Você está na página 1de 24

Revista de História

ISSN: 0034-8309
revistahistoria@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil

Bastos Marques, Juliana


O conceito de temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga
Revista de História, núm. 158, junio, 2008, pp. 43-65
Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022052002

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
O conceito de temporalidade
e sua aplicação na historiografia antiga

Juliana Bastos Marques


Pós-doutoranda-FFLCH/USP e bolsista da Fapesp

Resumo
Este artigo discute, em um primeiro momento, o conceito de temporalidade e de
suas definições e aplicações, bem como algumas contradições inerentes a ele.
Como objetivo principal, busca atualizar a discussão sobre como entender o uso da
temporalidade dentro do contexto da historiografia antiga, fazendo uma crítica às
associações da historiografia greco-romana com a idéia de ciclo e de seu contraponto
na historiografia judaico-cristã com a linearidade. Por fim, sugerimos que é possível
ler essas duas diferentes formas de historiografia invertendo seus conceitos comuns
de temporalidade, demonstrando assim que tal paradoxo nada mais é do que reflexo
dos paradoxos gerais do conceito teórico de temporalidade.
Palavras-chaves
Historiografia antiga • tempo • temporalidade • ciclo • decadência.
Abstract
This article presents, in the first place, a debate on the concepts, definitions and applica-
tions of temporality, as well as some of its innate contradictions. The main goal here
is to update the discussion about how to understand temporality within the context of
Ancient historiography, reviewing the associations of Greek and Roman historiography
with the idea of cycle and of its counterpoint, Jewish-Christian historiography, with
linearity. Lastly, we suggest that it is possible to read these two different forms of
historiography also as an inversion of their associated ideas, thereby demonstrating
that this paradox is nothing more than a reflection of the general paradoxes within
the concept of temporality itself.
Keywords
Ancient historiography • time • temporality • cycle • decadence.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 43 09/12/2008 16:36:10


44 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

Arnaldo Momigliano foi um dos poucos estudiosos do mundo clássico a


refletir sistematicamente sobre o tema da intuição de tempo na historiografia
antiga.1 Estudos prévios geralmente se centraram na dicotomia específica entre
o que a tradição clássica definiu como períodos áureos e outros de decadência
em relação a eles. Isso se deu até meados ou mesmo fim do século XX no campo
da literatura, através da definição dos cânones estilísticos em grego e em latim,
e, no campo da história, pelo debate tradicional e em processo de superação de
mecanismos de sucessão das “civilizações” antigas, tanto em termos políticos
como sócio-culturais.2 No plano do debate teórico propriamente dito sobre tem-
po, com pontos de contato fortemente presentes com a filosofia e a antropologia,
consolidou-se uma oposição entre conceitos pagão e judaico-cristão de tempo,
os quais apresentariam um caráter cíclico ou linear, respectivamente.3
O propósito deste artigo é rever tais concepções consolidadas de tempo na
historiografia antiga, no sentido de apontar como suas dicotomias na verdade
se encontram e apresentam relações muito mais complexas do que a princípio
se apresentam. A oposição entre tempo cíclico pagão e tempo linear judaico-
cristão, bem como entre conceitos de auge e decadência no mundo antigo, não
é totalmente rígida, e pretendemos demonstrar que, ao desenvolver cada um
destes conceitos, encontramos pontos em comum exatamente com os outros
aos quais se opõem. Ao considerarmos o debate teórico e metafísico sobre a
noção de tempo, encontramos exatamente esse mesmo paradoxo e assim po-
demos entender melhor os motivos pelos quais as dicotomias acima não são na
verdade tão rigorosas. Por fim, o uso do termo “temporalidade” nesta reflexão
surge como mais completo do que apenas o mais genérico “tempo”, pois per-

1
O tema aparece constantemente na série de palestras compilada em The classical foundations of
modern historiography. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1990, que expressa
suas idéias principais já no período de maturidade intelectual do historiador.
2
GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga. Politeia. V.
3, n. 1. Vitória da Conquista , 2003, p. 41-62.
3
Também define Mazzarino: “Una buona parte dell’indagine moderna – soprattutto della più
recente – ha parlato, sulla base di Agostino, di una temporalità circolare pagana, di contro a
una temporalità lineare giudaica e infine cristiana. La temporalità pagana consisterebbe nella
dottrina dell’Eterno Ritorno; quella giudaica e cristiana in una linea che nel cristianesimo (ossia,
nell’età medioevale e moderna) trova come punto di riferimento la Parousia, esprimendosi nel
calcolo degli anni Ante Christum e Post Christum natum. La temporalità giudaica e cristiana
darebbe un senso alla storia; nella temporalità pagana, la storia non avrebbe un suo significato,
perché tutto eternamente ritorna”. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico. Vol. 3.
Roma-Bari: Editori Laterza, 1990, p. 350. Analisaremos Santo Agostinho e a idéia de eterno
retorno em Mircea Eliade adiante.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 44 09/12/2008 16:36:10


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 45

mite ao historiador trabalhar também com a relação entre tempo, memória e a


formação do relato histórico.
Passemos em primeiro lugar à última das questões elencadas acima, pois se
trata da nomenclatura que determina as idéias fundamentais do debate: definir
o que queremos dizer com “temporalidade”, pois ela é diferente de “tempo”.
Compreenderemos a seguir suas especificidades na narrativa histórica antiga.

Tempo e temporalidade
Qualquer definição única que se dê à idéia de tempo é indubitavelmente
insuficiente para explicá-lo, pois toda racionalização de sua natureza nos leva
sempre a certos problemas insolúveis. Assim, o pensamento humano se obriga
a limitá-lo em concepções que nos parecem opostas e, ou as aceita conjunta-
mente, ou prefere uma em detrimento da outra. Trata-se da dicotomia entre o
tempo físico, absoluto, alheio à consciência e à vontade, e o tempo psicológico,
relativo à experiência e à percepção do ser humano.
Se o tempo físico independe de nós, pois é o tempo da natureza, ele na
verdade sequer precisaria ou mesmo poderia ser por nós percebido. É o presente
absoluto da ação, já que não é passado nem futuro. O passado não existe, pois
já se foi; o futuro também não existe, pois ainda não acontece. Assim, estes
dois conceitos apenas fazem sentido dentro da experiência vivida, dentro da
racionalização e consciência do seu decorrer – constituem, portanto, o valor da
memória e da projeção, causa e conseqüência do momento presente, medido
pelo ser humano –, ou seja, o tempo psicológico. Isso significa, em primeiro
lugar, que só o presente é real, mas também que qualquer tempo por nós vi-
vido só tem sentido se comparado com o tempo que ainda não é, ou não mais
existe – o que se constitui no processo fundamental da consciência humana e,
num plano mais restrito e aqui relevante, da apreensão da história. Este tempo
é, em suma, a temporalidade.4

4
COMTE-SPONVILLE, André. O ser-tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 30: “O tempo
precisa da alma, não para não ser o que ele é (o tempo presente), mas para ser o que já não é
ou ainda não é (a soma de um passado e de um futuro), em outras palavras, para ser o que nós
chamamos de tempo: ele necessita da alma, não para ser o tempo real, o tempo do mundo, ou
da natureza, mas para ser, e é bastante lógico, o tempo... da alma.”. E assim ele define a tempo-
ralidade, na página seguinte: “... a unidade – na consciência, por ela, para ela – do passado, do
presente e do futuro”.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 45 09/12/2008 16:36:10


46 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

Podemos exemplificar citando Santo Agostinho (354-430 d.C.), que foi um


dos principais autores antigos a refletir diretamente, em suas Confissões,5 sobre
a natureza do tempo. Ele é referência fundamental para o debate, pois adapta as
conclusões metafísicas de Platão ao pensamento cristão e oferece uma reflexão
sistemática sobre o tema, inédita até então, analisando as contradições entre
presente, passado e futuro. Santo Agostinho trata do tempo que a consciência
humana apreende que é, portanto, a temporalidade e não o tempo “em si”, já que
este não a determina, por ser apenas possível como um presente absoluto.

Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda
não o posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estive-
rem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí
são futuras, ainda já não estão; e, se nesse lugar são pretéritas, já lá não
estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que
elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os
acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios
acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas
imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram
no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância,
que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a
sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a
no tempo presente, porque ainda está na minha memória.6

Mesmo depois de séculos de debate sobre a natureza do tempo,7 ainda a


mesma conclusão de que a temporalidade prevalece em importância para a cons-
ciência humana sobre o tempo pode ser vista, por exemplo, em Heidegger:

5
Todo o Livro XI é dedicado à questão da definição do tempo e do papel de Deus na Criação.
Sobre a análise específica da natureza do tempo, ver especialmente o trecho 10-27.
6
Confissões, XI, 18: “si enim sunt futura et praeterita, volo scire, ubi sint. quod si nondum valeo,
scio tamen, ubicumque sunt, non ibi ea futura esse aut praeterita, sed praesentia. nam si et ibi futura
sunt, nondum ibi sunt, si et ibi praeterita sunt, iam non ibi sunt. ubicumque ergo sunt, quaecumque
sunt, non sunt nisi praesentia. quamquam praeterita cum vera narrantur, ex memoria proferuntur
non res ipsae, quae praeterierunt, sed verba concepta ex imaginibus earum, quae in animo velut
vestigia per sensus praetereundo fixerunt. pueritia quippe mea, quae iam non est, in tempore pra-
eterito est, quod iam non est; imaginem vero eius, cum eam recolo et narro, in praesenti tempore
intueor, quia est adhuc in memoria mea.” Tradução de J. Oliveira Santos, S. J. e A. Ambrósio de
Pina, S. J. Santo Agostinho. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril, 1973, p. 246.
7
Para um resumo, ver POMIAN, Kryzstof. Tempo/temporalidade. In: ROMANO, Ruggiero. (dir.)
Enciclopédia Einaudi, vol. 29. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, especialmente p. 36-78.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 46 09/12/2008 16:36:10


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 47

Tempo é ser-aí. (...) O ser-aí sempre está num modo de seu possível ser
temporal. (...) O ser-aí não é o tempo, mas a temporalidade. O enunciado
fundamental: o tempo é temporal, é, por isso, a autêntica determinação – e
ele não é uma tautologia, porque o ser da temporalidade significa uma
realidade desigual. O ser-aí é o seu passar, é a sua possibilidade no seu
antecipar a este passar. Neste antecipar sou eu o tempo automaticamente,
tenho tempo. Na medida em que o tempo sempre é meu, existem muitos
tempos. O tempo é destituído de sentido; tempo é temporal.8

Encontramos as raízes da percepção teórica e abstrata da temporalidade


não apenas no plano intelectual, mas, também, a partir da realidade cotidiana,
a partir do processo, bastante lento, da quantificação temporal que surge pro-
gressivamente a partir do século XIV com a invenção dos primeiros relógios
mecânicos e a valorização da contagem do tempo no cotidiano. Sendo assim,
poderemos verificar que há um movimento paralelo entre a complexidade
crescente desta contagem, que se faz progressivamente através dos séculos pela
medição de minutos e segundos com a sofisticação dos aparelhos cronográficos,
e a sofisticação do conceito abstrato de tempo, refletido tanto no pensamento
filosófico quanto na física.
O estágio atual da reflexão sobre a idéia de tempo, num plano mais amplo,
parte basicamente de dois pontos principais, que são a teoria física de Isaac
Newton e o uso disseminado da cronometria a partir do século XIV9 e da inven-
ção do relógio de pêndulo por Christian Huygens no século XVII. A importância
primordial de tais fatos constitui-se pela desvinculação da temporalidade do
cunho eminentemente religioso e elementar do cotidiano medieval e também
na abstração e quantificação do tempo “absoluto”. Este passa, então, a ser o

8
HEIDDEGER, Martin. O conceito de tempo. Tradução de Marco Aurélio Werle. Cadernos de
Tradução, nº 2, Departamento de Filosofia – USP, 1997, p. 36-37: “Zeit ist Dasein. (...) Das Dasein
ist immer in einer Weise seines möglichen Zeitlichseins. (...) Das Dasein ist nicht die Zeit, sondern
die Zeitlichkeit. Die Grundaussage: die Zeit ist zeitlich, ist daher die eigentlichste Bestimmung
– und sie ist keine Tautologie, weil das Sein der Zeitlichkeit ungleiche Wirklichkeit bedeutet. Das
Dasein ist sein Vorbei, ist seine Möglichkeit im Vorlaufen zu diesem Vorbei. In diesem Vorlaufen
bin ich die Zeit eigentlich, habe ich Zeit. Sofern die Zeit je meinige ist, gibt es viele Zeiten. Die
Zeit ist sinnlos; Zeit ist zeitlich.”
9
“…o século XIV é a época mais importante da história do tempo da Antigüidade ao início do
nosso século. Mas não só por ter assistido ao esboço das transformações da arquitetura do tempo:
a sua importância deriva do fato de que começaram então a modificar-se as atitudes face ao tempo,
à vida, à morte, ao passado e ao futuro.” POMIAN, K., op. cit., p. 29.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 47 09/12/2008 16:36:10


48 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

elemento fundamental na construção de uma idéia de ciência independente da


experiência humana, tal como hoje a vemos.
Newton concebia apenas uma forma básica de tempo como verdadeira,
dividida em um tempo absoluto (matemático) e outro relativo (medição). Este
tempo físico seria assim para ele apenas uma quantidade mensurável absoluta,
bem como o espaço.10 Embora seus conceitos tenham sobrevivido sem abalos
no campo da física até o século XX, dentro do debate filosófico não tardou a
retomada e defesa da idéia de tempo psicológico, em Leibnitz, Hume e espe-
cialmente Kant.11
Com o desenvolvimento da ciência no século XVIII, as concepções de tempo
em geral foram progressivamente sendo tomadas pelo campo da física, tanto
que hoje o diálogo entre Bergson, Husserl, Boltzmann e Prigogine12 é não só
perfeitamente possível como até mesmo obrigatório. Não se pode mais conceber
que o tempo físico absoluto da ciência não seja determinante na concepção e
existência em si do universo. É, porém, um tempo que acaba se confundindo
com a temporalidade subjetiva, enquanto seja apreendido pelo ser humano.
Einstein demonstrou que, diferentemente da idéia de Newton, o tempo abso-
luto é também relativo. Sua teoria, de grandes implicações para a metafísica do
tempo, é ainda apenas uma das correntes científicas atuais que revolucionaram
sua definição. As outras, que veremos muito brevemente, são a física quântica,
a termodinâmica e a teoria evolucionária de Darwin.
A Teoria da Evolução foi um marco fundamental no processo de formação
da concepção atual de temporalidade. A idéia da origem humana passava até
então pelo mito e pela transmissão de determinadas cosmogonias, nas quais
o tempo mítico é nebuloso e cronologicamente pouco preciso. E isso é válido
não só na Antigüidade pagã, pois a concepção da civilização cristã também foi
baseada em uma idéia de tempo mítico. Somente a partir da Teoria da Evolução
surge o conceito da origem humana como um longo e lento processo natural,
mensurável a partir do método científico.

