Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Licenciatura em Filosofia
A indeterminação da essência
em O ente e a essência de São Tomás de Aquino
São Paulo
Junho/2018
2
A indeterminação da essência
em O ente e a essência de São Tomás de Aquino
São Paulo
Junho/2018
3
A indeterminação da essência
em O ente e a essência de São Tomás de Aquino
Banca examinadora:
Agradecimentos
Agradeço aos meus pais, familiares, amigos e colegas, que me acompanharam nessa
jornada e que tantas coisas me ensinaram.
Agradeço também à amiga Landy, que gentilmente leu a primeira versão deste
trabalho.
6
Resumo
Abstract
In the abstraction of the essence, the intellect separates the essential principles from
the individual principles, and according to what is “common to many”, gather individuals into
the same species and in the same genus. Then, through logical intentions, the individual can
be predicated essentially. In On Being and Essence, St. Thomas Aquinas points out that,
although predication through logical intentions determinates the essential principles, all
individual principles remain in essence, but indeterminately. According to the precision of the
definition, the indeterminacy can be more or less extensive. This paper aims to study how
predication occurs through logical intentions, taking the different meanings of essence,
distinguishing the element of indeterminacy in the logical intentions. Afterward, taking the
essence signified as a whole, it will achieve the problem of universals, in order to understand
how the indeterminacy is able to guarantee the adequacy of universal predication.
ST Suma Teológica
9
Sumário
Dedicatória ...................................................................................................................4
Agradecimentos ...........................................................................................................5
Resumo ........................................................................................................................6
Abstract ........................................................................................................................7
Sumário ........................................................................................................................9
Bibliografia ...............................................................................................................39
11
1. Introdução
O opúsculo O ente e a essência
O opúsculo O ente e a essência de São Tomás de Aquino foi escrito para seus irmãos
e companheiros em sua juventude, quando não era ainda Mestre-regente em exercício,
provavelmente entre 1252 e 1256.1 Nessa época, São Tomás de Aquino começava a exercer
seu magistério no Studium Generale dos Dominicanos, na Universidade de Paris, e era
discípulo de Alberto Magno.
1
Cf. TORRELL, J.-P., OP. Iniciação a Santo Tomás de Aquino – Sua pessoa e sua obra. Trad.:
Luiz Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 57.
2
FORMENT, E., “La síntesis Filosófico-Teológica de Santo Tomás” em AQUINO, T. El ente y la
esencia. Traducción, estudio preliminar y notas de Eudaldo Forment. 2. ed. Pamplona: EUNSA,
2006, p. 10.
3
Em 1210, deu-se a primeira proibição das obras de Aristóteles, no Sínodo da Província Eclesiástica
de Sens, nos seguintes termos: “E não se leiam [ou seja, não haja lectio, não se expliquem aos alunos]
os livros de Aristóteles de Filosofia natural, nem seus comentários [provavelmente árabes, de sabor
neoplatônico], nem em público [nas aulas], nem em segredo [privadamente], sob pena de incorrer em
12
Cabe destacar, contudo, que o próprio São Tomás enfrentou a doutrina de Avicena
no que diz respeito aos elementos opostos à fé cristã, mas não deixou de concordar com as
teses filosóficas compatíveis com seu sistema. A influência de Avicena sobre Tomás pode ser
notada pelo abundante número de citações no opúsculo, e abrangem teses como a doutrina dos
universais, a distinção real entre essência e ser e o princípio de individuação.
São Tomás dialoga com diferentes autores, não-cristãos e pagãos, porém, não por
uma “postura eclética”, como destaca Forment6, mas por seu compromisso com a verdade.
Isso é o que se nota quando toma argumentos e teses de diferentes pensadores, muitos deles já
citados, e examina-os à luz da razão. Não é outra sua intenção e método ao tomar as teses do
“Filósofo” – como chama Aristóteles –, gerando um aristotelismo que, nas palavras de Fraile,
excomunhão” (CUP, I, 11 apud SARANYANA, 2006, p. 291). Em 1215, essa proibição foi renovada
por Robert de Courçon no Legado Pontifício, na aprovação dos Estatutos da Universidade de Paris.
