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A conjuntura das escolhas públicas

 
   
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O design de jogos de políticas públicas


 




1. Introdução zoável saldo positivo na balança comer-


cial.
A conjuntura do final de 2001 prossegue De forma associada, ganha corpo nes-
sendo discutida por seus resultados fi- sas observações uma argumentação do
nais: a taxa de inflação em alta; o cres- tipo “não deveria estar como está”, ou se-
cimento do PIB em 2001/02 rebaixado ja, o câmbio de equilíbrio não seria mes-
em quase metade das projeções que se mo tão mais elevado, a taxa de crescimen-
faziam, ainda recentemente; e perspecti- to econômico seria mais alta, ou estamos
vas nebulosas quanto ao futuro da políti- inoculados contra a crise externa. O pro-
ca de energia elétrica, ao efetivo descola- blema, porém, é que essas são inferências
mento da economia brasileira em face da normativas que acabam sendo acomoda-
crise na Argentina,1 e a uma recuperação das em uma pretensa análise positiva, da
nas contas externas, seja por conta de forma “os fundamentos da economia na-
uma presumida reorientação dos fluxos cional já absorveram os fatores eleitorais
mundiais de capitais na direção da eco- e da crise externa”. Será este um pressu-
nomia nacional, seja pelo eixo de um ra- posto tão elementar assim, de modo que o
tomemos como inquestionável?

* Professor de políticas públicas da Ebape/FGV e


2. Reduzem-se os graus de
professor associado do Departamento de Economia
da PUC-Rio. liberdade
1 A referência básica nesse sentido tem sido o

“estouro da bolha cambial — o que quer que isso


Em meio a essa discussão, fica oculta a
possa significar, no ambiente tão complexo de uma questão da efetiva capacidade de o go-
economia nacional (Monteiro, 2001). O entusiasmo verno vencer dois obstáculos que com-
parece decorrer do fato de a cotação do dólar ter prometem a credibilidade de uma recu-
chegado próxima de R$2,30, ao término de 2001,
peração sustentada em 2002: o desenro-
não obstante as aplicações em dólar — junto com o
ouro — terem sido as melhores apostas em rentabi-
lar do calendário eleitoral e o novo regi-
lidade no ano recém-concluído. me institucional das medidas provisórias.

  
  
 
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Em relação ao desenrolar do calendário Possivelmente, este é um fator ainda


eleitoral, trivialmente, sabe-se que a ocor- mais relevante do que o fator eleitoral,
rência de eleições condiciona em variados visto que é inusitado: por quase oito anos
graus a implementação de políticas públi- o processo decisório da atual administra-
cas na democracia representativa. ção federal operou centrado em uma ca-
pacidade virtualmente ilimitada que ha-
Primeiro, porque as atenções do gover- bilitava a alta gerência econômica a legis-
no passam a ser concentradas em garantir lar prioritariamente. Mas agora há todo
a continuidade da coalizão no poder. Desse um cenário que se afigura novo, e ne-
modo, as iniciativas devem passar pelo cri- nhum desses agentes de decisão foi trei-
vo dos impactos dessas políticas sobre o nado para isso!
eleitorado. Em segundo lugar, porque se Mais uma vez, um exemplo didático
torna crescentemente difícil impor unidade dessa ocorrência tem sido os balões-de-
de comando na coalizão majoritária, seja ensaio que vêm sendo utilizados quando
pela apresentação de potenciais candidatos se apresenta algum impasse na negocia-
à sucessão presidencial, seja pelo natural ção política ou mesmo uma simples de-
enfraquecimento do prestígio do presiden- mora na conclusão das escolhas majoritá-
te, sobretudo porque este é o seu mandato rias: diante das resistências à tramitação
terminal, sem chances de reeleição. do Projeto de Lei n¡ 5.483/2001, que es-
Até um certo momento, as conclama- tabelece que convenções e acordos traba-
ções retóricas podem deter essa fatalida- lhistas possam prevalecer sobre a legisla-
de. Todavia, os graus de liberdade com ção da CLT, sempre se anunciava que
uma via alternativa poderia ser a emissão
que a ação do governo pode ser planejada
de uma MP. Igualmente, diante da longa
e implementada reduzem-se progressiva-
greve de funcionários públicos (na Previ-
mente, na medida em que nos aproxima-
dência e nas universidades federais), foi
mos de outubro de 2002. Um exemplo di-
emitida a MP n¡ 10, de 13 de novembro
dático nesse sentido é a estratégia que
de 2001, viabilizando a contratação de pes-
vem sendo usada pelo PFL, de modo a ga-
soal para atender a necessidades tempo-
rantir um espaço maior nas negociações
rárias da administração pública.
da sucessão, com o lançamento da candi-
Independentemente dos méritos técni-
datura da governadora do Maranhão. Até
cos dessas iniciativas, note-se que elas con-
aqui, não se sabe como o governo lidará
tornam a essência das novas regras do jogo
com esse evento.2
entre Executivo e Legislativo, minimizando
Quanto ao novo regime institucional das o esforço de negociação política. Afinal, há
medidas provisórias, desde meados de se- outras regras em vigor nesse jogo que per-
tembro último o Executivo federal passou mitem um rápido desfecho na tramitação
a deter menor poder de implementar uni- legislativa. O próprio PL n¡ 5.483/2001 tra-
lateralmente políticas públicas, em prol de mita sob um outro regime: o da regra de ur-
um compartilhamento de decisões com o gência definida no art. 64 da Constituição,
Congresso Nacional. criando endogenamente um prazo-limite
para se chegar à decisão final da legislatu-
ra.3
2 O cabo-de-guerra da aprovação da proposta orça-

