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58 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 58-77, março/maio 2004


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INTRODUÇÃO
Tendo já completado mais de cin-

qüenta anos, polêmica e controver-

tida, a TV tem sensibilizado, ao

longo de sua história, um número

significativo de estudiosos. É sem

dúvida o veículo midiático mais

criticado entre os analistas, mas é

também a mídia que parece alcan-

çar o público mais expressivo no

que toca à sua diversificação. Cri-

ticada pela sua programação de

baixa qualidade e altamente mer-

cadológica, reflexões que muitas

vezes não dissociam o meio de seu

conteúdo (Khel, 1995, 2000; Bucci,

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2000-01), a TV, no meu entender, carece cia do fenômeno mundial da TV e da cul-
de um melhor entendimento. No entanto, tura de massa em geral. Tem intenção de
felizmente, é possível identificar, recente- refletir sobre a perda do monopólio da fa-
mente, uma série de trabalhos que pensam mília, da escola e demais instituições
a TV e as outras mídias a partir de outros educativas tradicionais, reconhecidas pela
critérios. Ou seja, fugindo das generaliza- transmissão e produção de um saber e de
ções que uniformizam a proposta de entre- uma cultura formal.
tenimento televisivo, chamam atenção para Para isso, primeiramente, é preciso cha-
a riqueza de suas produções, na tentativa mar atenção para o fato de que se a) as
de avançar na sua compreensão (Machado, formas de aprender e b) tomar conheci-
2000; Martín-Barbero, 1997). Mais do que mento sobre o mundo, se c) os mecanis-
pensar exclusivamente nos conteúdos e no mos de transmissão do saber, d) os agen-
caráter muitas vezes ideológico dessas pro- tes da transmissão, e) as ocasiões e f) os
duções, grande parte das reflexões procura espaços educativos já não são mais os
1 Citando Monteil (1985), segun- compreender o uso dessa programação pelo mesmos, é certo considerar que o proces-
do a leitura de Charlot (2000,
p. 61), entendo informação público. Ao invés de refletir sobre a forma so educativo e o resultado desse aprendi-
como um dado exterior ao su- como os conteúdos influenciam as pessoas, zado – o educando, suas práticas e a forma
jeito, que pode ser armazena-
do, sob a primazia da objetivi- dedica-se a pensar o que as pessoas fazem como fazem uso delas – sofreram profun-
dade; entendo conhecimento
como o resultado de uma expe- com esses conteúdos. Esta é a minha pro- das alterações. Isto é, se as formas de aqui-
riência pessoal ligada à ativi- posta. Compreender os usos variados que sição do saber mudaram é pertinente pen-
dade de um sujeito provido de
qualidades afetivo-cognitivas e grande parte da população faz ou pode fa- sar que o produto dessa configuração pe-
que está sob a primazia da
zer das mensagens televisivas e demais dagógica – o estudante moderno e o con-
subjetividade, neste sentido é
uma informação de que o sujei- produções midiáticas. teúdo do aprendizado e suas práticas –
to se apropria; o saber é, no
entanto, produzido pelo sujeito Este artigo objetiva pois trazer uma dis- também assumiu outras feições.
confrontado a outros sujeitos, cussão sobre a transformação que o campo Se, grosso modo, convencionalmente,
podendo ser enquadrado na
ordem da objetividade. da educação vem sofrendo com a emergên- a educação exigia disciplina, silêncio, des-
treza em um único tipo de linguagem, a
saber, a leitura e a escrita; se, tradicional-
mente, somente os adultos na figura dos
pais e dos professores detinham o conheci-
mento; se apenas os livros, as bibliotecas,
museus e conservatórios de artes assegura-
vam o caminho da cultura e da educação,
hoje a informação e o saber (1) estão pulve-
rizados em várias linguagens e dissemina-
dos em vários veículos e instituições pro-
dutores de bens simbólicos. Desde a déca-
da de 20, o rádio, o cinema, as revistas, e
mais recentemente, os outdoors, a Internet
e sobretudo a TV são veículos transmisso-
res de informação, saber e cultura caracte-
rísticos da “moderna tradição brasileira”
(Ortiz, 1988).
É justo imaginar que o estudante moder-
no não age e não se estimula com os mesmos
processos didáticos e educativos tradicio-
nais, bem como não usa essa informação,
esse saber e cultura da mesma forma.
Posto isso, para encaminhar esta dis-
cussão tenho como intenção fazer uma aná-
lise sobre as noções de cultura, cultura

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popular e cultura de elite. Estou massa estão carregados de juízos de valor
convencida de que, a partir deste encami- é possível problematizá-los e compreender
nhamento, conseguirei montar um argu- os usos variados que os segmentos popula-
mento que explicita um conflito entre duas res fazem ou podem fazer da cultura de
concepções de cultura que fundamenta as massa.
dificuldades que alguns têm em compre-
ender o significado e o uso diferenciado

A CULTURA DE MASSA
que os distintos segmentos sociais fazem
dos produtos da TV e demais bens da cul-
tura de massa.
É minha intenção problematizar, des- A TV e os demais produtos da cultura de
construindo sociologicamente, o julgamen- massa são fenômenos, sem dúvida, contro-
to elitista que a academia e nós, professo- versos e complexos. Ora manipulam, ora
res, temos em relação a uma variedade de servem como resistência frente a uma cultu-
produtos da mídia. A literatura que se torna ra do status quo. Ora educam, segundo uma
best-seller, os fascículos e livros didáticos lógica hedonista, ora educam para a eman-
que tomam lugar dos clássicos, a banca de cipação (Kellner, 2001; Thompson, 1995;
jornal que aos poucos torna-se a referência Martín-Barbero, 2003). É minha intenção
de leitura em detrimento das livrarias, a demonstrar que os usos das mensagens des-
música erudita que sequer consegue ter a ses veículos são heterogêneos e circunstan-
audiência da música sertaneja, a velha rixa ciados. Estão estreitamente influenciados
entre os programas educativos e os progra- pela trajetória e apropriação de um capital
mas de variedade na TV, a preferência pela cultural oriundo da família e das instituições 2 Por popular, estou me atendo
ao sentido de gente comum,
comédia em detrimento do drama psicoló- educativas pelas quais quase todos experi- maioria, anônimo e também ao
gico. Estes são alguns exemplos das oposi- mentam ao longo de suas vidas (Bourdieu, sentido de pobre, simples, sem
instrução (Dicionário Houaiss
ções e classificações que fazemos automa- 2003, 1998, 1979; Morin, 1984). da Língua Portuguesa, São Pau-
lo, Objetiva, 2001, pp. 2261).
ticamente quando nos dispomos a julgar Assim, a ênfase do argumento deste
algumas práticas e disposições educativas 3 É sabido que desde os estudos
artigo foge dos maniqueísmos e das gene- da teoria crítica da cultura, ela-
relativas ao consumo de massa ou ao con- ralizações tão comuns neste debate (Setton, borada por T. Adorno e M.
Horkheimer (1996), uma série
sumo popular (2). 2002, 2000) (3). A discussão aqui proposta de trabalhos, até aproximada-
Para fazer estas reflexões o argumento sobre a cultura de massa privilegia o aspec- mente a década de 70, tra-
balhava, fundamentalmente
será construído da seguinte forma. Irei ini- to criativo do processo de produção/recep- como referencial teórico, uma
perspectiva crítica e negativa
cialmente caracterizar brevemente o que ção cultural das mensagens. Ressalta no- sobre o fenômeno da cultura
entendo sobre cultura de massa. Retomarei vas possibilidades de interação a partir da de massa. Privilegiando os as-
pectos relativos à produção e
alguns determinantes socioestruturais res- difusão e troca de signos, valores e saberes aspectos relativos ao conteú-
ponsáveis pela emergência desta configu- do manipulador das mensa-
sociais. Concordando com as colocações gens, essa perspectiva, ainda
ração cultural no Brasil. Destacarei a evo- de Edgar Morin, apóio a idéia de que a cul- hoje, acolhe importantes tra-
balhos. Não obstante, a partir
lução do crescimento da produção de bens tura de massa pode ser considerada uma dos anos 70, uma outra abor-
simbólicos no território nacional, seus usos, terceira cultura, ou seja, uma cultura que dagem, sobre o mesmo fenô-
meno, surge na Europa. Os es-
desde meados do século passado até os se alimenta a partir de uma relação de tudos culturais da Escola de
Birmighan são os precursores
nossos dias. Em seguida, irei trabalhar os interdependência com outras culturas, seja das análises que enfatizam o
conceitos cultura, cultura popular e cultu- esta escolar, nacional ou religiosa. processo de recepção das
mensagens midiáticas e os usos
ra de elite e observar que todos são concei- Creio que, para que se possa analisar a diferenciados que o público faz
tos que expressam um conflito, uma tensão de cada uma delas.
cultura de massa (4) ou, em uma versão
de ordem política no interior do campo mais moderna, para se analisar a cultura 4 O conceito cultura de massa
tem uma longa história nas ci-
intelectual. São conceitos construídos so- das mídias (Kellner, 2001), é necessário ências humanas. No entanto,
para os objetivos deste artigo,
cialmente que expressam uma tomada de empreender uma análise interdisciplinar. é importante salientar que, para
posição de alguns segmentos em relação a Creio que dessa forma posso compreender alguns autores, ele é ultrapas-
sado, pois não mais explicita o
um saber que valorizam ou desprestigiam. o processo comunicativo proposto pela TV comportamento do mercado
consumidor, hoje altamente
Creio que ao esclarecer que os concei- e demais mídias como um processo de in- segmentado. A este respeito ler:
tos popular, cultura popular e cultura de teração, um diálogo contínuo entre criação Ortiz, s/d.