10
Sir Isaac Newton’s mathematical principles (Principia Mathematica 1687). Tradução de A.
Moore, University of California Press, 1947, p. 6: “Absolute, true, and mathematical time of itself
and from its own nature... flows equably without relation to anything external.”
11
Na parte sobre tempo da Crítica da razão pura, 1787.
12
Boltzmann (1844-1906) e Prigogine (1917-2003), físico e químico, respectivamente, dedicados
ao desenvolvimento da termodinâmica.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 48 09/12/2008 16:36:10


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 49

A revolução da física no século XX trouxe mais elementos para a questão.


Em primeiro lugar, a Teoria Geral da Relatividade de certa forma destrói a idéia
de tempo totalmente absoluto e independente, ainda que, para fins práticos de
cálculo, a física newtoniana continue a ter valor para uma escala mediana de
espaço. A física quântica surge como oposto de Einstein, na medida em que
subverte a ordem e a lógica dos acontecimentos no plano molecular. Mas, prin-
cipalmente a Segunda Lei da Termodinâmica se mostra como o elemento que
restabelece e dá nova forma aos pontos principais do conceito de tempo.
Basicamente, essa lei prevê a liberação de energia, como entropia, em
qualquer sistema dentro de um tempo linearmente considerado. A implicação
básica disso é que, em primeiro lugar, o tempo é irreversível e que, portanto, sua
flecha aponta sempre para o futuro – o que a Relatividade não consegue provar.
Em segundo lugar, o que é uma conseqüência teórica, mas apenas conjectural,
o tempo possivelmente terá um fim, quando toda a energia do universo for
liberada e a entropia atingir seu nível máximo.
O aumento da entropia prevê que um sistema considerado, seja o universo,
um corpo humano ou uma xícara de café, passe da ordem para o caos. O melhor
exemplo disso é a teoria do Big Bang. Porém, a Teoria da Evolução diz que o uni-
verso progride, racionaliza-se e passa do caos para a ordem. Como podemos evi-
tar a contradição? Provou-se que o caos na verdade tem uma tendência à ordem e
que apresenta ciclos temporais, como no caso por exemplo do relógio químico.13
Se a flecha do tempo da termodinâmica é irreversível, ela engloba a existência de
quaisquer processos cíclicos em toda parte do universo,14 ou seja, temos portanto
que os dois planos fundamentais do tempo são essencialmente interdependentes.
E assim, tanto o tempo da física quanto o psicológico, a temporalidade dos filó-
sofos, se constituem em uma estrutura que é ao mesmo tempo linear e cíclica.15

13
COVENEY, P. & HIGHFIELD, R. The arrow of time. London: Flamingo, 1990, p. 182-184.
14
Idem, p. 36: “... the Second Law of Thermodynamics not only furnishes an arrow of time but also
has within it the seeds of the temporal cycles and patterns which we discern in the world around
us... Time’s arrow represents progress: each instant is branded with an individual marque. But
the metaphor of time’s cycle is vitally important in seeking patterns within natural phenomena
which are ruled by the same laws.”
15
Como conclui Norbert Elias: “Por si só, a expressão ‘tempo da natureza’, cotejada com ‘tempo
social’, já dá a impressão de que o primeiro tipo de tempo é ‘real’, enquanto o segundo se reduzi-
ria a uma convenção arbitrária. A dificuldade está em que o ‘tempo’ em si não entra no esquema
conceitual desse dualismo. Tal como outros dados, ele se furta a qualquer classificação como
‘natural’ ou ‘social’, ‘subjetivo’ ou ‘objetivo’, pois é uma coisa e a outra”. ELIAS, Norbert. Sobre
o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 94.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 49 09/12/2008 16:36:10


50 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

Voltemos à História. Também neste plano é possível encontrar a mesma


conseqüência demonstrada acima sobre a natureza do tempo, de que ele se
constitui em dois planos opostos, porém entrecruzados. Agora, retomando o
uso do termo temporalidade, mais adequado à construção do discurso histórico,
veremos como ele se apresenta na Antigüidade e como se dão as inter-relações
entre seus diferentes sentidos.

Tempo e História na Antigüidade


O conceito de temporalidade determina hoje a forma da narrativa e dos
processos históricos. A História, como disciplina, apresenta atualmente várias
formas de uma Zeitauffassung, intuição do tempo, haja vista o pensamento de
autores como Marx, Hegel, Braudel e da hermenêutica do século XX, como é
o caso de Paul Ricoeur.16 Entretanto, a sistematização e reflexão sobre o papel
do tempo é um elemento recente na essência da História.
O tempo, como elemento fundamental da História, é construído e não
dado como condição primordial desta.17 O conceito original de ιστορια (his-
toría) entre os gregos sequer se baseia na reflexão sobre a natureza do tempo.
Etimologicamente, o termo significa “pesquisa, informação, relato”. Heródoto
dá importância à investigação dos fatos que pretende narrar e sua atitude, apre-
sentada pelo verbo historeô, demonstra que sua função primordial é buscar as
narrativas dos eventos, relatar o que vê e ouve em suas viagens e pesquisas, e
assim preservar os fatos mais memoráveis para transmiti-los à posteridade.18 A
importância do relato tem nesse sentido uma associação muito mais próxima com
a etnografia do que com a reflexão filosófica - ainda que privilegie a busca da
verdade em oposição ao mito, o que torna desde já a narrativa histórica distinta
do texto etnográfico. Aliás, se podemos notar, parte quase que exclusivamente

16
RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Éditions du Seuil, 1983. Para análise, ver LEAL, Iva-
nhoé Albuquerque. História e ação na teoria da narratividade de Paul Ricoeur. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2002.
17
FORNARA, Charles W. The nature of History in Ancient Greece and Rome. Berkeley/London:
University of California Press, 1983, p. 91: “... to the Greeks and Romans, ‘history’ was not an
aspect of time; ‘the past’ and history were no more intrinsically related than were ‘the present’ and
history. The relation was identical for both ‘history’, was written both of the present and of the past.”
18
Veja-se o caso de Tucídides: “... if one thing is certain it is that when Thucydides said that he collected
and wrote things down, he did not know that this made him a historian. Why not? Because the words
‘historian’ or ‘history’ did not yet exist, as technical expressions for what Thucydides was doing”.
HORNBLOWER, Simon. Thucydides. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1987, p. 12.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 50 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 51

da filosofia o estudo do conceito de tempo na Antigüidade – este é o seu campo


próprio de definição.19
Podemos buscar a origem da importância da temporalidade no conceito
atual de história, diferentemente do encontrado em Heródoto e Tucídides no
desenvolvimento da cronologia e da genealogia.20 A primeira se preocupou
exclusivamente com o estabelecimento de sistemas de contagem e sistemati-
zação de períodos e eventos, como no caso da contagem dos anos através do
calendário olímpico, elaborada por Timeu (c. 356 – 260 a.C.).21 Já a segunda
é caracterizada pelo relato da tradição de feitos heróicos, misturando lendas e
mitos, da qual a Teogonia de Hesíodo (c. 700 a.C.) é o melhor exemplo. Por-
tanto, podemos praticamente descartar a influência de Homero22 e começar a
traçar os antecedentes da “temporalidade histórica” que nos interessa com os
Trabalhos e os dias e o ciclo das Idades que apresenta.23
Este texto de Hesíodo é o primeiro exemplo de narrativa centrada na im-
portância do decorrer do tempo, mesmo que ainda não adquira as caracterís-
ticas de obra histórica – já que não há compromisso sistemático com o relato
“verdadeiro” em oposição ao “mítico”. É também um típico representante da
associação entre pensamento greco-romano e tempo cíclico opostos ao tempo
linear judaico-cristão, sobre a qual falaremos adiante. No texto de Hesíodo (Os
Trabalhos e os dias, parágrafos 109 a 201), há uma sucessão de cinco raças ou
idades dos homens: a primeira e mais elevada é a Idade de Ouro, na época de
Cronos, na qual não existia a velhice. Depois surge a Idade de Prata, quando