mentária da União para 2002, ocorrida em dezembro


último, também ilustra essa perda de capacidade de 3Sobre essa diferença de regimes institucionais, ver,
manobra do governo. adiante, a seção 3.

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A estratégia oficial adotada para con- torais que se traduzirão, ao fim e ao ca-
viver com esses dois fatores e, assim, limi- bo, em contribuições às campanhas
tar a perda de credibilidade que deles de- políticas.
corre é a recomposição ministerial aco-
plada à mudança de lideranças na ban-
cada oficial na legislatura. Formalmente, O sentido na ação desses grupos é o de
a ação sinaliza iniciativa no jogo e aplaca investir recursos reais, na tentativa de tor-
temporariamente pressões em outras fren- nar mais exclusivos direitos legais já em
tes, ao atender a interesses básicos dos vigor na economia ou fazê-los vigorar, ob-
partidos políticos em terem extensões mi- tendo novos atendimentos preferenciais
nisteriais, ainda que em fim de mandato. junto ao processo político — o que sem-
Todavia, aos agentes econômicos sofistica- pre se poderá materializar por subsídios,
dos (os que jogam esse jogo construindo créditos fiscais, isenções de impostos, re-
suas estratégias com base no valor presen- pactuação de dívidas, crédito oficial, con-
te desses atos) não escapará que tal sinali- cessão ou renovação de direitos de explo-
zação possa estar disfarçando a falta de ração de serviços e inúmeras outras for-
comprometimento4 do governo, contraria- mas de regulação econômica.
mente a revelar um inequívoco comprome- O argumento oficial de que o “governo
timento de política econômica.5 não acabou” é qualificado justo pela inten-
Essa é uma classe de ocorrências no sificação em épocas eleitorais das ações
jogo que precisa ser bem entendida, tanto desses grupos de interesses especiais, em
pelos próprios agentes públicos quanto pe- sua busca por benefícios que são agencia-
los agentes privados: dos politicamente. O governo pode ter a in-
tenção de não reconhecer tais demandas,
porém os custos em que estará incorrendo
9 para o governo, isto é fundamental por adotar uma tal posição se revelarão in-
para agregar capital político suficiente comensuravelmente superiores aos benefí-
para ter sucesso nas eleições do próxi- cios que poderá obter nas urnas.
mo ano — o sucesso eleitoral tanto po-
derá ser alcançado pela vitória na elei- Desse modo, é certo que o governo já
ção presidencial, quanto pela obten- esteja executando sua estratégia eleitoral,
ção do controle na futura legislatura; que se estende da definição de alianças
sob o novo regime das MPs, esse con- em torno de uma candidatura oficial até a
trole poderá se tornar um efetivo limi- concretização do volume e das fontes de
tador às ações de um presidente eleito financiamento para que essa candidatura
pela oposição; seja vitoriosa. É sob esse aspecto que a re-
tórica de “o governo não acabou” é intrin-
9 para os grupos privados, a incerteza secamente contraditória.
quanto aos já citados dois fatores torna
O mais correto talvez seja perceber a
mais relevante a atenção para com a
mudança no perfil dos atendimentos de po-
construção de suas estratégias de ação
líticas que passarão a ser feitos. Ou, ainda,
coletiva ou nonmarket strategies (Baron,
o que deixará de ser feito ou será adiado,
2001), ou seja, suas iniciativas pré-elei-
não por uma decisão autônoma do gover-
no, mas por uma “compra” feita por grupos
de interesse no processo político. Afinal,
4 Estratégia não-individualizada ou pooling. “comprando ou não”, esses grupos não po-
5 Estratégia individualizada ou separating. deriam mesmo evitar a expropriação de
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renda ou riqueza que possa estar implícita policymakers consentem em ficar restritos
em uma decisão de política.6 ao uso de um mecanismo institucional
que sabidamente é mais lento, comparti-
lhado e transparente do que a emissão de
MPs.7
3. Dois regimes de urgência: os arts.
62 e 64 A prática observada agora, com o PL
n¡ 5.483/2001, é que os burocratas talvez
Por trás da trajetória legislativa — PL
pretendam utilizar uma outra regra (art.
n¡ 5.483/2001 (o relaxamento da CLT, em
64) a seu favor, preferentemente a acatar
face dos termos de um acordo trabalhis-
uma participação mais autônoma da le-
ta —, aprovado na Câmara dos Deputa-
gislatura no jogo de política econômica.
dos em 4 de dezembro de 2001, está uma
ocorrência significativa: testa-se um novo Esse artigo estabelece um fast track no
regime de escolhas públicas que pretende Congresso Nacional, na medida em que a
manter a hegemonia dos burocratas do pressão para se obter a decisão legislativa
Executivo, agora que a emissão de medi- é dada pelo trancamento da agenda, vale
das provisórias opera sob as restrições da dizer, o projeto tramitando sob “urgência”
Emenda Constitucional n¡ 32, de 11 de — condição que pode ser requerida irres-
setembro de 2001, que alterou o art. 62 tritamente pelo presidente da República
da Constituição. para projetos de lei de sua iniciativa —
Porém, a adesão do governo às novas torna-se preferência absoluta na agenda
regras da EC n¡ 32 revela-se muito super- da casa legislativa onde se dá a escolha
ficial — o que era de se esperar, uma vez coletiva. Ademais, dependendo da época
que a aceitação dos termos dessa EC pela do ano e do calendário eleitoral, pode-se
coalizão no poder é um paradoxo, pois exercer uma pressão irresistível tanto em
que, justo quando se avoluma a incerteza face do que o Executivo tenha a oferecer
e entramos em um período eleitoral, os em troca da transigência de deputados e
senadores, quanto pelo risco a que se ex-
põe o político perante sua base de repre-
6 Passos dados recentemente — o Código de Con-
sentação. Adicione-se a isso o recurso a
duta da Alta Administração Federal (21 de agosto uma variedade de expedientes regimen-
de 2000) e suas atualizações; a Portaria n¡ 34, de 8 tais e intenso logrolling (troca de votos), e
de novembro de 2001, do ministro-chefe da Casa tem-se um episódio que tende a desgastar
Civil; a retomada do Projeto de Lei n¡ 6.132-90 (Lei
muito mais a imagem do Legislativo do
Antilobbying) em tramitação na Câmara dos Deputa-
dos; e mesmo o incipiente debate sobre o financia- que a do Executivo e, assim, reduz os
mento público de campanhas eleitorais — indicam a graus de liberdade com que os legisla-
direção de tornar esse mecanismo menos social-
mente perverso. Contudo, é necessário ter cautela
quanto a esse tipo de mudança institucional, de vez
que minimizar um aspecto mais transparente do 7 O regime das MPs — tal como instituído em 1988 e