Em 1231, o Papa Gregório IX reafirmou a proibição, com ressalvas: “Não se empreguem em Paris [os
livros de Aristóteles], antes de serem examinados e expurgados de toda suspeita de erro” (CUP I, 79
apud ibidem, p. 292). Em 1245 e em 1263, os Papas Inocêncio IV e Urbano IV fizeram o mesmo.
4
Cf. FORMENT, 2006, p. 11. Para mais sobre as doutrinas de Avicena, Averróis e Avicebron, cf.
GILSON, E. A filosofia da Idade Média. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p. 466-510.
5
Cf. SARANYANA, J-I. A filosofia medieval. Das origens patrísticas à escolástica barroca. Trad.:
F. Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull),
2006, p. 229.
6
FORMENT, 2006, p. 11.
13
“não é puro, mas depurado”7. São Tomás contribui para a exposição de um aristotelismo
autêntico, e, ao mesmo tempo, sem conflitos com a Revelação, porque tem em vista o
conhecimento verdadeiro. Nas palavras de Gilson:
Aristóteles conhecia apenas uma teologia: a que faz parte da metafísica. São
Tomás, por sua vez, conhecia duas: a que faz parte da metafísica e a que a
transcende [...]. Portanto, era inevitável que, nesse ponto, como em tantos
outros, a teologia de São Tomás exercesse sobre seu aristotelismo uma
influência que alguns qualificariam de perturbadora, mas na qual devemos
ver, antes, a fonte do pensamento filosófico o mais pessoal e o mais
autenticamente criador.8
Talvez por isso a recepção das obras tomistas viesse tão acompanhada de críticas e
dissenso. Por um lado, conceituados mestres, como Alberto Magno, Siger de Brabante e
Roger Bacon, dialogavam e indicavam a doutrina tomista. Por outro, o estranhamento dirigido
à doutrina aristotélica arrastava consigo algumas teses (por vezes, mal compreendidas) do
Aquinate. É conhecida, por exemplo, a condenação de 7 de março de 1277, erigida por
Étienne Tempier. No entanto, os pontos criticados pouco se referiam diretamente a São
Tomás, e deviam-se principalmente ao afastamento do agostinianismo-neoplatonismo.
Parte da condenação foi anulada após a canonização de São Tomás, que se deu em
1323. Paulatinamente, os escritos do Doutor Angélico passaram a ser cada vez mais
estudados, e tomados como referência de filosofia cristã. Ao final do século XIX, sobretudo
após a encíclica Aeterni Patris de Leão XIII, em 1879, o prestígio pareceu atingir seu cume.
E, ainda hoje, descobrem-se tesouros nos escritos de São Tomás de Aquino, que muito
contribuem para o desenvolvimento da atividade filosófica.
7
FRAILE, G., OP. Historia de la Filosofia II, Madri: BAC, 1966, p. 642s, citado por MOURA, O.,
OSB. “Introdução” em AQUINO, O ente e a Essência – texto latino e português. Introdução,
tradução e notas de D. Odilão Moura, OSB. Rio de Janeiro: Presença, 1981, p. 20, nota 22.
8
GILSON, E. O ser e a essência. Vários tradutores. São Paulo: Paulus, 2016, p. 98.
14
A obra O ente e a essência veio a lume como um esforço para sistematizar e explanar
importantes teses metafísicas, muitas delas inspiradas no estagirita, mas elaboradas e
transmitidas com tal autenticidade por São Tomás, que, além de inserir-se em discussões
filosóficas então vigentes, entram definitivamente para a História da Filosofia como um
tratado de Metafísica.9
São Tomás abre o opúsculo com uma citação do livro I de De caelo et mundo,
afirmando que “um pequeno erro no princípio é grande no fim”, servindo de alerta para a
dimensão do estudo que será empreendido. O objeto desse estudo é anunciado logo a seguir,
em palavras de Avicena: “o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto”.
