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Resumo
A literatura psicológica sobre o brincar e o seu papel no desenvolvimento infantil é bastante vasta, o que
enfatiza sua importância. Há indicações de que, para que se compreenda o brincar da criança, sobretudo na
escola, deve-se levar em consideração tanto os períodos de desenvolvimento quanto as etapas transicionais
em um determinado período. Este artigo focaliza aspectos teóricos do brincar e sua relação com o
desenvolvimento infantil, considerando, de forma crítica e integrada, perspectivas de autores clássicos, tais
como Piaget, Wallon, Vygotsky e Leontiev. Conclui-se que a relação entre desenvolvimento, brincadeira e
cultura não pode ser ignorada. O brincar, seja do ponto de vista social seja do individual, não é uma atividade
secundária no desenvolvimento infantil, ao contrário, é ela que fornece os principais meios para as
articulações entre desenvolvimento pessoal e sócio-histórico. Além disso, do ponto de vista do cotidiano
escolar, emerge a necessidade de discussões sobre um tempo pedagógico, envolvendo o brincar, que esteja
mais articulado com as possibilidades objetivas e subjetivas da criança no seu desenvolvimento, mesmo que
a escola esteja principalmente voltada para a aquisição do conhecimento.
Palavras-chave: Brincar; Desenvolvimento; Escola.
Abstract
The psychological literature on play and its importance on children´s development is quite broad, that
emphasizes its importance. It seems that, in order to understand children´s playing, particularly concerning
school, it should be taken into account both development stages and the transitional phases within these stages.
This article focus theoretical aspects of playing and its relationship with infant development, considering the
perspective of authors such as Piaget, Wallon, Vygotsky e Leontiev in a critical and integrated manner. It
concludes by stating that the relationship between development, playing and culture cannot be ignored. Playing,
from both social and individual perspective, is not a secondary activity in children’s development. On the
contrary, playing activities give the means to articulate personal and socio-historical development. Besides, from
the point of view of school daily life, there is the emergence of the need to discuss about a pedagogical time
that includes playing. This should go together with the objective and subjective possibilities of children and their
development, even considering that schools are more concerned with knowledge acquisition.
Keywords: Play; Development; School.
1
Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília.
2
Professora-Doutora dos cursos de Graduação e Mestrado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. Psicanalista –
Endereço para correspondência: Universidade Católica de Brasília - UCB, Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa. SGAN,
Módulo B, W5 Norte – Campus II - CEP: 70790-160, Brasília DF. deise@ucb.br
3
Professora-Doutora do Mestrado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. Professora aposentada do Instituto de
Psicologia da Universidade de Brasília. Psicanalista.
Seis estágios ou períodos do desenvolvi- entre classes de coisas. No fim do período das
mento vão marcar o surgimento das estruturas da operações concretas, as crianças adquirem capaci-
inteligência, isto é, “as formas de organização da dade de resolver problemas mentais e de combi-
atividade mental, sob um duplo aspecto: motor ou nar e dividir conceitos de classe.
intelectual, de uma parte, e afetivo, de outra, com As operações concretas permitem a prá-
suas dimensões individual e social (interindividu- tica dos jogos com regras, quando então buscam
al)” (Piaget, 1964/1971, p. 13). Os três primeiros vencer, quase sempre em razão de um desejo de
constituem o período de lactância, em torno das demonstrar a sua inteligência (Elkind, 1972).
idades de zero até um ano e meio a dois anos, isto Nessa fase do desenvolvimento, em que
é, anterior ao desenvolvimento do pensamento e o egocentrismo se manifesta, a criança também
da linguagem, e que abrange o estágio dos refle- expressa paixão pelas histórias de mistério, aven-
xos e das primeiras emoções, o dos primeiros há- tura e magia, interessa-se pelas séries de televisão,
bitos motores e primeiras percepções organizadas especialmente pelos super-heróis, que mostram
e sentimentos diferenciados e o estágio da inteli- modalidades de mundos bem particulares.