rent seeking pode apenas exacerbar alguma outra a permissividade com que foi sendo utilizado ao longo
dimensão do problema. Como lembra um estudioso dos anos 1990 — tinha na desativação do sistema
do tema (McChesney, 1997), a complexidade desse constitucional da separação de poderes sua caracterís-
mecanismo talvez não admita soluções que apenas tica mais essencial. Qualquer mudança significativa
alterem a barganha entre políticos e segmentos pri- nesse regime teria de necessariamente restabelecer o
vados, sem reduzir o tamanho do que os políticos equilíbrio de forças na interação Legislativo-Execu-
têm para vender. tivo.

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dores possam exercer sua autonomia deci- nefícios futuros que resultem dessa
sória. cooperação; ou seja, os agentes no
A utilização dessa estratégia é institu- jogo diferem por sua valoração do fu-
cionalmente factível e há pelo menos dois turo.8
vínculos na análise econômica contempo-
rânea que dão sustentação a esse ponto
Nesse sentido, a crescente literatura
de vista:
de normas sociais (Posner, 2000) dá fun-
damentação a que se perceba que um
9 ao mesmo tempo que o cidadão-eleitor agente do “mal” que planeja renegar a co-
confronta-se com custos de informação operação buscará interagir com agentes
deliberadamente aumentados, com o do “bem”, de vez que serão maiores os
recurso a complexos procedimentos re- seus benefícios imediatos em decorrência
gimentais na Câmara dos Deputados, da renegação de seus comprometimen-
ele fica sujeito a um custo de reação tos, caso o outro agente coopere. Assim,
também elevado, de vez que no Sena- este é um jogo em que todos estarão sem-
do Federal (próximo estágio da trami- pre buscando interagir com quem esteja
tação do PL n¡ 5.483/2001) a maioria é propenso a cooperar, vale dizer, quem tem
mais confiável para bloquear qualquer baixas taxas de desconto.
reação contrária às preferências do go- Para bem entender as implicações de
verno, bem como o recurso ao Judiciá- uma iniciativa como o PL n¡ 5483/2001
rio pode ser inócuo; sob esse último — e sua acompanhante cláusula de ur-
aspecto, veja-se o recente Decreto n¡ gência — deve-se perceber o uso de uma
4.010, de 12 de novembro de 2001, estratégia em que o governo “mascara”
que centralizou na presidência da Re- sua proposta de política em uma retórica
pública o comando da liberação de pa- de bem-estar social. A sinalização que isso
gamentos aos servidores públicos fede- promove induz a que uma maioria de le-
rais, como instrumento de pressão na gisladores vote favoravelmente à propos-
greve de professores federais; mesmo ta, independentemente de o governo se
com o STJ decidindo pelo pronto depó- predispor a aprimorar o sistema de sepa-
sito do pagamento dos grevistas, o Exe- ração de poderes, por exemplo. Terá vali-
cutivo continuou a argumentar — e do a pena parecer estar jogando em uma
não foi substancialmente contestado perspectiva de longo alcance, se o resulta-
— que o citado decreto tinha precedên- do final for a aprovação do projeto que
cia sobre a decisão judicial; e mais ain- atende às preferências conjunturais dos
da — com o STF confirmando a deci- burocratas.
são do STJ; Na verdade, este é um comportamen-
to alarmante, pois que estamos em vias de
9 uma variável-chave a determinar a uma transição para uma nova administra-
possibilidade de cooperação é a taxa
de desconto dos agentes envolvidos
no jogo — tanto mais intensamente se
8 Os do “mal” terão uma alta taxa de desconto e
desconte o futuro, menos provável é
