CURRÍCULO
1
Revisão
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)
Tiragem
E-book (PDF)
Ficha Catalográfica
TÍTULO
ISBN
Impresso no Brasil
1a Edição - outubro | 2020
ISBN:
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
3
CURRÍCULO
E ESTÉTICA
1 a E D I Ç ÃO | 2 0 2 0
V i tó r i a - ES
Sumário 2 Currículo da
cidade e o direito
de aparecer:
PREFÁCIO 9 aliançar que faz
diferença
OS SIGNOS ACERCAM-SE
Glaucia Carneiro
Antonio Carlos Rodrigues
de Amorim (FE/UNICAMP) (UFMG) e Marlucy
Alves Paraíso
APRESENTAÇÃO 15 (UFMG) 49
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Janete Magalhães Carvalho (PPGE/UFES),
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES) e Tânia Mara
Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)
4
TÍTULO
3 Transcriação de signos:
infantil, aula, docência
Janete Magalhães
Carvalho (UFES/CNPq),
Steferson Zanoni Roseiro
Sandra Mara Corazza
(UFES) e Suzany Goulart
(UFRGS/CNPq) e Silas
Lourenço (UVV) 89
Borges Monteiro (UFMT) 69
5 9
DE EDUCAR
Graziele Corrêa
| CURRÍCULO
O cinema abrindo alas para os Amorim (UFV) e
devires passarem Eduardo Simonini
DA ARTE
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFV)
SUMÁRIO
(UFES), Nathan Moretto Guzzo 211
CURRÍCULO E ESTÉTICA
Fernandes (UFES) e Sandra
Kretli da Silva (UFES) 169
6
e Rita de Cássia Prazeres Frangella (UERJ) 193
Signos artísticos
10
e aprendizagens
involuntárias “Mamãe, vamos nos esconder?”:
Carlos Eduardo as artes crianceiras em tempos de
Ferraço (UFES/ monstruosidades necropolíticas
CNPq) e Marco Luciane Tavares dos Santos (UFF)
Antonio Oliva e Marcio Caetano (UFPel) 231
Gomes (UFES) 137
13 Força, forma e pintura: movimentos na formação continuada de
professores a distância
Jaqueline Magalhães Brum (UFES) e Nilcea Elias Rodrigues (UFES) 291
11 Vestido, quimono e
peruca, produções 14 Quando as imagens
vão à guerra: currículo,
narrativas e mosquitos, bactérias,
imagéticas de vírus, ciências,
si: rostidade e tecnologias…
professoras em devir Thiago Ranniery (UFRJ) e
Maria da Conceição Júlia Pompeu (UFRJ) 319
Silva Soares (UERJ) e
Simone Gomes da
Costa (UERJ) 257
6
TÍTULO
15 As imagens-cinema como
SUMÁRIO | CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
máquinas de guerra do
pensamento: currículos e
12 (Des)caminhos: as imagens-
cartazes potencializando
docências e...
Camilla Borini Vazzoler
Gonçalves (UFES), Eliana
a vida coletiva com as
aprendências insurgentes na Aparecida de Jesus Reis
diferença (SEME/SERRA) e Tânia
Juliana Paoliello (UFES), Mara Zanotti Guerra
Priscila dos Santos Moreira Frizzera Delboni (UFES) 339
(IFES) e Alba Jane Santos
Lima (IFES/UNIRIO) 273
17 Pensando com a 20 Materiais artístico-
DE EDUCAR
| CURRÍCULO
19
Barbosa de Oliveira
Signos artísticos e conhecimento: (UNESA/UERJ) e
DA ARTE
um ensaio contra-epistemológico Marina Santos Nunes
SUMÁRIO
Patrick Stefenoni Kuster (UFES) 435 de Campos (URFJ) 453
CURRÍCULO E ESTÉTICA
7
16 Oficinas artísticas
18
na periferia: práticas
educativas para O que pode a escola?
aprender e afetar o Atravessamentos do cinema
corpo coletivo nos/dos processos de
Lysia da Silva insurreições e resistências
Almeida (IFES), nos cotidianos escolares
Davis Moreira Alvim Terezinha Maria Schuchter
(IFES) e Izabel Rizzi (UFES), Fabio Luiz Alves de
Mação (UFES) Amorim (Faculdade Estácio
365
de Sá) e Jaconias Dias
Rodrigues (UFES) 409
8
TÍTULO
PREFÁCIO
OS SIGNOS
ACERCAM-SE
Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
PREFÁCIO
Faculdade de Educação, Unicamp
9
Dizer de uma vida qualquer, como é a que os currículos (com)
portam e liberam, é arrastar, simultaneamente, seu esgotamen-
to para fora das lógicas do possível e reivindicar o acesso da
areia do deserto ao liso espaço do mar que ondula. Não sei se
pelo serpentear dos trilhos de trem que recortam as montanhas
e acabam por instaurar na vida que ali é vivida à espera pelo
acontecimento que, de tão lento, não chega ou que, de tão sur-
preso, passa-nos despercebido.
Os cortes da linha de trem em montanhas fazem delas frações de deslocamento
e criam o novo das cicatrizes na vida da qual se exige ressurgir sob o ferro, a
pressão e o atrito das faíscas, pequenas e invisíveis ruínas da resistência – da
pedaços de carvão.
Nesta época do ano, em que o vento inicia sua jornada em busca de uma umi-
dade perdida do tempo e que o céu vai ao encontro de um azul pa[li]decido, a
Desse modo, vagueante, vem chegando uma questão à superfície, que se es-
tende para dois campos de estudo de meu interesse – imagem e currículo – e
assim ela se pronuncia: seria mesmo de uma realidade capturável e unívoca que
eles falariam? Currículo e imagem ganham intensidades diferenciais à medida
que não têm mais a função de referir-se apenas à palavra ou ao conhecimento.
Portanto, a subjetivação que a imagem faz ao currículo indica-lhe, em termos
Para Deleuze, a imagem não é objeto, mas sim processo; isso exige a percepção
das realidades e sua apre(he)ndizagem marcadas pela passagem de uma cultura
-
bram cada seção de uma vida segmentar, larva que contém a asa da borboleta, e
que também abre a pele e a ferida por gosto exatamente da carne que putrefaria?
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Referência
APRESENTAÇÃO
CURRÍCULO E
APRESENTAÇÃO
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Organizadoras
15
15
signos que insiste virtualmente em seus livros e artigos. Pode-se dizer mesmo
que as diferentes problemáticas às quais se dedica Deleuze se enriquecem quan-
17
o mais aberto nem o mais importante. Além disso, nessa teoria o pensamento
deixa de ser um ato de boa vontade de uma consciência soberana, como ocorre
nas imagens tradicionais do pensamento, pois, para Deleuze, pensar implica
uma violência, ou seja, é uma atividade disparada involuntariamente pela força
Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
18 artísticos, fazem-nos ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
APRESENTAÇÃO
-
des de vida.
— —Quem é você?
—
— —
— 19
A própria Alice explicou:
—
Desse modo, objetiva este livro a abertura dos intermundos que habitam nossas
infâncias e nossas pesquisas. É composto não somente de textos escritos por
-
sultados de pesquisas e ensaios muito plurais em duplo sentido: a) pelos signos
Assim esperamos que vicejem outras ideias, outras parcerias, outros afetos e
afecções que, atravessando estas páginas, potencializem novas discussões, pro-
blematizações e que, incansavelmente, sempre comecemos tudo de novo na
diferença da repetição.
O livro, antes que jorrem novas ideias e comece tudo de novo, apresenta vinte
20
capítulos.
APRESENTAÇÃO
-
rias-forças, dentre as quais destaca: o aliançar e o hesitar.
-
Por docências
não dogmáticas e existências não mínimas nos cotidianos escolares, opera com
a noção de uma docência não dogmática que reconhece a pluralidade dos in-
termundos. Utiliza pinturas feitas pelos alunos, atreladas a trechos das conversas
estabelecidas entre eles, concluindo pela necessária instauração de gestos e/ou
modos de criação em frente à lógica de controle e redução da vida infantil das
ê -
Narrativa, cinema e realidade: a ousadia de pensar-es-
tranhar outros mundos, toma como base um documentário sobre Manoel de
Barros em sua perspectiva de realidade inventada, no movimento de construir
outros arranjos de sentido-sensações. Conclui que, no estranhamento de certe-
zas, as imagens-narrativas fílmicas podem fazer com que sejamos convidados e/
ou obrigados à (re)invenção de um mundo.
O décimo terceiro capítulo, escrito por Jaqueline Magalhães Brum (Ufes) e Nil-
cea Elias Rodrigues (Ufes), denominado Força, forma e pintura: movimentos na
formação continuada de professores a distância, problematiza como a força
micropolítica produzida nas relações de afetos e afecções em um curso EAD em
Matemática pode afetar a forma macropolítica, utilizando elementos da pintura
25
(forças, elementos relacionais e formas) para análise dos enunciados discursivos
dos cursistas sobre o curso a distância.
-
26
vis Moreira Alvim (Ifes) e Izabel Rizzi Mação (Ufes), em
APRESENTAÇÃO
-
liê de Ideias – ponto de cultura e espaço de produção e divulgação de projetos
de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários e eventos
culturais. Os autores abordam, em especial, o encontro elaborado a partir de
material disponibilizado pelo Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca de São
O décimo sétimo capítulo, Pensando com a presença: currículos como perfor-
Signos artísticos
e conhecimento: um ensaio contra-epistemológico, objetiva explorar as possíveis
relações entre os signos artísticos e a atividade do conhecer inerente a uma pesquisa.
No alcance dessa análise, na relação entre experiência sensível e produção de conhe-
cimento, assumindo seu caráter inventivo, acena para o estatuto necessariamente clíni-
co-ético-estético-político na produção de conhecimento. Na perspectiva da produção,
um conhecimento insurgente a toda forma de exploração da vida aponta a força de se
pesquisar por meio dos signos artísticos.
Boa leitura!
Referências
Proust e os signos -
-
29
As existências mínimas
30
1.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
31
A FERRAMENTA
E O OBJETO DO
TEATRO NUMA IDEIA
DE APRENDIZADO
Renato Mendes
Sílvio Gallo
1
Sílvio Gallo2
1 Sempre à mão
Ao longo de diversas experiências educativas que emergiram em diferentes mo-
mentos da história, o caráter lúdico e pedagógico das artes, a experiência do
fazer bem como a fruição estética por parte dos aprendizes, foi um aliado valo-
32 roso dos mais variados projetos de aprendizagem. Se tomamos como exemplo
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
primeiros anos do século XX, o projeto de uma educação integral era marcado
pela afetividade, evidenciando a importância estética no aprender, como pode-
mos ver no seguinte trecho:
1
Instituto de Artes da Unesp.
na experimentação. O racionalismo de Ferrer, no entanto, dava extrema importância ao afetivo nos processos de aprendizagem.
-
der em seu livro : ainda que o aprender seja uma expe-
riência no pensamento, ele é totalmente marcado pelo afetivo e pelo estético,
visto que somos levados a aprender – e a pensar – pelo encontro com signos
33
como até em determinados momentos em que a instituição escolar não estava
disponível – ou exercia uma função contrária à formação subjetiva emancipado-
ra dos sujeitos – ela foi usada como recurso para a construção de imagens e lin-
guagens que provoquem movimento tanto pessoal quanto, e sobretudo, social. O
-
tra a manutenção de um corpo cotidiano, e possibilita estremecer subjetividades.
Num exemplo pontual não muito distante de nós, embora muito bem ocultado
-
-
xão crítica acerca de questões sociais. Foi o caso das vilas operárias, organizadas
e engajadas por anarquistas que compunham a linha de frente dos primeiros
anos da luta proletária no Brasil, no então nascente século XX. Uma das poucas
pesquisadoras a se desdobrar sobre o tema, num trabalho verdadeiramente ar-
queológico em busca do que era mantido ocultado nesse capítulo história, Ma-
Pois não apenas o caráter informativo e de difusão de ideias era próprio dessa
expressão popular, mas nela, e a partir dela, intentava-se fomentar a produção
de saberes pela estética, e uma formação sensível de quem a praticava. Atores
e atrizes, criadores no palco – ou nos mais variados espaços improvisados que
de palco lhes serviam – operários e operárias ensaiavam serem sujeitos ato-
res ativos, não alienados das relações cotidianas fora do espaço da represen-
tação.
luso brasileiro que conviveu e biografou grande parte do movimento operário
-
mente a popularidade dos teatros formativos, e a consciência de seus partíci-
pes de que era nesse teatro, feito amadoramente pelos próprios operários, que
essa camada da população tinha sua experiência pedagógica: “Toda região,
35
(PETTINATI, apud
ideais sócio-políticos ácratas ou o ofício cenológico eram apreendidos nessas
representações. Era por meio do aspecto lúdico do Teatro Social que anarquistas
e demais trabalhadores e trabalhadoras estudavam de maneira livre sua própria
formação ética e também os demais temas do conhecimento humano, como
nos lembra Rodrigues: “É lícito dizer que um dos grandes méritos do movimento
anarquista foi o Teatro Social, ativo em todos os campos do conhecimento, da
ciência, da cultura, da solidariedade humana e ideológica, a níveis nacional e
É evidente que os anarquistas exerciam essa ação com o teatro, em seu caráter
didático, de maneira própria, particular, de maneira instrumental aos seus obje-
tivos enquanto projeto de sujeito e projeto de mundo – ideias que perpassam e
princípio, não estava reservado a eles, era sua forma de emancipar-se da condição de exploração e de dominação, exercitando as
atividades estéticas.
constituem a educação. Porém o exemplo a que acima recorremos, ainda que
com certo vanguardismo, não é algo novo ou sequer único na história.
36
Não buscamos aqui apropriar e atribuir o arcabouço brechtiano ao bojo do Tea-
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
lembrará que todo grande artista tem seu espaço e sua relevância determinados
por si, sendo comparações entre eles de caráter apenas analítico. Numa impor-
tante, embora pouco estudada, obra de análise de diversos textos teatrais de seu
-
lisemos então a possibilidade de aprendizado por meio lúdico teatral, exami-
nando tal proposta de devir brechtiano.
37
2 Percepção afetiva do mundo: aprender teatro /
aprender com teatro
O teatro, assim como a educação, e sobretudo o teatro na educação tem a ca-
pacidade de apurar uma percepção afetiva do mundo por parte dos sujeitos.
A construção e interpretação cognitiva e também física corporal de imagens
interpretativas e representativas adentra um entendimento que extrapola o pen-
40
De maneira mais polida, mas não menos crítica,
Brecht enfatizará que o ensino costuma se dar de modo enfadonho, e propõe o
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
7
pois quem confessa ter de aprender coloca-se, simultaneamente, num
plano inferior, considerando-se alguém que sabe pouco. (...) O gosto
pela instrução depende então de muitos e variados fatores. Mas, não
obstante, há uma forma de instrução que causa prazer, que é alegre e
41
Contudo, entender que arte e ciência são saberes complementares, e que são
mutuamente permeadas uma pela outra, exige não desconsiderar que a ciência
possui sua própria estética, suas próprias imagens e seus próprios sons, consti-
tuindo sua forma de se apresentar e ser lida. De maneira recíproca, há arte na
8 Em tradução livre: “Não necessariamente porque seu objetivo é fazer proselitismo, mas porque ele pode se expressar melhor
percepção verdadeira retrata os erros sociais com seriedade e ousadia , pode ser uma ameaça maior ao nosso tecido social e uma
O que a arte teatral tem a oferecer no ensino da ciência é, sobretudo, o trei-
namento do olhar do sujeito para que seja capaz de traduzir essa estética do
-
são, temos que entender que só através da contracomunicação, da
contracultura-de-massas, do contradogmatismo; só a favor do diálo-
go, da criatividade e da liberdade de produção e transmissão da arte,
do pleno e livre exercício das duas formas humanas de pensar, só as-
sim será possível a liberação consciente e solidária dos oprimidos e a
criação de uma sociedade democrática – no seu sentido etimológico,
pois, historicamente, a democracia jamais existiu. Dela, pedaços sim.
42
Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser
usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passi-
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
-
do-se didáticas ou não, propõe apenas a difusão de um determinado discurso
político, deformando os aprendizes a meros reprodutores de conteúdo. De todo,
não é o que pensamos junto ao material referido: “O verdadeiro propósito do
teatro épico era, mais do que moralizar, analisar. Assim, primeiro, analisava-se a
É, pois, o teatro uma útil ferramenta para o ensino, e uma arte que se alimenta e
contribui para as demais ciências, não se encerrando em si. Porém não devemos
presumir que só haja sentido na arte teatral quando dela se extrai algo de útil.
A estética, apropriada e na contramão do entendimento estéril de mundo que
as imagens prontas nos oferecem, mesmo sem perder sua essência combativa,
mundo mais nitidamente, deve-se atentar também para a forma, imagem e até
som da própria lente, reconhecendo-a como beleza em si. A lente é forma antes
mesmo de ser lente. Sem o direito de também não ser didático, o teatro nada
teria a ensinar.
9
-
nalmente não para uma determinada estética, uma forma ou uma função, mas
sim para a perspectiva do múltiplo que dele se abstrai e expande. “Tornando a
crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever
se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possi-
-
mação constante, repleta de aprendizagem que é crítica ao longo que consegue
divertir, e que é divertida, produzindo formas e linguagens a partir dessa diver-
são, como: “o teatro leva o seu espectador a uma atitude fecunda, para além do
simples ato de olhar (...) o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio
da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que
45
viver que formam ao sujeito artista de maneira autogerida sobre si. Isso ciente de
que essa auto formação, mesmo sobre si, se dá sempre em relação.
Assim como não há teatro solitário, uma proposta pedagógica que se pensa a
partir da teatralidade necessita do encontro com o outro. A despeito de ensaios,
que preparam a estética e a formação para o momento em que se dão, mesmo
em monólogo, o teatro se dá no mínimo do encontro entre este que atua e ao
menos uma pessoa que lhe expecta. Trata-se de uma arte que ocorre no espa-
ço invisível que há entre duas ou mais pessoas durante o momento em que se
relacionam, tornando-o visível, palpável, palatável e criticável. Revela-se assim
o invisível unindo olhares. “É que a unidade social mínima não é o homem, e
Uma educação que se pense a partir da relação artística que chamamos teatro
habita, portanto, o convívio sensível. É atenta à estética que emerge da contradi-
ção. Estetiza de maneira ativa o mundo que se produz com o olhar e, sobretudo,
5 A potência menor do teatro... e do aprender
Um manifesto de menos, dedicado
à obra teatral de Carmelo Bene, relevando o caráter minoritário da arte e do tea-
não podia mais interpretar nada; não havia mais obscuridades que
-
ção das fórmulas, há a mais modesta apreciação do que poderia ser
um teatro revolucionário, uma simples potencialidade amorosa, um
Reencontramos assim com Deleuze, mas também trilhando uma outra direção,
aquilo que ao longo deste texto perseguimos com Brecht e com Boal e na com-
panhia dos anarquistas: um teatro político, que em sua própria ação é formativo,
produz educação, mobilizando as sensibilidades. Aqui o processo político de
conscientização perde sua carga de buscar uma maioridade, uma emancipação
que se produz ao se sair de uma condição de menoridade, de inferioridade, que
implica em ser dominado, oprimido. Conscientização, aqui, é entrar em um
. Rio de
Vigiar e Punir
Ditos e Escritos V – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Ja-
48
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
. South Carolina:
João Roberto.
CURRÍCULO DA CIDADE
E O DIREITO DE
APARECER: ALIANÇAR
49
2.
Glaucia Carneiro1
Marlucy Alves Paraíso2
50
TÍTULO
3 Caderno de Achados e Inventados é o nome dado ao caderno de campo onde foram realizados registros das feitas
com a transartivista
O direito à cidade é considerado, atualmente, parte dos direitos humanos a
serem garantidos pela sociedade civil. Se, por um lado, as metrópoles são espa-
ços violentos, segregadores, excludentes, depredados e que não oferecem con-
dições de vida igualitária para seus habitantes, principalmente, corporalidades
consideradas desviantes, por outro lado, ao desmontar a linguagem da gramá-
tica normalizadora, os artivismos produzem desterritorializações que inventam
saídas para a indiferença, a estagnação e o fechamento dos corpos na cidade.
6
matérias-força diferentes componentes, dos quais destacaremos, neste trabalho,
o aliançar e Argumentamos que, ao reivindicar o direito de corpos
ilegíveis, como as corporalidades trans, aparecerem, circularem e vivenciarem
as ruas, os artivismos criam uma aliança intensiva, fazendo deste aliançar um
componente relevante do currículo das errâncias cartografado. Para desenvolver
tal argumento, dividimos este capítulo em três partes. Na primeira, apresenta-
Saia para rua depois de acenar, como faz todos os dias, para o por-
teiro. Escolha o caminho da esquerda [nunca vire para a direita!] e
não se intimide se o vento congelante, que vem do noroeste da ave-
nida ameaçar paralisar seu corpo. Esfregue as mãos, aqueça o rosto e,
com os olhos levemente cerrados, se incline para vencer a resistência
-
pere os carros passarem. Cruze os braços e proteja o peito, enquanto
imagina de onde vem tanto frio, já que nas últimas décadas, em Belo
-
mente as mãos no rosto buscando alívio. Reinicie a caminhada e,
deparamos com Ed Marte pelas ruas da cidade, o encontro com Jota Mombaça
provocou um bloco de sensações. Não porque tal artista se autodenominava er-
rática, e, estávamos a busca de práticas errantes para dar mais vida a um currícu-
lo. Não se tratava da subjetividade de Jota Mombaça, mas, das forças produzidas
pelo encontro com os signos artivistas experimentados.