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(produtor) e consumo (receptor). Diferen- logias avançadas para a difusão de ima-
te de grande parte das leituras que se faz gens via satélites, apoio estatal nos em-
sobre o fenômeno, acredito que o receptor preendimentos culturais, com a criação da
da mensagem midiática, televisiva ou não, Funart, Embrafilme, ou mesmo nos subsí-
não é passivo, não apreende as mensagens dios à importação do papel para a indús-
tal como foram propostas. A recepção não tria editorial, promoveram, em poucos
é o estágio final do processo comunicativo. anos, as bases para a consolidação, sem
Ao contrário, a recepção é uma fase que dá precedentes, de uma cultura midiática em
início a etapas criativas de apropriação e território nacional (Ortiz, 1988).
novas produções de sentido (Martín- Neste artigo, chamo atenção para o fato
Barbero, 2003, 2000; Certeau, 2002; de que é possível constatar a especificida-
Ginzburg, 1987). Saliento que existe uma de de uma nova ordem sociocultural, no
margem de liberdade no processo de apre- Brasil, diferente da vivida pelos países
ensão dos conteúdos por parte dos indiví- como Estados Unidos e demais nações
duos. A etapa da interiorização é essencial- européias. Em 1950, quando as emissões
mente particular e singular, derivada so- de rádio estavam praticamente generaliza-
bretudo da trajetória anterior de cada um. das em território nacional, o cinema levava
Dessa forma, é preciso explicitar que não multidões às salas de projeção e a difusão
considero os produtos e/ou conteúdos das televisiva dava seus primeiros mas decisi-
mídias em sua totalidade como ideológi- vos passos, metade da população brasileira
cos. Apoiando-me em Thompson (1995), era ainda analfabeta. O Brasil, juntamente
creio que são ideológicas apenas as mensa- com outros países latino-americanos, cons-
gens que reforçam relações de dominação. trói, respectivamente, uma história cultu-
Ou seja, toda explicitação de sentido que ral a partir de outras influências. Antes que
sustenta hierarquias e relações de poder. a escola se universalizasse, antes que o saber
formal se tornasse referência educativa para
grande parte de nossa população, antes que

DETERMINANTES
a língua escrita estivesse generalizada em
todo o território nacional, o rádio, a TV e o

SOCIOESTRUTURAIS: A CULTURA
cinema já eram velhos conhecidos da po-
pulação. É possível pois considerar que o

DE MASSA NO BRASIL
imaginário ficcional das mídias há muito
mais tempo vem colonizando os nossos
espíritos. É possível considerar que esse
Em meados do século passado, e prin- imaginário está mais presente e é mais fa-
5 É importante registrar que no fi- cipalmente com os governos militares, a miliar no cotidiano dos segmentos sociais
nal do século XIX Estados Uni- sociedade brasileira vê-se submetida a uma brasileiros, sobretudo os segmentos com
dos e França contavam com
apenas 14% e 18% de analfa- nova ordem social e econômica. Desde baixa escolaridade, do que propriamente a
betos, respectivamente. Ao con-
trário, o Brasil apresentava um
Getúlio Vargas, nas décadas de 30 e 40, cultura escolar (5).
percentual de 84% na condição seguido de Juscelino Kubitschek, nos anos Não obstante estas observações, é for-
de analfabetos (Hallewell,
1985; Mira, 1995). Ainda hoje, 50, e culminando nas políticas pós-64, as- çoso constatar um certo silêncio e desinte-
segundo o Instituto Nacional de sistimos a um alto volume de investimento resse, entre os educadores, sobre a predo-
Estudos e Pesquisas Educacio-
nais (Inep), a região rural brasi- na infra-estrutura da informação e do lazer. minância da cultura de massa em relação à
leira ainda conta com 29,8%
de adultos analfabetos e a re- Período de grande efervescência política, cultura escolar. Em recente levantamento
gião urbana, 15%. A escolari- inversões financeiras na consolidação de entre as principais revistas especializadas
dade média do morador da
zona rural na faixa dos 15 anos um projeto político integrador possibilita- em educação, nos últimos vinte anos, foi
ou mais é de 3,4 anos, enquan-
to a urbana é de 7 anos. Em
ram a criação de um mercado de cultura e possível constatar a ausência de reflexões
relação à infra-estrutura, só 5,2% bens de consumo até então desconhecido sobre a particularidade da configuração
delas possuem bibliotecas e
0,5% possui laboratório de in- por nós. Apoio institucional em políticas cultural e educativa do Brasil, e as implica-
formática, enquanto na zona educativas utilizando o rádio e o cinema ções daí decorrentes para a formação esco-
urbana os índices são 58,6% e
27,9%, respectivamente. (Espinheira, 1934; Franco, 2000), tecno- lar de nosso estudantado. Na realidade,

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sobre o tema dos meios de comunicação, cumentários – Globo Repórter, Repórter
parte dos pesquisadores está mais interes- Eco, Planeta Terra – (1.840 horas) (9), ou
sada nos aspectos didáticos e metodológicos das programações propriamente educativas
dos usos das mídias do que propriamente – Telecursos, Vestibulando Digital, Gran-
nas determinações socioculturais do fenô- des Cursos Cultura (2.405 horas). Noticiá-
meno (6). rios televisivos (10.430 horas) ou esporti-
vos (3.225 horas) também cumprem uma
função pedagógica. Com audiências signi-

A MATERIALIDADE DO FENÔMENO
ficativas, expressam uma disposição do
público em inteirar-se das questões econô-
micas e políticas da ordem do dia (10). É
Reforçando o argumento deste artigo, sabido que a ficção televisiva, há muito, na
alguns números podem nos ajudar a justi- forma de seriados (1.510 horas), novelas
ficar a importância da questão. (3.435 horas), filmes (780 horas), desenhos
Atualmente, segundo dados do Censo animados e/ou programação infantil (6.260
6 Fazendo um levantamento nas
Demográfico 2000, 53% da população bra- horas) e humor (350 horas), preenche o ima- principais revistas especializa-
das em educação, entre elas,
sileira freqüentou menos de 7 anos a esco- ginário de crianças e adultos, disponibili- Revista Brasileira de Educação,
la, ou seja, não ultrapassou o ensino funda- zando ou prescrevendo comportamentos na Educação e Realidade, Educa-
ção e Sociedade, Cadernos de
mental, e 27,7% ocuparam apenas 3 anos diversidade de sua produção (Pereira Junior, Pesquisa e Educação e Pesqui-
sa, pude observar que poucos
os bancos escolares. Apenas 47% estuda- 2002). Possibilitando o acesso a comporta-
são os artigos que discutem a
ram de 8 ou mais de 15 anos. De acordo mentos e modelos de conduta a partir de relação dos meios de comuni-
cação de massa e a educação.
com esta mesma fonte, de um total de qua- “celebridades”, ficcionais ou não, essa pro- A maior parte deles (Kenski,
se 45 milhões de domicílios brasileiros gramação, ao mesmo tempo que integra 1998; Preto, 1999; Oliveira,
2001; Mazzoti, 1991; Valen-
pesquisados, 93% têm acesso a energia todos em um ideal de civilização (capita- te, 1988; D’Almeida, 1988;
Oliveira, 1980; Castro & Fran-
elétrica, 87,7% possuem televisão, 87,4% lista, hedonista e consumista), possibilita a co, 1980) trabalha as novas
possuem rádio e 35,3% possuem video- uma multidão o acesso a um código de tecnologias como instrumentos
ou recursos de trabalho do pro-
cassete em suas residências (7). Nesse sen- conduta que até pouco tempo era restrito fessor. Raros são aqueles que
procuram investigar as novas
tido, é importante ressaltar que a heteroge- aos segmentos privilegiados. Em uma aná-
tecnologias como promotoras
neidade de acesso aos meios educativos é lise simplista, poderia identificar uma po- de um conhecimento informal,
formadores de uma nova subje-
um fato, e suas implicações são bastante larização entre manipulação ou integração tividade (Costa, 2002; Fischer,
complexas para o campo da educação for- a partir dos conteúdos propostos pela pro- 2002; Preto, 2002).

mal e informal. gramação televisiva. É possível. Entretan- 7 Exclusivamente 10,6% possuem


computador e 8% usufruem de
Em relação à mídia televisiva seria im- to, creio que seria mais prudente e menos linhas telefônicas.
portante registrar a configuração do setor. tendencioso investigar as formas de articu- 8 Essa classificação foi feita a
lação e apropriação dessas mensagens pe- partir da programação ofereci-
As 65 emissoras nacionais, suas 349 gera- da pelo jornal Folha de S. Pau-
doras e afiliadas, bem como suas 1.818 los diferentes públicos. lo, em 11 das 12 emissoras de
canal aberto (exceto a emisso-
retransmissoras, dão conta de atingir quase Mais do que isso, é preciso comentar ra 21), na última semana do
a totalidade dos domicílios brasileiros ainda a crescente promoção de programas mês de outubro de 2003. As
categorias criadas para a clas-
(Lima, 2001). Ou seja, dos quase 90% dos religiosos e de variedade que subliminar- sificação são: 1) educativas (do-
cumentários, educativas, entre-
domicílios que possuem televisores, a ação mente (Ferrés, 1988) se propõem educa- vistas); 2) ficção (novelas, de-
pedagógico-informativa das novelas, seria- tivos. As emissões religiosas (5.365 horas), senhos, seriados, filmes, hu-
mor); 3) informativos (telejor-
dos, shows de variedades e filmes parece as emissões que investem nas entrevistas nais); 4) religiosos; 5) paradi-
(2.790 horas), ou as emissões de entreteni- dáticos (Fica Comigo, Note e
estar mais presente do que a ação escolar. Anote, etc.).
Fazendo uma breve pesquisa sobre a mento variado que provocativamente de-
9 As horas registradas entre pa-
programação oferecida pela TV aberta, nomino paradidáticas – Note e Anote, Bom rênteses referem-se ao total de
horas desse gênero de progra-
pude observar a oferta crescente de progra- Dia Mulher, Melhor da Tarde, Vinho e mação calculado por semana.
mas de natureza informativa e prescritiva Mesa, Neurônios, Mochilão, Fica Comi- 10 A título de curiosidade, a audi-
(8). Classificando as ofertas das emissoras, go, Vida e Saúde, Mestre Cura, Chek In, ência do Jornal Nacional da
Rede Globo de Televisão alcan-
foi possível verificar que os conteúdos da Turismo na TV (14.200 horas), grande par- ça a média de 35 pontos, sen-
te destinada ao público jovem e feminino, do que cada ponto refere-se a
programação transcendem ao aspecto pe- um total de 48,5 mil domicílios
dagógico explícito da transmissão dos do- especificamente, podem revelar uma iden- na Grande São Paulo.

