Escolas Normais.
criação de Escolas Normais como instituições encar- No Brasil a questão do preparo de professores
regadas de preparar professores. emerge de forma explícita após a independência,
A primeira instituição com o nome de Escola quando se cogita da organização da instrução popular.
Normal foi proposta pela convenção, em 1794 e ins- A partir daí, examinando-se a questão pedagógica em
talada em Paris em 1795. Já a partir desse momento se articulação com as transformações que se processaram
introduziu a distinção entre Escola Normal Superior na sociedade brasileira ao longo dos últimos dois
para formar professores de nível secundário e Escola séculos, podemos distinguir os seguintes períodos na
Normal simplesmente, também chamada Escola Nor- história da formação de professores no Brasil:

*
Trabalho apresentado na 31ª Reunião Anual da ANPEd, 1. Ensaios intermitentes de formação de profes-
realizada de 16 a 20 de outubro de 2008, em Caxambu (MG). sores (1827-1890). Esse período se inicia com

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o dispositivo da Lei das Escolas de Primeiras 1827, que essa preocupação apareceu pela primeira
Letras, que obrigava os professores a se ins- vez. Ao determinar que o ensino, nessas escolas, de-
truir no método do ensino mútuo, às próprias veria ser desenvolvido pelo método mútuo, a referida
expensas; estende-se até 1890, quando preva- lei estipula no artigo 4º que os professores deverão ser
lece o modelo das Escolas Normais. treinados nesse método, às próprias custas, nas capitais
2. Estabelecimento e expansão do padrão das das respectivas províncias. Portanto, está colocada aí
Escolas Normais (1890-1932), cujo marco a exigência de preparo didático, embora não se faça
inicial é a reforma paulista da Escola Normal referência propriamente à questão pedagógica.
tendo como anexo a escola-modelo. Após a promulgação do Ato Adicional de 1834,
3. Organização dos Institutos de Educação (1932- que colocou a instrução primária sob responsabilidade
1939), cujos marcos são as reformas de Anísio das províncias, estas tendem a adotar, para formação
Teixeira no Distrito Federal, em 1932, e de dos professores, a via que vinha sendo seguida nos
Fernando de Azevedo em São Paulo, em 1933. países europeus: a criação de Escolas Normais. A
4. Organização e implantação dos Cursos de Província do Rio de Janeiro sai à frente, instituindo em
Pedagogia e de Licenciatura e consolidação Niterói, já em 1835, a primeira Escola Normal do país.
do modelo das Escolas Normais (1939-1971). Esse caminho foi seguido pela maioria das províncias
5. Substituição da Escola Normal pela Habilita- ainda no século XIX, na seguinte ordem: Bahia, 1836;
ção Específica de Magistério (1971-1996). Mato Grosso, 1842; São Paulo, 1846; Piauí, 1864; Rio
6. Advento dos Institutos Superiores de Edu- Grande do Sul, 1869; Paraná e Sergipe, 1870; Espírito
cação, Escolas Normais Superiores e o novo Santo e Rio Grande do Norte, 1873; Paraíba, 1879;
perfil do Curso de Pedagogia (1996-2006). Rio de Janeiro (DF) e Santa Catarina, 1880; Goiás,
1884; Ceará, 1885; Maranhão, 1890. Essas escolas,
Passemos em revista, de forma sucinta, cada um entretanto, tiveram existência intermitente, sendo
desses períodos.1 fechadas e reabertas periodicamente.
Visando à preparação de professores para as
Ensaios intermitentes de formação escolas primárias, as Escolas Normais preconizavam
de professores (1827-1890) uma formação específica. Logo, deveriam guiar-se
pelas coordenadas pedagógico-didáticas. No entanto,
Durante todo o período colonial, desde os colé- contrariamente a essa expectativa, predominou nelas
gios jesuítas, passando pelas aulas régias implantadas a preocupação com o domínio dos conhecimentos a
pelas reformas pombalinas até os cursos superiores serem transmitidos nas escolas de primeiras letras. O
criados a partir da vinda de D. João VI em 1808, não currículo dessas escolas era constituído pelas mesmas
se manifesta preocupação explícita com a questão matérias ensinadas nas escolas de primeiras letras.
da formação de professores. É na Lei das Escolas de Portanto, o que se pressupunha era que os professores
Primeiras Letras, promulgada em 15 de outubro de deveriam ter o domínio daqueles conteúdos que lhes
caberia transmitir às crianças, desconsiderando-se o
preparo didático-pedagógico.
1 
Essa análise dos períodos incorpora as considerações fei-
A via normalista de formação docente, embora
tas no trabalho “Pedagogia e formação de professores no Brasil:
adotada já a partir de 1835, além de somente adquirir
vicissitudes dos dois últimos séculos”, apresentado na sessão de
certa estabilidade após 1870, permaneceu ao longo do
Comunicação Coordenada Permanências e mudanças na educa-
século XIX como uma alternativa sujeita a contestações.
ção brasileira – séculos XIX e XX, no IV Congresso Brasileiro
Ilustra isso a posição de Couto Ferraz, que considerava
de História da Educação, realizado em Goiânia (GO) de 5 a 8 de
as Escolas Normais muito onerosas, ineficientes quali-
novembro de 2006.