Jota Mombaça recusa qualquer tipo de normatividade onde parece não haver lu-
55
político de convidar um homem cis eurobranco a calar-se para pensar melhor
antes de falar, introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vi-
cis não possam falar de transfobia! O que Jota Mombaça chama atenção é, sobre
o modo como uma uma “matriz de produção de subjetividade sanciona a igno-
rância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza
cis
8
2 “Não mexe comigo que eu não ando só”:
currículo e corpos em aliança pelo direito
de aparecer nas ruas
Durante todo o tempo em que Butler esteve em São Paulo, ela foi escoltada por
seguranças, já que, ela, foi citada nominalmente, em uma petição pública que
teoria
e nos direitos das minorias sexuais e de gênero. Ocorre que, atualmente,
-
cárias de modo mais abrangente.
Entender como a precariedade se liga aos processos de reconhecimento das nor-
-
-
gêneras, com habilidades diferenciadas, corporeidades apátridas, corpos ,
mas também minorias raciais e religiosas é a precariedade. Não se trata, obvia-
mente de uma identidade, mas, de um marcador que atravessa as fronteiras das
10
O ato de aparecer e ocupar as ruas das cidades não constitui apenas uma
instância de expressão, de reivindicação de certas pautas políticas, mas, da pro-
seu direito de aparecer. Ao fazerem isso, estão expandindo o campo visual e po-
-
ternizadas, torna-se, assim, um marcador transversal de um agir em conjunto.
-
dado ao racional. As performances dos artivismo trans fazem, por sua vez, ver o
não visto e o não enunciável em relação aos gêneros e à sexualidade que apa-
rece nas ruas das cidades. Tal uso dialógico, disjuntivo e heterogêneo é extraído
dos encontros e atritos que ocorrem entre os corpos passantes com as perfor-
mances artivistas de gênero e sexualidade. O que pode um corpo que não se
performance de Ed Marte, ocorrida em um domingo no Parque Municipal de
diferentes do seu de que a diferença é uma coisa boa, que é certo ser diferente
ou o certo é ser diferente.
ser uma pessoa não binária e nem tenta convencer ninguém de que ser assim é
algo bom. A presença da artivista naquele espaço também não tem a intenção
60
têm os mesmos direitos que os
corpos héteros e cis gêneros. Contudo, ao colocar o seu corpo desobediente
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
na rua, a artivista já está performando esse direito pelo simples fato de existir,
como qualquer outra pessoa ali. As performances de Ed Marte são, portanto,
minimalistas, sutis, delicadas, a voz e os gestos da artista são suaves, amorosos,
seu corpo exala um delicado cheiro de incenso, por se tratar também de uma
instrutora de kundalini yoga. Apesar da barba e do corpo peludo remeterem a
certa imagem-clichê de que corpos assim têm que performar uma postura viril,
masculina, máscula, Ed Marte é bastante suave. Todas essas emissões de signos
discrepantes produzem uma atmosfera no sense -
dade de, ao se passar pelo corpo da artista de mai hesitar e, em seguida, sorrir.
Ora, o verbo hesitar vem do latim hesitarae que carrega o sentido de não saber
61
agir de modo confuso ou desconexo; balbuciar. O procedimento da hesitação
no currículo investigado é responsável pela produção de uma fricção no modo
acelerado como os corpos passantes caminham pela cidade. Tal procedimento é
um componente importante no currículo da cidade por produzir uma hesitação
nos corpos; produzir uma espécie de gagueira, isto é, fazer a língua da gramática
normalizadora dos corpos tremer, vacilar, diminuir a velocidade corriqueira e
perceber algo diferente.
-
-
rialização em certos códigos costumeiros. O uso desviante da literatura possibi-
lita, por exemplo, a invenção de objetos e temas menores cuja potência política
é extremamente maior. As performances artivistas de Ed Marte, ao seu modo,
também produzem algo novo nas práticas de gênero e sexualidade comumente
aceitas, sob a condição não de negar outras práticas, mas de multiplicá-las.
A pedagogia da hesitação torna-se um componente importante no currículo da
cidade por produzir desvios e desterritorializações tanto nas práticas urbanas
63
64
PRESENÇA
JURACI
65
66
FILME
Referências
O fantasma do gênero:
https://m.
-
Acesso em:
Revista Concin-
nitas
O mundo é meu trauma. Disponível em: https://pisea-
grama.org/o-mundo-e-meu-trauma/
Notas estratégicas quanto aos usos políticos do con-
ceito de lugar de fala. [Entrada de blog]. Disponível em:
org/pt/corpo/notas-estrategicas-quanto-aos-usos-politicos-do-conceito-de-lu-
gar-de-fala
Palestra proferida no Ciclo de Conferências “Vozes
do Sul: lugar de fala. -
68
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Sandra Mara Corazza
Silas Borges Monteiro
TRANSCRIAÇÃO DE
SIGNOS: INFANTIL,
AULA, DOCÊNCIA
3.
Silas Borges Monteiro (UFMT)
um determinado modus -
idamente, a contabilidade da aula, anotando quantas vezes ouve a palavra “pre-
ali na aula, aguardando a apresentação do conteúdo do dia que será feita pela
docência responsável por aquele tempo-presente.
substituída, nesse caso, por avatares ou a simples tela sem imagem. Isso tam-
bém não é novo; estudantes se desligam da aula, rabiscam cadernos, encenam
interesse, mesmo estando a pensar em outras coisas. Isso não é novidade para
docente algum.
Embora haja transposição de grande parte do vivido em sala de prédio e na sala
-
tram no dia e hora marcados para a aula, a própria imagem vista, a exaustão nar-
císica, a conversão em fantasma, tal como Derrida se refere a Marx: “aprender
a viver com os fantasmas, no encontro, na companhia ou no corporativismo, no
-
Temos, por insistência histórica e cultural, que docentes são, igualmente, edu-
cadores; educadores ensinam, no limite, a viver. Essa impossibilidade apontada
por Freud “aceitei o
– educar, curar e governar –, e eu já estava inteiramente ocupado com a segunda
-
eca, se assumirmos que “É preciso durante toda a vida aprender a viver e, o que
talvez cause maior admiração, preciso durante toda a vida aprender a morrer.
Este ensaio pode soar taciturno demais a um tempo já entregue às paixões tristes;
-
ar: assim ensino eu. E somente para criar deveis aprender! E também a aprender
que ainda acreditava que todos deveriam aprender tudo o que ela lhes ensina-
respondem mas faz mover a vida: “desaprender o dado e o feito, que é o melhor
caminho para que ela possa retomar, no tempo certo do intempestivo, o camin-
-
signos,
signo
72
Em aula, nesse tempo de distanciamento, a docência vê a si mesmo em um mon-
itor, uma imagem entre outras, em mosaico, em destaque, a depender da plata-
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA
forma; esse encontro de fantasmas jogando com signos, torna a pedagogia uma
espécie de espectralidade em duas dimensões. Outras vez, a professora indaga,
com anúncio de dias possíveis à vida e à alegria do infantil: “O que, atualmente,
temos condições de saber e fazer? O que, daqui para a frente, poderemos fazer
-
taciturna. O infantil nos acompanha pela vida, posição subsumida por Freud
infantil poderia ser uma forma de despotismo que quer impor como norma aos
outros impulsos. O infantil, que experimentou invergações no século XX, do
73
adulto em miniatura ao déspota do consumo, do sujeitado ao sujeitador, traz-
nos questões encharcadas de dubiedades ao primeiro quarto de tempo do século
Contra o princípio do cogito cartesiano, que requer uma natureza decaída para
-
e sua pedagogia, não cristã, mas, igualmente, não iluminista, mas, ao modo
egípcios, eternas crianças, e também na arte trágica são apenas crianças que não
sabem que sublime brinquedo nasceu sob suas mãos
74
“um combate incessante e sistemático contra as formas que [essa Figura] veio adquirin-
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA
crianças devem ser atualizadas em função das atuais circunstâncias, pois haverá sempre
crianças em estar no prédio escolar fez ver como se trata, atualmente, a infância.
A exigência de uma política de ocupação dos espaços em meio a uma pandemia
evidenciou limites da compreensão da criança, embaralhando a infância com o
Notas de INVENÇÃO
Sem dúvida, elevada suspeita de impostura paira sobre essa docência, que so-
-
femático dos seres que a docência cria na ordem da necessidade, cuja crença
cultural repousa sobre um fantasma compartilhado, espectro docente que escre-
ve, isto é: distingue, escolhe, seleciona, ao preparar as palavras para interpretar
o enxame móvel de sua aula. Palavras que seguem hábitos de generalização,
mas que também lutam contra a trama da própria linguagem e fazem experi-
mentações, ao, supostamente, estabelecerem regras e descrições. Como poetas
e intérpretes, a docência é da ordem de seres da sensação artística, coproduto-
Como docentes que criam suas aulas, trabalhamos em direção ao seu secreto
poético, de maneira que, mesmo que lhe atribuamos aparência de similaridade
com o original, procedemos a uma mudança de timbre, na maneira de apresen-
-
dores, pois, na prática de liberdade de recriação dos originais, velamos para que
não percam a sua luminosidade de criação. Como autores-operadores, zelamos
76
pela pervivência ( ) não somente das matérias traduzidas, para além
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA
Essa sobrevida, sob o signo da invenção, faz a docência criar em paralelo, porém
-
nha, escrevemos centelhas de aulas, em sonhos de tinta, traduzindo uma escrita
cósmica, que nos outorga o direito de sonhar com a mutação paradigmática e
dispositivos que, de algum modo, cria um intermédio onde não havia, ao que
faz sentido na teoria psicanalítica de Freud na interpretação dos sonhos. Se o
77
sonho for efetividade do desejo, sua realização é juntar o que era separado o faz
de modo único, pois o sonhador sabe que as junções são coladas com fraturas
criando um apagamento do que reúne e do que separa com a evidência do
o jogo deveria ser descentralizado. Esse centramento do logos como aquele que
d signo, alimenta uma fantasia de que o símbo-
lo-imagem-som é um veículo de transporte de carga cujo conteúdo é composto
de pacotes muito bem organizados e empilhados de todos os sentidos possíveis.
O logos De certo modo, é do que trata a ordenação do logos como operador de
isso exilante
nos servem signos? “Ah, nessa terra também, também O mal não cessa, não dura
Notas de AULA
Deixamos para trás a ênfase tecnicista que nos tomou um dia. Como espectro,
ainda nos ronda, ainda mais com as tecnologias da informação e da comu-
-
-ciência. Também, aprendemos a desinvestir em pedagogia humanista, marxista,
79
constelações intertextuais e intervivenciais, urdidura do entreaberto e entrecru-
zamento de vozes, que nos levam a vivê-la poeticamente (Aquino; Corazza;
Poética de aula, constituída pela necessidade dos acontecimentos,
formulada por desamores, paixões súbitas, golpes de misericórdia, grau zero de
substituições, que nos faz desaprender o costume, as crenças e o bom senso: “a
aula como gesto fronteiriço entre violência e celebração. Um ato feito a naval-
aula e concede o que esta não possui, nem dá, mas pode criar: “Amar + escrever
= fazer justiça àqueles que conhecemos e amamos, isto é, testemunhar por eles,
fantasia de Aula, cientes de que “uma vontade, uma fantasia circula mais rápi-
este é o seu trono. Adulo meu delírio como um lindo cavalo. Falsa dualidade do
resiste e cede, como carne amante, o sonho faz a docência ganhar em valência
e operância vitais, pois reúne forças encantadas, que existem apesar de seus cri-
adores: aqueles que acreditam, junto aos poetas, que nada pode “ser estudado,
Notas de DOCÊNCIA
O termo espectro, de Jacques Derrida, apresentado em Espectros de Marx, suste-
nta uma posição de possibilidade do pensamento da não-presença, característi-
ca de todo texto, ente ou ser. O que resta (trace) em um texto não é espiritual-
mente transcendental, nem pleno de corporeidade: “a palavra phantasma, em
tem também uma aparência fantasmática. É algo que não é nem real nem irre-
-
mente entregues ao destino: incontroláveis, presenças não vistas, sem imagens,
81
Feita a partir de espectros, deve haver outra docência, não feita por cópia e re-
produção do mesmo, como exercício do adoecimento da vontade, presa a uma
só forma. Pelo contrário, no caminho inverso da cópia, da imitação, há de se
encontrar outro caminho, tortuoso, de disseminação. O sentido não está dado. A
produção de sentido é efetivada em disseminação. A pedagogia há de ganhar out-
da vida, um estilo.
Conclusão —
DOCÊNCIA TRANSCRIADORA
[1] As rupturas vividas em tais dias de distanciamento extrapolam argumentos
pedagógicos de resistência ou adesão. É uma situação-limite que afeta com po-
tência ainda não experimentada os modos regulares de viver e de fazer educa-
ção. Eis aqui uma consideração de espectatura: o rompimento da resistência
de manter-se naquilo que sempre foi. Um novo cenário quer forças de criação
das velhas práticas aos novos tempos. É preciso vencer a vontade de verdade
petulância não pode sustentar que a resposta às circunstâncias já está dada pelas
práticas e meios tão bem reconhecidos na esfera educacional. O ato tradutório 83
[3] A expressão cartesiana “At certe videre videor, audite, calescere” (Descartes,
Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do esti-
lo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de
signos, incluído o tempo desses signos — eis o sentido de todo estilo;
e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim
extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo — a mais
multifária arte do estilo de que um homem já disp s. Bom é todo es-
tilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca
nos signos, no tempo dos signos, nos gestos — todas as leis do perío-
do são arte dos gestos.
84
po dos signos. Aqui, talvez, seja o ponto que inaugura os diversos começos do
ensino, como experimentação recorrente das circunstâncias das vivências, com
atropelos e conquistas. A resposta a isso está em lugar algum. Será por invenção
outra educação.
Referências
O camponês de Paris. (Tradução Flávia Nascimento) Rio de
Conhecimento e devaneio: -
85
Uma vida de professora.
O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFR-
pesquisar em educação.
A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poe-
sia curricular.
Mil platôs.
Diferença e repetição.
Os Pensa-
dores,
Ser e tempo. (Tradução Fausto Castilho) Campinas /
In: Noéli Correia de Melo Sobrinho (org). Escritos sobre educação. Rio de
87
Diálogos.
-
TÍTULO
88
4.
POR DOCÊNCIAS
Introdução
conversa com sua turma sobre o que aparece na tela: modos de pintar, artistas e
lares distantes, política, temas discutidos em sala em outros momentos.
1 Artista mato-grossense, mas que viveu boa parte de sua vida no Espírito Santo, formando-se na Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes).
a arte e/ou os signos artísticos possuem o caráter especial de explorar afetos e
afecções inusitados, ampliando nossas relações com o mundo.
Mas, por que apostar nas existências mínimas? Por que defendê-las?
torno das potencialidades dos signos artísticos. As falas foram gravadas e trans-
texto, como pinturas feitas pelos alunos, conjugadas aos trechos das conversas
estabelecidas. Ao longo do texto, as falas aparecerão em itálico e com espaço
91
-
va não remete a um sujeito, pois o sujeito é ele próprio um agenciamento de
enunciação, isto é, ele se constitui em um plano de consistência por meio de
agenciamentos. Em todos os momentos, as conversas ocorreram em múltiplas
vozes, típico de um trabalho em sala de aula.
Buscamos, assim, seguir as linhas dos gestos docentes e infantis que evidencias-
2
incessantemente. Os dois polos do conceito de agenciamento não são, portanto, o coletivo e o individual: são antes dois sentidos,
de um sujeito preexistente que lhe poderia ser atribuído: logo, o próprio está na medida de seu anonimato, e é por esse motivo
-
do, não sendo consideradas tanto as existências mínimas de seres reais, como,
principalmente, as de seres virtuais como potencialidades que acompanham cada
existência: aquilo que ela poderia ser dentro de um quadro de possibilidades.
educação, ora dos direitos à aprendizagem. Decerto nenhuma das duas defesas
minava os males possíveis ou instaurava uma realidade educacional ideal para
as condições reais de trabalho. Ainda assim, toda a discussão sobre os direitos à
educação foi substituída após a promulgação da Base Nacional Comum Curri-
-
brança no espírito de outro. Tantas maneiras de existir em outros planos... Nesse
sentido, os seres são realidades plurimodais, multimodais; e aquilo que chama-
mos de mundo é, de fato, o lugar de vários intermundos, de um emaranhado de
planos que ora chamam uns aos outros à existência, ora se dispersam entre os
mundos que lhes são cabíveis.
Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
artísticos, nos fazem ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
-
des de vida.
Desse modo perspectivar uma docência não dogmática implica visualizar uma
docência aberta à diferença e à instauração de uma docência que considere a
A consideração dos possíveis de uma docência não dogmática passa pela inven-
ção dos desacordos e criação das diferenças numa espécie de alteridade dese-
jante, isto é, uma alteridade que supere as representações binárias e modulares
do tipo: “[...] eu, macho, em meu lugar, falando em nome das mulheres; eu,
poder patrimonial, em meu lugar, falando os ‘desvalidos’; eu, professor,
Uma alteridade como uma invenção e não um dado. O outro que está em mim
supera a visão de um outro apartado de mim, abrindo-se ao não humano do
homem, à natureza, à coletividade, ao universo múltiplo, como um desejo de
agenciamento de uma comunalidade expansiva, devir aos mil afetos e desejos.
94 Outro, portanto, que reage: outro em devir, um devir outro que resiste inclusive
à fundação da docência, mesmo porque “[...] o que deve ser fundado é sempre
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Eis nosso ponto de partida: explorar as existências que, reduzidas ao quase nada
– o nada é sempre inatingível –, não fazem outra coisa senão amiudar-se. E, pe-
“[...] não há um único modo de existência para todos os seres que povoam o
-
tros que, entretanto, não mais lhes dão as condições necessárias de existência.
Esse é, por princípio, o modo de efetivação das forças capitalísticas: o consumo
radical de mundos e o descarte imediato quando as existências e os mundos
não lhes são mais vantajosos. As existências, por acaso desse movimento, são
diminuídas e empurradas para outros mundos que nem sempre as suportam ou
as desejam.
Ora, no contexto escolar, esse tipo de ação é palpável. Ainda que um professor
trabalhe toda sexta-feira com pinturas em conversas com sua turma, no momen-
to em que ele estende aos alunos um conjunto de pincéis, tinta e papel gros-
so próprio para tinta, a turma começa a perguntar o que eles precisam pintar.
Pedem instruções, ordens. Como é um trabalho realizado na escola, evidente-
mente se caracteriza como uma atividade escolar e, por efeito, deve haver uma
resposta correta.
mas também expectativas do professor que, de algum modo, espera poder exer-
96
citar liberdades de uma única vez.
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
o mundo tátil ou facilmente exprimível. O cosmo das coisas seria marcado por
certa duração, isto é, uma coisa sendo compreendida por sua capacidade de
o marcado justamente pelos seres que povoam nossas imaginações, que preci-
existências. Junto a isso tudo, além e aquém de todos os outros mundos, con- 97
parte. Eles estão aí, à nossa volta, eles aparecem, desaparecem e se transformam
à medida que a própria realidade muda. Aparecem como ideias, pequenos lap-
sos, rugas que surgem no canto dos olhos da criança que titubeia com um lápis
na mão enquanto pensa em fazer um desenho no canto do caderno – faz ou não
faz? Faz um traço, cria uma imagem; o pensamento já se foi; arregala os olhos,
apaga.
Por um lado, é o universo mais vasto, mas é também o mais evanescente, o mais
inconsistente, o mais próximo, aparentemente, do nada.
IMAGEM 1 _ Escravas na cozinha
98
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Não há uma só realidade que não esteja acompanhada de uma nuvem de po-
tencialidades que a segue como se fosse sua sombra. Cada existência pode tor-
nar-se uma incitação, uma sugestão ou o germe de outra coisa, o fragmento de
uma nova realidade futura. Toda existência torna-se legitimamente inacabada e,
portanto, com abertura para uma existência singular.
como virtuais, pelo contrário. São eles, os virtuais, que ditam as condições de
sua passagem para a existência, apesar da sua indistinção. A conversa com as
crianças que pintaram a cena Escravas na cozinha deixa isso bem claro: não se
trata, em absoluto, de recriar a memória tal qual ela se efetivou; ao mesmo tem-
po, não se trata de fazer de um modo qualquer. O virtual, ao se atualizar, cobra
do real as condições cabíveis para sua existência. Cada esforço criador, cada
investida é como uma proposição de existência que o virtual consente ou não,
segundo as exigências cambiantes da construção/organização que se esboça.
em existência concreta.
Eis que, se, nas escolas – de modo geral –, predominam as existências assujeita-
das pelas macropolíticas e/ou pelos modelos prescritivos de ensinar e aprender
nossa realidade pelos planos decenais, pelos parâmetros e diretrizes, pela BNCC
-
rar o mundo’ em lugar de extrair impressões dele, trabalhar nos objetos, nas
pessoas, nos acontecimentos, colado ao real [em sua relação com o virtual e
3
educação o deixaram com traumas. Por conta disso, ele aprendeu a ver o mundo do modo do pai, e a última coisa que desejaria
era ver o mundo por tal perspectiva autoritária.