gência senso-motora ou prática, em que ocorre O sexto estágio compreende a adolescên-
uma descentralização das ações em relação ao pró- cia. É o estágio das operações intelectuais abstra-
prio corpo e uma gradual coordenação das ações, tas, da formação da personalidade e da inserção
entre os dezoito e os vinte e quatro meses. Este afetiva e intelectual na sociedade dos adultos. É
estágio, o sensório-motor, é marcado pela forma- por volta de onze a doze anos que ocorre o que
ção da função simbólica ou semiótica. Gradual- Piaget denomina operações formais, que se carac-
mente a criança vai adquirindo a linguagem e a teriza pela possibilidade de transpor as operações
imagem mental e mostra capacidade de represen- lógicas do plano de manipulação concreta para o
tação simbólica, ou seja, adquire a capacidade de plano das idéias. Elas podem ser expressas em al-
representação das coisas. Começam a acontecer gum tipo de linguagem (linguagem das palavras,
as primeiras tentativas de desenho e representa- dos símbolos matemáticos, por exemplo), prescin-
ção gráfica. dindo do apoio de uma percepção direta de uma
O quarto estágio que abrange, em ge- experiência ou de uma crença.
ral, as idades de dois a sete ou até oito anos, defi- A classificação dos jogos, elaborada por
ne-se como estágio pré-operatório. Nele, Piaget Piaget, corresponde às características das estrutu-
prevê um primeiro nível ou subestágio, de dois a ras mentais: os jogos de exercício sensório-motor,
quatro anos e um segundo subestágio de cinco a os jogos simbólicos e os jogos de regras.
seis. É o estágio da inteligência intuitiva, dos sen- Os jogos de exercício sensório-motor ini-
timentos interindividuais espontâneos e das rela- ciam a atividade lúdica da criança, surgindo quan-
ções sociais de submissão ao adulto. do ela pratica movimentos simples, cujo prazer do
As idades de sete a onze, doze anos es- funcionamento é a sua própria finalidade. Os exer-
tão compreendidas no quinto estágio, o das ope- cícios consistem em repetição de gestos simples,
rações intelectuais concretas (começo da lógica), que começam com a organização das percepções
bem como dos sentimentos morais e sociais de e hábitos do bebê e predominam durante todo o
cooperação. Antes desse estágio, quando são mais período da inteligência sensório-motora, embora
novas, as crianças não conseguem abstrair posi- se mantenham durante toda a infância e se pro-
ções em classes, para percebê-las recorre às posi- longuem até a fase adulta.
ções concretas dos objetos. Entre sete e oito anos, Os jogos simbólicos destacam-se com
em média, ocorre uma decisiva transformação no a predominância da atividade da criança de as-
que concerne à elaboração dos seus instrumentos similar e transformar o real, tendendo a repro-
de conhecimento. Caracteriza-se, principalmente, duzi-lo em função dos seus desejos. Nos jogos
pela aquisição das operações concretas, ou seja, de faz-de-conta, a criança se auto-expressa, re-
uma capacidade de “fazer dentro da cabeça”, o aliza seus sonhos e fantasias, revelando confli-
que antes ela teria que concretizar por ações reais. tos, medos e angústias e aliviando tensões e
A criança consegue pensar sobre as coisas, pode frustrações. Eles preponderam entre os dois e
contar mentalmente em seqüência, em lugar de se os seis anos, período que corresponde à fase
valer do objeto e consegue pensar nas relações pré-escolar.
é que faz emergir o estágio seguinte, uma vez que vidades receberam o nome de jogo por uma assi-
a criança interage com o meio a partir dos recur- milação do que é o jogo para o adulto. Mas Wallon
sos dos quais dispõe, sempre considerada a di- contesta tal assimilação, pois se o jogo, para o
mensão social e histórica dessa interação. adulto, é lazer, para a criança é toda a atividade. O
A primeira fase do desenvolvimento da autor baseia-se em Kant e afirma ser o jogo uma
pessoa, nomeada impulsiva, inicia-se com o nasci- finalidade sem fim, posto que não visa a um pro-
mento e abrange movimentos globais, bruscos e duto externo a ele, tornando-se uma atividade
desordenados, de enrijecimento e relaxamento da enfadonha e perdendo o caráter de jogo quando
tensão muscular. As relações afetivas com o meio se torna utilitária.