Manifesta que serão expostos “o que é significado pelo nome de essência e de ente, como se
encontra em diversos e como está para as intenções lógicas”, passando à significação da
essência, “de modo que, começando pelo mais fácil [a significação de ente], o aprendizado se
dê de maneira mais adequada”10.
9
Caetano (1468-1534), um de seus mais conhecidos intérpretes, considerou o opúsculo um resumo do
pensamento filosófico de São Tomás, e, em razão disso, elaborou seu Comentário a fim de auxiliar
seus alunos na Universidade de Pádua a compreenderem o sistema do Aquinate. Posteriormente,
encontramos diversos autores que se dedicaram ao estudo da obra e que reafirmaram sua importância.
Alguns dos mais conhecidos são Rafael Ripa, José Pecci, Boyer, Abelardo Lobato, Roland-Gosselin,
Baur e Perrier.
10
De ente, nn. 1-2. Neste trabalho, as citações e a numeração de O ente e a essência serão tiradas da
tradução de Carlos Arthur do Nascimento (Petrópolis: Vozes, 1995).
11
MOURA, 1981, p. 23.
15
dos nove acidentes. O ente como acidente será analisado ao final do opúsculo, mas não neste
trabalho.
É introduzida também nesse capítulo a noção de essência, que é relevante para esta
pesquisa e que será retomada diversas vezes: “é preciso que a essência signifique algo comum
a todas as naturezas, pelas quais os diversos entes são colocados em diversos gêneros e
espécies”12.
A substância pode ainda ser tomada de outro modo: como substância primeira ou
substância segunda. Substância primeira é aquela cuja essência é encontrada nos singulares,
individual e sem definição, e a substância segunda é aquela encontrada nas intenções lógicas,
apta a ser predicada de muitos e expressa na definição dos entes da mesma espécie.
A discussão a respeito das substâncias é para nós de grande interesse, porque traz
consigo algumas precisões terminológicas14, e abre campo para a abordagem do problema da
indeterminação.
O ente pode ser predicado segundo as intenções lógicas. As intenções lógicas gênero,
espécie e diferença específica significam a essência e expressam o todo do ente. Contudo,
para que isso seja possível, é preciso determinar o que é comum a vários singulares:
O que é comum a muitas coisas não é algo fora delas, a não ser por distinção
de razão, como, por exemplo, animal não é algo extrínseco a Sócrates, a
12
De ente, n. 4.
13
Ibid., n. 8.
14
Algumas delas serão enumeradas no Capítulo 2, a fim de esclarecer seu uso neste trabalho.
16
Para que uma mesma noção universal possa ser atribuída a muitos particulares, tendo
em conta que esses particulares diferem entre si por suas diferenças individuais, é preciso que
essa noção, em primeiro lugar, prescinda das diferenças particulares para expressar
determinadamente apenas o que é essencial, e que, em segundo lugar, possa conter,
indeterminadamente, todas as diferenças individuais que possam existir realmente naqueles
particulares.
15
CG I, XXVI, 4.
16
“[...] conhecer consistirá, pois, em desprender das coisas o universal que nelas está contido. Será
esse o papel da operação mais característica do intelecto humano, que designamos pelo nome de
abstração.” (GILSON, 1995, p. 668)
17
No Capítulo II, isso se dá sobretudo após a enunciação do princípio de individuação (n. 17), em que
afirma que “a designação do indivíduo a respeito da espécie é pela matéria determinada pelas
dimensões” (n. 18). A indeterminação da espécie com respeito ao gênero aparece a seguir: “é pela
diferença constitutiva, que é tomada da forma da coisa”; e ainda: “tudo o que está na espécie, está
também no gênero como não determinado” (n. 19). Outras ocorrências do problema, conforme
expostas pelo filósofo, serão apresentadas ao longo do trabalho.