19
Como exemplo, veja-se ARISTÓTELES, Física, 4, 14.
20
Para uma análise e crítica da divisão de sub-gêneros historiográficos feita por Jacoby, ver
FORNARA, Charles W., op. cit., e MARINCOLA, John. Genre, convention and innovation in
Greco-Roman historiography. In: KRAUS, C. S. (ed.). The limits of historiography – Genre and
narrative in Ancient historical texts. Leiden/Boston/Köln: Brill, 1999, p. 281-324.
21
O mesmo Timeu que é duramente criticado por Políbio no livro XII de suas Histórias.
22
“... não se acha praticamente em Homero pensamento sistemático acerca das origens do mundo
ou dos homens. De maneira geral, o tempo dos poemas homéricos não é tanto um contínuo abs-
trato e sem qualidades mas antes um fenômeno prenhe de atividade.” LLOYD, G. E. R. O tempo
no pensamento grego. In: RICOEUR, Paul (ed.). As culturas e o tempo: estudos reunidos pela
Unesco. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 139.
23
Veremos adiante como há pontos de contato entre essa tradição grega e os conceitos judaico-
cristãos, mas veja-se Pattaro: “… o tempo se acha relacionado, na literatura cristã primitiva,
ao tema das idades do mundo. As sutis variantes dessa concepção dizem geralmente respeito à
história da salvação, que costuma ser dividida em quatro períodos sucessivos, a saber: a idade
da lei natural, a da lei mosaica, a da graça e a da glória.” PATTARO, Germano. A concepção
cristã do tempo. In: RICOEUR, Paul (ed.). As culturas e o tempo: estudos reunidos pela Unesco.
Petrópolis: Vozes, 1975, p. 197-198.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 51 09/12/2008 16:36:11


52 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

os homens, insolentes perante os deuses, viviam cem anos na infância, mas


morriam logo após a adolescência. Segue-se a Idade do Bronze, estritamente
associada à guerra, e a Idade dos Heróis, também de caráter belicoso, mas jus-
ta e valorosa.24 A Idade de Ferro seria a própria época de Hesíodo, em que os
homens trabalhavam dia e noite e envelheciam rapidamente. Ainda uma raça
futura é prevista, raça esta em que os homens já nascerão de cabelos brancos e
não terão vergonha ou respeito. Segundo Martin,25 podemos inclusive detectar
dois ciclos distintos de apogeu e decadência, sendo o primeiro as idades de
Ouro, Prata e Bronze, e o segundo a Idade dos Heróis, decaída na do Ferro e
na última que virá. Nota-se claramente o movimento de declínio demonstrado
na seqüência dos metais e das raças correspondentes, de um passado glorioso
a um presente degenerado.26
Dentro da tradição historiográfica grega, os momentos nos quais a reflexão
sistemática sobre a temporalidade está presente na narrativa são restritos ou
circunstanciais. Podemos sugerir ainda a definição de dois planos de desenvol-
vimento distintos, dentro dos objetivos de nossa reflexão.
Primeiramente, com Heródoto e Tucídides, temos a sucessão de fatos na
narrativa de um evento – específico em Tucídides, múltiplos em Heródoto.
Isso na Zeitgeschichte grega (“história contemporânea”, como assim definia
Felix Jacoby) não representa uma forma extensa de temporalidade, justamente
porque o objetivo do texto era centrar-se em causas e efeitos de uma realida-
de contemporânea – nesse sentido, a história grega é a história do presente.27

24
“The Age of Heroes is clearly an intrusion into an older sequence based on metals. No doubt
the intrusion was at least partly the result of chronological schemes and synchronization: when it
was realized that the heroes of Homer, such as Achilles, Agamemnon and Odysseus, would have
to be placed in a mere Age of Bronze, a special slot for them was inserted that interrupted the
decline”. LUCE, T. J. Greek historians. London: Routledge, 1997, p. 12.
25
MARTIN, R. H. The golden age and the KUKLOS GENESEwN (Cyclical Theory) in Greek
and Latin literature. Greece & Rome. Vol. 12, n. 35/36, 1943, p. 70. Lloyd, op. cit., não vê seis
idades, mas apenas cinco.
26
Já Finley vê o relato de Hesíodo como totalmente atemporal. FINLEY, Moses. Mito, memória
e história. In: Uso e abuso da História. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 8-10.
27
“The most important sub-genre of all for Jacoby was contemporary history (Zeitgeschichte), the
writers of which he defined as ‘those authors who without local restriction narrated the general
Greek history of their own time or up to their own time.“The distinguishing marks of Zeitgeschichte
are: (i) a narrative mainly of the author’s own time, irrespective of where it begins; (ii) a viewpoint
from the Greek side; and (iii) a panhellenic treatment, i.e., embracing events of all the Greek city-
states. (…) After Thucydides, writers of Zeitgeschichte chose either to write up individual wars,
or to continue the chronicling of contemporary history now focused not on a particular event
but rather on a chosen segment of time, as Xenophon did in the Hellenica and as the many serial

02 - Juliana Bastos Marques.indd 52 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 53

Mesmo quando encontramos por exemplo a Archaeologia no início do relato


de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso, tal preocupação com a narrativa
de uma temporalidade extensa não corresponde à concepção total de sua obra.
Existe, porém, uma explicação bastante coerente para este fato em Tucídides
que ele utiliza como argumento: a importância de se estabelecer a verdade so-
bre os fatos impede o historiador de conseguir testemunhos satisfatórios para
períodos muito distantes do passado e, por isso, a Archaeologia é apenas uma
pequena parte de seu texto. No caso de Tucídides, o que realmente lhe importa
é a presença não do perene dos fatos mas sim do imutável das almas, a physis,
como causa última do conflito, stasis.28 O segundo plano, em que encontramos
Políbio, seria a intuição de causa e efeito como processo histórico mais longo
inerente à estrutura da narrativa. Tal contexto surge com a ampliação do arco
temporal em obras históricas a partir do período helenístico – as “histórias
universais” do próprio Políbio e, por exemplo, Posidônio e Diodoro Sículo.
A reflexão de caráter teórico sobre temporalidade na Antigüidade está de
muitas formas confinada a planos restritos e mesmo a percepção cotidiana do
tempo não o toma sempre como um valor metafísico fundamental. A Zeitges-
chichte grega de Heródoto e Tucídides se abre para novos modelos de narrativa
com o passar do tempo, mas isto não significa que incorpore uma conceituação
mais sistemática das estruturas de tempo na história. O surgimento da história
universal no período helenístico teve Políbio como melhor representante, ainda
que sua idéia de ciclos temporais esteja essencialmente vinculada ao debate
filosófico sobre as instituições políticas, que os definem,29 e não com o desen-
volvimento da historía de Heródoto.
A história romana, porém, teria em si a possibilidade de uma conceituação
de temporalidade muito maior do que a grega, pois se trata essencialmente da
história do desenvolvimento de uma cidade, Roma. De fato, os historiadores

continuators in Greek history attest. Histories centered on individuals (…) also qualify, provided
that they are not limited by a local focus.” MARINCOLA, John., op. cit, p. 287.
28
Sobre Heródoto, o mesmo problema: “[ele apresentava] a mentality that did not see the world as
a sequence of events with causes, but rather saw the permanent in a variety of times, places, and
changing circumstances; saw, in a word, a recurrent and meaningful process”. HUNTER, V. Past
and process in Herodotus and Thucydides. Princeton: Princeton University Press, 1982, p. 177.
29
MOMIGLIANO, A. Ensayos de historiografía antigua y moderna. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993, p. 166: Já que “... fuera de los capítulos constitucionales, en el resto de su
historia Polibio actua como si no tuviera ninguna visión cíclica de la historia”, (...) “Me gusta-
ría tomar a Polibio como una instancia del hecho de que los filósofos griegos solían pensar en
términos de ciclos, peo los historiadores griegos no.”