começam a predominar e, a partir dos seis meses, Uma vez que os estágios de maturação já
uma gama de trocas emotivas e de sinalizações foram alcançados, o que o adulto faz é uma re-
expressivas recíprocas pode estar formada. Em gressão consentida. A criança, por sua vez, execu-
razão dessas mudanças, é chamada fase emocio- ta essa mesma atividade como uma porta liberta-
nal. Essa fase, ainda que sob o domínio emocio- dora das atividades e facilitadora do seu desenvol-
nal, prepara a fase seguinte, a fase sensório-moto- vimento. Sem renunciar ou negar as necessidades
ra, com início em torno do oitavo ao décimo mês. práticas, o jogo as pressupõe, mas não deixa de
Predominam atividades exploratórias, de agarrar, incorrer contra as disciplinas ou tarefas impostas
apanhar, pegar objetos e em seguida largá-los, ras- ao homem. Somente há satisfação no jogo quando
gar, espalhar. Em torno do oitavo ou décimo mês a criança pode momentaneamente subtrair o exer-
ocorre o comportamento de manipulação das for- cício de uma função às imposições ou às limita-
mas de uma estrutura, sua decomposição e com- ções que ela normalmente experimenta nas ativi-
posição, por exemplo. A criança começa a apre- dades. Wallon define o jogo em uma perspectiva
sentar gradativos progressos em relação ao equilí- dialética, que resulta da oposição entre, de um
brio. Surge a palavra que pode acompanhar os lado, atividade libertada, e, de outro, aquelas ati-
gestos. As perguntas são sobre o objeto fazendo vidades às quais o jogo se integra; dessa oposição
denotar que, para ela, a palavra se confunde com o jogo evolui e as supera, para poder realizar-se.
o objeto, quer reclamando por ele, quer evocando O autor fala dos paradoxos que o jogo contém. Ao
a sua imagem. É o período do voluntarismo e do mesmo tempo em que o jogo é espaço de liberda-
sincretismo. A palavra, tal como a mão, é utilizada de para a criança construir um mundo simbólico,
para investigações objetivas por meio das realida- a ela impõe seguir regras (do jogo).
des e das significações do mundo exterior. Nessa Wallon (1941/1995) explica os jogos dis-
fase, a palavra tem, principalmente, um papel ex- tribuídos por características: a) jogos funcionais -
ploratório. Posteriormente virá a ter outros usos. abrangem movimentos simples, de pernas, braços,
O estágio categorial compreende idades produção de ruídos. Sua descrição inclui o aspec-
de seis a onze anos. Nessa fase concorre o auxílio to de preparação para fases futuras do desenvolvi-
do período anterior, de diferenciação do eu. Ocor- mento e o fato de serem encontrados também em
re um predomínio de atividades de exploração outras espécies; b) jogos de ficção - ainda nos pri-
mental do mundo físico, por meio de agrupamen- meiros tempos da infância, tais como brincar com
to, seriação, classificação. Suas atividades repre- boneca, montar um cabo de vassoura como se fosse
sentam os vários níveis de abstração para chegar um cavalo. Apontam para um tipo de brincadeira
ao pensamento categorial e a criança começa a na qual intervém uma atividade cuja interpretação
organizar o mundo físico em categorias bem mais pela criança é bem mais complexa, em compara-
definidas. ção com os jogos funcionais; c) jogos de aquisição
Nessa fase, ela pode aprender a distin- - a criança se torna mais exploratória, observa,
guir unidades e conjuntos, aprender a ler e combi- escuta, esforça-se para perceber e compreender
nar letras e números. Consegue classificar objetos, coisas, seres, cenas, imagens; d) jogos de fabrica-
por meio de semelhanças e diferenças. A ativida- ção - a criança encontra prazer em reunir, combi-
de categorial possibilita à criança uma compreen- nar, transformar e criar novos objetos. Nesses jo-
são mais nítida de si mesma. gos quase sempre se combinam ficção e aquisi-
Sobre a atividade de brincar, Wallon ção, como, por exemplo, quando a criança cons-
(1941/1995) afirma que, provavelmente, essas ati- trói com blocos e o resultado não é meramente
uma pilha de blocos, mas pode ser um castelo, Para Vygotsky, o brincar é uma ativida-
para onde ela pode transferir personagens de um de necessária às demandas de maturação e desen-
outro contexto. volvimento da criança. Todas as reações humanas
mais importantes e radicais são criadas e elabora-
das no processo da brincadeira infantil. O autor
L. S. Vygotsky enfatiza que a criança é um ser lúdico, está sem-
pre brincando, mas que a sua brincadeira tem um
A abordagem de Vygotsky (1933/1998; grande sentido prático, correspondendo, com exa-
Vygotsky, Luria & Leontiev, 1998) é histórico-cul- tidão, à sua idade e aos seus interesses, abrangen-
tural, uma vez que a ênfase está nas qualidades do elementos que conduzem à elaboração das
que distinguem a espécie humana das demais: necessárias habilidades e hábitos (Vygotsky, 2001).