17
não fosse tudo o que é homem [espécie], mas uma parte dele, não seria predicado dele, visto
que nenhuma parte integral se predica do seu todo”18. Assim, a definição se dá, em primeiro
lugar, e menos determinadamente, no gênero; acrescentada a diferença específica, tem-se a
espécie como definição mais determinada.
18
De ente, n. 19.
19
CG I, I, 1.
20
Cf. KOVAS, D. J. E. Comentário parágrafo por parágrafo de O ente e a essência de São Tomás
de Aquino, capítulos 1-3. São Paulo: Faculdade de São Bento, p. 44.
21
Todas as obras estão citadas nas notas anteriores, bem como nas referências bibliográficas. Cabe
ressaltar que as citações da obra de Eudaldo Forment são traduções livres de nossa autoria, e que o
texto original está publicado em espanhol. O mesmo é válido para as outras obras citadas, publicadas
originalmente em inglês ou em espanhol.
18
2. Noções introdutórias
Para dar início ao trabalho, cabe distinguir e explicitar alguns termos, como são aqui
empregados.
O ente (ens), objeto da Metafísica, é “aquilo que é” (id quod est). No Capítulo I, ao
referir-se ao ente, São Tomás faz notar duas acepções. A primeira é a do ente real, segundo os
dez gêneros22, no qual “não pode ser dito ente senão aquilo que põe algo na coisa”23. A
segunda acepção é a do ente de razão, que diz respeito à verdade das proposições, modo em
que as privações e negações são ditas entes. Esse ente não tem modo de ser real, e, por isso,
não será abordado com mais detalhes neste trabalho.
A essência (essentia) é o que faz com que uma coisa seja o que é: “por ela e nela o
ente tem ser”. Ela tem, portanto, uma dupla função: a de diferenciar o ser (“por ela”) e a de
sustentar o ser (“nela”). Na primeira, a essência determina o ser. “É preciso que a essência
signifique algo comum a todas as naturezas, pelas quais os diversos entes são colocados em
diversos gêneros e espécies”24 e, ainda, “a coisa não é inteligível senão pela sua definição e
sua essência”25. Na segunda, a essência é o sujeito ou “recipiente” do ato de ser.
A essência pode ser tomada como forma, mas no sentido de forma totius, como o
abstrato do concreto ou individual. Assim, expressa os princípios essenciais, sem incluir o que
não pertence à essência. Por outro lado, a forma partis, forma enquanto parte da essência das
substâncias compostas, determina a matéria, dando-lhe atualidade; é parte das essências, tanto
abstratas quanto concretas.
22
O conceito de ente não é ele mesmo um gênero, como são as categorias. Aponta Forment (2006, p.
69) que “o ente se divide em dez gêneros, não como um gênero em outros subgêneros, mas como um
conceito análogo se divide em seus analogados”.
23
De ente, n. 3.
24
Ibid., n. 4.
25
Ibid., n. 5.
19
essência concreta, por sua vez, inclui os princípios individuantes, não apenas os essenciais. “A
essência abstrata é um todo que se significa como parte.”26
O ser (esse) é o ato do ente. É o ato constitutivo e mais radical; aquilo pelo qual as
coisas são. O ato de ser atualiza a essência. É perfeição comum a todos os entes, e, neles, está
limitado pela essência.
A essência, que enquanto tal é ato, ato essencial, comporta-se com respeito
ao ser como potência ou capacidade sustentante. O ser, ato do ente, é a
atualidade de todos os atos essenciais. É o ato dos atos. [...] É a primeira
atualidade, o ato primeiro ou fundamental.27
Potência (potentia) é a capacidade de ter uma perfeição. Ato (actus) é a perfeição que
um sujeito possui. O ser é a “atualidade de todos os atos essenciais”, e é o que atualiza o ente.
A essência, com respeito ao ser, possui a capacidade de ser atualizada, constituindo assim o
ente.