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tativamente e insignificantes quantitativamente, pois era curricular a preparação pedagógico-didática, não se


muito pequeno o número de alunos formados. Por isso, estaria, em sentido próprio, formando professores.
Couto Ferraz, quando presidente da Província do Rio de Essa reforma da Escola Normal da capital se es-
Janeiro, fechou a Escola Normal de Niterói em 1849, tendeu para as principais cidades do interior do estado
substituindo-a pelos professores adjuntos, regime que de São Paulo e se tornou referência para outros estados
adotou no Regulamento de 1854 ao exercer o cargo de do país, que enviavam seus educadores para observar
ministro do Império. Os adjuntos atuariam nas escolas e estagiar em São Paulo ou recebiam “missões” de
como ajudantes do regente de classe, aperfeiçoando-se professores paulistas. Dessa forma, o padrão da Escola
nas matérias e práticas de ensino. Por esse meio seriam Normal tendeu a se firmar e se expandir por todo o país.
preparados os novos professores, dispensando-se a
instalação de Escolas Normais. Mas esse caminho não Organização dos institutos
prosperou. Os cursos normais continuaram a ser instala- de educação (1932- 1939)
dos, e a pioneira escola de Niterói foi reaberta em 1859.
Ainda que o padrão da Escola Normal se tenha
Estabelecimento e expansão do fixado a partir da reforma paulista, após a primeira
padrão das Escolas Normais (1890-1932) década republicana o ímpeto reformador se arrefe-
ceu. E a expansão desse padrão não se traduziu em
Pode-se considerar que o padrão de organização avanços muito significativos, trazendo ainda a marca
e funcionamento das Escolas Normais foi fixado com da força do padrão até então dominante, centrado na
a reforma da instrução pública do estado de São Paulo preocupação com o domínio dos conhecimentos a
levada a efeito em 1890. Segundo os reformadores, serem transmitidos.
“sem professores bem preparados, praticamente ins- Uma nova fase se abriu com o advento dos institu-
truídos nos modernos processos pedagógicos e com tos de educação, concebidos como espaços de cultivo
cabedal científico adequado às necessidades da vida da educação, encarada não apenas como objeto do
atual, o ensino não pode ser regenerador e eficaz” ensino mas também da pesquisa. Nesse âmbito, as duas
(São Paulo, 1890). E mestres assim qualificados principais iniciativas foram o Instituto de Educação do
“só poderão sair de escolas normais organizadas em Distrito Federal, concebido e implantado por Anísio
condições de prepará-los” (Reis Filho, 1995, p. 44). Teixeira em 1932 e dirigido por Lourenço Filho; e o
Portanto, uma vez que a Escola Normal então existente Instituto de Educação de São Paulo, implantado em
pecava “por insuficiência do seu programa de estudo 1933 por Fernando de Azevedo. Ambos sob inspiração
e pela carência de preparo prático dos seus alunos” do ideário da Escola Nova.
(São Paulo, 1890), era imperioso reformar seu plano Com a reforma instituída pelo decreto n. 3.810,
de estudos. de 19 de março de 1932, Anísio Teixeira se propôs a
A reforma foi marcada por dois vetores: enri- erradicar aquilo que ele considerava o “vício de cons-
quecimento dos conteúdos curriculares anteriores e tituição” das Escolas Normais, que, “pretendendo ser,
ênfase nos exercícios práticos de ensino, cuja marca ao mesmo tempo, escolas de cultura geral e de cultura
característica foi a criação da escola-modelo anexa profissional, falhavam lamentavelmente nos dois ob-
à Escola Normal – na verdade a principal inovação jetivos” (Vidal, 2001, p. 79-80). Para esse fim, trans-
da reforma. Assumindo os custos de sua instalação formou a Escola Normal em Escola de Professores,
e centralizando o preparo dos novos professores nos cujo currículo incluía, já no primeiro ano, as seguintes
exercícios práticos, os reformadores estavam assumin- disciplinas: 1) biologia educacional; 2) sociologia
do o entendimento de que, sem assegurar de forma educacional; 3) psicologia educacional; 4) história
deliberada e sistemática por meio da organização da educação; 5) introdução ao ensino, contemplando

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três aspectos: a) princípios e técnicas; b) matérias n. l.190, de 4 de abril de 1939, que deu organização
de ensino abrangendo cálculo, leitura e linguagem, definitiva à Faculdade Nacional de Filosofia da Uni-
literatura infantil, estudos sociais e ciências naturais; versidade do Brasil. Sendo esta instituição considerada
c) prática de ensino, realizada mediante observação, referência para as demais escolas de nível superior,
experimentação e participação. como suporte ao o paradigma resultante do decreto-lei n. 1.190 se
caráter prático do processo formativo, a escola de estendeu para todo o país, compondo o modelo que
professores contava com uma estrutura de apoio que ficou conhecido como “esquema 3+1” adotado na or-
envolvia: a) jardim de infância, escola primária e ganização dos cursos de licenciatura e de Pedagogia.
escola secundária, que funcionavam como campo de Os primeiros formavam os professores para ministrar
experimentação, demonstração e prática de ensino; b) as várias disciplinas que compunham os currículos
instituto de pesquisas educacionais; c) biblioteca cen- das escolas secundárias; os segundos formavam os
tral de educação; d) bibliotecas escolares; e) filmoteca; professores para exercer a docência nas Escolas Nor-
f) museus escolares; g) radiodifusão. mais. Em ambos os casos vigorava o mesmo esquema:
O Instituto de Educação de São Paulo seguiu, três anos para o estudo das disciplinas específicas,
sob a gestão de Fernando de Azevedo, um caminho vale dizer, os conteúdos cognitivos ou “os cursos de
semelhante, com a criação, também aí, da Escola de matérias”, na expressão de Anísio Teixeira, e um ano
Professores (Monarcha, 1999, p. 324-336). para a formação didática.
Pelo exposto, percebe-se que os institutos de Cabe observar que, ao ser generalizado, o modelo
educação foram pensados e organizados de maneira de formação de professores em nível superior perdeu
a incorporar as exigências da pedagogia, que buscava sua referência de origem, cujo suporte eram as escolas
se firmar como um conhecimento de caráter científico. experimentais às quais competia fornecer uma base
Caminhava-se, pois, decisivamente rumo à consoli- de pesquisa que pretendia dar caráter científico aos
dação do modelo pedagógico-didático de formação processos formativos.
docente que permitiria corrigir as insuficiências e A mesma orientação prevaleceu, no que se re-
distorções das velhas Escolas Normais caracterizadas fere ao ensino normal, com a aprovação em âmbito
por “um curso híbrido, que oferecia, ao lado de um nacional do decreto-lei n. 8.530, de 2 de janeiro de
exíguo currículo profissional, um ensino de humani- 1946, conhecido como Lei Orgânica do Ensino
dades e ciências quantitativamente mais significativo” Normal (Brasil, 1946). Na nova estrutura, o curso
(Tanuri, 2000, p. 72). normal, em simetria com os demais cursos de nível
secundário, foi dividido em dois ciclos: o primeiro
Organização e implantação dos cursos de correspondia ao ciclo ginasial do curso secundário e
pedagogia e de licenciatura e consolidação do tinha duração de quatro anos. Seu objetivo era formar
padrão das Escolas Normais (1939-1971) regentes do ensino primário e funcionaria em Escolas
Normais regionais. O segundo ciclo, com a duração
Os Institutos de Educação do Distrito Federal e de três anos, correspondia ao ciclo colegial do curso
de São Paulo foram elevados ao nível universitário, secundário. Seu objetivo era formar os professores do
tornando-se a base dos estudos superiores de educa- ensino primário e funcionaria em Escolas Normais
ção: o paulista foi incorporado à Universidade de São e nos institutos de educação. Estes, além dos cursos
Paulo, fundada em 1934, e o carioca foi incorporado citados, contariam com jardim de infância e escola
à Universidade do Distrito Federal, criada em 1935. primária anexos e ministrariam também cursos de
E foi sobre essa base que se organizaram os cursos de especialização de professores primários para as áreas
formação de professores para as escolas secundárias, de Educação Especial, Ensino Supletivo, Desenho e
generalizados para todo o país a partir do decreto-lei Artes aplicadas, música e canto e cursos de adminis-