02 - Juliana Bastos Marques.indd 53 09/12/2008 16:36:11


54 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

romanos expressaram, ainda que às vezes ocasionalmente, uma grande preo-


cupação com o desenvolvimento de Roma: seu início, o presente e uma certa
ansiedade quanto à possibilidade de seu fim. Ainda assim, mesmo com tal ênfase,
não podemos dizer que os relatos sobre o passado em Tito Lívio, Salústio ou
Tácito abstraiam sistematicamente a idéia de temporalidade.
Tomemos que exista, portanto, na Antigüidade greco-romana, uma reflexão
sistemática sobre o tempo “físico” apenas no campo da filosofia, e de formas da
temporalidade, em certas instâncias pontuais, em historiadores como Políbio.
Essas formas são de fato como veremos, cíclicas. Aliás, o fato mesmo desta
própria reflexão existir é a razão inicial para que se associe com freqüência tal
idéia de temporalidade ao pensamento greco-romano. Porém, isso não signifi-
ca necessariamente que o conceito cíclico de tempo seja o único presente, ao
contrário da linearidade do tempo judaico-cristão. O que ocorre é justamente o
desenvolvimento também da reflexão sistemática deste último como um pro-
cesso único, irreversível e com sentido definido. Ou seja, afirmar que os pagãos
concebiam a circularidade não necessariamente os exclui da possibilidade de
compreender formas lineares de tempo.
Assim, o debate atual sobre essas duas concepções - cíclica e linear -
tornou-se uma boa oportunidade para desfazer a rigidez que tem sido formada
em torno de suas caracterizações. Obviamente, temos que reconhecer que as
associações originais não deixam de ter um sentido, corroboradas por todo o
conjunto de reflexões mencionado – Hesíodo e Políbio ainda são fortes exemplos
de pensamento cíclico pagão. Entretanto, quanto mais se encontram falhas em
tais associações de conceitos, mais isso significa, em última instância, que é
impossível fazer uma distinção absoluta entre as duas concepções de tempo.
Primeiro, porque a concepção linear nasce da cíclica, como veremos adiante, e
segundo, porque não existe nenhuma teorização tão desenvolvida na Antigüidade
que não permita uma certa flexibilidade entre os dois conceitos.30

30
PRESS, Gerald A. The development of the idea of history in Antiquity. Kingston/Montreal:
McGill-Queen’s University Press, 1982, p. 21-22: “... the linear-cyclic account seems incorrect,
using as it does a definition utterly alien to antiquity. Although there may be, in some transhistorical
sense, a logical connection between the idea of time and the idea of history, the ancients, as a matter
of historical fact, did not see them as connected (...). While some writers of historical works say
that events repeat themselves and some philosophers speculate about cosmic cycles, there are also
other views expressed and no one says that history is circular, repetitious, or meaningless.”

02 - Juliana Bastos Marques.indd 54 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 55

Linearidade
O surgimento da idéia de tempo unidirecional, de sentido fixo e único, foi
de certa forma possível através da consolidação do monoteísmo judaico, no qual
se pressupõe o poder e a vontade de um deus único que, dessa forma, cria não
só o universo como também o tempo. Mircea Eliade interpreta o desenvolvi-
mento do conceito de linearidade entre o povo judeu através da importância da
Aliança e da questão do sofrimento:31 é a forma de punição divina, expressão
da “ira” de Yahveh. Segundo Eliade, o sofrimento só pode ser compreendido e
suportado na medida em que se sabe o seu propósito, ou seja, é a expressão da
vontade divina, e assim dá valor ao movimento da História.
Até este ponto poderíamos ainda fazer um paralelo com o mundo dos
deuses greco-romanos, já que a vontade deles, cuja razão pode ou não ser co-
nhecida, determina importantes acontecimentos na vida cotidiana – no mundo
greco-romano, também se sofre por conta da vontade dos deuses. Basta citar,
por exemplo, a popularidade do culto à deusa Fortuna que representa uma
aceitação do conceito da imprevisibilidade da sorte entre os romanos. Entre-
tanto, há diferenças fundamentais. A primeira é a Aliança de Deus com o povo
judeu, um evento único na história, que jamais se repetirá. A partir da Aliança,
um evento passado determinante nas ações do presente, o pensamento judaico
(e posteriormente cristão, com alterações) fixa a singularidade do tempo e da
história. Ainda mais, traz um aspecto novo na percepção de temporalidade entre
os antigos: aqui existe a espera de uma revelação divina que se fará em um
futuro indeterminado. Os profetas desempenham um papel importante nisso,
pois ratificam a idéia da vontade onipotente de Deus ao terem suas profecias
realizadas, dando assim um sentido absolutamente unidimensional à história do
povo escolhido - seu passado, presente e principalmente futuro. Tal conceito é
expandido ainda mais pelo Cristianismo, pois Santo Agostinho mesmo diz que a
vinda de Cristo prova como a vontade de Deus é única, e que a paixão, o perdão
dos pecados e a ressurreição só poderiam ocorrer uma única vez.32 A segunda
vinda de Cristo e o Juízo Final, por conseguinte, poriam um fim à história.

31
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992, p. 95 e seguintes.
32
De Civitate Dei, XII, 13: “Semel enim Christus mortuus est pro peccatis nostris; surgens autem
a mortuis iam non moritur, et mors ei ultra non dominabitur, et nos post resurrectionem semper
cum Domino erimus”. “Pois Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados e, ressuscitando dos
mortos, já não mais pode morrer. Assim como a morte não teve mais domínio sobre ele, nós
mesmos depois da ressurreição estaremos com Deus para sempre.”

02 - Juliana Bastos Marques.indd 55 09/12/2008 16:36:11


56 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

Porém, é falso ver um sentido de progresso definido nessa tal suposta linea-
ridade cristã, em que presumivelmente a humanidade segue se desenvolvendo de
forma positiva rumo a uma escatologia redentora. Muito pelo contrário, espera-se
um sentido de decadência da humanidade que culmina num defectus finis, em
contraposição ao paraíso perfeito do início - uma proposição que vemos desde
Daniel até o Apocalipse. Aí está o próprio sentido da redenção.
Por mais paradoxal que seja, encontramos aqui a contradição principal que
poderia, a rigor, demonstrar que o tempo linear propriamente dito na verdade
não existe, como concepção histórica cristã: se a história tem um começo, a
redenção pressupõe o seu fim, e não só o tempo é limitado como ele retoma, no
Juízo Final, um estado perfeito inicial. A eternidade não é a princípio histórica,
mas sim parte da natureza de Deus e, portanto, não pode ser usada para definir
uma linearidade per se.33 Assim, o tempo linear cristão seria apenas o tempo
“cíclico” de um só ciclo,34 pois não se repete.
Mazzarino fornece ainda dois argumentos para corroborar a idéia de que a
linearidade judaico-cristã contém elementos da intuição pagã de temporalidade.
Em primeiro lugar, o uso da contagem linear do tempo a partir dos anos, antes
e depois de Cristo, o que seria a princípio um uso eminentemente linear, que se
consolidou até hoje, tem antecedentes na cronografia grega. Poderíamos ir além
de Mazzarino e lembrar que as datações judaica e islâmica também utilizam o
mecanismo do tempo contado em relação ao antes e depois de um evento, mas
também, por exemplo, o mesmo ocorre com todo o cálculo romano utilizado
nos anais, relacionados ao tempo decorrido com a fundação de Roma. Afinal,
não há uma diferença fundamental de intuição da temporalidade entre esses
dois mundos, “la diferenza consiste, piuttosto, nella diversità dei fatti che si
pongono a base dell’èra”.35 No Novo Testamento encontramos um conceito
indubitavelmente cíclico.36 A Segunda Epístola de são Pedro, ao tratar da espera
pelo Juízo Final, traz claramente a idéia de um tempo que é substituído por
outro, onde as estruturas do mundo ainda existem, ainda que renovadas: “O que