transformações e realizações ativas nos diferentes Vygotsky (1933/1998) destaca uma fun-
contextos culturais e históricos. Nesta perspectiva, damental característica do brincar diretamente as-
tanto as estruturas sociais como as estruturas men- sociada ao desenvolvimento: a de intermediar a
tais têm raízes bem definidas como produtos bas- necessária transição entre estágios do desenvolvi-
tante específicos de níveis determinados do de- mento mental. O brinquedo é uma fonte de de-
senvolvimento humano. senvolvimento e geradora de zonas de desenvol-
O autor constrói uma psicologia do de- vimento proximal. Este conceito, conforme Araú-
senvolvimento enfatizando as relações que os ho- jo, Almeida e Ferreira (1999, p.73), “remete à pre-
mens estabelecem diariamente, tanto entre si como ponderância do papel da imitação e da interven-
com a natureza, em sua luta pela sobrevivência, ção do adulto em situações interativas lúdicas com
no meio natural e social. Para Vygotsky, a nature- a criança. A imitação cria zonas de desenvolvimento
za humana é essencialmente social, uma vez que proximal e a ação partilhada com o adulto (como
se origina e se desenvolve por meio de uma con- “outro social” que organiza e acompanha as brin-
tínua interação social entre os seres humanos. cadeiras infantis) assume uma tarefa fundamental
Na questão de periodização do desen- no surgimento e na constituição de processos psi-
volvimento, Vygotsky (citado por Elkonin, 1971/ cológicos qualitativamente diferentes”.
2000) define desenvolvimento pela existência de Considerando as fases do desenvolvimen-
“idades de estabilidade”, sendo estas interrompi- to infantil, Vygotsky (2001) descreve grupos de
das pelas “idades de crise”, e, estas últimas, pon- brincadeiras. Em um primeiro grupo de brincadei-
tos de ruptura e de transição no desenvolvimen- ras estão aquelas em que a criança brinca com
to. Com isto, explicita o processo dialético do objetos como chocalho, lança e apanha objetos,
desenvolvimento, uma vez que, ao mesmo tem- por exemplo, destacando o fato de que, enquanto
po em que as crises fazem a transição, elas são o a criança se entretém com eles, aprende a olhar e
ponto de ruptura do processo e o resultado é um ouvir, a apanhar e afastar. Em um grupo seguinte
desenvolvimento humano marcado por etapas estão as brincadeiras nas quais, por exemplo, a
qualitativamente diferentes, determinadas pela ati- criança se esconde, foge. Essas atividades estão
vidade mediada. Afirma que somente as mudan- relacionadas à elaboração das habilidades de des-
ças internas no curso do próprio desenvolvimen- locar-se e de orientar-se no meio, de agir em rela-
to ou as rupturas marcantes durante o desenvol- ção ao mundo dos objetos, mas, também, em rela-
vimento podem fornecer um fundamento confiá- ção a um mundo mais amplo, do domínio dos
vel para determinar as chamadas “idades” como adultos. Nesse grupo, destacam-se os elementos
sendo épocas básicas na formação da personali- da imitação. Assim, como apontam Araújo, Almei-
dade da criança. da e Ferreira (1999, p.72), a criança tem a necessi-
Na perspectiva de Vygotsky (1933/1998), dade de agir como vê os outros agirem, de agir
o papel da mediação social no desenvolvimento é como lhe ensinam ou como lhe dizem, mas tam-
fundamental, uma vez que nós próprios nos de- bém como imagina e simboliza o mundo adulto.
senvolvemos por meio do outro. Um “outro” que Entretanto, lembram as autoras, algumas ações
não significa, necessariamente, uma pessoa real, estão além de suas capacidades e habilidades e o
mas a dimensão social da atividade caracteristica- brincar, o brinquedo ou a atividade lúdica surgem
mente humana. “como uma possibilidade de superar a contradi-
ção existente entre sua necessidade de agir e a ra sob influências das circunstâncias concretas de
impossibilidade de executar as operações exigidas sua vida, embora esse lugar, por si só, não deter-
por esta ação, auxiliando a ressignificação da ati- mine diretamente o desenvolvimento da psique
vidade e permitindo o ingresso tanto no universo da criança. O que determina o seu desenvolvimento
imaginativo quanto no mundo das regras”. é a sua própria vida e o desenvolvimento dos pro-
As brincadeiras convencionais formam um cessos reais dessa vida.