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tradores escolares para formar diretores, orientadores primeiro grau e segundo grau. Nessa nova estrutura,
e inspetores escolares. desapareceram as Escolas Normais. Em seu lugar foi
Se os cursos normais de primeiro ciclo, pela instituída a habilitação específica de 2º grau para o
sua similitude com os ginásios, tinham um currículo exercício do magistério de 1º grau (HEM). Pelo pa-
centrado nas disciplinas de cultura geral, no estilo das recer n. 349/72 (Brasil-MEC-CFE, 1972), aprovado
velhas Escolas Normais, tão criticadas, os cursos de em 6 de abril de 1972, a habilitação específica do
segundo ciclo contemplavam todos os fundamentos magistério foi organizada em duas modalidades bá-
da educação introduzidos pelas reformas da década sicas: uma com a duração de três anos (2.200 horas),
de 1930. que habilitaria a lecionar até a 4ª série; e outra com
Mas, ao serem implantados, tanto os cursos nor- a duração de quatro anos (2.900 horas), habilitando
mais como os de licenciatura e Pedagogia centraram ao magistério até a 6ª série do 1º grau. O currículo
a formação no aspecto profissional garantido por um mínimo compreendia o núcleo comum, obrigatório
currículo composto por um conjunto de disciplinas a em todo o território nacional para todo o ensino de
serem frequentadas pelos alunos, dispensada a exi- 1º e 2º graus, destinado a garantir a formação geral; e
gência de escolas-laboratório. Essa situação, especial- uma parte diversificada, visando à formação especial.
mente no nível superior, expressou-se numa solução O antigo curso normal cedeu lugar a uma habilitação
dualista: os cursos de licenciatura resultaram forte- de 2º Grau. A formação de professores para o antigo
mente marcados pelos conteúdos culturais-cognitivos, ensino primário foi, pois, reduzida a uma habilitação
relegando o aspecto pedagógico-didático a um apêndi- dispersa em meio a tantas outras, configurando um
ce de menor importância, representado pelo curso de quadro de precariedade bastante preocupante.
didática, encarado como uma mera exigência formal A evidência e gravidade dos problemas levaram
para a obtenção do registro profissional de professor. O o governo a lançar, em 1982, o projeto Centros de For-
curso de Pedagogia, à semelhança do que ocorreu com mação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAMs),
os cursos normais, foi marcado por uma tensão entre que teve o caráter de “revitalização da Escola Normal”
os dois modelos. Embora seu objeto próprio estivesse (Cavalcante, 1994, p. 59, 76 e 123). Mas esse projeto,
todo ele embebido do caráter pedagógico-didático, apesar dos resultados positivos, foi descontinuado
este tendeu a ser interpretado como um conteúdo a quando seu alcance quantitativo era ainda restrito, não
ser transmitido aos alunos antes que como algo a ser tendo havido também qualquer política para o apro-
assimilado teórica e praticamente para assegurar a veitamento dos professores formados pelos centros
eficácia qualitativa da ação docente. Consequente- nas redes escolares públicas.
mente, o aspecto pedagógico-didático, em lugar de Para as quatro últimas séries do ensino de 1º grau
se constituir em um novo modelo a impregnar todo o e para o ensino de 2º grau, a lei n. 5.692/71 previu a
processo da formação docente, foi incorporado sob a formação de professores em nível superior, em cursos
égide do modelo dos conteúdos culturais-cognitivos. de licenciatura curta (3 anos de duração) ou plena (4
anos de duração). Ao curso de Pedagogia, além da
Substituição da Escola Normal pela habilitação formação de professores para habilitação específica de
específica de Magistério (1971-1996) Magistério (HEM), conferiu-se a atribuição de formar
os especialistas em Educação, aí compreendidos os
O golpe militar de 1964 exigiu adequações no diretores de escola, orientadores educacionais, super-
campo educacional efetivadas mediante mudanças na visores escolares e inspetores de ensino.
legislação do ensino. Em decorrência, a lei n. 5.692/71 Paralelamente a esse ordenamento legal, desenca-
(Brasil, 1971) modificou os ensinos primário e médio, deou-se, a partir de 1980, um amplo movimento pela
alterando sua denominação respectivamente para reformulação dos cursos de Pedagogia e licenciatura