Apesar dessa luta pela sobrevivência, ambicionam alguma coisa. Os despossuí-
dos não reivindicam nenhum direito sobre nada, não aspiram a nenhuma posse.
Na maioria das vezes, nem compreendem o que lhes perguntam. Só que eles
nunca podem satisfazer essa pretensão de somente sobreviver, pois nunca con-
ão se mexer. Sempre circulam
vibrações que impedem de acabar com aquilo, pois os virtuais, em relação com
o real, agem acenando alternativas possíveis.
105
IMAGEM 4 _ “Só de boa”
-
ó
conta histórias de fuga da polícia, conta sobre os anos em que esteve longe da
escola, conta sobre as tantas vezes em que se calou por obrigação. Nada a abate.
106
menos como uma ausência de vontade de vida e mais como uma vida vagante,
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
despreocupação que ela usa como modo de resistência, como modo de cruzar
os mundos travando batalhas com um sorriso tímido, com uma paz singela. Seja
Assim, não para menos, o signo artístico pode nos fazer pensar a experiência
intensiva de novas formas de sentir, enfrentando as forças dominantes ao mesmo
tempo em que torna possível o surgimento de mundos inesperados. Por essa ra-
zão, a teoria deleuziana dos signos se torna uma prática política, isto é, o signo
107
se torna um elemento multiplicador das estratégias de intervenção política, re-
é uma
tendê
entidades das zonas tidas como estéreis ou inabitáveis para a sensibilidade. A
força da arte aparece justamente onde os terrenos mórbidos parecem prosperar.
não se chocam com o limite das suas possibilidades, seu desejo
de alcançar outros possíveis povoados de qualidades puras e abstratas extrapola
ência
de uma arte? Como instaurar novos seres nessas zonas, se for verdade que não
existe nada alé
Daí, justamente, que o concreto não é a materialidade dos corpos neles mes-
mos; antes, é o ruído da sua vibração. O concreto da vida é animado por movi-
mentos, palpitações vibrantes, pela brisa litorânea que, ainda que fraca, nunca
cessa – carrega consigo grãos de areia e maresia. A catástrofe não precisa ser
apocalíptica; deve, antes, atravessar as concretudes com maior intensidade da
vida. Desse modo, precisamos criar captores, transmissores, detectores de movi-
mentos. Isso vale, para transformar sensibilidades, para todas as artes.
-
como da arte – isto é, como
fazer a vida expandir suas possibilidades artísticas. Nessa expansão, as crianças
—
— Mas, você não é anjo, né, João? [risos]
—
— Como assim?
—
—
— Então, pronto! Fechou!
O trabalho com signos artísticos tem se mostrado extremamente potente como
possibilidade menos estruturada e formal de entendimento dos processos de
aprendizagem que acontecem nas escolas. Assim, mesmo considerando a força
dos determinismos prescritivos que hoje buscam conformar a vida das esco-
las, faz-se necessário investigar a multiplicidade de mundos que nelas coexis-
tem, exigindo-se, para isso, a atitude de mergulhar nesses universos de virtuais,
atuais, reais sempre em busca de produzir mais mundos compossíveis para as
-
Assim, falar sobre uma docência não dogmática implica problematizar, expe-
rimentar, acompanhar movimentos que vão transformando a cultura da escola,
fortalecendo a criação coletiva, conduzindo para o questionamento e a carto-
-
cando a necessidade de abertura para o aprender e o ensinar na perspectiva do
pensamento em movimento, considerando que, para que alunos e professores
110
produzam as suas aprendizagens sem medo, eles necessitam que sejam opor-
espaçostempos para capturá-las e afetos que
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
fundamentais.
-
car a liberdade em pintura fazem-nos não apenas rir, mas também tropeçar nos
próprios pensamentos em modos de agir e pensar. Em uma sala de aula, per-
guntar pelos virtuais que atravessam os universos é possível? Como atentar-se a
manter a produção de vida sem que, com isso, outras existências sejam afeta-
das. Jogo de pincéis: aplicar camadas de cores sem que nenhuma delas se perca
totalmente, deixando, ainda, vislumbres das cores em camadas, em diferentes
pontos. Produzir um mapa das cores. Encontrar, em meio às existências míni-
mas, o menor
falamos mais de despossuídos. Onde as minoridades fazem vez, as existências
exigem que olhemos de perto bem atentamente, com o olhar colado nelas para
enxergar até o calor dos corpos, o brilho dos olhos, o tremor das vozes.
para as existências que interessa instaurar para produzir uma vida na educação
escolar pública.
111
Referências
Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
-
zación de lo vivente. In: BRITO, Maria dos Remédios de; COSTA, Dhemer-
Variações deleuzianas: educação e pensamento e
Diferença e repetição
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Lógica do sentido
Proust e os signos -
Carta ao pai
As existências mínimas
Educação e So-
ciedade
NASCIMENTO, Roberto Duarte Santana. Dimensões políticas da teoria deleu-
La anomalia salvaje -
-
Anais eletrônicos [...].
Disponível em:
O vocabulário de Deleuze
TÍTULO
114
5.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
‘FAZER MORADA’
NA INFÂNCIA:
IMAGENS DE 115
CURRÍCULOS EM
DEVIR-CRIANÇA
Petecar mundo
Saltitar mundos e fundos
Sair do mundo
3
Fazer morada
“Eu estava sentado no chão de uma sala ‘de aula’, perto da porta. Observava
-
ciosa, sem palavras, sem sons, sem ruídos. A troca de olhares durou vários mi-
nutos, o silêncio ali instalado era povoado de sensações, de aprendizagens, de
que ensina que a experiência é uma dobra que nos coloca de alguma forma em
contato com o fora; que pesquisar e experimentar com imagens, com produção
de imagens realizada por crianças pequenas e professores de Educação Infantil
é se lançar em uma aventura com o fora, com a infância das coisas, com os ‘não
sei’ de partida e de chegada, com as incertezas, com os medos, com os mundos
***
118
pode a Educação Infantil? O que pode a infância nos ajudar a pensar acerca da
Educação e da Educação Infantil?
-
-
lhaços e em dois mil aspectos notórios refazer um novo corpo onde nunca mais
119
fragmento do universo da Educação Infantil compor um ou muitos novos corpos
para isso que chamamos de Educação Infantil?
dados, circunscritos por aquilo que falamos sobre a Educação Infantil e sobre a
infância? Como estar a altura do acontecimento educação infantil e seus tantos
-
poralidades urgentes, como estar a altura disso que estas muitas vezes escapam
aos discursos seguros e objetivos de modos demarcados pelos espaços e tempos
adultos da educação?
Um texto em blocos: fazer morada naquilo que a infância investe como ins-
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA
Em um olhar mais atento para as Escolas de Educação Infantil o que talvez ve-
mos são pés e mãos e olhos e bocas e dedos e cabelos e pelos e dentes e unhas
e chinelos e sapatos e gritos e sons e ruídos e palavras e objetos e cenas e focos 121
e des-focos e cadeiras e tetos e chãos e pessoas e meninas e meninos e riscos
e riscas e choros. Temos espaços e percursos e travessias e andanças e chão e
crianças e crianças e crianças e crianças e crianças e e e....
Poderia isso nos dizer algo sobre a Educação? Sobre a Educação Infantil? Sobre
a Educação de crianças? Sobre crianças?
da escola. O espaço, contíguo ao prédio das salas de aulas e dos pátios e espaços
122 cheios de cimento, faz a escola ocupar o quarteirão todinho. Tem espaço para
uma horta idealizada e cuidada por professores e alunos do ensino fundamental
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA
periculum passa de mão em mão: umas mais, outras menos, as crianças querem
saber o que era aquilo. E as perguntas vêm: é um caiacólis? Ele não vai sair?
Cadê a mamãe e o papai do caiacólis?
menino leva o caramujo consigo. No caminho, exibe o pequeno tesouro a quem
encontra pela frente. E assim, uma adulta logo ralha: isso traz doença, menino!
Periculum, o caramujo é arremessado ao lixo por
um menino choroso, carente do tesouro abandonado. Agora vai lavar essa mão!
A tia não viu isso não?
-
ramujo, quer levar o caramujo para casa. E também no dia seguinte, e também
no outro e também no outro... Diante de um caramujo que parece insistir em re-
tornar, um periculum deveio currículo: atividades para fazer desenhar caracóis,
para fazer escrever C de caracol, para fazer ouvir histórias de caracóis... E o me-
nino, sem caracol... Na semana seguinte, hora de voltar para a horta. No meio
de tanto currículo, outro caramujo, outra festa, outro tesouro: eis que o menino
Um menino e seu tesouro, uma ameaça a uma tradição que se traduz em currí-
culo: curricularizado, um caramujo se afasta do periculum e da travessia singular
de um coletivo de crianças que se encontram, se chocam inesperadamente com
um novo. Enquadrada, uma certa travessia é tomada como uma travessia certa:
123
no encontro com um caramujo é represado e canalizado em um currículo, um
visita a horta ainda faz vazar todo corte, todo controle. Um periculum se repete
e difere antes que se poder virar a esquina para voltar à sala de aula.
***
Entre as possíveis ideias que acenam
podemos pensar o currículo aliado a
ideia de experiências.
Esta possui um ex
liga a certa exterioridade, nos liga ao exterior. A experiência então, nesse sen-
tido, não é algo de um mundo pessoal, interior, de uma faculdade psicológica
124
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA
Sendo assim, pensar um Currículo para a infância, para a Educação Infantil seria
-
vessias, mapear um percurso no qual, junto à criança, atento ao acontecimen-
possam às vezes tortas, às vezes longas, outras vezes curtas, retas e sinuosas,
que pode ser chamado de um segmento, que diz algo, que sempre apontam para
certa mobilidade.
possam ter algo de arte, de dança, de artes visuais, de corte e costura, da trama
Linhas de fuga, algo tal como um desalinhar, formas e modos de propor novos
arranjos para poder alinhar novamente, perder a linha, mas sem perder o traço
da linha, o trajeto das linhas, as marcas de singularidades, os modos de alinhar,
realinhar, escapar, produzir o novo. Traçar uma linha de fuga é produzir algo
real, no real. Traçando linhas e outras linhas, depois e com outras linhas. Entre-
laçamentos de linhas e encruzilhadas, cruzamento de linhas.
para não manter um estado de coisa, é preciso movimentar o indeterminado
Era uma vez um lugar distante, mas muito perto também.
Um lugar habitado por crianças, e também por adultos.
Um lugar cercado de céu, sol, ar, e parede, cimento, e teto também.
ora mais rápido, como a velocidade da luz, ora lentamente como uma lesmatartaruga,
ora descansando como o coelho da fábula que compete com sua amiga de casca dura.
127
128
Entre linhas e corpos temos/vemos imagens, povoamos e somos povoados por
signos. Imagem: do latim imago, semelhança, representação, retrato. Signo: do
latim signum -
ção, de um retrato? Como um currículo chega a operar pela marca da seme-
lhança, da representação e do retrato? Era uma vez um lugar distante, mas muito
. Pela força
da semelhança, uma rotina, pela força da representação, um sono, pela força do
130
O “fundo de um pátio da infância”, essa imagem despojada e ainda assim
úmida de sentimento
O que queres?
O que promove?
131
O que pretende?
“E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos, organizamos
e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que tão-somente
imagem?
Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse
o pensar?
para a seara de uma relação de poder que é, no mais das vezes, uma relação de
dominação e de modulação. Esse currículo expressa uma vontade de potência
negativa, um triunfo de forças reativas, pois ele se quer como manutenção e con-
servação e ele só pode conservar às custas de uma morte da variação.
Porém, quando o signo, se apresenta como algo violento, porque faz pensar, o
jogo se inverte completamente. A aposta é exatamente que o fora constitui o pe-
riculum a ser enfrentado e que ele não só não está garantido de antemão (já que
como também coloca em perigo toda uma tradição expressa, toda uma cultura
dada, o corpo não está contido no espaço, mas é o próprio espaço da diferença,
como no caso da cena apresentada no ‘fazer morada’; o caramujo como ele-
mento que põe em jogo todo um movimento de contenção da experiência e do
perigo em forma de representação, ainda que subsista como desejo pulsante em
um menino que acaba encontrando outro caramujo; ou ainda a sonecagem, que
desloca todo um tempo ritmado e previsto e atrapalha a alimentação do Tingo.
Podem esses signos, essas imagens, essas cenas se apresentarem como motores
Assim, a educação entra em devir, em devir-criança, pois nos tira das imagens
dogmáticas que ligam nossas práticas de poderes aos nossos modelos de infân-
133
deslocamentos, no corpo, nos afetos, deslocamento tão necessários e pulsantes
presentes na cena com Joaquim, ou ainda outros tempos que emergem no caso
da sonecagem e os saberes e poderes que atravessam o episódio do caramujo.
além-mundo, algo fora do currículo. Eles compõem essa região fronteiriça mais
interna que todo o interior.
***
Um currículo em devir-criança o que pode produzir? Um invencio didática?
-
ciso saber:
134
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA
Desinventar objetos;
Repetir, repetir, até ficar diferente;
Partir sempre do descomeço;
Mudar a função das coisas
“Desaprender oito horas por dia”.
(BARROS, 2013, p. 299-300).
Referências
ARTAUD, Antonin. Escritos.
BARROS, Manoel de. Poesia Completa.
Oculto nas palavras: dicionário
etimológico para ensinar e aprender.
O que se transcria em educação?. Porto Alegre-RS:
Ética III.
135
TÍTULO
136
6.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
SIGNOS
ARTÍSTICOS E
APRENDIZAGENS
INVOLUNTÁRIAS 137
curiosidade como saber o que se passa na cabeça de um tolo. Num grupo, aque-
les que são como papagaios são também ‘aves proféticas’: sua tagarelice assinala
Mas com ela o mundanismo ganha velocidade na emissão dos signos,
perfeição no formalismo e generalidade no sentido: coisas essas que
formam um meio indispensável ao aprendizado. À medida que a es-
sência se encarna de modo cada vez mais fraco, os signos adquirem
nervosa cada vez mais exterior, excitam a inteligência para serem in-
Nada mais atual e oportuno para pensar sobre os tempos sombrios que estamos
Tais tempos convocam-nos, mais do que nunca, a usar a inteligência sobre as 139
em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e
criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais as vastas populações são submetidas a condições
de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’
2
ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui,
140
Na educação, a lógica do obscurantismo dos tempos atuais faz-se valer por meio
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
projetos de lei da ‘PEC do teto de gastos’ a , projeto ‘Escola sem Partido Novo Ensino
Médio . Acesso em: .
6 Disponível em:
Denominamos esse plano como ‘coletivo’, insistindo que ele não se
reduz ao social totalizado e que seu funcionamento não pode ser
apreendido através de dinâmicas das relações interindividuais ou gru-
pais, uma vez que essas acontecem entre seres já individuados.
como processos de subjetivação, sempre coletivos, uma vez que agenciam estra-
142
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
Disponível em: -
-
Com isso, quando nos referimos aos coletivos estudantis educacionais, estamos
falando não dos sujeitos que protagonizaram as ocupações, apesar da impor-
tância que eles tiveram, mas das multiplicidades que proliferaram e se expandi-
ram além desses sujeitos, encharcadas pela lógica dos afetos
como possibilidade de enfrentamento das atuais condições de degradação das
relações de solidariedade.
com base na obra de Proust , este texto tem por objetivo central potencializar a
força dos signos artísticos como condição de re-existência ante os mecanismos
de diminuição de vidas, reverberando na produção de múltiplas aprendizagens,
7 “Abordamos uma época em que, esfumando-se os antagonismos da guerra fria, aparecem mais distintamente as ameaças princi-
pais que nossas sociedades produtivistas fazem pairar sobre a espécie humana, cuja sobrevivência nesse planeta está ameaçada,
não apenas pelas degradações ambientais mas também pela degenerescência do tecido das solidariedades sociais e dos modos
de vida psíquicos que convém literalmente reinventar. A refundação do político deverá passar pelas dimensões estéticas e analí-
-
8
à doença, à subjetividade, a pensamentos, a sentimentos, à política, à sociedade, a uma folha que cai, um cheiro ou um sabor
na obra sobre Proust, há um processo de elaboração que se desdobra, paralelamente, em outros escritos publicados que antece-
dem o livro. Movimento que será observado nas resenhas produzidas pelo autor e, especialmente, em duas que podem fornecer
Disponível em:
caracterizadas por nós como involuntárias, que insurgem em diferentes proces-
sos-movimentos educacionais.
As referidas imagens não foram trazidas como exemplos ou aplicações das dis-
cussões teóricas, mas como rasgos, como atravessamentos, como cortes no de-
144
TÍTULO
Disponível em: -
Sistemas de signos:
...mundanos e amorosos e sensíveis
e artísticos e mundanos e...
sistemas que recortam o mundo, mediante uma discussão do tempo que rompe
com a doxa, que supõe uma temporalidade linear e segmentar de um sujeito
sitiado no presente, capaz de rememorar coisas de um passado e prever algo
10 Disponível em:
de Proust como “[...] a exploração dos diferentes mundos dos signos, que se
de signos, a saber:
mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos. Em um primeiro círculo, teríamos os
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SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão
reduzidos e em tão grande velocidade. Em um mesmo momento eles
se diferenciam, não somente segundo as classes, mas segundo ‘famí-
lias espirituais’ ainda mais profundas. De um momento para outro
eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros signos.
Disponível em: -
11
Nesse sentido, no decorrer do texto, usamos alternadamente cada uma delas.
uma ação ou até mesmo um pensamento. Ocupam o lugar dos nossos pensa-
mentos e, assim, não remetem a nada, a não ser ao próprio imediatismo. São
emitidos no vazio, por isso se propagam com velocidade. Estão desprovidos de
sentidos, porque são
ressalta: “Por essa razão a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações
é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se
sua vacuidade, embora não se possa concluir que esses signos sejam
desprezíveis. O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível
se não passasse por eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes
confere uma perfeição ritual [...] Somente os signos mundanos são
capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo
sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los (g.n.).
147
-
ção dos signos que esse alguém traz consigo ou é capaz de emitir. Amar seria,
então, tornar-se sensível a esses signos do outro, buscando apreendê-los. Para
que têm por efeito substituir o pensamento e a ação, os amorosos, por sua vez,
são tidos como mentirosos, uma vez que não podem dirigir-se a nós, a não ser
que, de certo modo, nos deixa confortáveis, nas relações amorosas somos con-
vocados a decifrar os signos da pessoa amada, silenciosamente. Assim, conclui
148
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
Disponível em: -
-
12
Kriterion
ou qualidades sensíveis, isto é, os signos sensíveis, que nos proporcionariam
“[...] uma estranha alegria, ao mesmo tempo em que nos transmite uma espécie
asso-
ciam os signos sensíveis aos signos da natureza. São signos que exalam sensi-
bilidades, produzem alegria e brincam com o imprevisível. De acordo com as
149
A estes signos se devem os encontros que nos surpreendem por sen-
sações, por memórias revisitadas, por vapores inexplicáveis. [...] No
entanto, seu efeito imediato é a necessidade de um trabalho no pen-
samento: procurar o sentido do signo, organizar novamente o pen-
samento para representar o que ele despertou. E por assim dizer, o
fracasso diante do retorno a organização, a materialização, pois não
há possibilidade de estabelecer uma imagem pelo que afetou corpo-
-
de que ‘o sentido material não é nada sem uma essência ideal que ele
encarna’.
13 Disponível em:
Ou seja, com os signos sensíveis, ainda não conseguimos atingir a dimensão
de uma vida bonita, espiritual, como acontece com os signos artísticos. Mesmo
assim, as qualidades sensíveis e as impressões nos colocam nesse caminho, pois
produzem, mesmo com toda sua materialidade, efeitos de alegria
signos enganadores que nos fazem sofrer como os do amor, cujo ver-
dadeiro sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São sig-
nos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria
seu sentido em uma essência ideal . Ao dizer que os outros signos convergem
para a arte, pois, no nível mais profundo, o essencial está nos signos artísticos,
150
-
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
14 “Cada sofrimento é particular na medida em que é sentido, na medida em que é provocado por determinada criatura, em determi-
nado amor. Mas, porque esses sofrimentos se reproduzem e se entrelaçam, a inteligência extrai deles alguma coisa de geral, que
também é alegria. [...] O que repetimos é, cada vez, um sofrimento particular, mas a repetição é algo alegre, o fato da repetição
constitui uma alegria generalizada. Ou melhor, os fatos são sempre tristes e particulares, mas a ideia que deles extraímos é geral e
15 “O que é uma essência, tal como revelada na obra de arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que constitui o
ser, que nos faz concebê-lo. [...] Mas, o que é uma diferença última e absoluta? Não é uma diferença empírica, sempre extrínseca,
entre duas coisas ou dois objetos. “[...] ela é alguma coisa em um sujeito, como a presença de uma qualidade última no âmago
de um sujeito: diferença interna, ‘diferença qualitativa’ decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem
a vida: todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu
Disponível em: -
Ao pensar os signos artísticos como superiores aos signos da vida e, ainda, como
os únicos capazes de fazer coincidir signo imaterial e sentido espiritual, Deleuze
estilo de um
artista em transformar elementos da materialidade da vida (a cor para o pintor,
o som para um músico, a palavra para um poeta...) em coisas inteiramente espi-
Por essa razão uma grande música deve ser tocada muitas vezes, um
poema, aprendido de cor e recitado. A diferença e a repetição só se
opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não
nos faça dizer: ‘A mesma e no entanto outra’.
artista envelhece quando, “[...] pelo desgaste de seu cérebro, julga mais simples
encontrar na vida, como pronto e acabado, aquilo que ele só poderia exprimir
-
verberações os signos artísticos potencializariam no sentido de ajudar-nos a re-
-existir ante a barbárie e os individualismos que caracterizam o real social atual?