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tificação do público com uma sede de sabe- tra R$ 70,1 milhões. A aparente contradi-
res e informações que a sociedade lhes ção, não obstante, explicita apenas a mu-
cobra. Em um diálogo crescente entre a dança de hábito do brasileiro em relação a
necessidade de informar-se, de estar por esse item do lazer. Dando preferência às
dentro das dicas do bem-viver, de uma “cer- salas em shoppings e concentrando em um
ta arte de viver” valorizada socialmente, a único segmento seus consumidores, o ci-
grande maioria da clientela televisiva en- nema parece ser um fiel entretenimento dos
grossa os índices de audiência de uma pro- segmentos mais abastados. Por outro lado,
gramação que oferece a preços módicos e o crescimento das locações e lançamentos
sem cobrança uma “educação” que se ven- de vídeos expressa que o consumo cinema-
de a partir da emoção e da diversão. Pro- tográfico só ampliou o uso doméstico da
gramas religiosos promovendo a vida TV, conquistando, aos poucos, outros seg-
ascética, regrada e disciplinada, e progra- mentos menos privilegiados (12). Atual-
mas paradidáticos que prescrevem, esti- mente, segundo o SAJ – Assessoria Em-
mulando, a conduta “correta” para mulhe- presarial Ltda., temos 5.867 locadoras no
res e jovens expressam a meu ver uma de- Brasil. O volume de vendas em fitas VHS,
manda que há muito a escola e demais agen- em 2002, foi de 2.833.961 e o número de
11 Anuário Estatístico de Mídia –
2003.
tes tradicionais da educação deixaram de DVDs alcançou o registro de 4.988.008
promover (Dubet, 1996). (13). A título de curiosidade, seria interes-
12 Estima-se que somente oito mi-
lhões de pessoas freqüentem ci- Trabalhando de maneira interdepen- sante registrar que, segundo o Anuário
nema e somente 9% dos muni-
cípios possuam salas de proje- dente com a TV e demais mídias (Santaella, Estatístico de 1990, 52% do público prefe-
ção. As cidades do Rio de Ja- 2000), temos o rádio, que também apresen- re o gênero aventura e 49%, comédia. Para
neiro e São Paulo destacam-se
entre as capitais que possuem ta a característica de oferecer a seu público os objetivos deste artigo, o importante é
mais salas em uso, 212 e 556,
respectivamente. O Brasil, em
muito mais que um simples entretenimen- salientar, no entanto, que o DVD foi lança-
1972, tinha 2.648, em 1990, to musical e informativo. Uma série de vi- do no Brasil em 1998, ou seja, há menos de
1.550, e, em 2002, 1.650. A
venda anual de ingressos, em nhetas que disponibilizam informações e dez anos. Naquela ocasião, a indústria ven-
2000, girou em torno de 80 saberes especializados está a todo tempo deu 20 mil aparelhos e 105 mil CDs, segun-
milhões. Em 1972, foram 191
milhões (Folha de S. Paulo, se- atingindo um público diversificado. Não é do dados da UBV. Desde então, o preço
tembro de 1995 e Filme B).
raro ouvirmos dicas sobre saúde, cultura, dos leitores de DVDs caiu quase 50%, au-
13 De acordo com levantamentos
do setor, o DVD vem superan-
turismo, meio ambiente e lazer, entre os mentando a possibilidade de uma parcela
do as vendas de fitas VHS há noticiários nacional, internacional e espor- cada vez maior ter acesso a mais um ele-
10 meses consecutivos no Bra-
sil, e em 2005 pode represen- tivo, nas emissoras FM e AM, oferecidos trodoméstico midiático.
tar cerca de 90% do setor. Se- no meio da programação musical. O mais Em relação ao mercado fonográfico
gundo o presidente da União
Brasileira de Vídeo (UBV), nos antigo e mais acessível veículo popular de vemos semelhante expansão com forte
primeiros sete meses do ano de
2003, o mercado de VHS caiu acesso à informação e entretenimento, no apelo popular. Segundo pesquisas, desde o
6,1% e o de DVD cresceu 60,2% Brasil, ainda hoje, no início dos anos 2000, Plano Real, ou seja, meados da década de
em unidades vendidas em rela-
ção ao mesmo período do ano disponibilizava 2.013 emissoras (11). Sa- 90, nunca se vendeu tanto e nunca tantas
passado. No ano passado o
número de aparelhos vendidos
bendo da capacidade de atingir amplas pessoas de renda mais baixa tiveram a
ficou em 1 milhão e este ano extensões, com baixos custos, as rádios per- oportunidade de comprar um aparelho de
deve chegar a 2,2 milhões,
segundo o diretor geral da pro- mitem a comunicação e a integração polí- som. Cerca de 5 milhões a 8 milhões de
dutora e distribuidora Colum- tico-informativa, universalizando seu aces- pessoas que antes nunca tinham tido um
biaTriStar Films, no Brasil. Ele
previu que em 2005 serão ven- so, e como todos sabem criando uma tradi- aparelho de som compraram um, depois do
didos no país 12 milhões de
aparelhos. A expansão do DVD, ção como veículos de educação a distância. Plano Real. De acordo com essa mesma
que está sendo mais rápida que Em relação ao cinema, em 2000, segun- fonte, a popularização dos aparelhos de som
a de CD no país, segundo esse
diretor, reflete-se também na di- do o Censo Demográfico, apenas 14% da foi tão rápida que num curto espaço de tem-
ferença de títulos lançados. Até
julho deste ano foram lançados população brasileira declarou freqüentar as po – 1995 e 1996 – foram vendidos 10,7
569 filmes em DVD contra 286 salas de projeção, mas é importante lem- milhões de sistemas de som, número supe-
em VHS.
brar que 35,3% possuem videocassete em rior à população de Portugal. A venda de
14 Em 1979, foram vendidos um
total de 66 milhões de unida- suas residências. No entanto, a renda das CDs, em 1997, chegou a 104 milhões (Su-
des, entre LPs, compactos sim- bilheterias nacionais, em trinta anos, au- plemento Mais!, Folha de S. Paulo, 1998)
ples, compactos duplos e fitas
cassete (Ortiz, 1988). mentou oito vezes – R$ 529,5 milhões con- (14). Atualmente, em função da pirataria, o

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(23%), ainda em idade escolar, ou seja, entre
15 e 23 anos. Boa parcela, 46%, tem nível
de escolaridade distintiva, isto é, nível
médio e superior, entretanto, 54% dos con-
sumidores estudaram apenas até oito anos
(União Brasileira dos Produtores de Dis-
cos – UBPD, 2001-02).
Para completar a análise da expansão
do consumo de bens da cultura de massa no
Brasil, enfatizando seu apelo informativo e
prescritivo, e muitas vezes popular, seria
importante considerar o mercado de im-
pressos e o público deste setor.
No que se refere ao acesso à leitura,
recente pesquisa sobre alfabetismo/
letramento (16) aponta que 67% da popu-
lação brasileira encontra-se na situação de
analfabetismo funcional. Isto é, encontra-
se nos níveis 1 e 2 caracterizados por baixa
habilidade e compreensão da leitura (17).
Em “Os Números da Cultura”, Abreu
(2003) revela que, segundo o Indicador Na-
cional de Alfabetismo Funcional (Inaf)
2000, 67% dos entrevistados gostam de ler:
32% gostam muito e 35% gostam um pou-
co. Comentando outra pesquisa, Retrato da
15 Os gêneros mais escolhidos, se-
Leitura no Brasil (18), a autora aponta que gundo a UBV, são pop (21%),
rock (15%), religioso (14%),
volume é da ordem de 79,6 milhões, 20% 98% dos entrevistados possuem em suas pagode e samba (12%) e serta-
menor que em 2001; 76% do total das ven- casas material escrito, entre eles, livros nejo (11%).

das foi de produtos de artistas brasileiros. didáticos, enciclopédias, dicionários, livros 16 O conceito letramento procura
compreender a leitura e a escri-
Os álbuns mais vendidos, em 2002, são infantis, bíblias, livros sagrados e religio- ta como práticas sociais com-
plexas, desvendando sua diver-
Xuxa, Xuxa só para os Baixinhos 3, Rouge, sos, livros técnicos e específicos, livros de sidade, suas dimensões políti-
Popstar, Roberto Carlos, Roberto Carlos literatura e romances, agendas de telefones cas e implicações ideológicas
(Ribeiro, 2003).
2002, Vários, O Clone Internacional, to- e endereços, calendários e folhinhas, livros
17 Nível 1 – corresponde à capa-
dos de forte apelo popular (15). Seria inte- de receitas de cozinha, álbum de família, cidade de localizar informa-
ressante ressaltar também a premiação or- guias e catálogos. ções explícitas em textos cur-
tos, cuja configuração auxilia
ganizada pelo setor. Em 2003, o Disco de No entanto, notem, essa pesquisa não o reconhecimento do conteúdo
solicitado. Nível 2 – correspon-
Ouro, relativo à venda de 100 mil unida- menciona a produção do mercado de perió- de àquelas pessoas que conse-
des, foi entregue para Amado Batista, o dicos, fascículos e revistas em circulação. guem localizar informações em
textos curtos, de extensão mé-
Disco de Platina, correspondente a 250 mil Se, por um lado, a autora chama a atenção dia, mesmo que a informação
cópias, foi dado para Jorge Vercílio e a dupla para a necessidade de ampliar o entendi- não apareça na mesma forma
literal em que é mencionada na
Sandy e Junior, e o Disco de Platina Duplo, mento sobre a leitura no universo brasilei- pergunta. Nível 3 – capacida-
de de ler textos mais longos,
totalizando 500 mil unidades, foi entregue ro, integrando entre as práticas de leitura podendo orientar-se por subtí-
ao CD da novela Mulheres Apaixonadas. álbuns de família, cadernetas de endereço, tulos, localizar mais de uma in-
formação, relacionar partes do
Um total de mais de um milhão de cópias etc., as pesquisas que comenta ignoram texto, comparar dois textos,
realizar inferências e sínteses
vendidas oficialmente para um público que dados sobre uma grande fonte de prazer e (Ribeiro, 2003).
facilmente poderia ser classificado como leitura que são as bancas de jornal. 18 Pesquisa encomendada pela
popular. Para o desenvolvimento do argu- Não obstante, é forçoso salientar que Associação Brasileira de Celu-
lose e Papel, Sindicato Nacio-
mento deste artigo, é importante registrar neste item, em 2001, segundo o Instituto nal dos Editores de Livros, Câ-
também que grande parte dos consumido- Verificador de Informações, 14.132.700 mara Brasileira do Livro e Asso-
ciação Brasileira de Editores de
res do mercado fonográfico é de estudantes revistas circularam em território nacional. Livros, em 2000-01.