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que adotou o princípio da “docência como a base Visando a encontrar caminhos que nos permitam
da identidade profissional de todos os profissionais superar as dificuldades detectadas, impõe-se examinar
da educação” (Silva, 2003, p. 68 e 79). À luz desse os aspectos teóricos da questão.
princípio, a maioria das instituições tendeu a situar
como atribuição dos cursos de Pedagogia a formação Aspectos teóricos
de professores para a educação infantil e para as séries
iniciais do ensino de 1º grau (ensino fundamental). Se o problema da formação de professores se
configurou a partir do século XIX, isso não significa
Advento dos Institutos Superiores de Educação que o fenômeno da formação de professores tenha
e das Escolas Normais Superiores (1996-2006) surgido apenas nesse momento. Antes disso havia
escolas, tipificadas pelas universidades instituídas
O quadro de mobilização dos educadores ali- desde o século XI e pelos colégios de humanidades
mentou a expectativa de que, findo o regime militar, que se expandiram a partir do século XVII. Ora,
o problema da formação docente no Brasil seria mais nessas instituições havia professores e estes deviam,
bem equacionado. Mas a nova LDB promulgada, após por certo, receber algum tipo de formação. Ocorre
diversas vicissitudes, em 20 de dezembro de 1996, não que, até então, prevalecia o princípio do “aprender
correspondeu a essa expectativa. Introduzindo como fazendo”, próprio das corporações de ofício (Santoni
alternativa aos cursos de pedagogia e licenciatura os Rugiu, 1998). E as universidades, como modalidade
institutos superiores de educação e as Escolas Normais de corporação que se dedicava às assim chamadas
Superiores, a LDB sinalizou para uma política educa- “artes liberais” ou intelectuais, por oposição às “artes
cional tendente a efetuar um nivelamento por baixo: mecânicas” ou manuais, formavam os professores das
os institutos superiores de educação emergem como escolas inferiores ao ensinar-lhes os conhecimentos
instituições de nível superior de segunda categoria, que deveriam transmitir nas referidas escolas. Porém,
provendo uma formação mais aligeirada, mais barata, a partir do século XIX, a necessidade de universalizar
por meio de cursos de curta duração (Saviani, 2008c, a instrução elementar conduziu à organização dos
p. 218-221). A essas características não ficaram imunes sistemas nacionais de ensino. Estes, concebidos como
as novas diretrizes curriculares do curso de pedagogia um conjunto amplo constituído por grande número
homologadas em abril de 2006. de escolas organizadas segundo um mesmo padrão,
Como conclusão desse rápido escorço histórico viram-se diante do problema de formar professores –
constatamos que, ao longo dos últimos dois séculos, também em grande escala – para atuar nas escolas. E
as sucessivas mudanças introduzidas no processo de o caminho encontrado para equacionar essa questão
formação docente revelam um quadro de descontinui- foi a criação de Escolas Normais, de nível médio, para
dade, embora sem rupturas. A questão pedagógica, de formar professores primários atribuindo-se ao nível
início ausente, vai penetrando lentamente até ocupar superior a tarefa de formar os professores secundários.
posição central nos ensaios de reformas da década de
1930. Mas não encontrou, até hoje, um encaminha- Modelos contrapostos de
mento satisfatório. Ao fim e ao cabo, o que se revela formação de professores
permanente no decorrer dos seis períodos analisados
é a precariedade das políticas formativas, cujas suces- Nesse contexto configuraram-se dois modelos de
sivas mudanças não lograram estabelecer um padrão formação de professores:
minimamente consistente de preparação docente para
fazer face aos problemas enfrentados pela educação a) modelo dos conteúdos culturais-cognitivos:
escolar em nosso país. para este modelo, a formação do professor se

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esgota na cultura geral e no domínio especí- versidades e demais instituições de ensino superior
fico dos conteúdos da área de conhecimento que se encarregaram da formação dos professores
correspondente à disciplina que irá lecionar. secundários, ao passo que o segundo tendeu a preva-
b) modelo pedagógico-didático: contrapondo-se lecer nas Escolas Normais, ou seja, na formação dos
ao anterior, este modelo considera que a for- professores primários.
mação do professor propriamente dita só se Para que possamos compreender adequadamente
completa com o efetivo preparo pedagógico- esse fenômeno, convém ter presente que as universi-
didático. dades, na sua configuração contemporânea, caracteri-
zam-se por três elementos interligados, mas com pesos
Em verdade, quando se afirma que a universida- diferentes: o Estado, a sociedade civil e a autonomia
de não tem interesse pelo problema da formação de da comunidade acadêmica. A prevalência do Estado
professores, o que se está querendo dizer é que ela dá origem ao modelo napoleônico; prevalecendo a
nunca se preocupou com a formação específica, isto sociedade civil tem-se o modelo anglo-saxônico; e
é, com o preparo pedagógico-didático dos professores. sobre a autonomia da comunidade acadêmica se funda
De fato, o que está em causa aí não é propriamente o modelo prussiano.
uma omissão da universidade em relação ao problema Nos casos em que predomina o modelo napoleô-
da formação dos professores, mas a luta entre dois nico, ainda que sob a aparência de caótica diversidade,
modelos diferentes de formação. De um lado está o as universidades tendem, por indução do Estado, a se
modelo para o qual a formação de professores pro- unificar estruturalmente sob um ordenamento comum
priamente dita se esgota na cultura geral e no domínio e com os mesmos currículos formativos. E o currículo
específico dos conteúdos da área de conhecimento cor- formativo posto em posição dominante para os pro-
respondente à disciplina que o professor irá lecionar. fessores da escola secundária é aquele centrado nos
Considera-se que a formação pedagógico-didática virá conteúdos culturais-cognitivos, dispensada qualquer
em decorrência do domínio dos conteúdos do conhe- preocupação com o preparo pedagógico-didático. Isso
cimento logicamente organizado, sendo adquirida na se compreende quando se considera que, sob a hege-
própria prática docente ou mediante mecanismos do monia de uma elite de corte liberal-burguês, a escola
tipo “treinamento em serviço”. Em qualquer hipótese, secundária foi definida como o lugar da distinção de
não cabe à universidade essa ordem de preocupações. classe cujo papel é garantir aos membros da elite o
A esse modelo se contrapõe aquele segundo o domínio daqueles conteúdos que a distinguem do
qual a formação de professores só se completa com o povo-massa. Nesse quadro, os referidos conteúdos
efetivo preparo pedagógico-didático. Em consequên- são considerados formativos em si mesmos, não
cia, além da cultura geral e da formação específica na deixando margem a veleidades pedagógicas. Com
área de conhecimento correspondente, a instituição efeito, o modelo pedagógico-didático pressupõe, des-
formadora deverá assegurar, de forma deliberada e de Comenius, que todo e qualquer conteúdo, quando
sistemática por meio da organização curricular, a pre- considerado adequadamente à vista das condições do
paração pedagógico-didática, sem a qual não estará, ser que aprende, é suscetível de ser ensinado a todos
em sentido próprio, formando professores. os membros da espécie humana. Tal modelo é, pois,
antielitista por excelência.
Modelos de formação docente na Na universidade brasileira, apesar de uma certa
história da formação de professores influência em nível organizacional do modelo anglo-
saxônico pela via dos Estados Unidos, prevalece o
Na história da formação de professores consta- modelo napoleônico. E também aí tradicionalmente
tamos que o primeiro modelo predominou nas uni- se tem emprestado à escola secundária o papel de