16 “Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e essas linhas são de muito diversa natureza. O primeiro tipo de linhas que nos cons-
a família – e depois a escola. [...] Numa palavra, todos os tipos de segmentos bem determinados, em todas as espécies e direções,
que nos fragmentam em todos os sentidos, pacotes de linhas segmentadas. E ao mesmo tempo temos linhas de segmentaridade
de micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que a nossa história. [...] Ao mesmo tempo ainda, há como que um terceiro tipo de
linha, este ainda mais estranho; como se algo nos levasse, através de nossos segmentos, mas também através de nossos limiares,
para um destino desconhecido, não previsível, não preexistente. Esta linha é simples, abstracta, e contudo a mais complicada de
Disponível em:
154
Aprendizagens involuntárias
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
-
ganizam em círculos], é preciso pensar que eles se cruzam, se interseccionam,
possuem interligações mostrando que, mesmo com dimensões temporais privi-
legiadas, “[...] cada um também se cruza com as outras linhas e participa das
sem interagir com os demais signos, isto é, os signos artísticos só se fazem poten-
tes em nossa vida à medida que atuam sobre os outros signos do domínio da vida.
Entretanto, decifrar os signos que constituem os domínios da vida e nos colocam 155
17
Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada
é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer
oculto em nós mesmos se não tivéssemos os encontros necessários;
certas crenças. [...] Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos
esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento
dos encontros, preferimos a facilidade das recognições.
Disponível em: -
rismo-moral/
18
encontro que não é particular nem universal. Está em jogo a intensidade de uma aprendizagem que não se produz na generalidade
-
tentando deslocar sentidos em termos
das aprendizagens que acontecem em meio aos sistemas de signos, como aque-
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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Disponível em: -
-
nou clássica para o pensamento traz uma tirania implícita pela pretensão de ser
a única possível. De modo a questionar essa tirania, a autora traz, ainda com
involuntário, quando o autor advoga que a nova ima-
gem do pensamento se constitui como uma aventura do involuntário, uma força
de atuação no pensamento que o força a pensar e ultrapassa as faculdades. Nas
20 Disponível em: -
nos levam, com uma dose de sorte-acaso, em direção aos signos artísticos.
161
Ao considerarmos o que nos força a pensar e, ainda, a condição de indetermi-
nação e permanente abertura ao acaso das aprendizagens involuntárias, enten-
demos que, assim como acontece com o ato de pensar, as aprendizagens volun-
tárias não necessitam de um método prévio, nem de uma boa vontade, como
-
mento voluntário, tudo o que força a pensar, tudo que é forçado a pensar, todo
Disponível em:
Por uma vida como obra de arte ou...
É preciso estar na hora do mundo!
162 -
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
21 Disponível em:
poderia emergir do resultado da relação que o sujeito estabelece com
a existência, em seus atos diários. Sendo assim, a autenticidade de
uma obra ou de uma vida viria das relações que o sujeito estabelece
com a existência e com o viver e não de uma suposta autenticidade
do sujeito.
De fato, para uma nova existência em que a ascese se institui como força para
que cada um de nós constitua a própria ética, tendo a estética da existência
de uma vida bonita como referência, não interessariam as ações pautadas pelo
Deleuze. São escritos que nos mobilizam a produzir movimentos em favor de 163
que tudo repousa sobre uma base frágil, fugidia, contingente, e, as-
sim, tudo pode mudar, tudo pode ser possível, se distanciando, dessa
forma, de todo e qualquer tipo de niilismo.
22 Disponível em: -
-Da-Diferenca
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completa-
mente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo signi-
Mas, como voltar a acreditar no mundo não apenas como uma atitude indi-
vidual, uma ação protagonizada por um sujeito autocentrado, mas como um
efeito de forças que se insinuam coletivamente, como aconteceu no movimento
#ocupaescola? Sem negarmos as possibilidades de ações particulares de enga-
jamento político-social, interessa-nos pensar na dimensão das multiplicidades,
das linhas de forças e dos devires.
164
devir,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
uma ideia do autor que nos pareceu interessante, a saber: a aposta no que De-
leuze chama de devir todo mundo, isto é, a possibilidade do exercício de uma
involução criadora, de modo a fazer mundo, fazer um mundo. Nas palavras do
Disponível em:
Talvez a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar, como
23
Referências
. Por-
Diálogos
. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
. Rio de Janeiro:
168
MBEMBE, Achile.
.
7.
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFES)
Ô abre alas
que eu quero passar
Ô abre alas
que eu quero passar
Eu sou da lira
Não posso negar
Ô abre alas
Que eu quero passar
(Chiquinha Gonzaga)
170
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
meio de imagens-ação -
tras, produzidas externamente, que movimentaram nossos corpos em imagens-
-percepção -
1
brasileira. Foi com a música Ó abre alas que o carnaval se consagra como festa popular.
em imagens-afecção
escrita, pois afetaram nossos corpos-pensamentos.
-
mos os cotidianos escolares e nos envolvemos em meio às redes de conversações
171
forças e somos mobilizados por forças que passam a habitar nossos corpos. For-
ças-imagens que agem e reagem umas sobre as outras.
Nesse sentido, nossos corpos são forças que se entrecruzam com outras forças.
E é em busca desse desejo de nos afetar e sermos afetados e, assim, expandir a
potência de ação coletiva, que o presente texto-imagem se compõe com as rela-
ções de forças produzidas com crianças, jovens e professoras no encontro com
-
tes, habitamos um corpo atravessado por imagens diversas. Um corpo múltiplo,
aprisioná-los.
Esse ar que nos sufoca tem se espalhado densamente com a força de uma ima-
gem dogmática do pensamento que emoldura a educação brasileira. Essa ima-
gem, além de ditar os interesses curriculares dominantes, legitima uma maneira
de aprender em detrimento das demais, distanciando assim, de novos processos
de subjetivação e de outras possibilidades de criação.
Buscamos, assim, por meio do encontro das crianças e das professoras com os
-
cessos curriculares instituídos quanto nos processos aprendentes, para pensar
a complexidade de acontecimentos inventivos e de vida que vibram na escola
-
que se abriram ao campo dos possíveis. Corpos que se abriam para a força dos
encontros com as imagens. Forças que se expandiam na rede de conversações,
fazendo pulsar a vida emergente “[...] que sabe se transformar, se metamorfosear
de acordo com as forças que encontra, e que compõe com elas uma potência
sempre maior, aumentando sempre a potência de viver, abrindo sempre novas
Nesse sentido, a professora fabula uma nova imagem para o Dia das Mães na
escola: -
sabafa uma professora em uma das redes de conversas movida pelas afecções
das imagens-cinema: “[...] Já problematizamos esse currículo movido por datas
comemorativas. Desculpem-me, mas eu me recuso a parar o que estou fazendo
-
rimentar outras linhas, a apostar nas linhas de fuga, nas linhas de vida intensiva
e inventiva que se movimentam pelos afectos e afecções cotidianas. Ressalta
que está com um projeto com as crianças denominado Invencionices infantis
e que todos os dias as crianças produzem coisas extraordinárias, por isso, não
precisaria parar para confeccionar cartões: “[...] Eu gostaria mesmo era de expor
as invencionices das crianças e mostrar as suas aprendizagens e que os pais
reconhecessem e valorizassem a potência desses processos inventivos criados
Ora, a infância e suas imagens, juntamente com aquilo que nela e por
ela deriva em múltiplas formas, acenam-nos para uma efetiva políti-
ca inventiva que, escapando das normativas e das disposições gerais,
criam campos de experiências que vazam por micro-poros; apresen-
tam virtualidades estéticas impensáveis.
2
uma cadeira vazia. Como aquela cadeira vazia, pequena, desfocada,
me impactou, me afetou! Remete-me uma ausência, ausência de nós
-
bro, também, de uma reportagem de um senhor que vendia picolé
em frente a uma escola há mais de trinta anos que se emocionou ao
aprender a ler. Uma aluna se sensibilizou ao perceber que o amigo
-
me. As crianças se esforçam para expandir a nossa vibração. Estamos
177
Fonte:
Dessa narrativa que emerge a partir das imagens de uma animação nasce uma
-
-
Como a imagem a seguir que movido pelas afecções das imagens-cinema, uma
criança -
vanta, ela precisa falar sobre o que as imagens deram a pensar. As que seguem a
-
ça de volta ao seu lugar. A criança levanta-se novamente.
IMAGEM 2 _ Um menino que não para...
Fonte:
que pensam a educação para além das lógicas normatizantes, que reproduzem
uma imagem dogmática de pensamento, do currículo e da aprendizagem. Mas,
que se lançam em prol de uma educação em devir, engendrada aos seus acon-
tecimentos inventivos.
A potência dos signos artísticos nos move em meio às afecções que tocam nos-
sos corpos e nos impulsionam a um agir impensado pela racionalidade modeli-
zante, mas que passa a emergir em nossos corpos-pensamentos com as experi-
mentações afetivas vivenciadas.
Nesse sentido, as crianças e as professoras, movidas pelo devir-criança e im-
pulsionadas com as imagens-cinema, insurgem, deslocam e fabulam imagens
Como dito, o que nos interessa, são os movimentos aberrantes, no sentido de-
leuziano do termo, daquilo que insurge dentro de um movimento e extrai, dele,
Nesse sentido, segue nossa opção de acompanhar a potência de criação que 181
habita os espaçostempos
-
cadoras dos processos de aprenderensinar
-
dos no estado do Espírito Santo, por realizadores capixabas. Uma exibição que
acompanhamos teve como temática o meio ambiente. Assim, problematizamos:
-
vimento um outro tipo de movimento, que foge à centragem, à coordenação-
-seleção, à construção vertical, que é a aberração de movimento ou movimento
182 O curta-metragem
um curta-documentário. Nele, a cineasta apresenta um recorte em três atos, que,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
-
tes pontos do rio após o rompimento da barragem de rejeitos no desastre-crime
4 -
as mostras e de acordo com a temática, escolhem os curtas-metragens que serão exibidos, bem como o roteiro para as conversas.
Todo o desenvolvimento é feito de maneira coletiva pelos integrantes e as exibições são para alunos da mesma escola.
5
IMAGEM 3
Cena 01: Rio das lágrimas secas, dirigido por SaskiaSá.
O objetivo dos cineclubistas com a exibição, que teve como tema o meio am-
biente, foi movimentar o pensamento em relação às questões relacionadas à po-
luição, ao desperdício de água, à produção de lixo, ao desperdício de alimento,
ao excesso de consumo. Após a exibição, encaminhávamos para as conversas e
o roteiro preparado pelos cineclubistas traziam algumas perguntas para intensi-
Algumas questões foram apresentadas problematizando as nossas relações com
184
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
Mais adiante, a partir de uma pergunta acerca da importância dos nossos rios
para nossa vida de forma individual e coletiva, os estudantes revelam conheci-
mentos que são atravessados pelas experiências de vida, pelas vivências nos es-
paçostempos que eles residem, mostrando que os processos de aprenderensinar
extrapolam a escola por que se constituem em redes de afectos e de afecções,
- 185
— É o capitalismo!
Entendendo que uma proposta, uma atividade ou a imagem que se produz delas,
antes que prisioneiras das imposições podem ser sem fronteiras, pode circular
-
tras imagens, outros movimentos de pensamentos.
Para que isso ocorra, é fundamental que haja o fortalecimento dos grupos, -
dos aprenderensinar e outros currículos
força a comunidade a se transformar e que faz seu devir sempre aberto e per-
forma-
-
larmente impulsionar agenciamentos coletivos de enunciação para pensar o im-
pensável no cotidiano escolar, ver o que não é visto, sentir o que não é sentido,
produzindo um transe a partir da quebra dos automatismos da imagem-pensa-
mento. Indicam fugas das situações globalizantes nos modos de aprenderensi-
nar
que serão exibidos, bem como, das problematizações que serão lançadas no
-
culdade de ver, educando o olhar, onde as imagens possibilitam uma ruptura com
o vínculo sensório-motor como unidade do movimento, trazendo novas forças
deslocantes para as exibições. E “[...] educar o olhar é justamente permitir que
ele seja sem educação, isto é, jamais passivo de ser tolhido na potência de seu
Um tempo duração que esfolia nossa pele deixando o rastro dos seus efeitos no
Movimentos in/conclusivos
Não acreditamos ser possível concluir uma escrita que se pretende pensar e
que se constitui por encontros afetivos e intensivos. Por isso, continuamos a nos
-
colas públicas municipais e estaduais do Espírito Santo? Acreditamos que muitos
foram os afectos, pois apostamos que o cinema abre alas para os devires. Devi-
res-crianças, devires revolucionários, devires...
-
letiva. Claro que também nos deparamos com afectos tristes que reduzem a
potência de agir de crianças, jovens e professoras, porém, logo que os afectos
-
188
mes, mas, sobretudo, conversar e problematizar sobre os seus efeitos no nosso
pensamento. Assim, buscamos nesses encontros com as imagens justo ideias,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
c
em programas televisivos: “[...] que, é próprio do devir-presente, é a gagueira nas
ideias; isso só pode se exprimir na forma de questões, que de preferência fazem
-
tência da imagem-cinema nos encontros que estabelecemos com crianças, estu-
dantes e professores para fazer a língua gaguejar em meio às redes de conversa-
ções
modos de pensar, fazer e de viver os cotidianos das escolas, abrindo frestas para
ao citar Deleuze atuam, “[...] como uma força de fora que se aprofunda (se creu-
Deleuze aponta que a relação do homem com o mundo só pode ser restabele-
cida pela fé na imanência. A relação do homem e do mundo é, portanto, o in-
-possível, o in-pensável que precisa ser pensado e construído com os possíveis.
mais cabe ao artista acreditar e fazer acreditar numa relação do homem com o 189
-
versações constituem-se como espaços de trocas de experiências e de criação
coletiva, pois as conversas mobilizadas pelas afecções das imagens violentam o
pensamento fazendo circular uma multiplicidade de saberes e de culturas, que
provocam uma aprendizagem movida pela rede de afectos, fazendo emergir no-
vos movimentos curriculares e outros possíveis para as escolas.
-
ções. Revista Teias
-
tituição de um corpo coletivo em devir. Revista Educação Temática Digital.
Imagem-Tempo
-
gens-tempo como dispositivos para fazer a língua gaguejar na produção do
Cinema e forma-
ção de professores e currículos e...
Crianças cineastas e seus roteiros criarteiros:
infâncias, currículos e docências inventivas. Dissertação (Mestrado em Edu-
191
TÍTULO
192
8.
ENCENAÇÕES
Entrée3
Dizem os artistas que cada encenação é sempre única. Mesmo numa temporada
longa, cada momento de entrada no palco tem sua própria dinâmica; luz, som,
cores, movimentos que se repetem, mas irrompem novas possibilidades, sensa-
ções outras que o encontro corpo-som-movimento provoca, sempre outras. Os
tradicionais repertórios dos espetáculos de ballet abrem espaço para variações
que permitem, ainda que sob a marcação ritmada, tradição, música e enredo,
entrelaçamento com a dança - a arte da bailarina Pina Bausch . Sua obra nos
1
Pró
2
Estado do Rio de Janeiro/ UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/ CNPq, Cientista do Nosso Estado/ FAPERJ, Procientista/
3 Os subtítulos, que marcam as seções no texto, nominamos como as partes que compõem um grand pas de deux nos grandes es-
petáculos de ballet. Um grand pas de deux normalmente tem cinco partes, que consiste em uma entrada (introdução), um adagio,
duas variações (um solo para cada bailarino), e uma coda (conclusão). -
ra-de-um-grand-pas-de-deux.html
4
novas formas de participação do terceiro setor nas políticas públicas educacionais. O foco da investigação era um projeto chamado
Projeto Trilhas, considerado uma importante política pública pelo Ministério da Educação, visa à formação continuada de profes-
utilizando os materiais do Trilhas em sala de aula. Nos imbricamentos desses vídeos, a pesquisa foi se deslocando entre performan-
convida a enxergar a arte não somente como possibilidades para o processo de
ensino-aprendizagem em sala de aula, seja na educação básica ou na formação
195
nas nossas investigações no campo das políticas curriculares sob o entendimen-
196
Fonte:
FIGURA 1 _
Pina Bausch.
-
Portal Press.
O processo de criação de seus espetáculos envolve a experimentação do cor-
po, sem a preocupação com a prescrição dos movimentos. Esse era o grande
diferencial de suas peças que variavam – trechos eram cortados, outros eram
incluídos – a cada apresentação. Entre os temas recorrentes em suas obras, des-
tacam-se as interações entre masculino e feminino, inspirando, inclusive, Pedro
Almodóvar Fale com ela, em que Pina participa, apresen-
tando uma sequência de dança. Pina Bausch era, então, conhecida pelas danças
5 Pedro Almodóvar Caballero é ator, produtor de cinema e roteirista, sendo um dos mais premiados realizadores da história do
6
olhar sensível sobre a vida e os costumes portugueses, apresenta no palco uma multiculturalidade de sentimentos: engano, alegria,
pobreza, tradição, prostituição, saudade, inocência, tempo, riso e choro. Como característica de todos os seus trabalhos, Bausch
desloca sentidos, numa negociação que põe em questão o próprio ser/não ser
da encenação. É dança? É teatro? Para além, de polarizações ou superposições,
performances em constante
processo de diferimento que se lançam, continuamente, à possibilidade de sur-
observa que, em suas criações, Pina Bausch não se limita aos gestos habituais
de cada situação:
ainda acrescenta que, sob seu ponto de vista, as criações realçam as descon-
tinuidades e avivam uma atitude desconstrucionista ao levarem para o palco
gestos cotidianos presentes em diversas práticas que, através da repetição e de
-
-
gressoras, mas que não nega a herança da tradição clássica da sua formação – os
processos de produção da sua companhia envolvem aquecimento, exercícios,
movimentos do corpo não prescindem do ballet, mas o traz como herança. Der-
Assim, ao trazer uma outra perspectiva dos atos tradicionais do ballet através
da dança-teatro, Pina Bausch suscita que a tradição dos atos de variação dos
grandes espetáculos de ballet podem se performar não somente com o foco em
uma única linguagem que visa às demonstrações físicas dos bailarinos, mas que
o ballet pode ser lido nas múltiplas possibilidades que quebram uma suposta 201
linearidade atribuída à tradição, trazendo o performático como potência política
Não se tratando de uma lógica opositiva binária, não se apaga a história, a tra-
dição, mas se trata de pensar a “inscrição do mesmo que não é idêntico, mas
como différance
para além do cálculo maquínico, mas que demanda decisão – responsável em
sua dimensão de alteridade –implica no esvaziamento da própria tarefa edu-
cativa, o que inferimos a tomada do ensino pela educação, num deslocamen-
to de sentidos que imputa o reconhecimento como tarefa da escola, tal como
2a VARIAÇÃO:
Kontakthof
- 203
-
malmente se referindo a pátios de escola ou de prisões, como local em que as
caminhos não lineares. Dos muitos textos que se dão a ler, nossos diálogos se
articulam de forma multifacetada, nos atravessamentos entre os diferentes con-
8 -
Nos termos do autor, um entre-lugar mediatório que não está nem dentro nem
fora da arte, mas nas bordas da inscrição/observação, como acontecimento e
pensar o processo político-curricular mais amplo num jogo de disputas por sig-
legitimar uma agenda de políticas com modelos universais para currículo, esco-
Corpos desnudos nos mostram que há sempre outras possibilidades, que há sem-
pre um outro a ser considerado e que a perfeição é uma ilusão, mas é ela que
nos movimenta, que nos alimenta e também nos contribui para mobilizar o lugar
mediatório que ocupamos e dele não escapamos. Um lugar que esta
negociação de diferentes linguagens, ações, imersa em processos de tradução.
9 Remetemos ao contexto de recente promulgação pelo Conselho Nacional de Educação/ CNE da Base Nacional Comum para a
-
dade e abertura à ela que nos move. Pina nos estimula a pensar nos horizontes
frágeis da sala de aula e na importância de se pensar a educação como um pro-
cesso de subjetivação que so
208
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
Referências
O local da Cultura.
Poiésis
209
______.
Políticas curriculares, coordenação pedagógica e
escola:
Talvez, o im-
possível.
-
mento, reconhecimento e alteridade na teoria do currículo. Currículo sem
Fronteiras
-
Praxis Educativa
-
Estúdio,
-
ppertal Rev. Cena
M. Pina Bausch Lissabon Wuppertal. -
-
210
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
NARRATIVA, CINEMA
E REALIDADE:
A OUSADIA DE
PENSAR-ESTRANHAR
OUTROS MUNDOS 211
9.