poderão sempre renegar comprometimentos de coo-
que o agente se disponha a abrir mão peração; os do “bem” — os de baixa taxa de desconto
de benefícios imediatos e capturáveis — usam algum tipo de estratégia de cooperação con-
no período corrente, em favor de be- dicional.
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ção federal, que herdará um quadro insti- ções) de atuar no jogo, para referendar ou
tucional que sanciona um substancial po- não a MP. Porém, em boa parte dos casos,
der de propor (Baron & Ferejohn, 1989) os fatos consumados criados por uma
do Executivo, com o contraponto do Con- dada MP tornavam redundante a extensão
gresso Nacional decidir diante de virtuais maior ou menor desse prazo de confirma-
fatos consumados. O que mudou? ção pelo legislador.
Para entender que, uma vez mais,
pode estar em causa a deterioração das
9 No regime das MPs pré-setembro de
instituições representativas, é importante
2001, a legislatura confrontava-se com
notar o papel exercido por Judiciário e Le-
fatos consumados que decorriam de
gislativo na construção e sustentação de
um aparato legal em que o Congresso
tanto poder dos burocratas. Com o art.
Nacional era passivo. Sua capacidade
62, o Judiciário (mais especificamente, o
de alterar uma MP esbarrava no subs-
STF), em circunstâncias de crise econômi-
tancial custo político de reverter ações
ca, acabava manifestando muita deferên-
como o Proer, a adoção da nova moeda
cia para com o presidente da República,
ou a superindexação da URV.
sem virtualmente oferecer resistência à
9 Com a cláusula de urgência, a legisla- emissão de MPs. O STF tornou-se, de fato,
tura perde graus de liberdade não só prisioneiro da chamada “tirania de pe-
em relação à definição de sua agenda quenas decisões” (Tribe, 2001): há uma
(uma opção do tipo “isso ou nada”) em incapacidade institucional de se examinar
um dado ponto do tempo, mas também o fenômeno das MPs em sua complexa to-
quanto às opções disponíveis, dada talidade e, assim, o Judiciário restringe-se
esta agenda: a urgência implica enfati- ao exame parcelado, de cada MP per se.
zar junto ao eleitorado a relevância da Dessa forma, o Congresso Nacional é a
proposta presidencial e, portanto, colo- instância que pode atuar num contraba-
ca deputados e senadores em desvan- lanço efetivo. Foi o que ocorreu com a EC
tagem na negociação política, se todos n¡ 32. Todavia, o Congresso Nacional pode
eles pretenderem reformular em larga não ter entendido a lição de que é da con-
escala a proposta original ou, mesmo, sideração do poder de propor do presi-
dente da República — e dos burocratas —
vierem a rejeitá-la.
que resulta a dimensão constitucional
mais profunda da regulamentação do art.
Todavia, há pontos de contato entre 62 e suas implicações para a ativação —
um e outro regime decisório. Por exemplo, ora observada — do regime do art. 64.
a urgência referida no art. 64 da Constitui-
ção é tão substancialmente vaga quanto a
que é mencionada no art. 62. Os burocra- 4. A instância judicial
tas têm, portanto, preservado seu poder
de interpretar a necessidade de legislar na Em uma outra frente, o estilo imperium in
conjuntura, controlando o timing da deci- imperio do presidencialismo brasileiro en-
são legislativa. Com as MPs, esse controle volve o papel desempenhado pelo Judiciá-
era nominalmente mais significativo, de rio e, mais especificamente, pelo STF.
vez que a legislatura poderia ser dispensa- Estudo teórico recente sobre a inde-
da indefinidamente (por meio de reedi- pendência do Judiciário (Hanssen, 2001)