As substâncias compostas são constituídas por forma e matéria, e por essência e ato
de ser. A forma substancial é princípio determinante da essência, é a que limita ou restringe o
ato de ser. A matéria é princípio passivo, pois é potência com relação à forma, que é ato. A
forma é princípio do ser do ente e tem prioridade sobre a matéria (é principium essendi). A
26
FORMENT, 2003, p. 71.
27
Ibid., p. 75.
28
CG I, 25 apud MOURA, 1981, p. 121.
20
matéria é pela forma, e não o contrário.29 A forma determina a matéria; o ser não determina a
forma, mas é determinado por ela. A forma determina o ser, limitando sua atualidade e, de
outra maneira, determina também a matéria, conferindo-lhe atualidade.
29
Cf. ALVIRA, T.; CLAVELL, L; MELENDO, T. Metafisica. 5. ed. Pamplona: EUNSA, 1993, p.
99.
30
Cf. FAITANIN, P. “Identificación del Principio de Individuación en Tomás de Aquino”, Aquinate,
n. 14, 2011, p. 3-19. Segundo este autor, ainda que São Tomás tenha formulado o princípio de
individuação de diferentes maneiras, é sempre o mesmo o que expressa.
31
ALVIRA et al, 1993, p. 102.
32
Ibid., p. 103.
33
De ente, n. 17. São Tomás usa “materia signata” e “materia designata”. Aqui, usaremos “matéria
assinalada” para ambas as ocorrências.
21
34
Cf. ALVIRA et al, 1993, p. 104.
35
FORMENT, 2006, p. 65.
36
Cf. idem. As intenções podem ser de primeira ou de segunda intenção. A primeira é resultado de um
ato intelectual direto, e a segunda, de uma reflexão intelectual. As segundas intenções são as chamadas
intenções lógicas.
37
CG, I, XXXII, 3.
38
“Nas substâncias compostas, a diferença existente entre essência genérica e essência específica
provém da assinalação (ou determinação) feita pela diferença específica; a diferença existente entre a
essência específica e a essência no indivíduo é feita pela assinalação da matéria pela quantidade.”
(MOURA, 1981, p. 129)
22
comum o gênero, e distinguirem-se pela diferença. Cabe notar que há uma maior
determinação na espécie, pois lhe é assinalada a diferença.
39
MOURA, 1981, p. 130.
40
“[...] se o predicado significa a própria essência, pode significá-la totalmente, e temos a espécie (in
quid complete); se a significa parcialmente, temos o gênero (in quid incomplete); ou pode significá-la
qualitativamente e temos a diferença (in quale quid).” (MOURA, 1981, p. 132)
23
É patente que a matéria por si só não seja a essência, pois ela mesma não é princípio
de conhecimento, e não é devido a ela que algo pode ser fixado em um gênero ou espécie.
Contudo, a forma sozinha também não é a essência da substância composta, pois a “definição
das substâncias naturais contém, não apenas a forma, mas também a matéria”42. Também não
se pode dizer que a essência signifique a relação entre matéria e forma, pois, assim, seria um
acidente.
Resta apenas que “o nome de essência nas substâncias compostas significa aquilo
que é composto de matéria e forma”43. Nas substâncias compostas, portanto, são princípios
constitutivos, essenciais, a matéria e a forma: não apenas uma, nem apenas outra, nem sua
41
MOURA, 1981, p. 131.
42
De ente, n. 12.
43
De ente, n. 15.
24
relação. A forma é ato na matéria, e a matéria, que é princípio potencial, é tornada ente, e o
ente, algo. A forma confere à matéria uma determinação conforme a espécie.
Para explicitá-lo, São Tomás toma o exemplo do termo “corpo”. O nome “corpo”
pode ser tomado em duas acepções: pode significar o gênero da substância, no qual são
44
Ibid., n. 17.
45
Ibid., n. 18.
46
Ibid., n. 19.