Graziele Corrêa Amorim1
Eduardo Simonini2
212 anedota:
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
identitária com a qual somos registrados nos códigos da sociedade civil – temos
1 -
2 Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, pós-doutor em Psicologia, professor Associado no departamento de
mundo. Os nomes que nos individualizam são efeitos de um novelo de afetos,
de tramas e de enredos a se encarnarem não apenas nos documentos de um car-
Dessa maneira, um nome não é apenas uma propriedade particular, mas uma
-
riências e sentidos socialmente construídos nas comunidades. Podemos, assim,
Portanto, assumimos neste trabalho que o mundo não é um dado pronto, mas
fabricado em narrativas que constantemente podem arquitetar e produzir efeitos
de verdades, de afetos e de memórias. Narradores de mundos, somos efeitos de
-
re a uma ilusória fantasia, mas a algo que é feito, fabricado e produzido no viver
os narram. E cada narrativa é sempre coletiva, apesar de algumas vezes parecer
individualizada e particular, como no caso de um nome próprio. Mas, da mesma
forma que nosso nome não se constitui em uma marca isolada das histórias a ele
atreladas, inventamo-nos nas narrativas que nos inventam, uma vez que:
-
214
quem escuta uma história se compõe junto com a mesma, enredando, assim,
muitas outras interpretações e sentidos que se concretizam em diferentes modos
que faz com que essa análise passe despercebida; a mente do espec-
tador adota naturalmente os pontos de vista que o diretor lhe propõe,
interesse dramático.
-
-
rolava a partir de uma sequência de imagens – muitas vezes desconexas – em
movimento, o desenvolvimento das técnicas de montagem permitiu a manipula-
ção tanto do movimento, da sequência narrativa e do tempo. Com a montagem,
a imagem igualmente passou a ser manipulada em uma intenção narrativa que
permitisse com que o diretor trabalhasse os afetos e induzisse maneiras de sentir
apenas para misturar diferentes linhas de ação, de modo a criar sus-
pense e emoção, mas também para construir contrastes dramáticos,
delinear o desenvolvimento psicológico de personagens e criar julga-
mentos morais. O uso desse tipo de montagem revela-se como clara
intervenção do narrador que, pelos contrastes, aponta motivações, in-
sobre o mesmo.
Neste contexto de transformações pelas quais o cinema mais uma vez se encon-
216
trava, percebemos a dualidade entre dois entendimentos a respeito da realidade:
o entendimento dos críticos e o dos adeptos do processo da montagem. Portan-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
-
ções dos discentes a respeito de como pensavam a prática docente.
-
dicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pes-
O grupo em questão era composto por cerca de dez discentes do primeiro pe-
ríodo do curso de Pedagogia que participaram de sete encontros (um a cada se-
este seguido por debates nos quais utilizamos de técnicas de dinâmica de grupo
para ativar estranhamentos, no deslocar os discentes de seus lugares de conforto
identitário e, assim, abrir passagem a possíveis invenções no agenciar de dife-
-
é estar exposto a
219
-
de, pois ele é construído em arranjos complexos em que as narrativas são a todo
-
tativos que fabricam a realidade no ato de narrá-la. Nesse sentido, a própria
-
tava sem me preocupar se agradaria ou não os outros. Eu não queria
ter perdido essa minha liberdade, mas perdi e sinto que preciso dar
mais valor para essa minha parte...
-
tranhamento em todos os presentes, até porque os colegas o enxergavam como
222
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
FIGURA 1 _
ilustração de Bruno
224
Diante do protesto dos pais, o estudante abandonou a antiga banda e o proje-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
em bares. Mas, buscando seguir o caminho indicado por seus genitores, aden-
particular de sua cidade. No momento, contudo, em que sentiu que não tinha
interesse pelas disciplinas oferecidas, abandonou o curso. Para sair do campo
de visão de sua família e ambicionando uma maior liberdade, foi, então, morar
na casa de um familiar em uma cidade do litoral paulista, retornando à casa
no início do relacionamento, o casal acabou tendo que lidar com uma gravidez
não planejada. Diante de tal fato, Bruno e a namorada decidiram morar juntos.
Ele se viu, então, diante de novas responsabilidades e decidiu retornar ao Ensi-
no Superior, fazendo a opção pelo curso de Pedagogia. Este era para Bruno um
curso de fácil acesso e a família (tanto a que constituíra com seus pais, quanto
a que constituía com sua companheira) insistia que ele precisava de um curso
responsabilidades) de pai, de marido, de estudante universitário.
-
no estava com dois anos de idade e ele morava com a mãe da criança, que es-
-
funcionava como uma instância tanto de motivação quanto de pressão para que
ansiedade que o obrigaram a (re)pensar o modo como vinha fabricando o seu 225
mundo. Passou, então, a se questionar: “quando e como perdi a minha liberda-
de? É possível recuperá-la? A liberdade de fato existe em um mundo que, a todo
-
tos. Acontecimentos estes que ativam aprendizagens sustentadas não na “coleta
-
(...) considerei que para ser feliz não é necessário seguir padrões –
-
-
dos de existir e cabe aos espectadores permitir se sensibilizar com as narrativas
226 que mais lhes convêm; ou seja, que mais lhes afetam na cotidiana experiência
vivida. Acreditar, pois, na potência do cinema é percebê-lo para além de um
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
-
ções e percepções. Assim, uma imagem-narrativa, como acontecimento, não se
restringiria à perspectiva de produção de uma catarse – no sentido de expurgar
angústias passadas – mas de abertura ao futuro. Isso porque uma imagem-nar-
ter a potência de ativar conexões inventoras de realidades: outras montagens de
agenciar com a vida privada do espectador, pode, pois, se dobrar e/ou se multi-
-
cia de, para além de representar uma maneira de pensar, oferecer passagem a
227
do que se separar de sua esposa, assumiu a música como um dos propósitos
principais de sua vida. Tal decisão poderia vir a transformá-lo em um pedagogo
mais comprometido com a prática educacional – caso não viesse ele a também
desistir do curso –, uma vez que teria que confrontar também sua escolha pela
Pedagogia com o questionamento se aquele caminho era coerente com a reali-
dade que fabricava para si? Esta é uma questão para a qual não temos resposta.
3
social vivenciado por Bruno. -
possível diante da coragem sensível de se permeabilizar a novas aprendizagens,
de seu ineditismo.
Assumir a vida como fabricação inventiva não nos furta, contudo, da experiên-
cia de nos agenciarmos a medos, a angústias e a estranhamentos de nossas cer-
tezas. Nesse sentido, as imagens-narrativas podem nos lançar a estranhamentos
de sabores e sensações que, por seu exotismo, podem fazer com que fujamos
apavorados de universos em que não sustentamos um chão. Mas que, outras
tantas vezes, também podem nos deliciar com a produção de um novo prazer.
Apavorados ou deliciados, somos convidados – e tantas vezes obrigados – à (re)
invenção de um mundo.
228
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
Referências
BARROS, Manoel de. Autorretrato. In: BARROS, Manoel de. Poesia completa.
Mente e Natureza
Steps to na ecology of mind
Um
concerto em tom de conversa
BRUNO, Mário. Um estilo (co)inspirando a vida. In: BRUNO, Mário;
Pensar de outra maneira a
partir de Cláudio Ulpiano
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise
229
com.br/index.htm
COSTA, Flávia. O primeiro cinema: considerações sobre a temporalidade dos
Cadernos de Subjetividade
Revista
Educação e Realidade https://seer.
Two regimes
of madness
DUARTE, Rosália. Cinema e Educação
As palavras e as coisas
A espécie fabuladora
: Pesquisa-
230
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
“MAMÃE, VAMOS
NOS ESCONDER?”:
AS ARTES
10.
Luciane Tavares dos Santos1
Marcio Caetano2
mundo afora como já ocorria com os coloridos blocos que se multiplicavam pe-
cidade maravi-
lhosa e cheia de encantos mil
e beijos com
-
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) sob orientação da Profa.
na Educação e na Escola: estado da arte (UFF) e Políticas do Corpo e Diferenças – POC’s (UFPel). E-mail: tavaressluciane@gmail.
com
toma a cidade do samba no início do ano. Naquele momento é difícil crer que
qualquer pessoa imaginasse o que estava por vir: É carnaval, é folia, neste dia
233
ninguém chora
3 -
balaios a pé para vender peixe e quitutes pela cidade e assim ganhar o sustento da família. O grupo se formou por mulheres guerreiras
).
4
Era inevitável! Em tempos de avanços tecnológicos, a mobilidade daquelas pes-
soas que não catam latinhas no carnaval assumiu dimensões impressionantes em
meios as possibilidades de transportes, aéreos, terrestres, marítimos e ferroviá-
rios. Em questão de horas, uma pessoa foge dos blocos barulhentos que invadem
-
lando desde o início, venceremos o vírus e nos orgulharemos de estar
vivendo neste novo Brasil, que tem tudo, sim, para ser uma grande
Nação. Estamos juntos, cada vez mais unidos, Deus abençoe nossa
-
uma alga chamada Geosmina, matéria orgânica formada quando cianobactérias presentes na água se alimentam de outras matérias orgâni-
cas, como algas ou coliformes fecais. A crise suscitou aumento do preço da água mineral e consequentemente falta do produto nos
mercados, problemas de saúde na população, como diarreia, e demissões no alto escalão da Companhia. Até hoje, ao que consta,
Bolsonaro, como doença do “vírus chinês
-
cias de dietas vistas como saudáveis e práticas esportivas): o grupo de risco – do
qual inclusive, pedimos que nos permitam a ambiguidade, faz parte o presidente
que não se comporta como tal.
para ganhar a vida nas zonas que possuem frentes para “fazer bicos
235
que o contraiu em seu local de trabalho na capital: sua patroa também viajou e
souvenir.
6
raciais experimentadas pelos(as) chineses(as) mundo afora.
8 -
Em meio ao turbilhão de notícias, a docência que não se deixa parar se movi-
236
também professora e estudante de doutorado, mesmo sem ter cria gerada em seu
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
que a sua pequenina estará protegida. O exemplo corrobora com o que já sabe-
mos, enquanto mulheres das camadas populares e pesquisadoras/es de gênero,
a rede de apoio social e afetivo entre mulheres de periferias é fundamental para
-
mioterapia. Estas e tantas outras mulheres da classe trabalhadora têm enfrentado
-
dade são fundamentais para isso. No que diz respeito às professoras, têm que
9
bairros: TransOeste, Santa Cruz à Barra da Tijuca; TransCarioca, Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim; e TransO-
límpica, Recreio dos Bandeirantes a Deodoro.
dar conta das exigências estabelecidas pelos empregadores, representados pelo
empresariado educacional ou pelas instâncias do Estado (federal, estadual ou
municipal), cuidar de crianças que também têm suas exigências, em um contex-
to que trouxe, dentre outras preocupações, a educação remota, além de cuidar
de suas necessidades pessoais e constituídas a partir do mundo de exigência
estética às mulheres.
10 No geral, é entendido como um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os impactos ou danos associados ao uso de
drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Neste caso, tomamos emprestado o conceito
para pensar um conjunto de práticas e de políticas de pessoas que não podem realizar totalmente o isolamento social e buscam
conjugar o máximo das recomendações dos organismos de saúde com as necessidades cotidianas de subsistência no mundo de
precarização do trabalho e de necropolíticas governamentais.
11 O WhatsApp envia mensagens de texto e de voz, imagem, vídeo e documento em PDF de modo instantâneo, além de possibilitar
Nesse cenário, o âmbito da casa e do trabalho assumiram o mesmo contorno.
-
fera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das
É nesse espaço em que tudo ocorre ao mesmo tempo e misturado que a arte das
crianças se revela como potente recurso de um mundo outro para
além do isolamento, do medo do contágio e do que vem ou pode vir em decor-
rência dele. São essas experiências de ser/fazer que nos motivam, no cenário
de pandemia, a pensar e escrever este artigo com e a partir dos modos como
seus pares, que teceremos este artigo, que é apenas uma entre as múltiplas pos-
sibilidades de entrelaçamento narrativo, embebido das experiências e posicio-
namentos das pessoas pesquisadoras que ora o escrevem, sendo que uma delas
faz parte do grupo. Assim, interessa-nos saber como as mulheres inseridas em
seus contextos familiares trabalham e incorporam os acontecimentosexperiên-
cias com a pandemia nas artes cotidianas do cuidado com as crianças da casa
e das escolas.
jornadas de trabalho das que são mães, também porque há aquela que deseja ser
Nesses lugares polissêmicos, o corpo humano pode ser entendido como lugar
imagino. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é
dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópi-
locus de investigação, um
grupo de WhatsApp, e nas suas participantes: corpos que estão naquele espaço
e em tantos outros ao mesmo tempo, tudo junto e misturado.
afeto etc. Cada grupo parece se constituir como um espaço absolutamente outro,
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
heterotópicos, frente as durezas dos números que não cansam de nos escanda-
lizar e criar covas rasas.
apropriação artística das outras mulheres que, em meio ao caos de suas vidas,
enxergam, nas folhas rabiscadas das crianças, a aprendizagem e muitos tons de
leveza para continuar o dia que segue e se emenda com a noite.
Trazemos, portanto, as artes de fazer das mulheres e das crianças. A arte que faz
parte das experiências de ser das crianças, inserindo-se muito espontaneamen-
te nas suas brincadeiras, a que permite às mulheres dar continuidade aos seus
processos de aprender agora que a escola está fechada e realizar outras tarefas,
sendo adotada como tática. A produção de desenhos é possibilitada pelas mães
para deslocar as crianças e, mais do que ocupá-las, permite às mulheres estarem
e produzirem com elas espaços de criação, inventividade e de imaginação.
242 Na ilustração a seguir, apresentamos, alguns desenhos feitos pelas crianças, de
diferentes idades, ao longo dos meses em isolamentos social. Observamos neles
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
Por meio das produções, é possível termos ideia também do grau de elaboração
das pinturas, cores, traços, detalhes que demandam pensar no que se quer re-
presentar, como e por quê, quais cores usar, que tamanho cada elemento terá,
O espaço da casa agora precisa ser, mais do que nunca, o espaço das artes e é
com tal realidade que queremos aqui dialogar: de fazer comida contando histó-
ria sobre legumes, de fazer bolo com a ajuda das pequeninas, de inventar jogos
e mais jogos para passar o tempo, de criar castelos com tampinhas de garrafas
PET, de modelar com massinha colorida uma mensagem enorme de “mamãe,
cores primárias para fazer surgir as secundárias, tão desejosas de fazer surgir
mais colorido, como resultado de magia, feitiço ou encantamento.
no mundo da sua pesquisa, pois não mais retornou. Flavs também sumiu, talvez
estivesse lendo seu referencial teórico. Bel passou a madrugada escrevendo arti-
tendo pesadelos sobre como fará isso, no Fundamental I, pois tem alunos/as com
necessidades educacionais especiais, como autismo. Como fará não sabe, mas
trabalhará, pois precisa. O batom também nos parece livre de dúvidas; mesmo
que não gostasse, não poderia aparecer na tela de qualquer jeito, descabelada
ou com remelas.
que leciona vivem sob ameaças constantes de terem seus tempos reduzidos a
-
trinadoras que carregam outro vírus, o disseminando-o por meio
de lavagem de cérebros em prol do comunismo. Não raro, tais agentes alegam
-
ções de seus muitos/as alunos/as, programar o envio de e-mails em massa para
as turmas com mensagens de estímulos que o coordenador pediu e pensar nas
atividades das disciplina que serão dadas na semana, isso tudo sem esquecer de
246
ilustram um pouco da rotina da pequena insone com a arte.
TÍTULO
perspectiva, criar espaços utópicos com o cavalete de desenhos nos parece não
seu banheiro com avisos sobre notas não lançadas e diários não preenchidos no
da menina.
Bel. A história dessa parede é incrível, pois nos parece a tentativa de criação de
um lugar fora de todos os espaços da casa, o outro lugar, ainda que nela, ainda
sair para comprar apenas itens essenciais para manter sua subsistência, muda
sua rota do mercado para uma loja de tintas, e nela compra uma lata de tinta
azul, inconfundivelmente azul, uma que já é própria para que crianças risquem,
Não podemos deixar de lembrar dos lendários tapetes voadores do Oriente dos
alergia.
O guri apenas estava desenhando a sua casa como a imagina, com janelas,
chaminé, plantas na frente, mas o grupo é de , prati-
248 cantespensantes, -
nar muitas possibilidades para a imagem: o corpo do pequeno não se deixaria
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
disciplinar pela mãe pedagoga tão facilmente e Bel, no seu momento visitante
do museu cotidiano do WhatsApp, imaginou que o guri pensava algo como nin-
porque o original mesmo foi um exemplo
clássico do falar cariocado cheio de palavrões nas vírgulas. Normal, o nosso
normal, que nada tem de novo.
Os jeitos que misturamos nossas teorias e conceitos favoritos aos mais triviais
assuntos é uma das coisas mais bonitas e engraçadas do grupo. Talvez o simples
fato de escrever isso escandalize até os murais pomposos que anunciam defesas
sérias e sisudas nas paredes das universidades, mas é um elemento importante
na nossa central de apoio acadêmico. Entre um áudio e outro de “meninas, me
Fonte:
-
po de visão enquanto estuda. Só que, assim como, em nossas casasescolas, so-
mos transportadas magicamente para lugares outros por meio da imensidão azul,
Flavs estuda, mas também pega carona no tapete voador possibilitado por ela ao
nossos estudos entrecortados pelas análises das criações das nossas arteirinhas.
A viagem acaba quando começamos a falar sobre o conteúdo das lives do Se-
cretário Estadual de Educação (RJ), Pedro Fernandes Neto. Parece que ele só se
comunica assim agora e o que diz não dá vontade de rir, embora pareça piada:
enviar exercícios por SMS para as turmas que, muitas vezes, sequer aparelho
de celular têm e lutam para conseguir lavar as mãos, em lugares onde a falta de
uma de suas mensagens no WhatsApp.
-
coisas. Falaram um pouco sobre a
visão adultocêntrica que depositamos sobre as crias, no sentido de colocar nelas
o peso das regras a seguir e jeitos únicos de brincar. “Isso... dos nossos corpos
memórias do
250 cárcere, como podemos ler no rodapé da agenda, agora personalizada especial-
mente para a professora.
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
Fonte:
. -
não acompanhava o programa passou a saber tudo sobre seus personagens, par-
251
ticipava das festas, comentava os acontecimentos e berrava com as eliminações
dos menos favoritos. Ouvíamos parte da vizinhança berrando e batendo palmas,
um reality show
Fonte:
Talvez o sobrinho dela tenha entendido um pouco melhor o que era uma pan-
demia e o que é necessário para superá-la ou vencê-la em comparação com as/
os demais arteiros/as por conta de sua idade. A percepção ganha ainda mais
dessas interações com a televisão aberta o tempo todo e com a escola que, ago-
ra fechada, não o deixa ver suas amigas, amigos e professoras. Talvez só esteja
entediado com tudo e com muita saudade de ser arteiro em sentidos outros,
arriscamos dizer quando nos imaginamos crianças arteiras com muito potencial
para a molecagem.
-
guntar o que seria se os que morriam antes são os que continuam morrendo, se
os/as professores/as, como nós, que eram massacrados/as antes pela opinião pú-
blica continuam sendo por aparentemente serem frescurentos/as e adeptos/as à
vadiagem por se recusarem a arriscar suas vidas e de suas/seus alunas/os em um
retorno escolar pensado para dar conta do delírio governamental da imunidade
brasileira ao vírus – surrealidade que para muitos/as parece trazer algum tipo de
Nossa rede de apoio também tem desconhecido a ordem dos dias da semana e
o conceito de domingo e feriados e isso é um efeito da pandemia também. O
grupo comprova que um mito das mulheres serem competitivas entre si foi cria-
problemas dos mais diversos, Bel complementa. Estamos exaustas de tudo e ain- 253
da temos que lutar contra a ideia muito bem estabelecida de que nos odiamos.
Nessa bonita conversa sobre a solidariedade ativa entre nós, todas se manifesta-
ram e se expressaram sobre experiências enlouquecedoras que nos atravessam
enquanto mulheres porque, como analisamos aqui, ousamos existir e não nos
privamos de frequentar espaços para além dos limites impostos. Sonhamos e
colocamos os sonhos em prática com a ajuda de tantas outras. Somos como o
estamos ajudando outras a colorir espaços, enxergar cor onde parece não ter.
No mundo de faz de conta dos Bolsonaros, mulheres arteiras precisam ser si-
lenciadas à força para não servirem de exemplo para as que infelizmente já
tiveram suas vozes roubadas antes mesmo de a ouvirem soar. Não sabemos,
de fato, como tudo terminará e quando sairemos novamente de casa para além
de comprar e fazer o essencial, mas, com nossas artices e risadas escandalosas,
avançamos e seguimos tentando avançar, de preferência, vivas.
Referências
A Condição Humana -
guest/censo-escolar
CRISE da água veja perguntas e respostas sobre o tema. G1 Rio. Rio de Janeiro,
254
FEBRABAN-IPESPE. Pandemia fortalece estruturas familiares e dá mais poder às
mulheres, aponta Observatório FEBRABAN.
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
Disponível em:
Cidade Maravilhosa.
-
ponível em:
-
-
O Estado de S.
Paulo, . Acesso em:
Bum bum Praticumbum Prugurundum. Sam-
-
troa. UOL Notícias. Saúde -
vel em:
- 255
cipatório dos currículos ‘pensadospraticados’ pelos ‘praticantespensantes’
dos cotidianos das escolas. In
Currículos, pesquisas, conhecimentos e produção de subjetividades
Foucault e Educação
11.