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testa proposições que, no geral, são apro- classes de decisões de política econô-
priadas para o melhor entendimento da mica possam vir a ser levadas à consi-
alta concentração de poder no Executivo deração judicial. Uma variante dessa
brasileiro. proposição decorre da projeção que se
faz quanto à significativa renovação
9 Proposição 1: o nível politicamente óti- por que poderá passar o STF nos pró-
mo dessa independência será tanto ximos cinco anos, em razão da abertu-
mais elevado quanto menor for a proba- ra de três a quatro vagas em seu ple-
bilidade de que a coalizão atual se man- nário de 11 membros. Neste caso — e
tenha no poder, e vice-versa. Ou seja, a valer a proposição 2 — pode-se an-
quanto mais convencido estiver o go- tecipar algum tipo de movimentação
verno de que fará o seu sucessor, tanto política no sentido de tentar refrear a
menos ele ganhará (em proteção contra capacidade de um mesmo governo in-
a política econômica que poderá vir a dicar parcela tão expressiva da cúpu-
ser praticada pela oposição), e tanto la do sistema judiciário.
mais ele perderá (em termos das conse-
9 Proposição 3: quanto maior for a dis-
qüências da interpretação que o Judi-
tância entre a política que o Judiciário
ciário poderia dar à sua decisão, caso o
poderia vir a favorecer em sua decisão
Judiciário atuasse com total indepen-
(em uma interpretação de constitucio-
dência).
nalidade pelo STF, em face de um ato
9 Proposição 2: quanto maior for a dis- do Executivo, por exemplo) e a políti-
tância entre a política correntemente ca mais preferida do governo, tanto
praticada e a que a oposição poderá menor será o nível politicamente óti-
vir a implementar, tanto mais se ele- mo da independência do Judiciário, e
vará o nível politicamente ótimo da vice-versa. Ou seja, discordâncias da
independência judicial, e vice-versa. visão do Judiciário e dos membros da
Um caso particular dessa proposição é coalizão majoritária conduzem a uma
o da igualdade de políticas patrocina- posição judicial menos independente.
das pelo governo incumbente e a que
seria posta em prática pela oposição,
no caso desta ascender ao poder.9 Na Argentina de Menem, uma evidên-
Nessa circunstância, não interessará cia mais escancarada dessa propriedade
ao atual governo fomentar a indepen- se deu sob a forma do esvaziamento deli-
dência do Judiciário. Contrariamen- berado da instância suprema do Judiciá-
te, quanto mais probabilidade tenha rio, com a migração de parte de seus
o PT, por exemplo, de obter a vitó- membros para postos em embaixadas ar-
ria nas eleições de 2002, tanto mais gentinas na Europa.
predisposta estará a atual coalizão No Brasil, toda a experiência desde os
(PSDB-PFL-PMDB) a argüir que certas anos 1990 com a prática das MPs evidencia
justo essa propriedade: a posição do STF
sempre se concentrou em eventualmente
9 Tal como no argumento de que não resta à oposi- apreciar o significado isolado de cada MP,
ção senão prosseguir com a linha mestra do Plano não obstante os extensos e freqüentes pare-
Real. ceres de diversos de seus juízes quanto aos
164 J V M

efeitos deletérios do intenso e variado re- coletivas no formato de um jogo de es-