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distinção de classe. Em consequência, não deixa Possibilidades e riscos da formação de


de estar presente também no ethos dos professores professores para a educação infantil e séries
universitários brasileiros uma certa depreciação do iniciais do ensino fundamental em nível superior
aspecto pedagógico. Entretanto, seja pela influência
anglo-saxônica, seja porque as desigualdades ex- No caso da formação de professores para as quatro
tremas obrigam a uma maior sensibilidade para o primeiras séries do ensino fundamental, a instituição das
aspecto educativo, no Brasil o modelo pedagógico- Escolas Normais, que veio a se consolidar ao longo do
didático conseguiu abrir espaços no nível de orga- século XX até a década de 1960, expressou a predomi-
nização dos currículos formativos tornando-se, pela nância do modelo pedagógico-didático, articulando, de
via legal e também por iniciativas autônomas de forma mais ou menos satisfatória, os aspectos do con-
algumas universidades que ampliam os requisitos teúdo e da forma que caracterizam o processo de ensino.
legais, um componente obrigatório na formação dos Atualmente, à vista do dispositivo legal que eleva essa
professores secundários. Mas essa obrigatoriedade formação para o nível superior, encontramo-nos diante
legal reveste-se, com frequência, de um formalis- de dois aspectos que se contrapõem. Com efeito, por
mo que esvazia o sentido real desses componentes um lado, a elevação ao nível superior permitiria esperar
formativos. Isso pode ser observado na organização que, sobre a base da cultura geral de base clássica e
dos cursos de licenciatura desde o chamado esquema científica obtida nos cursos de nível médio, os futuros
3+1 das décadas de 1940 e 1950, nos bacharelados professores poderiam adquirir, nos cursos formativos
complementados pelas disciplinas pedagógicas a car- de nível superior, um preparo profissional bem mais
go dos departamentos de Pedagogia das faculdades consistente, alicerçado numa sólida cultura pedagógica.
de Filosofia, Ciências e Letras na década de 1960, Por outro lado, entretanto, manifesta-se o risco de que
as quais passaram, na reforma que entrou em vigor essa formação seja neutralizada pela força do modelo dos
na década de 1970, para a alçada das faculdades de conteúdos culturais-cognitivos, com o que as exigências
Educação. pedagógicas tenderiam a ser secundarizadas. Com isso,
Diante das considerações apresentadas, reforça- esses novos professores terão grande dificuldade de aten-
se em nós a convicção de que o problema dos cursos der às necessidades específicas das crianças pequenas,
de Licenciatura – isto é, o problema da formação tanto no nível da chamada educação infantil como das
dos professores das quatro últimas séries do ensino primeiras séries do ensino fundamental.
fundamental e do ensino médio – não será resolvido O risco acima indicado é tanto mais real quando
sem o concurso das Faculdades de Educação; mas se sabe que no Brasil consagrou-se no nível do ensino
também não será resolvido apenas por elas nem mes- superior uma estrutura que acopla os dois aspectos do
mo pela justaposição, aos atuais currículos dos cursos processo de ensino referidos, considerados competên-
de bacharelado, de um currículo pedagógico-didático cias de duas unidades universitárias distintas que se
organizado e operado pelas faculdades de Educação. justapõem na tarefa de formar os novos professores:
A formação profissional dos professores implica, o domínio dos conteúdos específicos da área a ser
pois, objetivos e competências específicas, requerendo ensinada é atribuído aos institutos ou faculdades es-
em consequência estrutura organizacional adequada pecíficas; e o preparo pedagógico-didático fica a cargo
e diretamente voltada ao cumprimento dessa função. das Faculdades de Educação.
Para essa nova estrutura deverão confluir os elemen-
tos, sejam eles das diferentes faculdades ou institutos, Dilemas da formação de professores
sejam da faculdade de Educação, atualmente separados
pela dualidade – a nosso ver artificial – dos cursos de A questão da formação de professores é atraves-
bacharelado e de licenciatura. sada por vários dilemas. Aqui, porém, será abordado