256
TÍTULO
VESTIDO,
QUIMONO
E PERUCA
EM DEVIR
Maria da Conceição Silva Soares
Simone Gomes da Costa
Maria da Conceição Silva Soares
Simone Gomes da Costa
258
Ao lançarmos mão da frase do narrador-personagem do conto O espelho, de
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
1
entre saber e poder, se exercitam relações de força e se constituem as disputas
das professoras, nos quais elas decidiram como se darão a ver, como querem ser
imediato, de pronto, não se reconhece nela. Sua reação diante da imagem que
259
remeteu, de saída, ao conceito de rostidade dos autores. No decorrer da história
-
cesso, reconhecer-se nele, pensamos ser possível relacioná-lo à projeção da ros-
tidade. Uma imagem constituída pelos processos da a partir
260
às relações
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
-
riam, justamente, os que operam as inscrições da rostidade, como proposto por
as máscaras moldadas no rosto?! A superfície onde
Trazemos para este artigo três professoras que se dispuseram a participar deste
-
cas, feitas em estúdio montado pelo grupo de pesquisa, se autoapresentando
do modo como desejam ser representadas. Esses fragmentos e imagens con-
à problematização da máquina abstrata de
produzir rostos, incluindo-se aí o rosto-professora. Tatiana, Shênia e Anna Paula
são professoras de diferentes segmentos da educação e, ao narrarem episódios
pontuais de suas trajetórias de vida e formação, nos oferecem as pistas para
compreender o funcionamento, a maneira como opera esta engrenagem polí-
tica. A partir da reação
suas imagens, seus rostos, seus corpos, seus cabelos ou suas vestimentas, ou
seja, pelo efeito causado no outro diante de seus modos de existir, podemos
-
-
tivam a existência, o modo como cada uma delas fabrica estética de existência,
sua produção de si e de mundo táticas (CERTEAU,
espa-
çostempos do pedagógico.
262
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
O vestido _ Tatiana
um ano e retornei ao ensino público onde, desde então, dou aula nos
turnos da manhã e tarde, para as turmas de fundamental I até o ensino
médio. Eu tive várias experiências com crianças, até adultos, porque 263
na EJA a gente pegava principalmente idosos retomando o ensino.
Diante disso tudo, eu já tive várias experiências de boas até experiên-
cias ruins. Começando pelo fato de que eu não queria ser professora,
apesar de ser formada em artes visuais, eu nunca pensei que eu iria
ser professora. Eu prometi para mim mesma no fundamental I que
jamais eu voltaria a pisar numa escola. Não foi o que aconteceu, né?!
-
te a capacidade que eu, como professora, tinha de mudar a vida de
alguém. E foi a partir daí que comecei a enxergar a educação de ma-
neira diferente, em que eu poderia estar no comando da sala de aula,
que seria do meu jeito, porque desde pequena falava que nasci para
que não queria ser professora – no último período, fui procurar está-
gio e eu teria que ter contato direto com o cliente; clientes de uma
classe social alta, era design de interiores e eu não consegui nenhum
estágio, porque todas as empresas foram bem claras em dizer que a
minha aparência física iria afetar o contato com o cliente, o contato
com o fornecedor, com depósito, então, apesar do meu currículo ser
bom para eles, a minha aparência física não era. Foi quando eu falei:
“o que eu vou fazer para mudar? Não tem como eu mudar minha
f*** u de vez! Não existe um lugar que eu me sinta melhor que a sala
de aula e é por isso que é o lugar onde eu sou mais sapatão (risos),
porque eu me sinto muito confortável, eu me sito à
homem que é o melhor. Por isso, para mim, isso é tão representativo,
eu coloco isso aqui e acabou, eu sou só a Shênia.
O quimono é uma peça relevante para Shênia, porque ele borra a imagem que
-
cessários à não
267
espaçotem-
po em que as relações pessoais e de poder não se produzem e se reproduzem
-
do eu cheguei na faculdade, eu me apaixonei pela educação infantil,
então eu me intitulo professora de educação infantil, eu não me inti-
268 tulo professora no geral, apesar de já ter dado aula em (escola) parti-
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
Eu achei uma escola na zona sul de classe alta que estava precisando
de uma estagiária, e como era uma oportunidade que seria mais “fá-
isso fazia com que elas não pudessem ser professoras lá, e isso eu não
entendia na época, porque tinha muita gente lá que era muito boa, só
que era negra e não podia ser professora. É ridículo isso. E lá nessa es-
Só que quando eu virei professora, foi o ápice da minha vida, foi o
-
tável, na época eu não tinha noção de onde estava me metendo, eu
não enxergava aquilo da maneira que realmente era, eu conversava
muito sobre o meu papel dentro da escola e estava em êxtase. Na
época – eu sempre quis – eu pintei o cabelo de laranja, eu era profes-
sora dessa escola, classe A, da zona sul. Assim que eu pintei não teve
problema nenhum. A minha coordenadora falou que estava bonito e
tal, dá aquele charminho, só que depois de mais ou menos um mês
começou um clima estranho, ela começou a dar uma ignorada de
leve, eu sentia que ela não estava me tratando mais como ela me
“Não, mas é muito mais comum, porque você não pensa num loiro,
num platinado? Aí eu falei: “Porque eu não gosto, simplesmente por-
para uma pessoa que acabou de ter o sonho realizado de ser profes-
sora, ouvir uma coisa dessa. Eu era muito novinha, então naquele
momento eu me vi num dilema, porque assim que eu entrei para
e falei assim: “Não, vou pintar meu cabelo com paz na minha mente
para que eu possa conseguir continuar nessa escola, que é uma coisa
que eu quero agora, isso não vai me mudar
mesma, pintei o cabelo. Isso foi no mês de junho; em dezembro, eu
fui demitida. (...) Depois que fui demitida, fui procurar outro empre-
go, batendo de escola em escola, sempre procurei ocupar o espaço
de professora de educação infantil, porque é quem eu sou, eu sou
professora de educação infantil e quando eu chegava nas escolas as
pessoas perguntavam: “Será que você não quer uma turma maior?
-
sim: “Será que para ser professora de educação infantil você tem que
de altura; não sou enorme, mas sou grande pra dar aula pra criança
pequena, tem gente que acha estranho. Eu fui nessa escola que eu
trabalho hoje em dia, que foi a escola que eu estudei e eu ouvi isso
de novo. Eu estava tentando convencer a minha diretora que eu servia
para fazer aquele papel, falei dos cursos, da experiência, da pesquisa,
a convenci! Beleza, na época não tinha turma de maternal e ela resol-
veu me colocar no pré (pré-escola). Fiquei um ano no pré e voltei para
o maternal. Aí quando eu voltei pro maternal, volta essa questão do
pais estavam reclamando de mim, porque achavam que eu era muito
distante das crianças, sendo que nessa escola nova que eu trabalho,
os pais não entram na sala de aula, eles não circulam, eles não veem
o que está acontecendo. Só que eles viam só na entrada e na saída e
eles achavam que eu era distante das crianças. Essa era a palavra que
eles usavam. E quando a irmã que é diretora (lá é uma escola católica)
Aí respondi que
Eu: “Não! Aí ela falou: “Não sei se você sabe como é que lida com
criança...
que entrei na faculdade; cinco anos estudando sobre educação in-
estudou sim, claro, mas às vezes o tato com crianças tem que ter um
tom maternal, de mãe, de cuidado, de ser mais próxima à
Para ser professora de uma instituição de ensino, a candidata à vaga deve mos-
passou a entender do que se tratava. Reparou entre suas colegas quem não tinha
270
os traços que a da rostidade indicada para ocupar a posição
tão desejada naquela escola, isso incluía seu cabelo, que depois de um tempo,
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
o si e o mundo são
a vida é “experiê
nos cerceia, nos soterra. Podemos, assim, pensar as possibilidades de ultrapassar
os muros e escapar dos buracos negros.
271
A Invenção de si e do mundo.
DIFERENÇA
12.
Juliana Paoliello
Priscila dos Santos Moreira
Alba Jane Santos Lima
Caminhando.
Além disso, traz fragmentos da literatura brasileira e músicas na composição desta escrita.
Juliana Paoliello (UFES)
Priscila dos Santos Moreira (IFES)
No novo tempo,
Apesar dos castigos!
Estamos em cena...
Estamos na rua...
Quebrando as algemas...
Pra nos socorrer...
274 (Ivan Lins)
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
produções desejantes.
276 -
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
Desejar é insurgir!
1 não
podemos deixar de citar o macro, vice-versa.
as intensidades a procuram para se fazerem efetuar. Nesse entendimento, com
de papel e une as pontas para formar um círculo. Antes, porém, gira uma delas
278
Moebius, na qual não se pode dizer onde é o dentro e onde é o fora.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
A artista quis despertar, por meio da produção dessas sucessões de cortes, que a
vida é um caminho cheio de curvas, cujas marcas das nossas atitudes e as conse-
-
É a transformação do papel de um jeito que ele
jamais será o mesmo novamente, um caminho que pode voltar ao mesmo lugar
- -, um caminho que vai se estreitando a cada curva da vida.
é feita das experiências mais imediatas que fazemos do mundo, logo as linhas
sensíveis que reverberam as palavras-forças nas imagens-cartazes exibidas pelos
estudantes, nos afetam pela sua condição de efeitos de resistência e, portanto,
de insurgência! A vida é
trilharem novos e outros caminhos que surgirão. Sertão é isto: o senhor empurra
É
sua obra traz à tona o movimento das práticas artísticas. Importa ativar o clínico
No novo tempo,
Apesar dos perigos!
A gente se encontra...
Cantando na praça...
Fazendo pirraça...
Pra sobreviver!
(Ivan Lins)
279
Ocupar e resistir!2
Os gritos ecoam nas vozes dos estudantes proliferando e fazendo chegar às uni-
versidades e institutos federais. Pirraçar, reivindicar, protestar, resistir! Resistir é
permitir que forças entrem em relação com outras forças: forças do devir, forças
-
vimento. Insurgência!
Estamos imersos num sistema capitalístico maquínico. Sistema esse que procura
se estabelecer a partir de relações de forças que sujeitam a sociedade à servidão
criação de mundos os quais produzem modos de existir que escapam aos me-
canismos de controle.
-
cia ativamente os desejos. Ao delinear paisagens que compõem o cenário socio-
político e suas interfaces com o campo da educação, linhas mais éticas poderão
280 emergir como força de constituição de mundos que operam pela potência da
composição com o coletivo.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
-
blematização dos modos de existência é produzida, e entra em cooperação, nos
diferentes contextos de resistência. “As pessoas não estão sempre iguais, ainda
-
São forças que entram em relação com outras forças e
criam sentidos outros que transformam os modos de percepção de si e de mundo
na produção da diferença.
não se constitui pela ideia de substância, mas, sobretudo, pela ideia da diferença.
As
conceber a atividade não mais como produção, mas como criação e efetuação
dos mundos, considerando a lógica do acontecimento, e permitir pensar a re-
lação entre singularidade e multiplicidade como alternativa à oposição entre
individualismo e holismo.
281
“Sertão é quando menos se espera”
(Grande Sertão Veredas - GUIMARÃES ROSA)
-
tes secundaristas, problematiza a ideia de política pelo viés do comum . Nesse
sentido, os modos de existência que resistem, não por via da recusa, mas pela
abertura à diferença, são subjetivações que não se sujeitam a planos institucio-
nalizados e que, portanto, não se opõem à dimensão criadora, instituinte e ativa
3 No sentido que se opõe e substitui a dicotomia de público e privado, socialista e capitalista, e as políticas baseadas nessa polari-
Desse modo, indagamos: que tipo de subjetividade a máquina abstrata tem pro-
duzido? Será que
O domínio de vidas que se sujeitam pela captura
-
sibilidades são bem reais, mas existem fora daquilo que as exprime
(signos, linguagem, gestos); os possíveis devem atualizar ou efetuar,
trata-se de desenvolver aquilo que o possível envolve, de explicar
aquilo que ele a implica.
Assim, habitar mundos que já estão postos não promovem rupturas nem cria
aberturas. É permanência do mesmo. Romper não é uma tarefa fácil; demanda
esforço, demanda perseverar na existência, é vontade de potência. Ao acompa-
Fonte:
4 A Proposta de Emenda Constitucional cria um teto para os gastos públicos durante vinte anos. Essa emenda inclui saúde e educação.
Nesse sentido, ocupar é um movimento de resistência, é reivindicar, é dizer “eu
-
tentes desses movimentos que emergem na e pela escola. Tais acontecimentos
dobram, desdobram e produzem outras maneiras de afetar e serem afetados pelo
mundo. A experiência da ocupação produz pertencimento, participação, ação
-
ços de diálogos: redes sociais, vídeos, fotos e outros veículos de circulação para
fomentarem a problemática vivida nesse contexto. Os enunciados discentes se
proliferaram por meio dos agenciamentos coletivos em uma multitude que se
todo o Brasil.
As redes sociais, como força virtual, também foram canais de incentivo ao movi-
mento. Encontramos um canal no , denominado “Mexeu com os secun-
-
tuais e pesquisadores se posicionaram em favor do movimento dos estudantes
-
gareth Rago, sobre a reação do Estado ao movimento secundarista, publica o
posicionamento da professora da Faculdade de Campinas, que considera que
“[...] a reação do Estado a este tipo de movimento só pode ser muito negativa,
pertencer é
“Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais,
é só fazer outras maiores perguntas”.
(Grande sertão veredas - Guimarães Rosa)
286
social não destituem suas possibilidades de pensar e resistir sobre a conjuntura
na qual eles estão inseridos. A potência insurgente da produção dos desejos
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
como força na constituição de uma política, são diagramas que, aumentam nos-
-
dantes secundaristas exprimem o devir revolucionário e resistente da juventude
nesse território como produção de possíveis.
-
sil nesses três últimos anos é produzir insurgências cotidianas nos territórios
-
beremos possibilidades outras no campo da educação, do trabalho docente,
da militância discente e, portanto, de políticas mais comprometidas com uma
288
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
Referências
BONFÁ, Junior. As ocupações dos estudantes secundaristas sob a luz da Esqui-
zoanálise.
Conversações
______. Diferença e repetição
transformações contemporâneas do
290
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
FORÇA, FORMA
E PINTURA:
13.
1 Introdução
Esta escrita busca problematizar como a força micropolítica produzida nas rela-
ções entre coordenação, professores, tutores e alunos, de um Curso de Especiali-
zação em Matemática para professores do Ensino Médio, ministrado à distância
pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), via Secretaria de Educação
a Distância (Sead) e a Universidade Aberta do Brasil (UAB), pode por meio das
práticas discursivas desse coletivo, produzir agenciamentos, problematizações
que possibilitem e não... afetar na forma macropolítica do referido curso.
292
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
importante sabermos sobre o seu andamento. Para tal, antes de irmos aos polos,
-
taforma Moodle, a respeito do andamento do curso, com o intuito inicial de
sabermos um pouco mais: sobre quem eram esses alunos? Por que estavam fa-
zendo o curso? O que esperavam? E a opinião deles sobre o trabalho pedagógico
exercido por professores e tutores de forma geral e já pensando em melhorias
que poderiam ser sugeridas para as próximas turmas.
1 -
tada pela EaD da Ufes, e é uma ferramenta que possui diversas possibilidades de comunicação entre
professor-aluno, aluno-aluno e aluno-professor, como chats, fóruns de discussão, dentre outras.
nos polos (coordenadores/as, tutoras, professores/as..) nas redes de conversação
é que se constituem as análises e problematizações dessa composição. Nesse
debate, utilizamos como intercessores teóricos autores de base pós-estrutura-
-
leuzianos que concernem à noção de área redonda, contorno, superfície plana
-
-
293
colocar alguns textos junto a outros, com os quais não têm aparente-
mente nada a ver, e produzir, assim, um novo efeito de sentido. [...]
[ ] são
-
atualidade, esses novos meios reverberam em outras artes, como teatro e o cine-
-
te análogo ao da colagem numa pintura. [...] Seria preciso conseguir apresentar
-
dos, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles come-
-
294 ceitos, no entanto as ciências, as artes são igualmente criadoras; na esteira de
-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
- 295
2
2
DOBRA 13 _ Carlos Chenier de Magalhães. Expansão XIV. 1968.
296
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
3 As dobras são como um terceiro que atrapalha a binaridade. Estão ora dentro e ora fora, produzindo uma desterritorialização. A
-
lhães para fugir das representações na pintura.
2.1 Macro e micropolítica
Nesse sentido, “[...] decifrar os sinais das formas nos permite existir socialmen-
as reativas (morais). Para a autora as forças ativas são as que nos colocam em
relação às formas como potências de vida, de transformação e de desterritoriali-
e produtoras de outros mundos possíveis. 297
Já as forças reativas, seriam aquelas que em nada nos ajudam a mudar o que está
instituído, seria mais ou menos como um quebra-cabeça no qual todas as partes
já estão determinadas, e aonde apenas um mundo seria possível. Portanto, nada
pode ser transformado. A força ativa luta pela mudança, enquanto a força reati-
va apenas reclama de não ser atendida pelas formas. “Sendo assim, é do embate
entre políticas do desejo (ativas e reativas) que esse constitui o campo de batalha
4 -
ração de força de trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal
a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos. Portanto cafetinada seria uma vida explo-
do poder da arte, no inicio de sua conversa devido ao consumo capitalístico que
acontece no meio das artes nos tempos atuais. No entanto, ela coloca depois em
e não, dependendo das forças ativas ou reativas em questão e toda uma conjun-
é chamada de
considerada forma...
-
-
do como objeto, nem representando um objeto, mas experimentando
Fonte:
E irá chamar esse estilo de pintura como de uma carne, uma vianda, onde o
corpo e os ossos se confrontam e problematiza a questão dizendo que: “O cor-
po só se revela quando deixa de ser sustentado pelos ossos, ou quando a carne
deixa de recobrir os ossos, quando ambos existem um para o outro, em tensão
exerce uma força centrípeda e a qual por sua vez isola, envolve, aprisiona e
expansão. Porém...
Fonte:
Como que essas conceituações podem nos forçar a pensar a formação docente a
distancia tendo o signo da pintura compondo com essa problematização? A no-
ç nos ajuda nesse movimento sobretudo ao questionar o
modelo, a placa, a representação. Na primeira etapa do curso de Especialização
Matemática na Prática, foram produzidos fascículos com registro de conteúdos e
atividades a serem cumpridas pelos/as professores/as em formação. A força pres-
-
tionando o uso do fascículo como única fonte e avaliando como potente o fato
de alguns professores utilizarem estratégias, para além da apostila. Como no
relato a seguir:
302
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Essa tensão, esse deslocamento de mão dupla, que Deleuze observa na pintura
-
leuze a arte tem a potência de capturar as forças e esse movimento de captura ele
nomeia de sensação. “[...] a arte não é a representação ou comemoração do que
já foi ou do que já passou, o que as obras de arte fazem é entregar ao futuro um
2.3 Educação a distância e profissionalização docente
A Educação à distância (EaD), é tecida pelas mãos de vários atores: coordena-
ção pedagógica, professores, tutores presenciais e a distância, estudantes, dentre
outros. Além de ela estar conectada a todos esses atores também se conecta a
polos, ambientes virtuais, mídias e políticas públicas, formando um ambiente
favorável a criação e construção de um “conhecimento tecido em rede ou rizo-
como ele pensa ser uma aula, para ele é algo muito preparado, ensaiado e isso
nos remete ao que seja ser um professor, ele precisa de inspiração e...
303
É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do
qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar.
É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que... É
muito divertido, é preciso encontrar... É como uma porta que não
conseguimos atravessar em qualquer posição.
sentido de buscar escapar da lógica template, que busca moldar a formação do-
cente na EAD, evidencia-se, entre tantas outras dimensões, no caráter represen-
tacional e prescritivo dos cursos: a forte ênfase instrucional estabelece, a priori,
o que o(a) professor(a) em formação deve ser, o que deve saber e como deve agir,
estabelecendo uma medida única. Esses movimentos de captura tentam excluir
os outros modos de vida que deslizam, escapam da medida única. No entanto,
do cálculo, da medida.
Em um dos Polos visitados o grupo tecia redes de afetos com a poesia, com o
teatro, a música, em bons encontros possibilitados entre os estudantes, professo-
res, tutores e tantos outros que se movimentaram na composição do Sarau , do
304 Projeto Faróis ; em outro, conhecemos o relato de experiências nos ambientes
virtuais (não apenas no Moodle) de redes de conversas coexistindo com o for-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
5 Encontros promovidos por um dos Polos, pelo menos uma vez no ano, povoados de afetos em que a poesia, a música e performan-
ces coexistem em uma noite de bons encontros entre alunos, professores, coordenadores e tantos outros que quisessem compor
com as grupalidades.
6 Projeto de extensão que possibilita o acesso da comunidade ao espaço do Polo com oferta de cursos para a comunidade local...
Atenciosamente,
“E”
*** 305
“D”
“D”,
-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
306
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Fonte:
DOBRA 2
_ Carlos Chenier. S/t.
Nessa tensão qual seria o limite comum? O elo, o lugar de troca, nos dois sen-
São essas composições que se movem nos encontros, bons encontros, que nos
fazem apostar na formação continuada, na modalidade à distância, no poder de
invenção e de criação de nossos professores e alunos apesar de toda a prescrição
– São obras de arte – pinturas – em aberto.