curso a esta forma de legislar. tratégias. Como tal, muito se tem apren-
A perspectiva do jogo de estratégias é dido sobre surgimento, transformação, di-
sempre muito útil para a observação da fusão e estabilização de formas de compor-
trajetória da economia brasileira, espe- tamento dos agentes econômicos (Gintis,
cialmente porque nem sempre este é um 2000).
jogo de regras fixas. Tal perspectiva tor- Um cenário muito propício para se ter
na-se atraente diante de uma circunstân- essa visão analítica é a interação do Exe-
cia peculiar: o exercício de um poder mui- cutivo com o Legislativo, especialmente
to flexível que pode alterar as regras en- quando da tramitação do projeto da lei
quanto o próprio jogo se desenvolve. orçamentária da União. Esta é uma ocor-
Correntemente, um exemplo disso rência bem mais relevante do que se de-
está em questão: entre 17 e 21 de dezem- duz do noticiário da imprensa e, mesmo,
bro de 2001 transcorre um período de au- da retórica oficial. O fato é que o orça-
toconvocação extraordinária do Congres- mento da União é a vitrine pela qual os ci-
so Nacional, e nessa ocasião a Mesa do dadãos — por seus representantes no
Senado Federal se dispõe a votar três pro- Congresso Nacional — formam a percep-
postas de emenda constitucional, inde- ção mais objetiva dos custos do governo,
pendentemente de as regras do regimen- bem como dos benefícios associados à tra-
to interno da casa não permitirem tal ace- jetória em que se propõe conduzir a so-
leração do processo decisório. O argumen- ciedade, no ano seguinte.
to favorável à subversão das regras não é Contudo, esta é uma compreensão es-
novo: a causa é justa, e assim vale tangen- tranha ao processo orçamentário público
ciar o regimento.10 no Brasil.
Se as regras mudaram durante o jogo, A pressão do curto espaço de tempo
isso já é passado. disponível para a tramitação legislativa do
projeto orçamentário — o que, de todo
modo, poderia ser neutralizado por uma
atuação isenta e efetiva da Comissão Mis-
5. A especificação de um jogo ta de Planos, Orçamentos Públicos e Fisca-
Um dos grandes avanços metodológicos lização — acaba agravada pela insistência
da ciência econômica nos últimos 20 do Executivo em adotar uma estratégia de
anos tem sido a exploração das escolhas fato consumado. Nesse sentido, vale res-
saltar a prática observada, na votação con-
cluída em 28 de dezembro de 2001, de fa-
zer constar na proposta de orçamento
10 No caso, estavam envolvidas, na Câmara dos
uma fonte de receita que é virtual, pois
Deputados, as PECs n¡ 610/1998 (restringindo a
imunidade parlamentar ao exercício do voto, voz e que sua existência a partir de meados de
opinião); 277/2000 (criação da Cide, contribuição de 2002 depende da aprovação futura pelo
intervenção no domínio econômico, sobre a importa- Congresso Nacional de uma proposta de
ção de petróleo e derivados, uma vez que a partir de
emenda constitucional.
2002 termina o monopólio da Petrobras na importa-
ção de petróleo e derivados); e 222/2000 (cobrança No projeto orçamentário de 2002, o
de taxa municipal de iluminação pública). As duas Executivo fixa uma arrecadação anual de
primeiras foram aprovadas na sessão de 18 de de-
zembro de 2001, enquanto a proposta da taxa de ilu-
R$19,8 bilhões para a CPMF. No entanto,
minação pública foi derrotada, nessa mesma sessão até aqui não foi aprovada a PEC n¡ 407/
do Senado Federal. 2001 enviada à legislatura e que estende