25
A primeira acepção do nome “corpo” pode significar algo que tem alguma forma da
qual três dimensões podem ser designadas. “Corpo” é aqui entendido como a parte material,
como matéria corpórea; a parte formal fica a cargo de perfeições ulteriores. Por isso, pode-se
dizer que o animal é constituído por alma (princípio formal) e corpo (princípio material).
O exemplo trata de elucidar que o todo que está na espécie está também no gênero
como não determinado. É preciso que o gênero contenha tudo o que há na espécie para que
possa ser predicado dela. Foi dito acima que a indeterminação da essência da espécie com
respeito ao gênero difere da indeterminação do indivíduo com respeito à espécie, ainda que
ambos se deem como o assinalado e o não-assinalado.
47
“A forma do animal está contida implicitamente na forma do corpo, na medida em que corpo é seu
gênero.” (De ente, n. 21)
48
FORMENT, 2006, p. 99-100, comentando CAPREOLO, J. Defensiones Theologiae Divi Thomae
Aquinatis, Ceslai Paban; Thomas Pègues, Turonibus, Alfred Cattier, Bibliopolaea Editoris, 1908-1909,
vol. I, p. 238b.
49
“A espécie ‘é’ a diferença, ainda que não totalmente, mas parcialmente.” (FORMENT, 2006, p. 99)
26
Ao passo que o primeiro exemplo lança luz sobre o gênero, o segundo se volta para a
diferença específica. De “animal” a “homem”, designa-se a diferença “racional”, que não é
determinada no gênero “animal”, mas nele implicada. A espécie “homem” é um composto de
“animal” e “racional”, e tanto o primeiro quanto o segundo podem ser predicados do todo.50
A diferença específica, por sua vez, determina a forma da coisa, sem determinar a
matéria. A definição ou espécie compreende ambos, isto é, tanto a matéria determinada pelo
gênero, quanto a forma determinada pela diferença.
50
Esse composto é diferente do significado por “O homem é corpo e alma”, como faz notar São
Tomás em De ente, n. 24. “Corpo” e “alma” são constitutivos intrínsecos do composto real “homem”,
e, portanto, partes reais que não podem ser predicadas do todo.
51
De ente, n. 23.
52
KOVAS, 2006, p. 35.
27
O gênero não é matéria, mas é tomado dela como significando o todo; a diferença
específica não é a forma, mas é tomada dela como significando o todo; a espécie expressa o
todo mais determinadamente do que as outras intenções lógicas, e contém em si as diferenças
individuais, indeterminadamente.
53
Sobretudo se pensamos nas substâncias puramente espirituais, nas quais o gênero não poderia
corresponder à matéria.
54
Cf. FABRO, Cornelio. Introduccion al tomismo. Trad.: María Francisca de Castro Gil. Madri:
Rialp, 1967, p. 61. Tradução livre do espanhol para o português de nossa autoria.
55
A unidade do gênero não é como a unidade da matéria-prima. A unidade da matéria-prima se dá
pela exclusão de toda e qualquer forma. Por isso se diz que a matéria-prima é “pura potência”. A
unidade do gênero, como foi dito, não se dá pela exclusão das formas, mas por sua indeterminação.
28
Não se diz que “Sócrates” tenha definição, porque a essência do indivíduo só pode
ser inteligida como espécie, ainda que se possa reconhecer sua individualidade. O indivíduo
pode ser, porém, universalmente conhecido por sua espécie. A matéria, portanto, “é o suporte
a partir do qual o intelecto humano apreende o princípio formal, por um processo ativo sobre
as notas sensoriais apreendidas do ente em sua materialidade”58.
56
De ente, n. 26.
57
KOVAS, 2006, p. 27.
58
Idem.
59
“Humanitas enim significat id unde homo est homo” (n. 26).
29
A quididade é “uma forma que é um todo”. Abarca matéria e forma, mas exclui
aquilo que na matéria seria assinalado. Quididade e matéria assinalada são dois constitutivos
de um composto, e, portanto, partes do todo. Ela mesma expressa um todo, isto é, contém por
completo os princípios essenciais, mas, por não abarcar os princípios individuantes (a matéria
assinalada), significa a essência a modo de parte.