33
De novo santo Agostinho, Confessiones XI.
34
Dentro de duas eternidades atemporais. ELIADE, Mircea,. op. cit., p. 101: “... tempo finito,
um fragmento (embora também seja cíclico) entre duas eternidades atemporais.” Cf. PATTARO,
Germano. op. cit., p. 199: “... a realização escatológica arrasta o passado em direção a um futuro
cujo ponto de chegada, o dia do Apocalipse, será o ponto culminante de toda a história acabada.”
– ainda que Pattaro não admita a mesma visão de Eliade.
35
MAZZARINO, Santo, op. cit., vol. 3, p. 354.
36
Ibid., p. 419.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 56 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 57

nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde
habitará a justiça”.37 É claro que não se trata de um céu e uma terra idênticos aos
do mundo atual, mas há ainda uma idéia de caráter circular. Tudo isso significa
que o pensamento judaico-cristão ainda dependeu de conceitos e referências
temporais também encontrados no mundo greco-romano.

Ciclo
A importância do esquema cíclico para se compreender a história deriva
de uma reflexão paradoxalmente não-característica do pensamento histórico.
O ciclo, e aqui retomamos os conceitos de Mircea Eliade, seria uma resposta à
indeterminação da história, uma forma de se contornar o medo das conseqüências
imprevisíveis das atitudes no presente, da instabilidade e da mudança em direção
ao desconhecido. Seria também, dessa forma, a negação do fim do universo.
Afinal o que é um ciclo, senão períodos dentro da existência do universo ou da
humanidade que surgem, se desenvolvem e degeneram a um ponto tal que a
superação de sua crise implica em outro ciclo idêntico ou semelhante, portanto
até certo ponto previsível?
Porém, uma distinção entre categorias cíclicas relativas ao “universo” e
à “humanidade” é importante: trata-se de considerar respectivamente um tipo
de ciclo cosmogônico em que cada um de seus períodos é exatamente idêntico
aos outros, e outro histórico, em que a repetição de algumas estruturas, sejam
políticas ou de outra forma institucionais, prevê necessariamente algum tipo de
sucessão no desenvolvimento de uma determinada sociedade, o que, em última
instância, também acaba revelando um sentido de linearidade – uma “sucessão
linear” de ciclos.
O primeiro tipo, o ciclo do universo, é exemplificado pela concepção
temporal dos estóicos, baseada na visão pitagórica do universo. Sua idéia de
coincidência absoluta dos ciclos está relacionada com a teoria matemática da
perfeição do círculo, da imutabilidade ideal e harmoniosa presente no mundo.
A mudança para os estóicos é, nesse sentido, desestabilizadora, e mesmo que
exista alguma noção de progresso dentro de cada ciclo, nada do que nele resulta
é essencialmente válido, pois jamais destruirá a igualdade predeterminada dos

37
2 Pedro, 3:13, “novus vero caelos et terram novam secundum promissum ipsius expectamus,
in quibus iustitia habitat.”. Vulgata.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 57 09/12/2008 16:36:11


58 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

períodos38 - a mudança é inerente a uma permanência que sempre se repete.


Nesse sentido, a decadência e o fim não são necessariamente uma visão pes-
simista do mundo, já que a isso se segue um novo, e idêntico, ciclo. Sêneca é
um dos autores que tratam dessa questão e, particularmente, é um dos poucos
antigos a considerar a possibilidade do progresso para a humanidade. Apenas,
nada do que fosse resultado desse progresso teria realmente um valor definitivo
de mudança para a melhoria do mundo:

Tudo o que a longa indulgência da fortuna cultivou, tudo o que foi des-
tacado acima do resto das coisas, tudo o que é nobre e belo, mesmo os
reinos das grandes nações, tudo será levado à ruína um dia. 39

O segundo tipo de tempo cíclico é aquele diretamente vinculado à história.


A idéia pode ocorrer como o ciclo das instituições políticas de Políbio, ou den-
tro da existência de um determinado império, cidade ou influência de alguma
cidade-estado - ou seja, sempre em torno da ação do poder.40 Na verdade, pelo
fato deste tipo não pressupor uma rigorosa identidade entre seus diferentes
períodos, como nos ciclos estóicos, podemos dizer que existiria neste esquema
uma espécie de “progresso” em alguma direção qualquer. Não que tal progresso
seja necessariamente uma forma de desenvolvimento para melhor em relação
ao ciclo anterior, mas há sim uma mudança de estados – um tipo particular de
continuum em uma direção determinada, ascendente ou descendente.

38
BURY, John B. The idea of progress - An inquiry into its origin and growth. New York: Dover,
1987, p. 18-19 [sobre a importância da Moira, ou Pronoia - providência - para os estóicos]: “Moira
meant a fixed order in the universe; (...) It was this order which kept things in their places, assig-
ned to each its proper sphere and function, and drew a definite line, for instance, between men
and gods. Human progress towards perfection - towards an ideal of omniscience, or an ideal of
happiness, would have been a breaking down of the bars which divide the human from the divine.
Human nature does not alter; it is fixed by Moira.”
39
“quicquid tam longa fortunae indulgentia excoluit, quicquid supra ceteros extulit, nobilia
pariter atque adornata magnarumque gentium regna pessum dabit” . Naturales quaestiones III,
29, 9, citado e analisado em EDELSTEIN, Ludwig. The idea of progress in classical Antiquity.
Baltimore: Johns Hopkins Press, 1965, p. 173.
40
Outro ciclo possível é o “biológico”, como em Floro, que traça uma metáfora da história como
a vida de um ser – através de seu nascimento, juventude, apogeu, velhice e morte. Ver RUCH, M.
Le thème de la croissance organique dans la pensée historique des Romains, de Caton à Florus. In:
Aufstieg und Niedergang der römischen Welt. I.2, 1972, p. 827-841 e HAVAS, László. Élements
du biologisme dans la conception historique de Tacite. In: Aufstieg und Niedergang der römischen
Welt, II, 33.4, p. 2949-2986.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 58 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 59

Políbio considera que existem mudanças no tipo de governo, que seguem


obrigatoriamente um certo padrão (monarquia-tirania, aristocracia-oligarquia,
democracia-oclocracia),41 e são determinadas pelo desenvolvimento das institui-
ções políticas, culminando de forma inevitável em uma decadência dos costumes
e da moral. Porém, cada vez que ocorre um desses ciclos, seu desenvolvimento
significa que nada será igual ao anterior. O caso mais importante que ele utiliza,
de Roma durante as Guerras Púnicas, é exemplar: a constituição mista romana
surgiu através da coincidência de uma série de fatores por conta do desenvol-
vimento da organização social da cidade, mas jamais será novamente idêntica à
do período em que Políbio vive. Isso é verdade porque há sempre um quadro de
fatores externos e internos em uma determinada situação que nunca é idêntico
ou imutável. Em última instância, se existe para Políbio algo que jamais muda,
é o processo de corrupção do caráter moral individual dentro de uma sociedade.
A decadência advém sempre do luxo e da ganância provenientes do máximo
desenvolvimento dentro de uma estrutura política determinada - e este sim é um
topos na Antigüidade. Porém, como vimos, o problema de Políbio é justamente
a falta de sistematização de seu argumento em sua visão geral da história.42