    165

a vigência da CPMF até 31 de dezembro gras que encampam a MP n¡ 419, de


de 2004, de vez que ela caducará em ju- 28 de janeiro de 1994, e, pela Lei de
nho próximo e, assim, o Congresso Nacio- Conversão n¡ 8.849, de 28 de janeiro
nal está: de 1994, a MP n¡ 402, de 29 de de-
zembro de 1993, e, igualmente, a MP
9 aceitando condicionar sua decisão de n¡ 400, de 29 de dezembro de 1993,
hoje à mudança constitucional em uma por meio da Lei n¡ 8.848, de 28 de ja-
data futura, o que acentua uma visão neiro de 1994; por seu turno, a MP n¡
da Constituição como um contrato de 419 convalida a MP n¡ 401, de 29 de
curto prazo que pode acomodar pe- dezembro de 1993.
nhoras ditadas pelos interesses do go-
9 com a EC n¡ 12, de 15 de agosto de
verno;
1996, surge mais um artigo no ADCT,
9 sendo, mais uma vez, levado às cordas o 74, em que se institui a contribuição
— ou dá por aprovada a citada PEC, provisória sobre movimentação ou trans-
ou inviabiliza uma expressiva parcela missão de valores e créditos e direitos de
da execução orçamentária de 2002.11 natureza financeira (CPMF), com alí-
quota única de 0,25%; ademais, a
O caso da CPMF é especialmente didá- nova fonte de receita fica integralmen-
tico, porque permite que se entenda a fase te alocada ao Fundo Nacional de Saú-
da especificação de um jogo, vale dizer, do de; a transitoriedade da cobrança foi,
design de suas regras de operação. por outro lado, fixada para até dois
A criação da CPMF é uma peça funda- anos, portanto até começo do segun-
mental na arquitetura da estabilização eco- do semestre de 1999 (logo a seguir, a
nômica, muito menos por ter gerado uma Lei n¡ 9.311, de 24 de outubro de
nova e significativa fonte de recursos para a 1996, disciplinaria a cobrança da
União, do que por consolidar um padrão de CPMF);
comportamento nas escolhas públicas. Va- 9 já a EC n¡ 21, de 18 de março de
le, pois, recapitular algumas definições de 1999, introduz mais uma regra no
regras ocorridas na trajetória deste im- ADCT, o art. 75, prorrogando por 36
posto: meses a cobrança da CPMF, alteran-
do sua alíquota de incidência para
9 a criação do Fundo Social de Emer- 0,38%, nos 12 meses seguintes àque-
gência, que preparava o terreno para a la data, e 0,30%, no restante do pe-
nova fonte tributária — a EC de Revi- ríodo de vigência da contribuição, e
são n¡ 1, de 1¡ de março de 1994, adi- destinando o resultado do aumento
cionou os novos arts. 71, 72 e 73 ao da arrecadação (trazido pela expres-
Anexo das Disposições Constitucio- siva elevação de alíquota) ao custeio
nais Transitórias (ADCT); estas são re- da Previdência Social;

9 pela EC n¡ 31, de 14 de dezembro de


11 De fato, tão expressiva, a ponto de a ocorrência
2000, aprofunda-se a vinculação da
ser explicitada, em 12 de setembro de 2001, no
CPMF (em 0,08% de sua arrecadação)
memorando de política econômica do acordo com o à execução do Fundo de Combate e
FMI. Erradicação da Pobreza — o que signi-
166 J V M

ficou acrescentar mais um artigo (art. 6. Conclusão


80) ao ADCT.
Estes são tempos de mudança institucio-
nal no relacionamento do Legislativo com
Toda essa seqüência de fatos pode ser o Executivo. Seria, no entanto, um engano
vista na figura que ilustra este artigo, na supor que o substancial poder presidencial
qual regras da esfera mais significativa — se tenha dissipado, com o Congresso Na-
em abrangência e durabilidade — do jogo cional assumindo plenamente sua indepen-
de política econômica podem ser sucessi- dência harmônica, no âmbito do sistema
vamente alteradas, ainda que em sua base constitucional da separação de poderes. De
estejam atos legislativos unilaterais de algum modo, como pode ser facilmente
iniciativa dos burocratas do Executivo. percebido na tramitação de matérias legis-
Este é, sem dúvida, um regime de regras lativas de efetivo significado para o gover-
muito peculiar e que ajuda a melhor en- no, o Executivo ainda detém uma capaci-
tender a construção de estratégias dos dade de manobra expressiva. Porém, há
participantes deste jogo. A figura é o es- uma diferença entre as duas ordens institu-
queleto de um arranjo institucional muito cionais subjacentes à economia nacional:
sofisticado e que pode ter funcionado
como a âncora mais fundamental do es- 9 antes, a legislatura era confrontada com
forço de estabilização econômica, em cur- fatos consumados, provocados pela
so na economia brasileira desde meados emissão de uma MP; fatos cuja revoga-
de 1993. ção ou atenuação trazia custos políticos
Por outro lado, vale notar que o cará- tão substancialmente elevados para os
ter transitório da CPMF vai-se tornando legisladores que eles acabavam por
menos convincente: as vinculações dão-se transigir;
a programas cuja revogação — ou simples
reformulação — traria pesados custos po- 9 agora, torna-se mais evidente a nego-
ciação prévia com as lideranças dos par-
líticos a quem vier a patrociná-la. Tal é o
tidos que integram a coalizão majori-
caso da EC n¡ 31 que atrela parte do resul-
tária, não obstante o resultado final ser
tado da arrecadação da CPMF — ainda
análogo ao que se experimentava sob o
que marginalmente — à erradicação da
antigo regime das MPs — permite-se a
pobreza.
discussão, sob um timing e limites es-
treitamente controlados pelos burocra-
tas do Executivo.12
O design de um jogo: o caso da
CPMF
(1993-2002) É uma questão subsidiária inferir em
qual dos dois regimes o sistema de sepa-
Jogo constitucional ração de poderes funciona menos imper-
feitamente. Porém, há a vantagem de
MP n¡ 400 Lei n¡ 8.848
Regra 74*
Regra 71
Regra 75*
MP n¡ 402 Lei n¡ 8.849 Regra 72
Regra 80*
Regra 73 12 Como visto, o exemplo mais recente dessa nova
Regra 84*
MP n¡ 401 MP n¡ 419
ordem foi a aprovação (em 4 de dezembro de 2001),
na Câmara dos Deputados, da flexibilização da legisla-
* Prevista. ção trabalhista do regime da CLT (PL n¡ 5.483/2001).