***
60
De ente, n. 29.
61
Ibid., n. 31.
30
No Capítulo III, São Tomás fica com a essência a modo de todo, porque “é
impossível que a noção de universal, isto é, de gênero ou de espécie, caiba à essência na
medida em que é significada a modo de parte”62. A essência abstrata, considerada como parte,
não pode ser predicada do indivíduo, nem pode ser expressa como gênero ou espécie, ou ser
determinada por uma diferença específica. Logo, é posta de lado na discussão que se segue.
São Tomás rejeita a visão platônica, segundo a qual a noção de espécie cabe à
essência como algo existente fora dos singulares. Na concepção platônica, a “ideia”, ou
“eidos” é constituinte do ente e causa de seu ser. “É como se as coisas do mundo sob o
mesmo predicado universal gozassem todas de uma semelhança comum com um ente
existente por si e exterior a elas, uma espécie de modelo comum”.63 Assim, gênero e espécie
não poderiam ser predicados do indivíduo, porque sua essência seria algo separado.
A essência, porém, não pode existir como algo extrínseco aos concretos singulares.
Uma essência que existisse fora dos indivíduos existiria por si só, e de modo determinado.
Ora, foi dito que a predicação pelos predicáveis se utiliza da indeterminação, que permite que
muitos sejam predicados pelo mesmo nome, ainda que possuam diferenças individuais. É o
que afirma Kovas:
Os predicáveis só podem convir à essência significada como todo, porque ela contém
implícita e indeterminadamente tudo o que há no indivíduo, e expressa, determinadamente, o
que constituem as notas essenciais.
62
De ente, n. 31.
63
KOVAS, 2006, p. 43.
64
Ibid., p. 44.
32
Essa totalidade a que nos referimos pode ser tomada de dois modos. O primeiro é o
modo absoluto, segundo sua noção própria ou em si mesma. O segundo modo é o relativo,
segundo o ser que tem nos indivíduos.
Além disso, nesse modo, não cabe perguntar-se se a essência nesse modo é una ou
múltipla, porque nem a unidade nem a multiplicidade são intrínsecas à essência enquanto tal.
Se fosse una, a natureza de dois indivíduos seria a mesma, e não poderia plurificar-se em
vários. Se fosse múltipla, não poderia individualizar-se em um indivíduo. Elas é em muitos,
mas não é una nem múltipla.
A essência absolutamente considerada também não guarda relação com o ser, porque
este não está incluído na essência.
65
De ente, n. 33.
66
Ibid., n. 24.
67
“Pois, aquilo em razão do que Sócrates é homem pode ser comunicado a muitos; mas aquilo em
razão do que ele é este homem não pode ser comunicado a não ser a um. Logo, se Sócrates fosse
homem em razão daquilo que faz dele este homem, assim como não pode haver vários Sócrates, não
poderia haver vários homens.” (ST 1, q. 11, a. 3)
68
De ente, n. 36.
33
Por isso, não se pergunta se essa essência existe ou não. Não se afirma nem se nega o
ser, mas se prescinde dele. Não se pode dizer, por exemplo, que a essência de homem,
enquanto tal, tenha ser neste ou naquele singular.
O ser da essência assim considerada pode dar-se nos singulares ou na alma daquele
que conhece: “o homem, não na medida em que é homem, obtém o ser neste singular ou
naquele, ou na alma”69. Haverá, assim, dois tipos de acidentes advindos da essência: os
adquiridos por estar na realidade objetiva e os que se obtém por estar no intelecto. Assim, a
depender do ser (objetivo ou pensado), essa essência pode ser real ou pensada, isto é, ter ser
na coisa ou na mente. Nos singulares, a essência tem tantos tipos de ser (“um ser múltiplo”)
quantos são os indivíduos.
69
De ente, n. 36.