307
3 Conversações
Com dito, realizamos uma pesquisa de natureza qualitativa e utilizamos ele-
-
cional) e grande área plana (formas), para fazermos uma análise discursiva dos
sujeitos envolvidos.
Matemática
gestão
*Consideramos a formação mais recente na área de matemática seja licenciatura ou complementação; para os casos de
não possuir licenciatura ou complementação, consideramos o ano de conclusão do curso de graduação.
308
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
-
ganizada, seria interessante se todos os professores nos desse um fee-
-
-
-
310 -
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
-
311
“Ter uma interação com os cursistas dos outros polos, como por exem-
312
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
-
-
-
nam uma melhor interação/envolvimento dos alunos com o conteúdo
percebemos que o curso ajudou nessa expansão ao notarmos que eles se sentem
-
ção dos professores e atuação dos tutores presenciais e a distância, as conversas
evidenciaram o reconhecimento do trabalho dos tutores ao atender aos cursistas
- 313
bém presencialmente, participação dos tutores nos encontros estimulando os
debates; em relação aos professores o fato de serem da área foi considerado de
grande relevância, consideraram como potente também a orientação por vídeo
ou mensagem de texto, utilização de estratégias metodológicas próprias e não
apenas o uso das apostilas e divulgação na plataforma das orientações sobre a
avaliação da disciplina. Como fatores negativos apontaram: tutores não con-
seguiam responder as dúvidas, mudanças de datas nos encontros presenciais;
demora em postar as notas, ausência de assistência nas atividades pelos pro-
fessores a distância, pouca diversidade de metodologias ; recomendam que a
interação aconteça por outras vias de acesso para além da plataforma Moodle.
-
-
7 Em parágrafo anterior as enunciações apresentaram forte ênfase à metodologia e conteúdos curriculares da Matemática trabalhados
no curso, nesse momento da conversa no entanto as metodologias são citadas como trabalhadas em menor intensidade no curso.
“Em relação aos conteúdos, alguns professores deixaram de dar o
314
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Fonte:
Ao olharmos para essas cinco ou seis camadas elencadas aqui, constatamos que
o Curso tem potencial, apesar de prescritivo, que os professores (estudantes)
precisam de uma formação continuada de qualidade e que a comunicação entre
professores e alunos precisa melhorar. Ou seja, vimos claramente a tensão exis-
-
gãos, em uma pintura em devir. E todo esse movimento só é capaz de acontecer
Essa organização parece reverberar nos discursos produzidos nas redes de con-
versação que apontam para a necessidade de garantir os formatos, os mapas das
disciplinas, os Projetos de Cursos, como perenes, por vezes estáticos... No en-
Para n
para a problematização dessas questões, no encontro dos corpos e das ideias.
316 Emergem nas conversas tecidas uma busca pelas interações, pelo fazer que pos-
sibilite a experiência e não apenas a reprodução dos conteúdos dos fascículos,
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Mil platôs
______.
Encontros com
signos: possibilidades para pensar a aprendizagem no contexto da educa-
-
nível em:
PINTURAS DE FRANCIS BACON: -
-
Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada.
Disponível em
Experimentação dos professores na EaD: formas,
-
ta Catarina, Florianópolis.
318
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
QUANDO AS
IMAGENS VÃO
À GUERRA:
CURRÍCULO,
Thiago Ranniery
Júlia Pompeu
14.
Júlia Pompeu2
320
TÍTULO
da FAPERJ.
3 Abriremos cada uma das sessões deste texto com uma imagem do arquivo por nós explorado, esperando que funcionem como
epígrafes.
. O nome pode soar um tanto estranho à pesquisa em currículo. Trata-
se, contudo, de uma forma de combate a transmissão de doenças epidêmicas
-
cruz) no Rio de Janeiro, pretende combater as epidemias virais transmitidas por
mosquitos Aedes aegypti ao redor do mundo. O método é relativamente simples
4 A principal hipótese é que há uma disputa entre vírus e bactérias por nutrientes no espaço intracelular dos mosquitos.
5 Por meio de um mecanismo chamado incompatibilidade citoplasmática, uma fêmea do mosquito com a bactéria ao copular um
macho com ou sem a presença da bactéria produz ovos com a . No entanto, quando machos com a bactéria copulam
com fêmeas sem bactéria, não há produção de prole.
é de
um mosquito aliado ao combate das arboviroses, caracterizado por possuir um
jeito próprio, em virtude da co-presença da bactéria no seu organismo,
322
No site , a imagem, uma alegoria desenhada, do
mosquito apresenta o método do programa e as doenças transmitidas pelo mos-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
nós, marcos através dos quais se testemunha a convocação das imagens à guerra.
7 Extrapolaria aos limites deste texto qualquer caracterização ampla da contestada noção de biossegurança. Nós nos contentamos,
-
Em certo sentido, o que estamos chamando de um profícuo arquivo visual acom-
-
fato é um
arquivo performático imagético. Para seguir nesse direção, nós seguimos também
-
dade performática, um tom afetivo, uma relação com o observador, uma fenome-
arquivo a partir dos seus efeitos e afetos, a partir de uma passagem do que Ann
-
et al
enrosca criaturas, seres e entes, arrasta um elemento de incerteza e problematiza
as dicotomias salientes – natural/não-natural, humano/animal – constitutiva dos
encontros educacionais. Em virtude dessa ponderação, engajamos ainda nossa
análise com os estudos multiespécies que, concentrando-se nas espécies que co- 323
-constituem nossas vidas e histórias trabalham para romper como a suposta cen-
tralidade da vontade humana para a história .
Para tanto, dividimos este texto em duas seções. Na primeira, sugerimos como
a imagem é convocada para lidar com a a presença monstruosa da combinação
mosquito, bactéria e tecnologia sem que dispense ou preceda essa fantasmagoria.
Essas relações não são simétricas, envolvem trabalho mútuo, produzem atritos e
fricções e podem levar ao fracasso, de modo que suas recalcitrâncias ensinam
-
gunda parte, exploramos como essa convocação torna ambivalente agir enquanto
estamos juntos com esses outros: o currículo se torna o campo de construir uma
8
aliança eco-imagética interespécies. O não é apenas uma ferramenta
FIG. 2 _Abertura
da sessão sobre a bactéria do gênero Wolbachia no site
Wolbito na Escola
324
TÍTULO
-
de sangue, elemento necessário para a maturação dos ovos. É nessa etapa que a
fêmea pode se infectar, ao picar um humano que possui a doença, e se tornar um
vetor do vírus (CASTRO et al et al Ae-
des tenha vindo do Egito e que, com séculos sucessivos de encontros coloniais,
uns aos outros mutuamente em ligações que são, ao mesmo tempo, “hidráuli-
à explicação ao
misturar os mundos natural e social e exigir “reconceber a própria vida como um
conjunto interdependentes em sua maior parte não desejadas, [...] o que implica
não estaria à espera de ser interpretada por um sujeito, antes “ela mesma está
podemos apontar que o arquivo visual não apenas retrata o experimento políti-
, mas se torna crucial para produção
da política e seu estatuto de legibilidade.
-
ratórios de ciências biológicas, argumenta que “modos biológicos de conhecer
o mundo e modos de digitais de conhecer o mundo são colocados em diálogo
Um fator importante dessa história é como a imagem “que atua sobre nós em
-
ção do arquivo visual é importante para o programa, não apenas porque
ampliaria o número de mosquitos com as bactérias nos ambientes ou porque o
criaria uma população civil treinada para trabalhar e reconhecer os mosquitos
transmissores de vírus. É importante, sobretudo, porque a inteligibilidade da mis-
tura é fortemente afetada e dependente da convocação da imagem à guerra. Mui-
to embora tenhamos nossas dúvidas de tomar tal prática um exemplo de ciência
Porém, seja de que for, por meio de uma série de experimentos imagéticos –
vídeos, desenhos, esquemas, disponibilidade de canais para comunicação – o
não deixa de ser enquadrado como mais sociável que o Aedes, mesmo
quando um está embutido no outro. O é melhor não somente em virtu-
-
no-imageticamente criados são criados conosco e por nós. A virada visual está
nesta mobilização de alianças afetivas. Enquanto outras políticas de combate
328
dependem do Estado adquirir meios de acessar a população e no controle dos
hábitos humanos como forma de reduzir as contaminações, O WMP é condicio-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
nado pela mobilização das imagens criar o de acordo com afetos de in-
timidade – o Heróis contra a dengue, no título de uns dos vídeos. Nem o Aedes
nem a bactéria estão contra nós, eles estão conosco quando se percebe que as
imagens participam desse enovelados de obrigações articuladas nos emaranha-
dos de naturecultura
diálogo com outras espécies, não nos deixa nenhuma certeza de como os mun-
dos das alteridades interespécies deveriam funcionar. Ao navegar entre educação,
ciência e estado, o arquivo visual complicam a pretensão de história das políticas
aliança nas quais nem os efeitos nem os parceiros estão garantidos, inscrita em
um público mais amplo e, quase sempre, leigo. Antes, expõe como práticas
10 Os vírus pesam como aquilo que jaz excluído do complexo enquadramento dessas teias emaranhadas de tecnologia, ciência e edu-
cação. No entanto, extrapolaria aos limites deste texto explorar o enredamento imagético que estamos explorando nesta direção.
Aedes é quem traz a doença, o Wol-
performadas através das imagens. Não seria sem propósito, portanto, aproximar
a convocação das imagens à guerra de um trabalho de tornar-se com, de modo
que impulsiona o currículo para um tornar-se com outros, sejam insetos, bac-
-
rentes dependendo de suas posições em relação a outros seres que vivem com
xii) é instrutiva: “Nunca pense que você conhece todas as espécies envolvidas
transformação e mutabilidade.
Alianças eco-imagéticas, imagem-vetor
Com esta imagem do Aedes, nós nos voltamos, agora, para a provocação de
às vezes uma ‘cura’ para o que nos mata, seja o
O título desta sessão conclusiva possa soar um tanto tentador. Contudo, não
estamos reivindicando nenhuma inocência sob o título de alianças eco-imagé-
332
recebe, [..] quem ganha e quem perde, e onde a hostilidade começa dentro da
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
-
rior, o quão provocador o pode ser ao não se concentrar na erradicação
Alianças eco-imagéticas são um nome que, longe de apostar nas imagens para re-
-
dade de perspectivas. Em resumo, nós buscamos escapar da fadiga crescente com
o idioma da guerra aplicado aos parasitas que vivem no corpo humano, notada
Embora uma sensação de segurança, de não ser devorado por animais selva-
gens grandes e ferozes, seja visceralmente poderosa, os humanos são mortos
-
333
tativas de tornar os espaços de interação humano-não-humano seguros, o arquivo
visual não deixa de testemunhar, à contrapelo, uma agência tenaz, adap-
-
manas, mosquitos, bactérias e vírus não podem ser separados, mas coexistem ao
-
teiras rigorosamente policiadas e extermínio implacável que a educação deveria
materiais, [e é] sua diferenciação contínua e não sua integração, que torna a vida
uma solução para o problema de viver com essas criaturas, tratamos de apontar,
ao longo deste texto, para como as imagens convocadas à guerra inserem um
persistente murmúrio: pensemos currículo com cuidado. Pensar com cuidado é
um requisito vital para estar em mundos interdependentes, nas palavras de Bella-
e imagens. As imagens podem servir, assim, como um campo de aprendizagem
de repensar cuidadosamente o currículo desde nossas relações com espécies
nos assolam é que a imagem, mesmo diante, ou ainda em virtude de estar den-
tro de campo saturado de poderes, é um vetor que aponta para a imaginação de
outros e novos mundos. Uma imagem-vetor transmite e inocula o sinal deles nos
Neotropical Entomology, v.
Tactical
Biopolitics: Art, Activism, and Technoscience. Cambridge: The MIT Press,
Visual His-
tory
-
-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
Modest_Witness@Second_Millenium.FemaleMan©_Mee-
ts_
OncoMouse™
Environmen-
tal Humanities
The emergence of multispecies ethnogra-
Cultural Anthropology
O Biológico
Environmental Culture
ROTMAN, Brian. Becoming Beside Ourselves.
Iluminuras
Environmen-
tal Humanities
Estudos multiespé-
cies: cultivando artes de atentividade. ClimaCom
338
TÍTULO
15.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
AS IMAGENS-
CINEMA COMO
MÁQUINAS DE
GUERRA DO 339
PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E
DOCÊNCIAS E...
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves
Eliana Aparecida de Jesus Reis
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves (UFES)
340 A experimentação que provocou esta escrita foi um movimento de (tentar) li-
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
A origem do ato de pensar implica alguma coisa que violente o pensamento, que
o abale e o arraste numa busca, constituindo-se em um problema. Ao invés de
uma disposição natural, há forças instigadas fortuitamente, provocadas por um
encontro. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento e a violência pro-
vocados pelo encontro, entendidos como uma relação que se estabelece com o
exterior, com o fora.
Dessa forma, ao entrar em relação com o fora, o pensamento assume as con-
impensável, alojando-se sobre um chão movediço não dominado por ele para
além da imagem dogmática que se assenta, a priori, em uma forma ao fora. Nes-
se tipo de imagem, que se exprime no modelo da recognição, há a preexistência
de um objeto no qual o pensamento deve se alicerçar. “O objeto pensado é
menos o objeto de uma descoberta do que o objeto de um reconhecimento,
pois o pensamento, não estando em conexão de absoluta estranheza com o que
ele pensa ou se esforça por pensar, antecipa-se de algum modo, prejulgando a
342
heterogeneidade das maneiras de viver e de pensar para decifrar as suas impli-
cações e atravessamentos para fazer emergir o novo.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
-
tro; “[...] sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento,
O encontro com as imagens-cinema
como máquina de guerra do pensamento nômade
Para compreender a máquina de guerra, precisamos falar do nomadismo, pois,
343
-
caso do sedentário, em que sua relação com a terra está mediatizada por outra
coisa, por exemplo, regime de propriedade, aparelho de Estado etc.
um território. A terra deixa de ser terra e tende a tornar-se simples solo ou supor-
que se forma um espaço liso que corrói e tende a crescer em todas as direções.
pensamento em um espaço liso, que ele ocupa sem medi-lo e para o qual não
há método e/ou reprodução possível, mas somente “revezamentos, intermezzi,
nem para constituir modelo e nem para fazer cópia. Assim, uma máquina de
guerra do pensamento é formada
Piirongin Piiloissa
Caixas, compartimentos, sequências, números, horários, gavetas. Choca-nos o
curta Piirongin Piiloissa1 quando acompanhamos a sequência de imagens cujas
gavetas armazenam ordenadamente tudo aquilo que aparentemente correspon-
de aos elementos essenciais à
pequena gaveta, lá está o despertador tocando para avisar que é hora de acor-
dar. Fecha. Abre outra que contém apetrechos para fazer e tomar café; há outra
com linhas e adereços ordenamente arrumados; há ainda outras gavetas onde
são guardados esquadros, réguas, pequenos cartões com fórmulas matemáticas;
uma outra onde os objetos/caixinhas estão organizados em ordem de tamanho.
Abre gaveta. Fecha gaveta. Movimentos síncronos. Manter-se ordenada, organi-
346
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
1 Piirongin Piiloissa é um
em inglês como Chest of drawers, ou Cômoda, em português (tradução nossa. Dispo-
nível em: ).
O que nos violenta no encontro com os signos artísticos do curta-metragem é
o quanto nos reconhecemos na personagem, capturados pela produção de dis-
cursos-formas que operam em planos de subjetivação do indivíduo, no plano
347
Isso ocorre nos modos pelos quais temos produzido processos de ensinoaprendi-
zagem com as crianças nos quais, muitas vezes, há um anseio pela manutenção
de gavetas: de conhecimentos, de horários, de etapas, do tempo chronos. Pres-
crição. Mecanização.
aprender, é necessário abrir e fechar os compartimentos do conhecimento. Para
tal, devemos seguir as batidas do tempo chronos, que sempre está de prontidão
para indicar o momento de abrir e fechar as gavetas. As crianças, as professoras
e os currículos bailam na cronometria desse tempo que corre e, muitas vezes,
escorre pelas mãos.
-
tenção das suas gavetas. Entretanto, por mais que as práticas discursivas ambi-
cionem o condicionamento dos corpos, na manutenção de currículos prescriti-
vos e regidos pela cronicidade do tempo, sempre há escapes, outros modos de
quando, abraçada à -
tantes, o tempo chronos chronos logo
volta a operar e a manta é guardada de volta na gaveta, seguindo-se, assim, as
suas atividades corriqueiras e cadenciadas de abrir e fechar gavetas. No encon-
-
ta, perguntamo-nos: qual o lugar dos afetos/afecções em meio à mecanização e
à regulação da vida?
Por mais insistentes que sejam esses discursos em manter-se intocáveis e imutá-
veis, no que concerne aos processos de ensinoaprendizagem, os corpos sempre
buscam pelos afetos e afeções. Por isso, mesmo que um corpo se mostre despo-
tencializado, “[...] endurecido em suas ações e pensamentos, e, insensível ante
as miudezas da vida, ele pode, no encontro com um signo (uma coisa, uma
música, uma poesia, um cheiro, um corpo), ser afetado por outra forma de exis-
áquina de guerra.
-
torializa e desterritorializa, faz do fora um território no espaço, consolida esse
território mediante a construção de um segundo território adjacente, “[...] des-
territorializa o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritoria-
O que de pior poderia acontecer em uma loja de objetos frágeis como porce-
lana? No curta-metragem de animação Comme un elephant dans un magasin
de porcelaine,2 o vendedor atento cuida de cada objeto de modo a garantir que
xícaras, pires, pratos, bules, jarras e peças de decoração de porcelana estejam
sempre bem limpos e dispostos meticulosamente nas também frágeis prateleiras
2
-
IMAGEM 4 _ O inusitado acontece
352
Fonte: Comme un elephant dans un magasin de porcelaine
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
música cadenciados pelos movimentos dos corpos, dos gestos, dos objetos. “Um
agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplici-
dade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas
nós e em nós, para irmos dos estratos ao agenciamento mais profundo no qual
estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile... Conexão. Fluxos.
Experimentação.
Em uma articulação de forças, somos capturados pelos arroubos que o efeito das
imagens-cinema provoca em nós. O que nos dá a pensar? A força do pensamen-
-
ter umas às outras, pois os movimentos de desterritorialização e os processos de
reterritorialização estão presos uns aos outros, coexistem e se complementam.
Os caminhos de aprendências com as crianças também têm dessas coisas: ser
sensível à delicadeza e singularidade delas e caminhar junto aos (des)equilí-
brios curriculares que elas produzem. Talvez o professor seja como o cuidadoso
vendedor que, no encontro das crianças com os signos, sensibiliza-se às suas
criações e atualiza as virtualidades fabuladas por elas, produzindo, assim, pos-
sibilidades inesperadas para caminhar por currículos imanentes que escapam à
lógica de controle imposta pela ciência moderna.
Tratado de nomadologia
juntos, criam um caminho para passar pelas apertadas prateleiras de vidro com
as delicadas porcelanas em direção à saída. Juntos traçam possíveis, mas quan-
-
mente desaparece do mesmo jeito que apareceu, abruptamente.
Entretanto, o que nos afeta aqui não é a saída do elefante da loja, mas os agen-
ciamentos produzidos, os afectos que criaram movimentos, velocidades, inten-
Nas criações aprendentes que produzimos com as crianças, os signos que por
elas são fabulados, às vezes, podem parecer enormes elefantes que, no plano da
virtualidade, buscam a atualização. Afetar-se às fabulações das crianças corres-
The
355
song for rain convida-nos a colocar o pensamento em movimento, no sentido
3
A pequena raposa busca meios para coletar um pouco de água de chuva que
cai incessantemente. A água escorre pela organização cinza da metrópole, cujos
prédios, praças e pessoas demostram certa apatia pela cidade. Porém, a raposa,
em seu pelo em tom alaranjado e munida de uma pequena sacola furada, cor-
re por todos os cantos em busca de um pouco de água. Um menino com seu
guarda-chuva é capturado
poderia ser uma boa alternativa para coletar a água de chuva. Aproxima-se, en-
tão, da raposa e, agarrado a ela, sai correndo, pois imaginava qual deveria ser a
resolução para aquele problema.
Muitas vezes, nas relações com as crianças, acreditamos ser possível indicar
os caminhos e meios para a aprendizagem, assim como fez o menino, obser-
356 vando de longe o problema e, imediatamente, buscando a solução. Todavia, as
aprendências e as ensinagens acontecem nas relações, no contato, na criação
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
O menino, então, segue para uma loja para comprar um pote e resolver o pro-
blema da raposa, mas, com poucos recursos, sai da loja frustrado com a peque-
na raposa e seu guarda-chuva. A raposa segue com a sua sacola em busca de
água e o menino abre o seu guarda-chuva para tentar proteger a raposa. Prosse-
guem caminhando menino e raposa, até que o inesperado os surpreende e, no
envolvimento afetivo, outras possibilidades de criação de caminhos aprendentes
se manifestam. Um vento inesperado leva o guarda-chuva que cai no chão vira-
usado de outro modo, pode servir de coletor de água de chuva. Eles saem em
busca das pequenas gotas pela cidade. A cada gota de chuva, o menino e a ra-
Tal qual a relação professor-aluno, ora ensinamos, ora aprendemos, ora fazemos
as duas coisas ao mesmo tempo. Mecanismos de controle instituídos em proces-
sos educativos, quando orquestrados pela lógica de um desenvolvimento linear
e progressivo da aprendizagem, tentam reduzir a docência à mera mecaniza-
ção dos processos de aprenderensinar. No encontro com o corpo-escola, nosso
corpo-pensamento é sacudido por um cotidiano encharcado de vida imanente
em que há inúmeras possibilidades de fazer a vida expandir. Desse modo, a
relação entre quem aprende e quem ensina extrapola os modelos padronizados
de currículo, de docências, de crianças. No corpo-escola, “[...] experimentamos
os possíveis de um currículo ‘arteiro’, implicante, em composição/relação com
outros corpos, fazendo proliferações com múltiplas variações, tensionadas por
menino despede-se da raposa. Ela leva a água para um lugar ensolarado, cheio
árvores, uma paisagem bem diferente da cidade metropolitana.