terceiro grupo. Elas surgem de regras puramente Para o estudo do desenvolvimento do
convencionais e de ações a estas vinculadas, é uma psiquismo infantil, Leontiev analisa o desenvolvi-
espécie de escola superior de brincadeira. mento da atividade infantil verificando como ela
Ao fim da idade pré-escolar inicia-se o se constrói nas condições concretas de vida, posto
jogar com regras, que se desenvolve durante a vida que é a evolução da atividade, tanto interna quan-
escolar (Vygotsky, 2001). No período escolar, o to externa, que determina diretamente o desen-
“jogar com regras” inclui os jogos desportivos. No volvimento do psiquismo da criança.
que concerne à presença de regras na brincadeira, Discute teoricamente o conceito de ativi-
Vygotsky (2001) aponta para o fato de que toda dade tomando como ponto de partida o fato de
situação imaginária contém regras, mesmo que de que o lugar que a criança ocupa, enquanto sujeito
uma forma oculta. De seu lado, todo jogo com no sistema de relações sociais, modifica-se ao lon-
regras contém, de forma oculta, uma situação ima- go do seu desenvolvimento. Determinados tipos
ginária e regras de comportamento. Deste modo, de atividades são, então, extremamente importan-
o brinquedo cria na criança uma nova forma de tes para o desenvolvimento subseqüente da crian-
desejos ensinando-a relacionar seus desejos a um ça. O brincar é a atividade principal na infância
“eu” fictício, ao seu papel no jogo e a regras. Essas pré-escolar, enquanto que o estudo é a atividade
condições vividas no jogo são básicas para a ação principal no estágio escolar da infância. Em sua
real e um senso moral no futuro. teoria, destaca tanto o papel determinante das con-
Para Vygotsky, à medida que a crian- dições sócio-históricas do desenvolvimento como
ça interage com o mundo social e histórico ocorre o papel do desenvolvimento da consciência de si,
uma mudança no conteúdo subjetivo da atividade como indivíduo. Se a vida do sujeito adquire um
lúdica, revelando a dimensão dialética na constru- novo conteúdo, implica que ele compreende o
ção do desenvolvimento e da identidade infantil, mundo de uma outra forma. Isto faz com que o
o que permite, portanto, afirmar que o brincar não sentido de uma brincadeira se diferencie em cada
evolui apenas em virtude das dimensões genética fase ou etapa de crescimento. Embora seja comum
e de idades (Araújo, Almeida & Ferreira, 1999). crianças brincarem de uma mesma brincadeira em
idades bem diferentes, o sentido do jogo se dife-
rencia.
A. N. Leontiev Se, para uma criança pequena, o signifi-
cado principal do jogo estava na própria ação,
A natureza sócio-histórica do desenvolvi- correr, perseguir, escapar, esconder; para uma cri-
mento do psiquismo humano constitui o pensa- ança em estágio de desenvolvimento mais avança-
mento central dos estudos de Leontiev (1959/1972). do, jogando esse mesmo jogo, teriam maior signi-
Ele descreve etapas do desenvolvimento, tendo ficado as relações aparentes das pessoas envolvi-
como objetivo esclarecer o problema teórico das das. Quem é quem no jogo, seus papéis e funções
forças motivadoras do desenvolvimento do psiquis- surgem em primeiro plano, em uma seqüência onde
mo infantil. Segundo o autor, os estágios do de- as relações sociais intrínsecas, os momentos mo-
senvolvimento são determinados por uma certa rais, os de maior conteúdo emocional, tornam-se
seqüência no tempo (idade), porém não de uma o centro das ações.
forma fixa ou idealizada. Somente é possível che- Em uma fase ainda mais avançada da ida-
gar a ter-se uma compreensão das forças que con- de pré-escolar, ocorre uma mudança no conteúdo
duzem o desenvolvimento psicológico humano, do papel desempenhado na brincadeira. É quan-
em qualquer estágio, tendo-se como fundamental do a criança descobre que a existência do objeto
o fato de que o lugar que a criança ocupa objeti- não implica apenas relações do homem com este
vamente no sistema das relações humanas se alte- objeto, mas, também, relações das pessoas entre
si. Agora, os outros fazem parte do jogo. Por exem- seguir escapar do pegador. Os jogos com objeti-
plo, o motorista do carro relaciona-se não mais vos propiciam à criança fazer auto-avaliações. Por
exclusivamente com o carro, mas com o guarda exemplo, ao descobrir sua capacidade de correr e
de trânsito, com o passageiro. de chegar até o objetivo ou avaliar-se, comparan-
A principal mudança que ocorre no brin- do-se com outros ou mesmo fazer comparações
quedo durante o desenvolvimento é quando os com os resultados que alcançou em outros jogos.