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Entre elas, as revistas relativas ao universo disponibilizam, nas bancas de jornal, pe-
cultural feminino (feminina, adolescente, riódica e sistematicamente, um conjunto
saúde, puericultura, trabalhos manuais, de preceitos ou princípios de conduta que
moda, horóscopo – 1.750.041), revistas re- ajudam a orientar os comportamentos de
lativas ao mundo dos games e infanto-ju- seus leitores. É como se essas revistas ofe-
venis (1.317.050), juntamente com as re- recessem informações e conhecimentos
vistas destinadas ao segmento de interes- para um público heterogêneo, conheci-
sados em televisão e sociedade (1.288.232), mento este antes restrito a um universo de
destacam-se como as campeãs em venda. peritos. Poderia afirmar, nas categorias
Nesse sentido, esse mercado, embora tími- de Anthony Giddens (1991), que elas esta-
do em relação a outros países, na maioria riam servindo para publicizar, com a TV
desenvolvidos, parece ser também um e demais produtos midiáticos, uma educa-
exemplo significativo que expressa o cres- ção fora dos eixos tradicionais, possibili-
cimento de uma cultura de massa letrada tando um aprendizado, e uma circulação
no Brasil. do saber, fora da escola.
Já na década de 70, Ecléa Bosi, em seu
clássico Cultura de Massa e Cultura Popu-

MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE
lar, apontava que as revistas faziam parte
do universo de leitura das operárias. Te-

MASSA: UMA ABORDAGEM


mas sentimentais, horóscopo, religião e
19 Atualmente, em relação à leitu- moda eram os mais presentes. Seria impor-
ra de jornais, há muito reconhe-

EDUCATIVA
cida como leitura legítima, de tante ressaltar aqui que a prática entre elas
um pouco mais de 1.000 títu- estava associada à compra e à constante
los em circulação, em todo o
território nacional, em média troca e circulação dos exemplares. Nesse
42% têm como hábito lê-los, ou
seja, praticamente a mesma por- sentido, é possível inferir um efeito multi- A TV, ainda que tenha uma história mais
centagem de indivíduos com 8 plicador desses números (19). recente, e com vocação educativa menos
ou mais anos de escolaridade.
No entanto, é importante colo- Em 2000, segundo o Anuário Estatísti- explícita, com o passar dos anos, sem que
car as diferenças dessa prática
entre as grandes capitais. Se-
co de Mídia, comercializaram-se 931 títu- o perseguisse, acabou por ser uma útil fer-
gundo o Ibope, os cariocas los de revistas, sendo os que mais se desta- ramenta na educação de nosso imaginário
(69,8%), os recifenses (65,1%),
seguidos dos moradores de Por- cam, como foi visto anteriormente, os refe- social. As produções seriadas, as novelas,
to Alegre (64,4), são os que rentes a um segmento feminino e adoles- programas de entrevistas ou shows de varie-
mais têm o gosto pela leitura de
jornais. Fortaleza destaca-se cente. No entanto, é expressivo o número dades, conseguiram conquistar a audiência
com um índice de apenas
25,7% de leitores. de 370 títulos relativos a revistas que pode- de milhares de brasileiros, e como cultura
20 Interesse geral/atual (66), eco-
riam ser qualificadas também como para- de massa, acabou por servir como espaço
nomia/negócios (49), arquite- didáticas. Ou seja, revistas de “vulgariza- de produção de um conhecimento e de uma
tura/decoração/paisagismo
(48), medicina/odontologia ção” de saberes e competências, conselhos, leitura sobre o Brasil e seu povo.
(44), informática/games (33), dicas de estilos de vida variados, compe- Segundo pesquisas (Ortiz, Borelli, Ortiz
agropecuária (36), alimenta-
ção/bebidas/gastronomia tindo com as orientações que podem e de- Ramos, 1989), a TV e sua programação
(29), auto/moto (29), constru-
ção/engenharia (29), market- vem ser adquiridas nas escolas. Tal como eram vistas como um empreedimento de
ing/propaganda (29). verificado com a mídia televisiva e radio- grande valor pedagógico. Logo no seu iní-
21 Victor Hugo, Alexandre Dumas, fônica, a produção de entretenimento im- cio, na década de 50, herdeira de uma esté-
A. J. Cronin, Charles Dickens,
entre outros. presso, via revistas especializadas, amplia tica literária do teatro e do cinema, muitas
22 Vale ressaltar que na década o acesso à informação para um público vezes engajada e comprometida com um
de 50 o Brasil contava apenas diversificado e jovem ideal de cultura das elites, a TV conta com
com 2.000 aparelhos de TV e
em 1955, 170 mil; vinte anos Os títulos mais relevantes, em termos uma produção forte de teleteatros e com a
depois, ou seja, 1975, com 10
milhões. numéricos, se encontram na área da arqui- colaboração de uma série de dramaturgos
23 Segundo pesquisa da Marplan,
tetura, decoração e paisagismo (49), infor- de renome (21). Ainda pouco comercia-
entre pessoas de 15 a 64 anos, mática/games (33), construção e engenha- lizável, pois só alcançava um público res-
o gosto pelos programas de
auditório vem sofrendo quedas. ria (29), arte, cultura e educação (20), entre trito, tinha espaço para produções de cará-
Entre as classes A e B, em outros (20). Assim, seria interessante cha- ter mais experimental (Ortiz, Borelli, Ortiz
1994, 64% diziam ter interes-
se por programas de auditório. mar atenção para o fato de que todas elas Ramos, 1989) (22).
Agora, esse percentual caiu

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No entanto, a partir de 1960, a telenove- No que se refere à programação contro-
la, devedora dos folhetins melodramáticos vertida dos programas de auditório, shows
de origem européia e das radionovelas la- que muitas vezes associam espetáculos de
tinas, faz carreira sob o estigma de ter apelo música e dança, games-shows entre cele-
popular e baixa qualidade. É sabido que bridades ou público em geral e/ou curiosi-
nos governos militares o Estado autoritário dades fantásticas, desde seu surgimento, fo-
passa a se preocupar com assuntos de cul- ram criticados como sensacionalistas e gro-
tura, procurando realizar diretrizes que fa- tescos (Sodré, 1985; Bucci, 2002). Desde
voreçam o desenvolvimento de uma cultu- meados da década de 50 na TV, sofrendo
ra brasileira, de uma identidade nacional alguns reveses mas sempre voltando à
compatível com suas premissas coerciti- telinha, essa programação recorrentemen-
vas. Na ocasião, o ministro da Educação te é alvo de crítica ainda que campeã de
Jarbas Passarinho sublinhava que seria ideal audiência (Mira, s/d). No entanto, tentando
existir entre nós uma cultura que se fundas- compreender esta tão criticada versão do
se na crença da nacionalidade e não uma entretenimento, deveríamos buscar um
cultura importada, uma forma de colonia- pouco de sua história. É possível conside-
lismo cultural. Em protocolo assinado pela rar que, fugindo do modelo de uma diver-
Rede Globo e pelas Emissoras Associadas, são legítima, séria e elevada, a programa-
nos idos de 1975, o documento evidenciava ção popular sempre foi mal interpretada
a ação conjunta do Estado e das emissoras pelos críticos. Não obstante, temos algu-
para abafar o que Muniz Sodré (1989) qua- mas exceções. Mikhail Bakhtin (2003) e
lificou de “estética do grotesco”. Protocolo Peter Burke (1983), recuperando a história
que visava a uma profilaxia cultural, inter- da cultura popular na Europa, como tam-
vindo sobre programas que chocavam o bém Renato Ortiz (1992) e Maria Celeste
“bom gosto” de camadas mais “educadas” Mira (s/d), recuperando a versão da cultura
(Ortiz, Borelli, Ortiz Ramos, 1989). Relacio- popular nas manifestações da cultura de
nava ainda uma série de proibições como massa, no Brasil, salientam que houve uma
“apresentar em qualquer programa pessoas incompreensão e/ou desconhecimento das
portadoras de deformações físicas, mentais elites intelectuais em relação ao lazer dos
e morais; quadros, fatos ou pessoas que sir- segmentos populares. Afastando-se do
vam para explorar a crendice ou incitar a universo e do cotidiano popular e ignoran-
superstição, bem como falsos médicos, cu- do as matrizes dessa tradição, grande parte
randeiros ou quaisquer tipos de charla- das críticas acabou entendendo o grotesco
tanismo; comentar de forma sensacionalis- popular como “mau gosto”. Ignorando o
ta, ou depreciativa, problemas, fatos, suces- sentido divulgado por Bakhtin sobre o gro-
sos de foro íntimo ou da vida particular de tesco, essa forma paródica de interpretar o
qualquer pessoa” (Miceli, 1973) (23). mundo em sua ambigüidade acaba-se por
Nas décadas de 50 e 60, no entanto, e reduzir e simplificar o gosto popular como
anos seguintes, um conjunto de iniciativas, baixo, vulgar, enfim, grotesco. Para uns a
como o programa infantil Vila Sésamo e as chamada programação sensacionalista sig-
novelas Jerônimo, o Herói do Sertão e Meu nifica falta de cultura, para outros significa
Pedacinho de Chão, destacou-se com na- exploração da miséria social (Mira, s/d).
tureza de utilidade pública (Ortiz, Borelli, Como explorarei no próximo item, esque-
Ortiz Ramos, 1989). Mais recentemente, cem que, ao assim classificar a programa- para 57%. Entre as classes C,
D e E, o interesse manteve-se
as novelas Rei do Gado, O Clone e Espe- ção, estão construindo barreiras entre duas estável ou aumentou, 76% e
77%, respectivamente (Suple-
rança, trabalhando com temáticas polêmi- formas de conceber a cultura. A cultura mento Mais!, Folha de S. Pau-
cas, entre elas, MST, drogas, inseminação hegemônica, burguesa e letrada e a cultura lo, 1998).