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apenas aquele derivado dos dois modelos menciona- disciplinas de licenciatura se concentram apenas nos
dos de formação docente.2 Dilema é, como registram respectivos conteúdos específicos, despreocupando-se
os dicionários, uma “situação embaraçosa com duas com as formas a eles correspondentes.
saídas igualmente difíceis”; é exatamente essa a situa- Em decorrência, constata-se que as faculdades de
ção da formação de professores diante do confronto Educação tendem a reunir os especialistas das formas
entre os dois modelos: aquele centrado nos conteúdos abstraídas dos conteúdos, enquanto os institutos e
culturais-cognitivos e aquele referido ao aspecto faculdades correspondentes às disciplinas que com-
pedagógico-didático. põem os currículos escolares reúnem os especialistas
O dilema se expressa do seguinte modo: admite- nos conteúdos abstraídos das formas que os veiculam.
se que os dois aspectos – os conteúdos de conhecimen- Ora, se na raiz do dilema está a dissociação entre os
to e os procedimentos didático-pedagógicos – devam dois aspectos que caracterizam a função docente, com-
integrar o processo de formação de professores. preende-se que ambos os modelos desemboquem em
Como, porém, articulá-los adequadamente? A ênfase saídas embaraçosas, isto é, que não resolvem o dilema
nos conhecimentos que constituem a matéria dos em que eles próprios se constituem. Segue-se, pois,
currículos escolares leva a dar precedência ao modelo que as duas vias propostas constituem os elementos do
dos conteúdos culturais-cognitivos. Nesse caso, na próprio problema cuja solução se busca, não podendo
organização institucional, seríamos levados a situar ser, pois, alternativas para resolvê-lo.
a questão da formação de professores no âmbito dos Quais seriam, então, as perspectivas de solução
institutos ou faculdades específicos. Inversamente, do dilema?
se nosso ponto de partida for o modelo pedagógico-
didático, tenderemos a situar os cursos no âmbito das Tentando superar o dilema
faculdades de educação.
No entanto, levando em conta as tentativas feitas Considerando-se que o dilema resultou da dis-
desde 1980 a partir do movimento pró-reformulação sociação de aspectos indissociáveis do ato docente,
dos cursos de Pedagogia e licenciatura, constatamos logicamente a saída do dilema implica a recuperação
que as duas saídas apontadas resultam igualmente da referida indissociabilidade.
problemáticas, mantendo-se o caráter embaraçoso Uma vez que a dissociação se deu por um pro-
da situação. cesso de abstração, para recuperar a indissociabilidade
Tudo indica que na raiz desse dilema está a disso- será necessário considerar o ato docente como fenô-
ciação entre os dois aspectos indissociáveis da função meno concreto, isto é, tal como ele se dá efetivamente
docente: a forma e o conteúdo. Considerando o modo no interior das escolas. Um caminho prático e objetivo
como estão constituídas as especializações universi- para verificar a montagem e o modo de operar dos
tárias, dir-se-ia que os estudantes, que vivenciaram currículos escolares é partir dos livros didáticos, o
na educação básica a unidade dos dois aspectos, ao que permitiria tomá-los como ponto de partida para a
ingressar no ensino superior terão adquirido o direito reformulação dos cursos de Pedagogia e dos demais
de se fixar apenas em um deles. Em consequência, os cursos de licenciatura.
que foram aprovados no vestibular de Pedagogia não Dispondo os conhecimentos numa forma que visa
precisam mais se preocupar com os conteúdos. E os viabilizar o processo de transmissão-assimilação que
que foram aprovados nos vestibulares das diferentes caracteriza a relação professor-aluno em sala de aula,
mal ou bem os livros didáticos fazem a articulação
entre a forma e o conteúdo. A questão pedagógica por
2 
O conteúdo deste e do próximo tópico pode ser aprofundado
excelência, que diz respeito à seleção, organização,
recorrendo à conclusão da Parte II do livro A pedagogia no Brasil:
distribuição, dosagem e sequenciação dos elementos
história e teoria (Saviani, 2008a, p. 149-161).

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relevantes para a formação dos educandos é, assim, preensão agora sintética e não mais apenas sincrética
realizada pelo livro didático no que se refere à pedago- da relação entre forma e conteúdo no processo de
gia escolar; o livro se transforma, ainda que de modo ensino-aprendizagem.
“empírico”, isto é, sem consciência plena desse fato, Assim, recuperando a ligação entre os dois
no “grande pedagogo” de nossas escolas. Efetivamen- aspectos que caracterizam o ato docente, ou seja,
te, é ele que, geralmente de maneira acrítica, dá forma evidenciando os processos didático-pedagógicos pe-
prática à teoria pedagógica nas suas diferentes versões. los quais os conteúdos se tornam assimiláveis pelos
O que foi dito pode ser verificado ao se consta- alunos no trabalho de ensino-aprendizagem, o dilema
tar que, na medida em que se alteram as influências será superado.
teórico-pedagógicas, os livros didáticos mudam de Complementando essa reorganização dos currícu-
cara. Quando predominava a pedagogia tradicional, los dos cursos de pedagogia e licenciatura, considera-
os livros didáticos eram sisudos, centravam-se nos se que o caminho trilhado no âmbito da pesquisa para
conteúdos e se dirigiam ao intelecto dos alunos, so- superar as compartimentalizações departamentais po-
licitando sua capacidade de memorização. Quando deria ser tentado também no âmbito do ensino. Penso
passou a predominar a influência escolanovista, os que chegou o momento de organizar grupos de ensino
livros didáticos se tornaram coloridos, ilustrados, nas diferentes disciplinas dos currículos escolares que
com sugestões de atividades, buscando estimular a aglutinem docentes das Faculdades de Educação e
iniciativa dos alunos. E quando se difundiu a peda- das outras unidades acadêmicas em torno de projetos
gogia tecnicista começaram a surgir livros didáticos de ensino que configurariam as novas licenciaturas.
descartáveis, com testes de escolha múltipla ou na Espero que, pelo caminho sugerido, se delineiem
forma de instrução programada. perspectivas que permitam superar os dilemas com
Assim, analisando os livros didáticos adotados que nos debatemos hoje diante da tarefa relativa à
nas escolas, os cursos de pedagogia possibilitariam formação de professores.
que os alunos efetuassem, a partir do estudo dos
fundamentos da educação, a crítica pedagógica dos Uma palavra sobre a educação especial
manuais de ensino, evidenciando seu alcance e seus
limites, suas falhas e suas eventuais qualidades. Esse Não se pode dizer que a educação especial não te-
procedimento permitiria aos futuros pedagogos re- nha sido contemplada na legislação em vigor. A LDB a
memorar os conteúdos de ensino que eles já haviam definiu como uma modalidade de ensino e lhe dedicou
aprendido nas escolas, porém de forma sincrética, isto um capítulo específico (Cap. V). Por sua vez, o Plano
é, sem consciência clara de suas relações. Agora, ao Nacional de Educação, após efetuar o diagnóstico e
retomá-los no curso de pedagogia, os alunos teriam apresentar as diretrizes, fixa 28 objetivos e metas a
oportunidade de fazê-lo de modo sintético, isto é, com serem atingidos nos dez anos de vigência do plano. E
plena consciência das relações aí implicadas. o Conselho Nacional de Educação elaborou o parecer
Por esse caminho, os cursos de pedagogia esta- CNE/CEB n. 17/2001, no qual tratou, com razoável
riam formando profissionais capazes de atuar como minúcia, das diretrizes nacionais para a educação es-
orientadores, coordenadores pedagógicos, diretores, pecial na educação básica, definindo-as na resolução
supervisores e como professores, seja nos cursos de n. 2, de 11 de setembro de 2001.
magistério, seja nas escolas de educação infantil e nas No entanto, no que se refere à formação de pro-
cinco primeiras séries do ensino fundamental. fessores para atuar na Educação Especial a questão
Mutatis mutandis, também os alunos dos cursos permanece em aberto. Com efeito, o lugar onde esse
de licenciatura atingiriam, por meio da análise dos tipo de formação poderia ser contemplado em sua
livros didáticos das áreas respectivas, uma com- especificidade seria o curso de Pedagogia. Entretanto,