jogos de enredo se transformam em jogos com Neste contexto, a criança começa a avaliar, por si
regras e, em uma fase mais avançada do estágio mesma, as suas ações e as dos outros.
pré-escolar, eles passam a predominar. Conside- Nesse processo de desenvolvimento, tam-
rando o desenvolvimento do brincar, o jogo, como bém se destacam os jogos de duplo propósito, não
unidade, sofre transformações, fazendo surgir uma apenas pelo aspecto do desenvolvimento mental
outra modalidade de jogo. Se, antes, nos jogos de e compreensão das regras, mas do ponto de vista
enredo, com um papel expresso, a situação imagi- da personalidade. O dominar as regras significa
nária era explícita e as regras estavam latentes, ainda dominar seu próprio comportamento, aprender a
na fase pré-escolar, em um estágio mais avançado, controlá-lo e a subordiná-lo a um propósito defi-
começa a surgir um tipo de jogo no qual a imagi- nido. Esses jogos também introduzem um momento
nação e o papel são latentes e as regras passam a essencial para o desenvolvimento da psique da
ser explícitas, enquanto que a situação imaginária criança, que é um elemento moral em sua ativida-
e o papel estão contidos em forma latente (não de. Por exemplo, no jogo “pique-cola”, ignorar o
foram criados por ela). Ratifica sua afirmativa lem- jogador que foi paralisado é contraposto com o
brando que estudos e observações já haviam che- motivo moral de ajudar um companheiro. O autor
gado à conclusão de que os jogos com regras sur- destaca a importância deste elemento moral ter
giam a partir dos jogos de papéis com situação surgido na própria atividade da criança e não de
imaginária, que antes eram fartamente praticados uma “máxima moral” que ela tenha ouvido.
(Leontiev, 1998). Além dessa questão, outro as- Na transição do período pré-escolar para
pecto se destaca: os jogadores se subordinam às o período escolar, destacam-se os “jogos limítro-
regras reconhecidamente de ação do jogo. Por fes”, são os jogos dramatizados. Eles parecem
exemplo, se pedacinhos de madeira fazem as ve- mostrar uma completude da fase lúdica em suas
zes de pedaços de pão, a regra é fingir comê-los formas pré-escolares. Ou seja, mesmo permane-
diligentemente. Esta é uma importante precondi- cendo como brincadeira, cada vez mais eles vão
ção para o surgimento da consciência do princí- sendo destituídos de sua motivação inerente.
pio da própria regra da brincadeira. É sobre esta Os “jogos de dramatização” diferem dos
base que surgem os futuros jogos com regras. jogos de papel e das primeiras dramatizações por-
Nos jogos com regras explícitas, a crian- que não buscam refletir as atividades da persona-
ça dá mais atenção ao objetivo e às regras para gem retratada de forma generalizada. Ao contrá-
alcançá-lo e, não mais, para o papel e a situação rio, reproduzem o que é típico nela, sem que haja
lúdica. Isto faz com que a criança tenha uma cons- imitação ou mímica diretamente. Trata-se de uma
ciência cada vez mais intensificada em relação ao construção artística deliberada, quando a criança
objetivo da brincadeira. Por exemplo, o jogo da põe em ação alguma idéia inicial. São formas de
amarelinha tem como objetivo alcançar o “céu” brincar que possibilitam uma transição para a ati-
(espécie de lugar máximo do jogo), mas sob con- vidade estética e seu motivo característico, o de
dições previamente estabelecidas, como a formu- afetar outras pessoas.