artificial, imigração, sindicalismo, entre popular de massa (24). 24 Mas pode-se falar ainda de
uma outra faceta da TV, ou seja,
outros, reinauguram as disposições edu- Cabe relatar neste item também a evo- sua extraordinária tradição em
cativas da TV em um dos seus gêneros lução dos usos do rádio e do cinema como Telecursos. Uma pesquisa mais
aprofundada sobre o tema ain-
menos prestigiados, a novela. veículos educativos. Se historicamente da está por ser feita.

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braço direito na área da Rádio Difusão Edu-
cativa, Ariosto Espinheira, até os dias atu-
ais, com uma diversidade grande de pro-
postas educativas, o rádio cumpre sua fun-
ção de favorecer o acesso de uma popula-
ção marginalizada do processo escolar.
Alguns exemplos recentes expressam essa
realidade. Em 1998, o “Programa Sertão
Semi-árido”, promovido pela Sudene e rea-
lizado pela Escola do Futuro (USP), com a
proposta de divulgar conhecimentos sobre
plantio na região, bem como informações
úteis para se evitar doenças comuns na área;
“Educomunicação nas Ondas do Rádio”,
iniciativa do Núcleo de Educação e Comu-
nicação da ECA-USP, com o projeto de
integrar a comunidade e a escola a partir da
produção e emissão de programas radiofô-
nicos, está em andamento em várias esco-
las públicas da cidade de São Paulo, e “Sin-
tonia Sesc-Senac”, programa de difusão
aberta, desde os anos 70, hoje contando com
a colaboração de aproximadamente 400
emissoras pelo Brasil, com o objetivo de
divulgar conhecimentos gerais e de utili-
dade pública, entre outras.
surgem no Brasil como um privilégio das Da mesma forma, o cinema, embora
elites, tal como os livros e a TV, aos pou- constituindo-se de uma mídia de alto custo
cos, em função do potencial educativo e de e portadora de tecnologia moderna, cons-
entretenimento, conquistam o público e truiu à sua maneira uma interface com a
sucessivos governos, passando a ser vistos educação. Juntamente com o rádio, o cine-
como instrumentos de integração cultural ma sofreu investimentos com a intenção de
e política (Espinheira, 1934; Revista USP, modernizar o modelo educativo brasileiro.
2002-03). É interessante observar que na Com o movimento escolanovista e com o
década de 20 até os anos 90, desde o Mani- apoio dos governos populistas, o cinema
festo dos Educadores, com as políticas surge como um veículo promotor de cultu-
nacionalistas do período, bem como até ra e lazer. Com a criação do Instituto Na-
hoje, governos e intelectuais debatem os cional de Cinema Educativo (Ince), em
meios de comunicação como estratégicos 1937, até seu fechamento em 1966, esse
no projeto de construção de um ideal de organismo promoveu uma média de 30 fil-
Brasil (Franco, 2000; Ortiz, Borelli, Ortiz mes realizados por ano, com a duração de
Ramos, 1989). 10 minutos. Quase em torno de 1,5 longa-
Historicamente, é importante lembrar, metragem por ano. Com títulos variados,
não obstante, que, no que se refere ao rádio, mas sem um eixo pedagógico explícito, o
desde a primeira emissão, em 1924, no Rio Ince foi mais um instrumento pouco efici-
de Janeiro, ele já despertava, entre seus ente, entretanto extremamente moderno
incentivadores, sua vocação educativa. A para a época, que os governos tentaram usar
história do rádio e seu talento para uni- para controlar e impor uma educação dese-
versalizar informações e promover uma jada (Franco, 2000; Saliba, 2003).
cultura local parecem se confundir a todo Atualmente, a produção cinematográ-
tempo. Com Edgar Roquete-Pinto e seu fica e seu potencial pedagógico ainda são

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pouco utilizados. Servindo mais como fon- lação de 50% de analfabetos. Mais de 25
te de entretenimento e menos como veícu- anos depois, em 1985, o Brasil contava com
lo formador, o cinema, como já foi visto, 400 editoras, responsáveis pela produção
não se encontra entre os hábitos de lazer de de 160 milhões de exemplares, em um país
preferência do brasileiro médio. No entan- que ainda resistia com quase 29% de anal-
to, pode-se encontrar importantes iniciati- fabetos. Há 10 anos, em 1993, o Brasil pro-
vas localizadas. A parceria entre a Funda- duzia 300 milhões de livros (Hallewell,
ção Abrinq e a Natura desenvolve o Projeto 1985; Mira, 1995).
Cinema e Vídeo Brasileiro na Sala de Aula. Em 2002, o volume de vendas chegou a
Com o objetivo de capacitar professores e quase 339 milhões e aproximadamente 40
organizar um acervo, alunos da rede públi- mil títulos. Com 530 editoras ativas e com
ca poderão aprender a linguagem do vídeo cerca de cinco mil pontos-de-venda (en-
e produzir seus próprios documentários. globando papelarias, bazares, supermerca-
Paralelo a isso, o Espaço Unibanco de Ci- dos, lojas de conveniência), dos quais 1.700
nema já há algum tempo vem disponibili- são livrarias na acepção clássica do termo,
zando para grupos de estudantes e seus pro- o brasileiro tem acesso a apenas 1,8 livro
fessores o acesso a obras em cartaz ou que por ano (26). Com um mercado mais seg-
constem do seu arquivo. Já há mais tempo mentado, segundo o relatório da Câmara
a Fundação para o Desenvolvimento da Brasileira do Livro, a produção de livros
Educação (FDE), com um acervo variado e didáticos, quase 50% da produção nacio-
voltado muitas vezes para obras de caráter nal, vendeu 161 milhões de livros, com
mais pedagógico, oferece a todos os inte- 12.800 títulos. No item obras gerais, a
ressados o acesso a um material cinemato- venda chegou a quase 110 milhões de exem-
gráfico de qualidade (25). plares, com 10.750 títulos. No setor de li-
Embora cultivado e consagrado pelos vros religiosos, a circulação alcançou apro-
setores mais escolarizados, o livro é, sem ximadamente 30 milhões de unidades, com
dúvida, um produto da cultura de massa e 5 mil títulos. Por último, o setor de livros
há muito tempo tenta se popularizar, no científicos, técnicos e profissionais che-
Brasil, a partir de políticas públicas da área gou à expressiva venda de 21 milhões de
da educação. É possível observar que o li- unidades, com 11 mil títulos. Para o argu-
vro didático e paradidático esteve presen- mento deste artigo seria interessante cha-
te, entre nós, desde a década de 20 com o mar atenção para o crescente volume de
empenho do editor Francisco Alves. Nessa livros de característica prescritiva e de
mesma época assistimos a outros investi- auto-ajuda presentes sob a rubrica dos tí-
mentos no setor, com a criação da Compa- tulos religiosos.
nhia Editora Nacional. É interessante res- Para nosso estudo seria interessante ain-
saltar que, na ocasião, livros didáticos divi- da ressaltar que a busca do leitor fora dos 25 Não cabe neste artigo relatar
diam espaço com títulos que prescreviam templos tradicionais de venda, as livrarias, todas as iniciativas educativas
conhecidas do rádio e do cine-
hábitos de higiene e informações sobre tem também sua história no Brasil. A edito- ma. No entanto, vale a pena
um esforço sistemático a fim de
cuidados com o lar e a infância. Preocupa- ra paulista LER, na década de 30, e a Editora analisar essas propostas.
dos em difundir o hábito da leitura para Martins Fontes, o Clube do Livro e a Editora 26 Inglaterra (4,9); EUA (5,1);
amplos segmentos da população, inverte- Saraiva, nos anos 40, foram pioneiros na França (7); Itália (5).
ram ainda recursos nas coleções Paratodos, venda em domicílio de enciclopédias, livros 27 Em recente pesquisa, foi possí-
vel identificar que o mais novo
Biblioteca das Moças, com 176 títulos, e a clássicos da literatura brasileira e interna- ponto-de-venda de livros se
coleção Terramarear, alimentando assim cional (Hallewell, 1985; Mira, 1995). Hoje, encontra em algumas estações
do metrô. Trata-se de um em-
um tipo de leitura de entretenimento diver- a herança parece permanecer pois os espa- preendimento exploratório que,
à maneira das máquinas que
sificado para os jovens leitores brasileiros. ços para compras mantêm-se bastante di- vendem refrigerantes e salga-
É preciso lembrar também que na década versificados. Livrarias, bancas de jornais, dinhos, vende, por sua vez, li-
vros de bolso, nos valores de
de 50 verifica-se um aumento de 143% no farmácias, metrôs e pequenas lojas de con- três, cinco e nove reais. Os títu-
setor gráfico brasileiro, com um volume de veniência expandem o acesso a este bem de los mais vendidos são relativos
a saúde, a informática e a cons-
66 milhões de exemplares, para uma popu- consumo de massa (27). tituição brasileira.