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Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro

a resolução CNE/CP 1, de 2006, que definiu as diretri- cação inclusiva que povoam os documentos oficiais e
zes curriculares nacionais para o curso de Pedagogia boa parte da literatura educacional nos dias de hoje.
toca na questão da Educação Especial de passagem
e apenas duas vezes. Trata-se do artigo 5º, inciso X Conclusão
(Saviani, 2008, p. 248): “demonstrar consciência da
diversidade, respeitando as diferenças de natureza Ao encerrar esse trabalho não posso me furtar
ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, faixas de chamar a atenção para o fato de que a questão da
geracionais, classes sociais, religiões, necessidades formação de professores não pode ser dissociada do
especiais, escolhas sexuais, entre outras” (grifos meus) problema das condições de trabalho que envolvem a
e do artigo 8º, inciso III (idem, ibidem, p. 251): carreira docente, em cujo âmbito devem ser equacio-
nadas as questões do salário e da jornada de trabalho.
[...] atividades complementares envolvendo [...] opcional- Com efeito, as condições precárias de trabalho não
mente, a educação de pessoas com necessidades especiais, apenas neutralizam a ação dos professores, mesmo
a educação do campo, a educação indígena, a educação que fossem bem formados. Tais condições dificultam
em remanescentes de quilombos, em organizações não- também uma boa formação, pois operam como fator
governamentais, escolares e não-escolares, públicas e de desestímulo à procura pelos cursos de formação
privadas. (grifos meus) docente e à dedicação aos estudos.
Ora, tanto para garantir uma formação consistente
Vê-se que, nos dois dispositivos, a referência à como para assegurar condições adequadas de traba-
Educação Especial é claramente secundária. No pri- lho, faz-se necessário prover os recursos financeiros
meiro caso, a menção não chega a ser à modalidade de correspondentes. Aí está, portanto, o grande desafio
ensino, mas apenas a situa no rol das várias situações a ser enfrentado. É preciso acabar com a duplicidade
demonstrativas da consciência da diversidade; no se- pela qual, ao mesmo tempo em que se proclamam aos
gundo caso, limita-se a uma atividade complementar, quatro ventos as virtudes da educação exaltando sua
de caráter opcional, para efeitos de integralização de importância decisiva num tipo de sociedade como
estudos. esta em que vivemos, classificada como “sociedade
Portanto, o quadro atual representa um retrocesso do conhecimento”, as políticas predominantes se
em relação ao período inaugurado em 1946 com a pautam pela busca da redução de custos, cortando
Lei Orgânica do Ensino Normal. Com efeito, como investimentos. Faz-se necessário ajustar as decisões
se indicou, essa legislação previa que os institutos políticas ao discurso imperante.
de educação, além do ensino normal, ministrariam Trata-se, pois, de eleger a educação como máxima
cursos de especialização para formar, entre outros, prioridade, definindo-a como o eixo de um projeto
professores de Educação Especial. de desenvolvimento nacional e, em consequência,
Considerada a complexidade do problema ineren- carrear para ela todos os recursos disponíveis. Assim
te a essa modalidade, de certo modo evidenciada nos procedendo, estaríamos atacando de frente, e simul-
vários aspectos contemplados no próprio documento taneamente, outros problemas do país, como saúde,
do Conselho Nacional de Educação que fixou as dire- segurança, desemprego, pobreza, infraestrutura de
trizes curriculares nacionais para a Educação Especial transporte, de energia, abastecimento, meio ambien-
na educação básica, será necessário instituir um espaço te etc. Infelizmente, porém, as tendências que vêm
específico para cuidar da formação de professores predominando na educação brasileira caminham na
para essa modalidade de ensino. Do contrário essa contramão dessa proposta.
área continuará desguarnecida e de nada adiantarão as Como assinalei na parte final da conclusão de
reiteradas proclamações referentes às virtudes da edu- meu livro Da nova LDB ao Fundeb (Saviani, 2008b,