Progresso e decadência em Roma


O conceito de circularidade não pressupõe necessariamente nenhum tipo
de progresso contínuo e duradouro. De fato, a noção de que não tenha existido
um sentido verdadeiro de progresso no mundo greco-romano é bastante conso-
lidada na historiografia atual.43 Há, no entanto, alguns sinais de sua existência
na Antigüidade, ainda que sem a importância que o conceito assumiu após o
Renascimento.44 O progresso em geral é sentido em períodos de prosperida-

41
Esquema bastante comum dentro do pensamento político grego, especialmente em Aristóteles.
Note-se porém que o termo “oclocracia” é inédito até Políbio (cf. Lidell-Scott).
42
Cf. nota 25, assim como aponta Starn: “If Rome, through the mixed constitution Polybius des-
cribed, could escape the downward turn of the cycle as he suggested, if the cyclical plan hardly
entered his actual historical narrative, then Polybian cyclism may be taken for a theoretical
exercise, another case of historians’ indiscriminate borrowing, or for fashionable philosophical
talk.” STARN, Randolph. Meaning levels in the theme of historical decline. History and theory.
Vol. 14, n. 1, 1975, p. 19.
43
Para um resumo dessa visão, ver BURY, John B., op. cit. Uma abordagem contrastante está em
EDELSTEIN, Ludwig. op. cit.
44
LE GOFF, Jacques. Passado/presente. In: ROMANO, R. (dir.) Enciclopedia Einaudi – memória/
história. Vol. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 301: “... na Antigüidade pagã predominava a
valorização do passado, paralelamente à idéia de um presente decadente; (...) na Idade Média, o

02 - Juliana Bastos Marques.indd 59 09/12/2008 16:36:11


60 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

de, paz e desenvolvimento, mas toma forma especialmente entre os filósofos


antigos em relação ao desenvolvimento técnico-científico – o que é próprio
especialmente do período helenístico. O progresso é também uma forma de
expressão do poder e, na sua relação com a idéia de decadência, é definido
por interesses de determinados grupos na sua promoção. Exemplos adequados
para isso podem ser encontrados com grande freqüência e facilidade na histó-
ria contemporânea, mas uma forma típica no mundo antigo era a propaganda
política, literária e religiosa em torno de Augusto, com o surgimento de uma
“Idade de Ouro” romana.
Na verdade, não seria realmente adequado tratar o período de Augusto,
visto como “progresso” pelos romanos, em relação a uma República decadente.
O contraponto fundamental do conceito antigo de decadência, e romano em
particular, é na realidade a idéia de renovação, um tempo virtuoso que retoma
o passado exemplar, depois do ponto máximo de um período de declínio.45 A
decadência não necessariamente significa uma postura pessimista e sem espe-
rança, mas sim traz um clima otimista para aqueles que percebem estes sinais:
ela prenuncia o advento de um novo período, necessariamente reabilitador.
Nesse sentido, a concepção romana de tempo pode sem dúvida ser interpretada
como cíclica,46 como vemos no surgimento da nova era prenunciada pela Quarta
Écloga de Virgílio:

Já chega a última idade cantada pela Sibila de Cumas,


e começa de novo o grande ciclo dos séculos.
Já retorna a Justiça, e os tempos em que reina Saturno,

presente está encerrado entre o peso do passado e a esperança de um futuro escatológico; (...) no
Renascimento, o investimento é feito no presente e (...), do século XVII ao XIX, a ideologia do
progresso volta para o futuro a valorização do tempo”. Para um histórico da questão a partir do
século XIX, ver HERMAN, A. The idea of decline in western History. New York: Free Press, 1997.
45
Para o papel de Augusto nessa renovação e os paralelos construídos com o passado, veja-se
a discussão apresentada em MARQUES, Juliana Bastos. Rômulo, Camilo, Augusto: a Roma
renovada de Tito Lívio. In: LESSA, Fábio de Souza; BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha.
(orgs.). Memória e festa. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 427-434.
46
“Na Antigüidade, em que o sentimento e a idéia de progresso são praticamente inexistentes, o
conceito de decadência não tem verdadeiro contraponto, mas, numa perspectiva religiosa, pode,
como acontece em várias épocas do Império Romano, transformar-se, por exemplo, em base e
inspiração de um programa político; a idéia de renovatio aparece por vezes como um antídoto de
ruína”. LE GOFF, Jacques, Decadência. In: ROMANO, R. (dir.). Enciclopédia Einaudi. Vol. 1.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 394.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 60 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 61

já uma nova raça desce do alto dos céus.47

O contexto da Quarta Écloga é, no entanto, bastante específico. Ela remete


politicamente ao período de paz e expectativa que corresponde à afirmação do
poder de Otaviano (ainda em 40 a.C.), mas tem referências que vão desde a
astrologia até as antigas tradições dos Oráculos Sibilinos. A seqüência das eras
em seus “ciclos” se refere ao conceito de magnus annus que consiste em um
período de anos delimitado pela ocorrência sucessiva da mesma disposição de
todos os corpos celestes no céu.48 Outra leitura considera a tradição etrusca de
dez séculos de existência para uma nação, incorporada nos Oráculos Sibilinos.49
Seja como for, este é um exemplo da preocupação romana com o correr do seu
tempo, com a consolidação de seu passado e a definição de seu futuro. Tais
tradições, como também a das águias vistas por Rômulo,50 que determinariam
um ciclo de doze séculos para o império romano (ou 120 anos, dependendo da
interpretação de cada fonte), são absolutamente originais em relação aos gregos e
também fundamentais para determinar a grande expectativa dos romanos com o
seu destino. E em cada época essa expectativa se caracteriza de forma diferente,
de acordo com a realidade vivida: se para Tácito o fim do império certamente
virá,51 para Virgílio cada fim se configura num novo começo. “Imperium sine
fine dedi”, diz Júpiter na Eneida (1, 279).52

47
“Ultima Cumaei venit iam carminis aetas;
magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.
iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna,
iam nova progenies caelo demittitur alto.”
Para análise, ver CARCOPINO, Jérome. Virgile et le mystère de la IVe églogue. Paris: L’Artisan
du Livre, 1930.
48
Cf. Cícero, De Republica, VI, 25.
49
Orac. Sib. 4.47, 8.199. “That the doctrine of saecula was in some form incorporated into the
Roman Sibylline tradition is clear from the fact that the dates of the Ludi Saeculares, e.g. in 249
and 149 B.C., were fixed after consultation of the Sibylline Books (Hor. C.S. 5). If the length of a
saeculum was officially recognized as 110 years at this time (Hor., ib., 21), then there would have
been an expectation that 40/39 B. C. would begin a new age”. COLEMAN, R. (ed.). Vergil, Eclo-
gues (Cambridge Greek and Latin Classics). Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 131.
50
Cf. TITO LÍVIO, I, 6-7 e Plutarco, Vida de Rômulo, 9.
51
Cf. TÁCITO. Germania, 33, com comentário de RIVES, James. Germania. Clarendon Ancient
History Series. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 258-260.
52
“E foi só depois da publicação da Eneida que Roma passou a ser chamada de urbs aeterna, com
Augusto sendo proclamado o segundo fundador da cidade. (...) Nasceu então a esperança que Roma
era capaz de regenerar-se periodicamente, ad infinitum.” ELIADE, Mircea., op. cit., p. 116.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 61 09/12/2008 16:36:11