34
A essência que cabe à noção de universal só pode ser, portanto, a que está na alma,
abstraída da essência individualizada, que se encontra nas coisas:
Essa natureza inteligida é “semelhança una de todas” [as coisas fora da alma], isto é,
o intelecto estabelece uma comparação entre a natureza presente no intelecto e os singulares
considerados em sua individualidade. A isso dá-se o nome de intenção predicativa. O
universal apto a ser predicado do singular depende tanto da indeterminação das diferenças
individuais implícitas nele, quanto da semelhança, verificada por essa comparação do
intelecto, da semelhança daquilo que foi inteligido à coisa, que é particular.
70
De ente, n. 39.
71
ST I, 86, 1 apud MOURA, 1981, p. 128.
72
Cf. FORMENT, 2006, p. 110.
35
quais foi abstraída, o que permite conhecê-los naquilo que têm de essencial. Essa essência é,
portanto, a que convém às intenções lógicas.
Como foi dito, cabe à natureza humana, considerada absolutamente, ser predicada de
Sócrates. A noção de espécie, porém, não pode ser predicada de Sócrates. Pode-se dizer:
“Sócrates [indivíduo] é homem”, pois tudo o que cabe ao homem enquanto homem pode ser
predicado de Sócrates. Se a essência considerada absolutamente correspondesse às intenções
lógicas, deveria ser possível predicá-las dos indivíduos, pois tudo o que se predica da essência
absoluta se predica do indivíduo. Por isso, não se pode dizer “Sócrates [indivíduo] é espécie”.
73
De ente, n. 40.
74
É no intelecto que se estabelece a adequação à coisa. Essa adequação é uma adequação real; logo,
pode se dar por outros intelectos, referindo-se às mesmas coisas. É o ser das coisas, e não o intelecto,
que causa a verdade no intelecto. Por outro lado, a razão da verdade não se encontra nas coisas, mas
no intelecto. O intelecto conhece sua conformidade com a coisa inteligível. Diz São Tomás que “não é
pelo fato de conhecer a essência da coisa que ele [o intelecto] apreende essa conformidade, mas
quando julga que a coisa assim é, como é a forma que dela apreendeu; é então que começa a conhecer
e a dizer o verdadeiro. E isto faz compondo e dividindo, pois, em qualquer proposição, a forma
significada pelo predicado, ou é afirmada da coisa significada pelo sujeito, ou então é dela negada.”
(ST I, q. 16, a. 2).
36
algo que se completa pela ação do intelecto que compõe e divide, tendo fundamento na
própria coisa, a unidade daqueles dos quais um é dito do outro.”75
75
De ente, n. 42.
37
Considerações finais
Bibliografia
Bibliografia citada
______________. Suma contra os gentios. Trad. D. Odilão Moura e Ludgero Jaspers. Porto
Alegre: Livraria Sulina Editora, 1990.
FABRO, Cornelio. Introduccion al tomismo. Trad.: María Francisca de Castro Gil. Madri:
Rialp, 1967, p. 61.
GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
______________. El espíritu de la Filosofía Medieval. Trad.: s/n. 2. ed. Madri: Rialp, 2004.
TORREL, Jean-Pierre, OP. Iniciação a Santo Tomás de Aquino - Sua pessoa e sua obra.
Trad.: Luiz Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004.
Bibliografia consultada
KLIMA, Gyula. “The semantic principles underlying Saint Thomas Aquinas’s Metaphysics of
Being”. Medieval Philosophy and Theology, Nova Iorque, n. 5, 1996, p. 87-141.
KOVAS, D. João Evangelista. O De Ente et Essentia de São Tomás de Aquino (§§ 1-19):
uma comparação com o livro Z da Metafísica de Aristóteles. 2011. 203 f. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) – Faculdade de São Bento, São Paulo, 2011.
PIEPER, Josef. Introducción a Tomás de Aquino. Doce lecciones. Trad.: Ramón Cercós.
Madri: Rialp, 2005.