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p. 323-324), não se trata de colocar a educação em do os tão decantados cidadãos conscientes, críticos,
competição com outras áreas necessitadas, como criativos, esclarecidos e tecnicamente competentes
saúde, segurança, estradas, desemprego, pobreza etc. para ocupar os postos do fervilhante mercado de
Ao contrário, sendo eleita eixo do projeto de desen- trabalho de um país que viria a recuperar, a pleno
volvimento nacional, a educação será a via escolhida vapor, sua capacidade produtiva. Estaria criado, por
para atacar de frente todos esses problemas. esse caminho, o tão desejado círculo virtuoso do
Com efeito, se ampliarmos o número de escolas, desenvolvimento.
tornando-as capazes de absorver toda a população Trata-se de uma proposta ingênua, romântica?
em idade escolar nos vários níveis e modalidades Não. Ela apenas extrai, com certo grau de radicalidade,
de ensino; se povoarmos essas escolas com todos os as consequências do discurso hoje dominante. Se há
profissionais de que elas necessitam, em especial com uma pitada de ironia na forma em que foi enunciada,
professores em tempo integral e bem remunerados, ela foi motivada pelo desejo de cobrar coerência aos
nós estaremos atacando o problema do desemprego portadores desse discurso.
diretamente, pois serão criados milhões de empregos. Está lançado o desafio aos formadores de
Estaremos atacando o problema da segurança, pois opinião, dirigentes dos vários níveis e dos mais di-
estaremos retirando das ruas e do assédio do tráfico ferentes ramos de atividade e, em especial, à classe
de drogas um grande contingente de crianças e jovens. política: ou assumimos essa proposta ou devemos
Mas, principalmente, estaremos atacando todos deixar cair a máscara e parar de pronunciar discur-
os demais problemas, pois estaremos promovendo o sos grandiloquentes sobre educação, em flagrante
desenvolvimento econômico, uma vez que esses mi- contradição com uma prática que nega cinicamente
lhões de pessoas com bons salários irão consumir e, os discursos proferidos.
com isso, ativar o comércio, que, por sua vez, ativará
o setor produtivo (indústria e agricultura), que irá Referências bibliográficas
produzir mais, contratar mais pessoas. De quebra, a
implementação desse projeto provocará o crescimento BRASIL. Decreto-lei 8.530, de 2 de janeiro de 1946. 1946. Dispo-
exponencial da arrecadação de impostos. Com eles, o nível em: <www.soleis.adv.br>. Acesso em: 16 jan. 2009.
Estado poderá resolver os problemas de infraestrutura ______. Lei 5.692/71, de 11 de agosto de 1971. Diário Oficial da
não apenas de transporte, mas também de energia, União, Brasília, 12 ago. 1971.
abastecimento, meio ambiente etc. e arcar com os BRASIL/MEC/CFE. Parecer 349/72. Documenta, n. 137, p. 155-
programas sociais destinados aos então reduzidos 173, abr. 1972.
grupos de não incluídos nesse amplo processo de BRASIL/MEC/CNE/CP. Resolução 1, de 15 de maio de 2006. In:
desenvolvimento geral do país. SAVIANI, D. A pedagogia no Brasil: história e teoria. Campinas:
Enfim, é claro que, com esse projeto, será resol- Autores Associados, 2008. p. 246-253.
vido também o problema da qualidade da educação: CAVALCANTE, Margarida Jardim. CEFAM: uma alternativa
transformada a docência numa profissão atraente pedagógica para a formação do professor. São Paulo: Cortez, 1994.
socialmente em razão da sensível melhoria salarial e DUARTE, Sérgio Guerra. Dicionário brasileiro de educação. Rio
das boas condições de trabalho, para ela serão atraí- de Janeiro: Antares/Nobel, 1986.
dos muitos jovens dispostos a investir seus recursos, MONARCHA, Carlos. Escola normal da praça: o lado noturno
tempo e energias numa alta qualificação obtida em das luzes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.
graduações de longa duração e em cursos de pós- REIS FILHO, Casemiro. A educação e a ilusão liberal. 2. ed.
graduação. Com um quadro de professores altamente Campinas: Autores Associados, 1995.
qualificado e fortemente motivado trabalhando em SANTONI RUGIU, Antonio. Nostalgia do mestre artesão. Cam-
tempo integral numa única escola, estaremos forman- pinas: Autores Associados, 1998.

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Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro

SÃO PAULO. Decreto 27, de 12/03/1890. In: Coleção das Leis e Educação do Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista:
Decretos do Estado de São Paulo. Tomo I – 1889-1891. São Paulo: EDUSF, 2001.
Imprensa Oficial do Estado, 1909.
SAVIANI, Dermeval. A pedagogia no Brasil: história e teoria. DERMEVAL SAVIANI é professor emérito da Universidade
Campinas: Autores Associados, 2008a. Estadual de Campinas (UNICAMP), atuando nas áreas de teorias
. Da nova LDB ao FUNDEB: por uma outra política da educação, história da educação, política educacional, formação
educacional. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2008b. docente. Publicações recentes: Escola e democracia (Campinas:
. A nova lei da educação (LDB): trajetória, limites e Autores Associados, 2008. Ed. especial comemorativa dos 25 anos
perspectivas. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 2008c. de lançamento e da 40. ed.); Da nova LDB ao FUNDEB (Campinas:
SILVA, Carmem Silvia Bissolli. Curso de pedagogia no Brasil: Autores Associados, 2007); História das ideias pedagógicas no
história e identidade. 2. ed. rev. e ampl. Campinas: Autores As- Brasil (Campinas: Autores Associados, 2007); A pedagogia no
sociados, 2003. Brasil: história e teoria (Campinas: Autores Associados, 2008).
TANURI, Leonor Maria. História da formação de professores. E-mail: dermevalsaviani@yahoo.com.br
Revista Brasileira de Educação, n. 14, p. 61-88, maio/ago. 2000.
VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: Recebido em novembro de 2008
livros, leituras e práticas de formação docente no Instituto de Aprovado em dezembro de 2008

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