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A titulo de curiosidade, considero im- Chile (jornal) e Brasil (música) se consti-
portante registrar ainda que a primeira edi- tuiu a partir de uma configuração cultural
tora brasileira, nos idos de 1862, ostentava bastante semelhante. Isto é, os meios de
títulos de grande apelo popular como: Di- comunicação de massa se fazem presentes
cionário de Medicina Doméstica, Sucintos na nossa história, construindo uma cultura
Conselhos às Jovens Mães para o Trata- híbrida em que se mesclam referências da
mento Racional de seus Filhos, Coleção cultura erudita, da cultura popular e da
Completa de Máximas, Pensamentos e cultura de massa. Este amálgama entre as
Reflexões (Hallewell, 1985; Mira, 1995). culturas seria então constitutivo nas confi-
Nesse sentido, o Brasil parece ter uma lon- gurações latino-americanas.
ga tradição em leituras e entretenimentos
que poderiam ser classificados como para-

OS SENTIDOS DA CULTURA
didáticos ou populares. Uma literatura fá-
cil, de alto caráter educativo e comporta-
mental, que parece conquistar mais espaço
em nosso público do que o conhecimento e Para o desenvolvimento do argumento
o gosto pela literatura clássica e erudita deste artigo seria interessante ainda fazer
promovidos pela escola. Um outro exem- uma breve digressão sobre a noção de cultu-
plo interessante da circulação de livros ra, e, nesse sentido, creio que Thompson
menos “nobres” no Brasil refere-se à Li- (1995) oferece algumas pistas importantes.
vraria do Povo. Fundada em 1879, no Rio Fazendo um breve apanhado da histó-
de Janeiro, comercializava livros usados e ria desse conceito, Thompson registra que
era freqüentada por estudantes e escritores uma das primeiras utilizações da noção
desconhecidos (Hallewell, 1985; Mira, remetia à idéia de cultivo ou cuidado de
1995). Em seu clássico Cultura Popular algum elemento, tal como grãos e animais
na Idade Moderna (1989), Peter Burke vai (até 1500), e, mais recentemente, o cultivo
salientar que a alfabetização crescente vi- da mente humana (1500 em diante). A dis-
vida na ocasião do Renascimento, na Euro- tinção entre cultura (bens espirituais) e ci-
pa, não tivera as conseqüências que os re- vilização (bens materiais), tão bem funda-
ligiosos supunham. Os camponeses liam mentada por Norbert Elias (1990), docu-
livros pequenos de no máximo 30 páginas, mentou ainda os sentidos variados da no-
almanaques, folhetos de notícias. Leitura ção de cultura em países europeus, como
simples, vocabulário relativamente peque- Inglaterra, França e Alemanha (Thompson,
no e construções não elaboradas. Nesse 1995, p. 167; Elias, 1990, pp. 21-5).
sentido, conclui Burke, a imprensa ampliou Para nosso interesse, vale ressaltar, não
ao invés de destruir a cultura popular tradi- obstante, que a noção de cultura sempre
cional. Ainda que não se possa fazer uma carregou um forte viés evolucionista e
analogia direta com a realidade atual no etnocêntrico. Ou seja, grande parte dos pres-
Brasil, seria interessante colocar que a ex- supostos desta noção são forjados dentro
pansão de um público leitor cultivado é de uma tradição iluminista que favoreceu o
resultado de séculos de educação. Por ora, sentido elitista e restrito do conceito (Mar-
o que se tem, e já não é pouco, é expressão tín-Barbero, 2003; Bollème, 1988; Bour-
de uma significativa demanda de informa- dieu, 1979, Cuche, 2002). Para essa tradi-
ções e saberes especializados. ção a cultura expressa a idéia de desenvol-
Não obstante, para finalizar este item, vimento, enriquecimento, evolução, um
caberia registrar que o aspecto formador e/ salto em relação a outros estágios anterio-
ou educativo de um imaginário ficcional res de civilização. Até hoje não é difícil
das mídias não é prerrogativa da cultura encontrar fortes vestígios dessas represen-
brasileira. Martín-Barbero (1995) salien- tações entre nós. Só muito recentemente a
tava, nos anos 80, que a cultura de países noção de cultura assumiu o sentido de um
como México (cinema), Argentina (rádio), processo ou produto de um esforço materi-

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al e espiritual de indivíduos ou de grupos Nestor Canclini (1983), em As Culturas 28 À primeira concepção dá o nome
de clássica. Remetendo ao que
(Thompson, 1995; Canclini, 1983). Nesse Populares no Capitalismo, contribui tam- já foi dito anteriormente, a ex-
pressão cultura revela um proces-
sentido, para dar continuidade a essa ques- bém para pensarmos o conceito de cultura so de desenvolvimento e eno-
tão o autor concebe quatro tipos básicos de nas sociedades globalizadas e hierarqui- brecimento das faculdades hu-
manas, um processo facilitado
concepção do conceito de cultura (28). zadas. Colocando-se o desafio de compre- pela assimilação de trabalhos
acadêmicos e artísticos e ligado
Vale salientar, no entanto, que esse autor ender a especificidade das culturas latino- ao caráter progressista da era
constrói uma particular concepção, que americanas, Canclini alerta para a necessi- moderna. A segunda concep-
ção, segundo Thompson, é aque-
denomina “concepção estrutural de cultu- dade de refletirmos sobre elas a partir de um la referente a uma visão antropo-
ra”. Ou seja, para ele, é preciso dar ênfase pressuposto político, ou seja, a cultura como lógica (1800-1900) subdividida
internamente entre concepção
ao caráter simbólico dos fenômenos cultu- um campo de tensão, um campo de luta sim- descritiva e concepção simbóli-
ca. Para ele, a concepção des-
rais bem como ainda relacioná-los a con- bólica, onde diferentes interesses de classes critiva entende a noção de cultu-
textos e processos histórica e socialmente ou de frações de classes são expressos de ra como o conjunto inter-relacio-
nado de crenças, costumes, for-
estruturados. maneira velada pelo conflito entre represen- mas de conhecimento, instrumen-
tos materiais, arte, etc., que são
Assim, a concepção estrutural de cultu- tações sobre o mundo social (29). adquiridos pelos indivíduos en-
ra de Thompson dá ênfase ao caráter sim- Canclini desenvolve uma noção de cul- quanto membros de uma socie-
dade particular e que podem ser
bólico dos fenômenos culturais mas os tura que corrobora a anterior de Thompson. estudados cientificamente. Preo-
Cultura para ele não pode ser sinônimo de cupa-se com a análise, a classi-
considera inseridos em contextos estrutu-
ficação e a comparação dos ele-
rais específicos. Ou seja, entende a análise formação social, isto é, forma de sociedade mentos constitutivos das diferen-
tes culturas para traçar o desen-
cultural como o estudo das formas simbó- unificada a partir dos valores dominantes. volvimento da espécie humana.
licas – ações, objetos, expressões signifi- A noção de cultura não pode se reduzir às Seus expoentes maiores seriam
Tylor e Malinowski (1930-40).
cativas diversas – em relação a contextos e manifestações das instituições e modelos A concepção simbólica da no-
ção de cultura, baseada sobre-
processos historicamente específicos e so- de comportamento de uma formação so- tudo nas contribuições de Clifford
cialmente estruturados, em que as formas cial. Para ele, é necessário criar um defini- Geertz, considera que o homem
é um animal suspenso em teias
simbólicas são produzidas, difundidas e ção mais eficaz, uma definição que enten- de significados. Cultura é a teia
da a cultura enquanto processo. Cultura de significados produzidos pe-
consumidas. Enfatiza que os contextos só-
los homens e sua análise cons-
cio-históricos são muito variados, poden- como sendo resultado de todas as práticas titui uma ciência interpretativa
em busca de significados. Se-
do estar estruturados de várias maneiras. e instituições dedicadas à administração, gundo Thompson, o intérprete,
Segundo ele, por exemplo, estruturados renovação e reestruturação de sentidos. o pesquisador, tenta entender
o que é dito e vivido, explicar
pelas relações de poder, acesso diferencia- Posto isso, a produção simbólica, a pro- o significado das ações e prá-
ticas culturais. A análise cultu-
do a recursos e oportunidades sociais, etc. dução dos sentidos, a produção das cate- ral seria então a elucidação
Dessa maneira, o que interessa salientar gorias do pensamento e do julgamento re- destes padrões de significado.
Embora Thompson apóie-se nas
é que, ao conceber a análise dos fenômenos meteriam às estruturas materiais de exis- contribuições de Geertz, aponta
algumas limitações. Ou seja,
culturais da modernidade, contextualizando tência dos indivíduos, suas condições de
aponta para uma certa impreci-
um momento histórico e social específico, trabalho, de estudo, de lazer, de origem fa- são nos conceitos, a limitação
de uma interpretação fechada
Thompson concebe a cultura sendo produ- miliar, etc. A cultura não representaria nos próprios textos ou símbolos e
zida em uma sociedade hierarquizada, mar- apenas em símbolos e imagens uma socie- sobretudo chama atenção sobre
a falta de uma contextualização
cada por profundas diferenças sociais, com dade. A cultura seria então espaço de pro- sócio-histórica dos eventos cultu-
rais. Geertz, segundo Thompson,
uma injusta distribuição de poder e privilé- dução de sentidos e valores que ajudariam não se preocupa com os signifi-
gio. A concepção estrutural de cultura pro- na reprodução das relações entre os gru- cados divergentes e conflitantes
que as expressões simbólicas
põe então uma análise em que as relações de pos, ajudariam na transformação e na cria- podem assumir. Não dá desta-
que às relações de poder, aos
poder estejam presentes. Para essa visão, os ção de novos e outros sentidos e valores.
conflitos internos relativos à pro-
fenômenos culturais expressam sobretudo Dessa forma, a cultura enquanto pro- dução de cultura, à produção
de significados.
um terreno de disputa social. Compreender cesso é vista não só nos atos de produção,
29 Canclini é um mexicano que in-
a cultura de nosso tempo é uma pista para mas nos atos que envolvem a divulgação e troduziu a noção de culturas hí-
compreender a sociedade em que vivemos, promoção da criação, bem como nos atos bridas no debate cultural. Em seu
livro homônimo, faz uma discus-
seus conflitos, lutas internas, jogos de inte- de recepção. A cultura não se reduziria são sobre a especificidade das
culturas latino-americanas que se
resses, medos e fantasias. Essa visão conce- objetos, símbolos ou bens materiais de uma forjaram a partir do sincretismo
be toda expressão cultural das sociedades sociedade, mas se apresentaria também de várias matrizes culturais, eu-
ropéia, nas suas versões erudita
contemporâneas com a capacidade de fazer como resultado das diferenças de sentido e popular, étnicas, negra e índia
um diagnóstico da história de uma época e ou diferenças de significados e usos entre e, mais recentemente, a cultura
de massa, globalizada e inter-
de uma sociedade. os diferentes indivíduos que a consomem. nacionalizada.