    167

que, à margem das MPs, o controle execu- Por fim, a evidência aqui arrolada
tivo pode ser transferido eventualmente pode-se mostrar muito relevante para que
para uma trajetória constitucionalmente os comportamentos dos participantes da
explícita. É o que ocorreu em 17 de de- complexa escolha pública da qual resulta
zembro de 2001 no Senado Federal: o a política econômica sejam mais bem en-
Executivo mantinha a clara expectativa tendidos e, em especial, na aferição dos
de que os senadores aceitariam bancar o custos de monitoramento e sinalização
custo político de derrubar a proposta de com que se confrontam cidadãos e políti-
correção de 17,5% nos valores da tabela cos, bem como dos benefícios que resul-
de descontos do imposto de renda da pes- tam dessa interação. É provável que a sus-
soa física, já aprovada na Câmara dos De- tentação dos bons resultados macroeco-
putados — uma decisão que retira recur- nômicos venha ocorrendo em troca da
sos da autoridade fiscal estimados em cer- ampliação do poder discricionário do go-
ca de R$3,5 bilhões. Essa expectativa verno, com a decorrente dissipação das
frustrou-se e a decisão foi levada à próxi- instituições representativas.
ma etapa do sistema decisório tricameral:
Nada ilustra melhor essa consideração
a consideração do veto presidencial.13 do que a recente aprovação da lei orça-
Ademais, sendo este um tema de natureza mentária de 2002, no pressuposto da vi-
orçamentária, o Executivo volta a lançar gência de uma regra constitucional que,
mão da estratégia de expor o Congresso de fato, inexiste. Isso pode significar uma
Nacional como o responsável por eventu- triunfante iniciativa gerencial, porém é
ais decorrências negativas da decisão de inevitável a percepção de que esta é mais
atenuar a incidência do imposto de renda. uma ocorrência que desabilita a Consti-
Como, em paralelo, tramitava o projeto tuição, como um mecanismo de coorde-
orçamentário da União para 2002, os le- nação de expectativas no jogo de política
gisladores atuavam sob a necessidade de econômica.
compatibilizar a redução aprovada na ar-
recadação tributária com cortes de despe-
sas — o que certamente não é uma esco-
lha sem ônus político na conjuntura elei- Referências bibliográficas
toral.14
Baron, D. Theories of strategic nonmarket par-
ticipation: majority-rule and executive insti-
13 É interessante notar que ao longo desse episódio tutions. Journal of Economics & Management
também foi feita a ameaça de vir a ser emitida uma Strategy, 10(1):47-89, Spring 2001.
MP, de modo a tentar influenciar a tramitação desse
projeto de lei.
14 Estratégia análoga já vem sendo usada nos dois
——— & Ferejohn, J. The power to propose.
últimos anos com relação à atualização do nível do
In: Ordeshook, P. (ed.). Models of strategic
salário mínimo, quando igualmente os governado- choice in politics. Ann Arbor, University of
res dos estados são expostos a correrem riscos por Michigan Press, 1989. p. 343-74.
suas decisões de garantir pisos salariais mais eleva-
dos do que o nível votado no Congresso Nacional.
Um outro exemplo de transferência de responsabili-
Gintis, H. Game theory evolving: a problem-
dade e a correspondente marcação de agenda futura centered introduction to modeling strategic
da legislatura é o caso da CPMF, como apresentado interaction. Princeton, Princeton University
na seção 5 deste artigo. Press, 2000.
168 J V M

Hanssen, F. Is there a politically optimal level Monteiro, J. V. Câmbio: um caso de exuberân-


of judicial independence? Stanford Law cia irracional? Estratégia Macroeconômica,
School, 2001. (John M. Olin Program in 9(222), 1-10-2001.
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rent extraction, and political extortion. Cam- Tribe, L. Trial by fury. The New Republic On-
bridge, Harvard University Press, 1997. Line, Oct. 12-2001.

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