62 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

Uma das mais significativas características do desenvolvimento da consciên-


cia histórica romana é a valorização do passado em relação ao presente,53 através
da importância do mos maiorum e dos exemplos virtuosos dos antepassados,
construídos pela tradição. Ou seja, tal valorização se revela pelo processo de
mitificação das origens de Roma, apresentado, por exemplo, em Tito Lívio,
e se estende através da consolidação do culto religioso aos antepassados, da
importância da memória e do modelo ideal e nostálgico de virtus. Mas, se
é verdade que tal ponto é constante dentro do imaginário romano, segue-se
logicamente que, por mais que haja um certo movimento de renovação, este
nunca é suficientemente bom para substituir de maneira plenamente satisfató-
ria o remoto e perfeitamente virtuoso passado – em particular na questão dos
costumes e do caráter moral. Tal conclusão poderia demonstrar agora, dentro
de nosso exercício teórico, que a historiografia romana é, na verdade, funda-
mentalmente linear, pois a renovação, embora remeta à idéia de ciclo, é sempre
diferente do passado e pressuporia, assim, uma linearidade intrínseca através
de uma sucessão. Vemos assim que é possível demonstrar a validade dos dois
aspectos opostos de tempo na história romana, o ciclo e a linha, já que, como
afirmamos no início, são afinal de contas conceitos indissolúveis dentro da
percepção de temporalidade.
Podemos perceber também a linearidade através de algumas caracterís-
ticas peculiares do desenvolvimento da cidade e do Império. É importante
destacar mais uma vez que a história de Roma é fundamentalmente a história
do desenvolvimento de uma cidade, ainda nem que com isso posteriormente
sua importância se dilua através da expansão gradativa de outras regiões do
Império. É sempre a partir desse foco principal que os historiadores romanos
traçam suas abordagens.54 Para tanto, e também para todo o imaginário romano,
trata-se de considerar as origens, o desenvolvimento e, portanto, a duração de
sua existência. Por isso é tão mais importante para o mundo latino a projeção
do futuro em comparação com Zeitgeschichte grega.55

53
Ainda que levemos em conta a euforia literária da “Idade de Ouro” augustana.
54
Diferentemente do que fazem os historiadores gregos: “The chief question in the minds of the
Latins was one which Greek historiography had never attempted to deal (except incidentally and
superficially), for the decline of a city-state or kingdom was sufficiently accounted for in the context
of ecumenical history by its defeat in war.” FORNARA, Charles W., op. cit., p. 84.
55
“O pressentimento de um fim ‘cientificamente’ previsível, da forma como se encontra em
Políbio (ou entendido em termos éticos, como em Cícero e Salústio), estabelecia, já na cultura da
Roma republicana, uma estreita correlação entre o conceito de decadência e o da previsibilidade

02 - Juliana Bastos Marques.indd 62 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 63

Na verdade, a oposição entre ciclo e linha neste contexto, justamente pela


forma como se interconectam, se põe como um falso problema. É possível,
como vimos acima, demonstrar os dois lados dentro das características da
historiografia romana. Se Tácito menciona a circularidade da história,56 certa-
mente há também elementos claramente lineares em seu texto. Sendo assim,
Tácito representa de maneira exemplar a questão que colocamos neste artigo
- ou seja, a alternância entre circularidade e linearidade como conceitos tem-
porais na historiografia antiga apenas vem a demonstrar um aspecto particular
da inter-relação essencial entre esses mesmos conceitos nas outras instâncias
de apreensão da temporalidade, inviabilizando em essência uma polarização
esquemática. Resumindo, citemos Pomian: “Na prática do historiador (...)
nunca se encontram os processos cíclicos, lineares ou estacionários em estado
puro. O problema filosófico tradicional – o tempo da história é cíclico, linear
ou estacionário? – não tem sentido simplesmente. Porque as três topologias do
tempo, que por certo temos o direito de dissociar e opor para as exigências de
uma análise lógica, estão na realidade ligadas uma à outra.”57

Referências bibliográficas
BALDRY, H. C. Who invented the golden age? The classical quarterly. New Series,
vol. 2, nº 1/2, 1952, p. 83-92.
BURY, John B. The idea of progress - an inquiry into its origin and growth. New
York: Dover, 1987.
CARCOPINO, Jérome. Virgile et le mystère de la IVe églogue. Paris: L’Artisan du
Livre, 1930.
COLEMAN, Robert (ed.). Vergil, Eclogues. Cambridge Greek and Latin Classics.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
COMTE-SPONVILLE, André. O ser-tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
EDELSTEIN, Ludwig. The idea of progress in classical Antiquity. Baltimore: Johns
Hopkins Press, 1965.

dos fatos históricos.” MAZZARINO, Santo. O fim do mundo antigo. São Paulo: Martins Fontes,
1991, p. 29.
56
Ann. III, 55: “Nisi forte rebus cunctis inest quidam velut orbism ut quem ad modum temporum
vices, ita morum vertantur”. “A não ser talvez que exista algo como um ciclo em todas as coisas,
tanto sazonais quanto morais”, analisado em MARQUES, Juliana Bastos. Um ciclo dos costu-
mes em Tácito? Anais III, 55. Boletim do CPA - IFCH/Unicamp, Campinas/SP, 2004, p. 55-65.
57
POMIAN, K., op. cit., p. 157.

02 - Juliana Bastos Marques.indd 63 09/12/2008 16:36:11


64 Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65

ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.


ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FINLEY, Moses. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
FORNARA, Charles W. The nature of History in ancient Greece and Rome. Berke-
ley/London: University of California Press, 1983.
HEIDDEGER, Martin. O conceito de tempo. Tradução de Marco Aurélio Werle.
Cadernos de Tradução, nº 2, São Paulo: FFLCH–USP, 1997.
HERMAN, Arthur. The idea of decline in western History. New York: Free Press,
1997.
HORNBLOWER, Simon. Thucydides. Baltimore: Johns Hopkins University Press,
1987.
LE GOFF, Jacques. Passado/presente, in ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclope-
dia Einaudi – memória/história, vol. 1, Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p.
293-310.
LLOYD, G. E. R. O tempo no pensamento grego. In: RICOEUR, Paul (ed.). As
culturas e o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes, 1975, p.
136-149.
LUCE, T. James. Greek historians. London: Routledge, 1997.
MARINCOLA, John. Genre, convention, and innovation in Greco-Roman historio-
graphy. In: KRAUS, C. S. (ed). The limits of historiography – genre and narra-
tive in ancient historical texts. Leiden/Boston/Köln: Brill, 1999, p. 281-324.
MARTIN, R. H. The golden age and the KUKLOS GENESEwN (Cyclical theory) in
Greek and Latin literature. Greece & Rome. Vol. 12, nº 35/36, 1943, p. 62-71.
MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico. Roma-Bari: Editori Laterza,
1990.
______. O fim do mundo antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MOMIGLIANO, Arnaldo. The classical foundations of modern historiography.
Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1990.
______. El tiempo en la historiografía antigua. Ensayos de historiografía antigua
y moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 155-196 (Time in
ancient historiography. History and theory. Vol. 6, Beiheft 6: History and the
concept of time, 1966, p. 1-23).
PATTARO, Germano. A concepção cristã do tempo. In: RICOEUR, Paul (ed.). As
culturas e o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes, 1975, p.
197-228.
POMIAN, Kryzstof. Tempo/temporalidade. In: ROMANO, Ruggiero. (dir.) Enci-
clopédia Einaudi, vol. 29. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 12-91.
______. Ciclo. In: ROMANO, Ruggiero. (dir.) Enciclopédia Einaudi, vol. 29,

02 - Juliana Bastos Marques.indd 64 09/12/2008 16:36:11


Juliana Bastos Marques / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 43-65 65

Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 103-163.


PRESS, Gerald A. The development of the idea of History in Antiquity. Kingston/
Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1982.
STARN, Randolph. Meaning levels in the theme of historical decline. History and
theory. Vol. 14, n. 1, 1975, p. 1-31.
WHITHROW, Gerald J. Time in History. The evolution of our general awareness
of time and temporal perspective. Oxford: Oxford University Press, 1988.

Recebido: agosto/2007 - Aprovado: setembro/2008

02 - Juliana Bastos Marques.indd 65 09/12/2008 16:36:11

Você também pode gostar