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CULTURA POPULAR E CULTURA
sesse ao sentido da palavra cultura na sua
acepção iluminista, aquela concebida sob

DE ELITE
o registro da cultura culta. Tornar-se-ia
popular então a cultura que sofre uma ava-
liação segundo seus usos, sua identifica-
Por último, para pensar a cultura en- ção, sua apreensão pelas classes populares.
quanto processo de reprodução, transfor- Nesse sentido, tudo pode ser popular (cul-
mação e criação cultural, bem como espa- tura, literatura, música, a cultura de massa)
ço de uma luta simbólica, o que mais nos desde que seja apropriada pelo grupo que
interessa nesta reflexão é atentar para o fato denominamos popular (30).
de que os sistemas sociais não se reprodu- Mais importante que isso, a noção de
zem espontaneamente submetidos apenas popular, segundo Bollème (1988) e Martín-
a constantes estratégias de dominação de Barbero (2003), grande parte herdeira da
ordem material e de ordem física. Para visão dos românticos, deriva da idéia de
Canclini, seria necessário ainda investir no comunidade orgânica, pura, autêntica, uni-
controle simbólico das práticas culturais da por laços naturais e telúricos. Nesse sen-
(Canclini, 1983; Bourdieu, 1979). Ou seja, tido, ao mesmo tempo que os autores do
é necessário investir em estratégias de im- romantismo recuperam positivamente o
posição de normas e padrões culturais que conceito, pois o concebem como uma ma-
ajudam a legitimar a ordem social vigente nifestação pura e imaculada, o conceito
a partir de mecanismos que legitimem e popular é reduzido a uma autenticidade ou
reifiquem consensos. Não obstante, quais ausência de contaminação/hibridização
seriam as práticas que possibilitariam a com a cultura hegemônica e/ou dominante.
naturalização de uma ordem cultural? E, ao reforçar essa autonomia, ao negar a
Tentando desenvolver este argumento, circulação cultural das manifestações po-
valeria a pena recuperar um pouco da his- pulares, o que realmente se nega é o pro-
tória dos conceitos cultura popular e cultu- cesso histórico de formação do popular, o
ra de elite. Em O Povo por Escrito (1988), caráter de sua hibridização. Nesse sentido,
Genneviève Bollème denuncia a ambigüi- é preciso chamar atenção para o fato de que
dade do conceito popular. A autora identi- se a cultura popular for concebida longe da
fica a imprecisão, a grande variabilidade dinâmica histórica, ao se recusar o sentido
nas formas de se conceber a noção de po- processual e relacional das expressões, o
pular. Para nosso objetivo aqui é importan- que se resgata é uma cultura que não pode
te colocar que Bollème apresenta uma hi- olhar senão para o passado, uma cultura-
pótese bastante interessante. Para ela, cul- patrimônio, ou seja, folclore de arquivo ou
tura popular deve ser apreendida como uma de museu nos quais conserva a pureza ori-
relação. Ou seja, a cultura popular explicita ginal de um povo primitivo (Bollème, 1988;
uma forma de interpretar aquilo que é rela- Martín-Barbero, 2003).
tivo ao povo, ao popular. Mais do que isso, Vemos assim que a qualidade, o em-
a palavra popular faz mais do que simples- prego ou o modo pelo qual somos levados
mente designar uma relação, ela acusa. Para a entender ou a apreciar uma cultura como
a autora, a palavra popular expressa um popular não dependem absolutamente do
30 Assim, chamar de popular uma julgamento, uma tomada de posição, que que ela é em si mesma, mas da essencial
cultura, por mais volumosa e
disparatada que seja, é reduzi- retira elementos do conjunto de uma cultu- relação que temos com ela. Dizer que é
la à uniformidade de um julga- ra e os classifica segundo alguns padrões. popular uma cultura é explicitar uma rela-
mento mas é também glorificá-
la pois é popular também aqui- Uniformidade, homogeneização, pouca ela- ção que expressa uma divisão nos padrões
lo que agrada a todos. Daí
resulta ser a palavra popular
boração, simplicidade, adjetivos que po- culturais que conhecemos. Declarar po-
uma faca de dois gumes, que dem desclassificar estes elementos segun- pular uma cultura ou um objeto é afirmar
pode explicitar ao mesmo tem-
po sucesso mas também simpli- do julgamentos exteriores a ele. É como uma relação, é engajar-se assim em um
cidade e superficialidade. que se a palavra popular fosse um reativo, discurso classificador que, por um lado,
Nada mais fugaz, com efeito,
do que a popularidade. ou seja, é como se cultura popular se opu- estabelece fronteiras entre a cultura letra-

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da, culta, a cultura dita emancipadora, de hierarquizar os indivíduos. A saber, a
valorizada pelas instituições legitimadoras cultura e a educação em seu sentido ilumi-
e, por outro, a cultura estigmatizada, a nista. É como se o entendimento dessa
cultura dos “outros”, a cultura daqueles noção de cultura fosse um produto históri-
que precisam colonizar seus espíritos, ou co de um consenso, produto coletivo da
seja, os incultos. aceitação do mito de uma cultura univer-
Bourdieu (1979, 1998), de uma certa sal, dominante, no entanto uma cultura res-
forma, nos anos 60, já denunciava as bar- trita e prerrogativa de uma classe. O propó-
reiras e hierarquias culturais existentes nas sito de uma razão universal, hegemônica,
sociedades capitalistas ocidentais ao criar constitutiva do imaginário produzido pela
o conceito capital cultural. Em Os Três burguesia e suas instituições de manuten-
Estados do Capital Cultural (1998), na in- ção do poder, é capaz de converter este
tenção de definir e apreender as represen- mundo restrito em um mundo universal e
tações que temos em relação à cultura legi- sua cultura na cultura de todos.
timada, aquela adquirida em anos de esco- Assim, é possível afirmar que Bourdieu
laridade, acaba por instituir as três dimen- considera o capital cultural tão importante
sões do capital cultural, ou seja, capital quanto o capital econômico, ambos recur-
cultural incorporado, capital cultural sos ou fontes de poder e privilégio de uma
objetivado e capital cultural institucio- classe. Para ele, o campo da cultura é um
nalizado (31). Creio que a forma como espaço de luta e competição tal como o cam-
Bourdieu define esse novo tipo de moeda po econômico; a posse dos bens simbólicos
social, a saber, a cultura derivada de um é como a posse dos bens materiais, símbolos
esforço educativo, ajuda a compreender o de distinção, signos de diferenciação, ele-
caráter classificador e elitista, mágico e mentos que hierarquizam e criam barreiras
portanto arbitrário que fazemos de seus entre os indivíduos de diferentes grupos
portadores. sociais, possuidores de diferentes recursos.
Dando continuidade a reflexões críti- Posto isso, a cultura, no sentido especí-
cas sobre o papel da escola (Althusser, fico utilizado por Bourdieu, ou seja, fonte
1988), mas imprimindo um caráter mais de um saber legitimado e institucionalizado,
original nas discussões, Bourdieu, na maio- não é apenas um sistema que oferece sig-
ria de seus textos sobre a questão educaci- nos e um código de comunicação ou cate-
onal, põe em xeque a ilusão meritocrática gorias do entendimento (Durkheim, 1995).
da escola, relacionando poder cultural/es- Não é apenas um sistema que integra e aju-
colar com poder social e simbólico. Ou seja, da a compreender o mundo. Ela também
denunciou que a escola, contribuindo para tem o poder de separar, de hierarquizar,
a reprodução das diferenças sociais, tam- serve como instrumento ideológico de do-
bém contribui para a manutenção das hie- minação (Bourdieu, 1999).
rarquias de poder e privilégios das socieda- Nesse sentido, a cultura escolar institu-
des capitalistas. cionalizada e o acesso diferenciado a ela
Nesse sentido, para se compreender a expressam uma dimensão política na me-
força do conceito capital cultural na obra dida em que assumem o poder de criar hie-
de Bourdieu seria interessante reafirmar que rarquias, fronteiras e barreiras sociais en-
ele o compreende como uma tradução ou tre os grupos, a dizer, aqueles que a detêm
desdobramento do capital econômico. Ou – os escolarizados – e os “outros”, os
seja, mesmo não sendo irredutível a este, iletrados. Por serem bens raros, a educação
capital cultural constitui-se em um novo e seu desdobramento, a cultura escolar, são
31 Capital cultural incorporado,
capital, em uma nova forma de poder e fontes de privilégio. Portanto, o conceito sob a forma de disposições du-
recurso social de distinção. Em uma socie- de capital cultural de Bourdieu é bastante ráveis do organismo; capital
cultural objetivado, sob a for-
dade onde a herança e os privilégios não se preciso. Refere-se a um conjunto de sím- ma de bens culturais materiais;
realizam apenas nas propriedades e/ou nos bolos e práticas promovido pelas instân- e capital cultural instituciona-
lizado, sob a forma de diplo-
títulos de nobreza, surgem outras formas cias culturais legitimadas, família, escola, mas e titulação.