lação de uma regra predefinida, uma forma de Outra forma de transição é o “jogo de
expressão exterior. Os jogos tradicionais são jogos fantasia”. Nele não há ações, regras ou objetivos,
com regras explícitas, que surgem em etapa mais mas a existência de um elemento externo como
avançada da fase pré-escolar. Embora o motivo do testemunho da atividade e o que vem a seguir é o
jogo continue focado no próprio processo lúdico, devaneio, o sonho. O autor define que a imagem
o objetivo agora é o intermediário entre o proces- da fantasia criada tem um valor em si mesmo. Ela
so e a criança. Isto faz com que a atividade lúdica evoca sentimentos excitantes e prazerosos na cri-
tenda para um certo resultado. Por exemplo, em ança. A criança constrói esta fantasia por amor a
“pique-pega” a tarefa é correr e o resultado é con- essas experiências, transferindo o motivo do jogo
para seu produto, mostrando haver cessado a brin- um ente querido, poderia vir a dar ao jogo uma
cadeira e nascido o devaneio. significação particular. A possibilidade de se atri-
Portanto, os jogos de transição são assim buir ao brincar um significado que seja comum a
chamados por situarem-se no limite dos brinque- várias crianças, significação dada culturalmente e
dos clássicos da pré-escola. Eles preparam direta- especialmente relacionada à certa etapa do desen-
mente o caminho para os jogos do período esco- volvimento, ou seja, com a capacidade de realiza-
lar. São jogos didáticos em um sentido amplo da ção de determinadas operações na brincadeira não
palavra e mostram uma transição para a atividade elimina o fato de que a brincadeira possa vir a ter
não-lúdica. No estágio escolar, Leontiev destaca a um sentido diferente e único para cada criança.
prevalência dos jogos e dos esportes. Neste aspecto, a atividade de brincar revela um
liame entre o social e o individual, uma interação
profunda entre os aspectos subjetivos e os cultu-
Considerações finais rais, pela qual o mundo em volta da criança, a
escola, em particular, por meio de mediações sim-
As perspectivas teóricas em destaque nes- bólicas, dentre as quais os jogos, as brincadeiras,
te artigo consideram as questões do desenvolvi- fornece as bases sobre as quais a criança irá ad-
mento humano em suas estreitas relações com a quirir e co-construir seus conhecimentos e desen-
vida social. Uma vez que a ação humana é media- volver-se emocional, social e cognitivamente.
da e o indivíduo ou grupo a executa por meio de Como assinala Brougère (2001, p.9), “a
um código cultural que promove a ligação entre o imagem do brinquedo sintetiza a representação que
meio sociocultural e o funcionamento mental, a uma dada sociedade tem da criança” e esta propo-
relação entre desenvolvimento, brincadeira e cul- sição se aplica, in totum, à escola.
tura não pode ser ignorada. O brincar, seja do ponto Do ponto de vista do cotidiano escolar,
de vista social seja do individual, não é uma ativi- emerge a necessidade de discussões sobre um
dade secundária no desenvolvimento infantil, ao tempo pedagógico, envolvendo o brincar, que
contrário, é ela que fornece os principais meios esteja mais articulado com as possibilidades ob-
para as articulações entre desenvolvimento pesso- jetivas e subjetivas da criança no seu desenvolvi-
al e sócio-histórico. mento, mesmo que a escola esteja principalmen-
Torna-se então necessário, ao se consi- te voltada para a aquisição do conhecimento. Com
derar brinquedos e brincadeiras na escola, que se Montagner (1996), pode-se dizer que é uma he-
atente para as relações entre o brincar, o desen- resia pensar que o aluno saberá mais e melhor
volvimento e as questões relacionadas à vida soci- quanto mais tempo ele passar em situações pe-
al e cultural da criança. Para que se possa avaliar o dagógicas, posto que o tempo do jogo e das brin-
interesse de um jogo, desde o ponto de vista do cadeiras é um tempo importante de descobertas
desenvolvimento infantil, é preciso que se tenha e aprendizagens.
alguma idéia dos jogos que, via de regra, são mais É exatamente o brincar que pode mos-
adequados aos interesses e habilidades de deter- trar, com mais clareza, as transições do desen-
minadas idades, assim como o que podem repre- volvimento. Entretanto, não se pode esquecer
sentar para as crianças de uma determinada cul- que o brincar está fortemente vinculado à cultu-
tura ou comunidade. ra e à subjetividade da criança (Pereira, 2004).
Contudo, além dos significados comuns Neste sentido, o lúdico, na escola, não pode ser
a determinadas faixas etárias há, ainda, a possibili- entendido como um instrumento meramente di-
dade de que o jogo tenha um significado único dático, mas como principal mediador dos pro-
para cada uma das crianças, em particular. Por cessos de desenvolvimento e de aprendizagem,
exemplo, aquela que tenha perdido um animal ou na infância.