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museu, universidade, enfim, instituições a Mais do que isso, é possível registrar tam-
que poucos têm acesso, mas que congre- bém um menosprezo em relação a essa
gam um alto valor no mercado. É a cultura educação que evoluirá rapidamente para um
burguesa, aristocrática, aquela que no Bra- sentido negativo, ou seja, o sentido de uma
sil os que a possuem são considerados pri- cultura atrasada e vulgar. Ou seja, um pas-
vilegiados (32). so para a legitimidade de uma visão
Vale ressaltar que Bourdieu não se refe- etnocentrista segundo a qual qualquer di-
re ao conceito cultura empregado pelas aná- ferença cultural em relação à cultura he-
lises antropológicas, ou seja, um sistema gemônica seria expressão de um atraso
integrado de símbolos que todos, indepen- (Burke, 1989).
dente da origem social, detêm. Mas sim a A noção de cultura escolar vai permitir
cultura que é valorizada no mercado escolar a seus divulgadores cindir a história e as
e profissional. Uma cultura escolar institu- práticas sociais dos grupos a partir de pares
cionalizada e legítima, um capital que tem de conceitos opostos: moderno/atrasado,
valor de troca e pode ser convertido em outras nobre/vulgar, culto/inculto. Nesse sentido,
formas de poder, ou seja, capital econômi- é fácil popularizar uma só cultura para to-
co, posição e prestígio sociais, etc. (33). dos. Uma compreensão que excluirá as
matrizes culturais desviantes da versão
dominante. Um passo para as representa-

OS USOS DA CULTURA
ções excludentes e maniqueístas em relação
à cultura popular e seus desdobramentos, a
cultura de massa. Terreno propício para po-
Nesse sentido, Bourdieu ajuda-nos a larizar as expressões culturais julgando cri-
pensar a função da escola e seus divul- ticamente a variedade da produção midiática
gadores no processo de construção das re- e as escolhas populares dessa produção.
presentações classificadoras sobre o saber
escolar. Com uma missão colonizadora,

CONSIDERAÇÕES FINAIS
desde o século XV, a escola propõe-se a
expandir seu império cultural para as mas-
sas incultas, ignorantes, supersticiosas e
irracionais. Assumindo a educação esco- “O populismo não é outra coisa que a in-
32 Lembro que apenas 45% têm
mais de 8 anos de escolari- lar como reguladora do comportamento dos versão do etnocentrismo […]” (Bourdieu,
dade.
segmentos populares e iletrados, morali- 1979).
33 Posto isso, a família e a escola, zando espíritos e formando quadros para o
para Bourdieu, são dois subes-
paços sociais fundamentais no mercado de trabalho, as instituições for- O objetivo deste artigo foi refletir sobre
processo de aquisição desse re-
curso. Família e escola podem mais do ensino sempre agiram disciplinan- a cultura de massa no contexto das preocu-
ser classificadas tanto como do, chamando à ordem civilizada amplos pações educativas do mundo contemporâ-
instâncias produtoras de bens
culturais como mercados de cir- contigentes populacionais (Nóvoa,1998; neo. Chamei atenção para uma nova confi-
culação desses bens. Para ele,
a competência cultural adquiri-
Durkheim, 1995; Burke, 1989). guração cultural e, portanto, educacional, a
da nesses espaços é definida Para desenvolver o argumento deste que a sociedade brasileira teve acesso ao
pelas condições de aquisição.
Ou seja, de um lado, o apren- artigo, lembro que, para desempenhar a con- longo de sua história. Apresentando dados
dizado precoce e insensível, tento essas funções, a escola utiliza-se de sobre o crescimento da oferta de produtos
efetuado desde a primeira in-
fância, no seio da família, e várias estratégias de consagração coletiva. da cultura de massa e a paralela demanda
prolongado adquirido fora do
ambiente familiar, nas institui- Entre elas destaco a desclassificação e a de informações e entretenimento do públi-
ções de ensino ou na esfera do desvalorização dos modos populares e co pude observar que a produção midiática
trabalho. A distinção entre es-
ses dois tipos de aprendizado iletrados do saber e do estilo de vida popu- complementa há muito a cultura e o saber
refere-se a uma certa maneira
de adquirir bens culturais e sim-
lar. A literatura registra fartamente que, escolar. Foi minha intenção desconstruir
bólicos e com eles se familiari- pouco a pouco, um processo lento mas sociologicamente um certo julgamento
zar, por um aprendizado esco-
lar que o pressupõe e o com- decisivo de inferiorização da cultura/edu- elitista que se tem sobre uma variedade de
pleta. De outro, o aprendizado cação dos segmentos pouco escolarizados produtos da mídia. Nesse sentido, busquei
tardio, complementar àquele,
metódico e acelerado. foi promovido pelas instâncias educativas. as raízes da tradição cultural brasileira e

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registrei a forte presença dos produtos cul- ampliação de um saber e uma cultura a
turais midiáticos na nossa formação, suas que tradicionalmente poucos no Brasil ti-
características paradidáticas, fortemente veram acesso.
articuladas a um gosto popular pouco É comum escutarmos avaliações de que
escolarizado. Foi possível ver que antes os segmentos sociais menos escolarizados
que a escola se universalizasse, antes que são os que mais têm acesso à produção
o saber formal se tornasse referência edu- midiática e são sobretudo os que têm as
cativa para grande parte de nossa popula- menores chances de criticar os conteúdos
ção, antes que a língua escrita estivesse propostos. Na realidade, como os dados
generalizada em todo o território nacio- acima demonstraram, é possível afirmar que
nal, o rádio, a TV e o cinema já eram ve- o consumo é bastante variado. No entanto,
lhos conhecidos da população brasileira. acreditar que as camadas menos instruídas
Nesse sentido, considerei que o imaginá- estão mais sujeitas à manipulação e às ideo-
rio ficcional das mídias há muito mais logias é no mínimo polêmico. É como afir-
tempo vem colonizando os nossos espíri- mar que os segmentos populares e pouco
tos. Mais do que isso, esse imaginário está escolarizados sejam desprovidos de uma
mais presente no cotidiano dos segmentos cultura, de uma ética e/ou de uma moral,
sociais brasileiros, sobretudo os segmen- incapazes de escolher o que lhes convém.
tos com baixa escolaridade, do que pro- Neste artigo, considero a possibilidade
priamente a cultura escolar. de pensar a educação popular no Brasil
No entanto, não se trata de uma defesa como um bloco de cultura híbrido, profun-
deste imaginário midiático. Trata-se de uma damente marcado pelas influências da cul-
constatação. Esta discussão justifica-se tura escolar e midiática. Servindo-me da
enquanto um alerta para nós educadores. idéia de cultura enquanto processo afirmo
Formados segundo uma tradição iluminis- que a cultura popular ou cultura de massa
ta, racional e cientificista, valorizamos a em muitos momentos se confundem, pois
escola naquilo que ela tem de aristocrático ambas, juntamente com a cultura dos seg-
e diferenciador. Ou seja, sua capacidade de mentos escolarizados, formam um bloco
emancipar segundo um modelo civilizador maior. Nenhuma delas deve ser julgada sem
(Elias, 1989). À cultura de massa dispensa- que se esclareça as barreiras construídas
mos atenção apenas como consumidores entre elas. Não se trata de uma relativiza-
ou na grande parte das vezes como críticos ção, como diria Canclini (1988). Há muito
(Martín-Barbero, 2003). Raras são as oca- o relativismo não dá conta das hierarquias,
siões em que ponderamos sobre o uso va- do jogo de poder entre as diversas formas
riado que os diversos segmentos sociais de expressão e práticas culturais. Neste
fazem ou podem fazer dos produtos da cul- artigo, chamo atenção para o fato de que
tura de massa. Acreditando na universali- para se falar de educação popular no Brasil
dade das categorias do julgamento propi- seria necessário analisar a educação pro-
ciado pela escola, acredita-se que todos se movida pela cultura de massa. E, para falar
apropriam e usam os conteúdos midiáticos deste fenômeno, seria necessário descons-
de maneira homogênea. Avaliando sob truir sociologicamente nossas resistências
uma ótica acadêmica, douta e privilegia- sobre ele.
da, própria daqueles que ocuparam por A questão é complexa. Não tenho a pre-
longo tempo os bancos escolares, desen- tensão de resolvê-la. Tentei apenas apontar
volvemos uma certa arrogância ao anali- alguns elementos para a discussão. Na for-
sar a cultura midiática. Classificada como ma de um ensaio sociológico, estas refle-
ilegítima, sensacionalista, grotesca, sim- xões propõem-se como um prefácio, um
ples, pobre e superficial, esta outra matriz prenúncio de avaliações mais profundas
cultural, no entanto, pode ser de grande sobre a variabilidade e a complexidade do
valia para os segmentos pouco escolari- fenômeno da cultura de massa para o cam-
zados. Pode servir como complemento ou po de pesquisa na área da educação.

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SANTAELLA, Lúcia. Cultura das Mídias. São Paulo, Experimento, 2000.
SETTON, Maria da Graça J. “Bourdieu e a Teoria Clássica”, in Revista Comunicação e Educação. ECA-USP, 2000.
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SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco. Petrópolis, Vozes, 1989.
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Publicações Específicas

Associação Brasileira dos Produtores de Discos – Mercado Brasileiro de Mídia (2001/2002/2003).


Câmara Brasileira do Livro – Relatório Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro (2001/2002).
São Paulo. Marplan. Anuário Estatístico de Mídia – 2003.
Suplemento Mais!, Folha de S. Paulo, 1998.

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 58-77, março/maio 2004 77

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