-
poral: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as
358 no corpo, uma afecção que aumenta ou estimula a potência de agir e, na mente,
é uma ideia que aumenta ou estimula sua potência de pensar.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
Em sua ontologia, Spinoza apresenta que corpo e mente são modos de uma
mesma substância, na qual um corpo se distingue de outro por meio de uma
dinâmica própria: “Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo re-
-
riações de orientação e direção que engendram movimentos rizomáticos, tem-
porários e móveis, determinando mudanças de orientação dos percursos, das
certezas, para além da imagem dogmática do pensamento.
pelas relações recíprocas entre si: de um lado, um espaço não polarizado, fun-
damentalmente aberto, não mensurável, povoado de singularidades e, de outro,
REIS, Eliana Aparecida de. Currículos enredados por forças, afetos e afecções:
-
. Tese (Dou-
Deleuze
364
16.
TÍTULO
OFICINAS ARTÍSTICAS
NA PERIFERIA:
de Comunicação
um espaço educativo não-formal, onde se produzem, conforme a percepção
366
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
3
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES).
4 -
-
locais.
5 -
6 -
ço de produção e divulgação de projetos de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários e eventos culturais.
várias temáticas e frentes de atuação artística. Este capítulo se dispõe a colocar
em foco algumas das atividades realizadas ao longo dos encontros, destacando
aquelas que nos mobilizaram a pensar uma arte-educação na qual, como indica
á espaço para a criação de novos modos de vida.
367
representação da realidade. No nosso entendimento, não se trata de perseguir a
arte da representação, pois não há nenhum problema com a arte cujo objetivo é
representar. Propomo-nos, porém, a abordar a arte atentando, em especial, para
seu aspecto inventivo e suas incursões no campo da experimentação.
A “arte é presença de algo que não estava antes; não se trata de revelação de
Compreendemos, aqui, que a arte é uma das formas pelas quais o sujeito se
que a arte tem a potência de compor linhas de fuga, criar afetos e multiplicar as
atividade criadora: ela cria blocos de sensações. A arte acontece por intermédio
ansiosa por
[...] uma arte que seja motriz de uma docência que, ao mesmo tempo
em que se exerce, se experimenta, se (re)inventa e, fundamentalmente,
se vê num plano de construção ética, estética – e, mais do que
368 pedagógico, político –, atuando na diferença, sem pretender acabar
com ela, mas problematizando o consenso e as ideias prontas por
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
A educação artística pode, então, atuar como uma potente fusão entre a arte e a
vida, uma experiência que não mais se associa “ao simulacro ou à elevação das
aparências do mundo, mas como projeto ético capaz de modelar a experiência
educação, ou fora dela, pode ser uma operação da ordem do afeto, do sensível
educação pela arte, extrapolando a obra de arte, os espaços tradicionais da arte
e, inclusive, os próprios artistas. Estivemos menos preocupadas em transmitir
conteúdos e mais inclinadas a ver a arte-educação como uma experimentação de
modos de vida, de criação de modos de vida e, portanto, de focos de resistência.
que nasce, por assim dizer, também no meio das artes, com Antonin Artaud.
ainda, por esse campo experimental para o qual a arte nos convoca –,
Movidas pelo desejo de trabalhar com a arte e, ao mesmo tempo, pensá-la com
seu envelope, foi pedido que eles se imaginassem dentro da cena com a qual
integral daquela obra, antes mesmo de ler as informações sobre ela, a partir dos
sentimentos e afetações provocados por seu encontro com aquela cena.
ensino médio. Mas, por se tratar de uma tentativa de, justamente, desarticular a
institucionalização da arte, procuramos não dissolver a singularidade das obras
372 em questão numa grade conceitual rígida. O contexto pode ser importante em
outros momentos; ali, por outro lado, pretendíamos dar palco à surpresa, ao
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
acaso, ao improvável e, especialmente, aos modos pelos quais a arte afeta cada
corpo e, com isso, produz subjetividades.
Fonte:
Olhei para mim. Percebi que era uma versão caricata e disforme
dessas mulheres que sequer tinha certeza que existiam. Procurei por
todos os lados uma saída [...] Olhei vacilante para o grande papel
em branco que era poder ser qualquer coisa que não um manequim.
Desenhar a mim mesma livre. Sem saber o que fazer, voltei para a
caixa e tentei colar a porta, mas ela não encaixava mais. (Texto com
pequenas alterações gramaticais).
Nessa mesma dinâmica, um participante – cujo encontro se deu com a obra
Parede da Memória
aquela exposição era sobre sua própria família, que tentava recuperar sua
ancestralidade. A obra Parede da Memória é uma instalação de patuás nos quais
se registram fotos antigas de famílias negras, com intervenções de aquarela e
bordados. Nela, Paulino faz uma crítica à falta de representação negra nas artes
visuais, acentuando o modo racista como a sociedade brasileira se constitui,
invisibilizando a população negra. Esses elementos geraram muitos debates nas
FIGURA 2 _
Detalhe da obra Parede da Memória (1994-2015), de Rosana Paulino
374
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
Fonte:
participante escolheu uma obra abstrata para criar sua história. Tratava-se do
quadro Ascens
Ela contou que viu na obra, sem ler o título e as informações, a imagem do
375
Fonte:
pintura – mostram que o encontro com a arte cria possibilidades, explora uma
vida possível, trama uma existência potente. Entendemos, a partir dessa dinâmica,
que a arte não pertence ao artista que a criou, não está presa ao contexto em que
Como, desde o início, apostamos na experiência de compor com arte, uma das
Rocetti. Segundo ele, as zines são uma espécie de livreto ou revista; publicações
necessidade dos artistas de se autopublicarem com liberdade de expressão e de
não dependerem do mercado editorial para divulgação e distribuição do material
artístico. Justamente por isso, geralmente as zines exigem pouca técnica e baixo
outra zine fez um registro da paixão pelo futebol; houve uma de ode ao cérebro;
uma falou sobre os limites que a sociedade impõe ao corpo; outra teve o tema
zine ilustrada sobre transplante de mentes. Essa variedade mostra que o processo
379
php/producao-academica
além de incentivar a potência singular, como se vê nas zines individuais, também
nos perguntamos o que podemos enquanto corpo coletivo. Podemos criar outras
formas de agir, sentir, pensar ou de estar no mundo? O que podemos compor
juntos? Essas perguntas rondaram nossos corpos durante o percurso da pesquisa,
e apostamos em colocar os participantes não como objetos de estudos, mas sim
como componentes de sua construção. Optamos, portanto, por lançar Um corpo
com autoria coletiva,
outras áreas. Ao mesmo tempo, esses conteúdos foram tratados de forma aberta,
380
constituir uma pedagogia do comum, em que, para além da cognição, o aspecto
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
mais potente foi exercer uma educação que visa à relação dos corpos e como
eles se afetam nessa relação. Ou melhor, buscamos criar, em conjunto, um
espaço onde conhecimento e afeto operassem simultaneamente. Na companhia
coloque por inteiro. E exige relação com o outro. Entrar em contato, em sintonia
com os signos é relacionar-se, deixar-se afetar por eles, na mesma medida em
presente por inteiro no processo de ensinar e aprender, permitindo, assim, que
a sensibilidade nos sirva como guia. Trata-se de trazer a paixão para o processo,
de não o reduzir à transmissão de informações. Isso proporciona “aos alunos
modos de saber que lhes permitam conhecer-se melhor e viver mais plenamente
diversas formas, nas pichações dos muros, na música das casas, nos blocos de
ós não
ensinamos a fazer ou traçamos como objetivo compreender a arte, apenas
montamos um espaço de aprendizado marcado por limites, mas, sobretudo,
pela abertura de outros possíveis para a educação artística.
pode surgir e ser gestado. Por isso, escolhemos praticar arte em conjunto, dando
espaço para multiplicar as singularidades. Nosso pequeno guia coletivo, a zine
, pode servir
para que outros espaços, semelhantes e diferentes daquele construído por nós,
possam ser provocados e colocados em prática, realçando as potências políticas
e inventivas dos corpos no contato com a arte e com os espaços educativos que
transbordam a dicotomia do aprender-ensinar.
382
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
Referências
ANDRÉ, Carminda Mendes. Artes como mediadoras de afetos. Rebento, São
prática pedagógica).
Viso:
Cadernos de estética aplicada, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio 383
In
384
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
Como (…) coisas que não existem. São Paulo: Bienal de São Paulo, p. 250-
265, 2014. Disponível em: https://issuu.com/bienal/docs/31_livro_pt/252.
Acesso em: 19 jan. 2020.
RICO, Omar Alejandro Sánchez. Atualização da concepção sobre aquilo
Imaginário!, Paraíba,
17.
PENSANDO COM
Alexandra Garcia
Allan Rodrigues
Leonardo Alburquerque
1
1o Ato
Cenário: Auditório de um CIEP no bairro de São Bento, conhecido como um
388
2
allancr@id.uff.br
5
·1ª estudante (tom de voz enfático):
“—
lendária Atlântida
389
Sozinho?
“Manicure e Pedicure
390 ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chu-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
.)
391
Puxando a prosa:
Performances cotidianas em inscrições curriculares
O corpo, o som, a voz, os gestos, o inesperado, o olhar, uma imagem, fragmentos
de pensamentos que se inscrevem nos espaçotempo das escolas e inscrevem os
fragmentos de uma pesquisa realizada com estudantes dos três anos do ensino
7 Os dois CIEPS são localizados em bairros que são próximos e com características parecidas, ambos periféricos da cidade do Rio
de janeiro e do próprio município em que estão localizados - Duque de Caxias.
pós-qualitativas em Educação, que tais sujeitos são colaboradores da pesquisa,
posto que sem o envolvimento ativo desses praticantes, o que se teceu como
processo e como compreensões não seria possível.
As compreensões tecidas no texto são, para nós, ensaios no sentido do que pro-
obsessor do currículo.
outros dispositivos. Com esse texto temos a intenção de perceber essa presen-
ça, sem pretensão de evidenciá-la ou interpretá-la, pensando com ela currícu-
los como performances. Pensamos essa presença na esteira das colocações de
e está nas escolas e currículos na medida em que faz parte da invenção coti-
diana dos praticantes. Pensar currículos a partir dessa invenção que tanto é de
si quanto do mundo, para nós é pensar currículo como performance que se faz
com esse componente de presença que a dimensão estética favorece perceber
e que favorece confrontar sentidos previamente postos, sobretudo quando os
sentidos reiteram a hegemonia.
A narrativa inicial é uma passagem do processo de pesquisa e criação em con-
junto com as estudantes e estudantes do terceiro ano do ensino médio para pro-
dução e apresentação da performance no CIEP numa atividade em que outras
turmas apresentariam peças de teatro. Uma estudante preocupada com o que
deveria pesquisar, sobre a proposta feita pelo professor de sociologia e que tinha
como tema as ocupações oferecidas por trabalhadores no trajeto até a escola,
sugeriu copiar textos de anúncios de garotas de programa colados em orelhões
exclusões sociais, gênero, moral, sexualidade, arte, ética e talvez algo mais que
não nos ocorre elencar. Isto apenas para levantar o que circula no movimento de
produção curricular envolvido em poucos minutos de prosa entre um professor
e os estudantes de uma turma.
O texto é uma composição que se faz a partir do diálogo com a dimensão po-
393
lítica e artística das inscrições curriculares que os praticantes esboçam através
da invenção de si. Chamaremos essa dimensão de artepolítica, fazendo uso do
neologismo como recurso ao juntar as palavras e seus possíveis sentidos. Propõe
e acompanha intervenções que acionam os corpos, as vozes, o silêncio e o ba-
espaçotempo da escola em
com as narrativas e que nos soa como a presença das criações que se impõem ou
8
Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos
[...] uma produção racionalizada, expansionista além de centraliza-
-
da de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo
ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não
se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar
-
-
nos da periferia. Cotidianos que ao serem trazidos e reescritos pelos estudantes
nas performances expressam sua dimensão de artepolítica. Embora tratemos de
uma atividade de performance intencional, entendemos que esse movimento é
394 constitutivo dos cotidianos e do que compõe e mobiliza os currículos e as inven-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
Aqui cabe explicitar o que pensamos como artepolítica enquanto uma poética
que opera como criação artística, como arte e como política enquanto aspectos
inseparáveis. Assim, a criação de uma narrativa na performance não se pretende
política, mas, inevitavelmente toca em questões políticas, culturais e mesmo
-
e forma de sustento para alguns se refere a uma ocupação que envolve saberes,
ritos e práticas de
curricular esse trabalho é assumido como uma atividade produtiva, um trabalho
nos murros que delimitam a linha do trem, essa produção assume uma posição
política em que aqueles saberes e aquele fazer são compreendidos como exis-
tentes e legítimos.
tais narrativas se inscrevem com os saberes e vivências das jovens trajetórias dos
por essa escola pública. Nesse sentido, a ideia de currículo aqui proposta dialoga
com entendimento de currículo menor, inspirado pelo encontro entre o pensa-
mento deleuziano e as pesquisas com os cotidianos para propor que
-
rículo menor, implica olhar para os processos e espaços nos quais
nos fazemos professores como espaços de debate, de democratização
das relações entre os saberes, de viabilização de novas conexões e
entendimentos. Em síntese, espaço do complexo e que só pode ser
compreendido com uma política do cotidiano, repleto das relações
que nele se estabelecem. Esse currículo menor como os processos
e sentidos que alimentam os sentidos de docência é produzido nas
9 A noção de práticapolitica -
de que todas as práticas são políticas e todas as políticas são práticas.
Conversamos nesse texto com as produções a partir de espaçostempos de per-
formances que apresentam momentos distintos de vivências na escola. As con-
versas são mobilizadas com essas vivências no contexto dos estudos e discus-
sões do grupo Diálogos escolas-universidade.
tempo que até então poderia ser considerado como momento de espera, visto
ainda estar em treinamento no curso de manicure e pedicure. Torna esse possí-
vel presente e o trabalho como presença encarnada na estudante. Nesse tempo
vislumbrado é viável lidar também com os momentos fugidios, que podem ina-
divertidamente nos parece importar menos enquanto dimensão política, e trazê- 397
-
los, mesmo que incertas. Trata-se, assim de uma aposta na incerteza posto que:
10
Bloomington.
rarquia de materiais e funções ordinárias e obras de arte. De algum modo expõe
que o que caracteriza essa divisão arbitrária e hierárquica se pauta e sustentan-
do pelo discurso. Dessa forma, pensamos a performance de acordo com o que
Suportes vivos e cujos corpos e falas são, por sua vez, imagens mó-
veis, transitórias e transitantes de uma torrente de narrativas. Poéticas
que explicitam as redes de sentidos por meio das quais seus jovens
autores escrevem e descrevem suas vidas. Redes imagéticas em cujos
movimentos fulguram suas criações, reproduções, irrealizações, fabu-
-
o autor propõe pensar mitos que falam do encerramento nas operações de uma
-
chas e rompimentos escritos. São comédias de desnudamentos e torturas, relatos
-
postos. Essas produções têm um ar fantástico, não pela indecisão de um real que
mostrariam nas fronteiras da linguagem, mas pela relação entre os dispositivos
somente o interminável jogo de suas fabricações.
surge do processo de disputas políticas, questões que são políticas porque en-
volvem as vivências coletivas desses estudantes. Também é entender como arte
o viver miúdo e comum que fervilha nas periferias urbanas sem que se perceba
sua presença no correr que movimenta a vida e os dias.
399
Consideramos que a performance inclui na dinâmica de produção curricular
cotidiana a possibilidade de deslocamento da produção de sentidos naturaliza-
-
culo, escola e conhecimento são colonizadas pela racionalidade cognitiva-ins-
Cenário:
foi dada a tarefa de manter suas aulas por meio de ensino remoto conversa com
-
—
Janelas que são narrativas que mostram para fora, e também, para dentro. Espie
pela janela dessa estudante: 401
-
-
culares consistem em artespolíticas quando pensadas a partir da ideia de colocar
em movimento as coisas do mundo, essas coisas vistas como desimportantes
mesmo. São, em nossa compreensão, criações que tentam conversar com a ra-
-
-
tético-expressiva tem sido uma das questões mais debatidas na teoria
-
ser considerado como ato política ou entendida como arte. Nesse sentido, o que
Por sua forma de apresentação a foto seduz aquele que a observa como algo
dado ou constatação em uma realidade. Diante da foto, para aquele que vê, isso
não pode ser controlado, mas aqui podemos apresenta-la por meio do exercício
que busca estimular outros sentidos sobre si mesmos. Sendo assim, a perfor-
mance pelas janelas ainda se encontra em criação, vistos serem olhares de um
-
das pelas estudantes e estudantes que tiveram condições técnicas e quiseram
cinco momento: manhã, meio da manhã, tarde, tarde quase noite e noite. Dá-se
-
junto de imagens que fogem ao controle inicial de cada praticante e compõem
outra narrativa por edição.
404 Pensar a performance na escola, seja a performance da qual tratamos nesse tex-
to, sejam as performances cotidianas de professores e estudantes em seus fazeres
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
Finalizando esse ensaio que transita pelo cotidiano escolar a partir de perfor-
mances de dois momentos distinto, antes da pandemia e durante a pandemia,
política dessas produções curriculares está na arte
dos praticantes que criam esse cotidiano em movimento. As narrativas dos cor-
espaço de possibilidades que mediam ações e pensamentos por meio da sua
criação. O que nos faz propor que essa escrita de si se refere ao espaçotem-
po presente que os praticantes criam ao se debruçarem sobre seus cotidianos.
Somos enquanto performer esses suportes vivos, nossos corpos e falas são as
405
Referências
-
cação. Revista Educação e Realidade
?. Rio de Janeiro: Editora
ão. Rio de
-
venções de si nos processos de formação docente. Revista Currículo sem
Fronteiras
406
Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação.
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
-
mento, na escrita e na vida. Revista Educação & Realidade
18.
O QUE PODE A ESCOLA?
COTIDIANOS ESCOLARES
Introdução
da Previdência!
-
sas e dor de quem perdeu seus entes amados para a ditadura – que não houve
Eles venceram
E o sinal está fechado pra nós
-
O que de antemão podemos dizer é que esse regime não se consolida apenas a
Dessa forma, nossa intenção neste trabalho é trazer problematizações sobre essa
412
-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
-
gendrar novos modos de ser e estar no mundo. Recorremos, assim, a uma pes-
pois o cinema, “as imagens de uma forma geral emitem signos [...] que afeta[m]
subjetividade – de outras subjetividades.
Alike ,
mostra um pai como personagem que reproduz comportamentos esperados no
-
poração, cumprir horários, ter atenção ou ver apenas o que interessa, cultuar a
-
zados, mas percebe que ele se tornou uma criança entristecida, acabrunhada,
sem energia. Nesse momento, efetua-se a ruptura. O pai volta ao lugar em que
-
413
mente, assume o lugar do violonista e faz uma performance como quem tocava
um violino.
teletela. Oceania estava dominada pelo medo e pela repressão. O medo reinava
porque quem pensava diferente ou contra o regime era acusado de cometer um
serem reduzidos a peças para servir o Estado, através do controle total da popu-
lação por meio de um processo midiático onipresente e controlado pelo Partido
2
– todos eram observados o tempo inteiro, submetidos às notícias fabricadas para
atender ao regime.
414
Problematizações sobre o contexto
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
-
mos com o mundo. A primeira, que é imediata e se baseia na percepção, pos-
sibilita-nos uma apreensão desse mundo, que é inseparável do campo cultural,
pois essa experiência é eivada de códigos, símbolos, representações que nos
permitem atribuir sentidos ao que fazemos, tocamos, escutamos – o que a autora
-
3
que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso cor-
po em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver
mundo vive em nosso corpo. Pulsa. São os perceptos e os afectos que não têm
uma imagem ou palavras que os representa, mas são reais e “[...] dizem respeito
à dimensão viva do mundo, cujos efeitos compõem um modo de apreensão ex-
-
mo tempo e são indissociáveis. Mas a relação entre elas é paradoxal, gera tensão
e acaba por desestabilizar a subjetividade, causando a sensação de mal-estar. 415
Frente ao que vivemos, desenvolve-se uma política do desejo – que é o modo de
resposta do desejo diante da experiência de desestabilização e mal-estar – que
muda em função de uma época, uma forma de cultura. E o mais importante “[...]
é que a subjetividade consegue se sustentar no mal-estar provocado pela tensão
entre ambas, o que lhe dá condições para se manter à escuta dos afectos e per-
Essa política do desejo que se constitui no âmbito da micropolítica pode ser ativa
ou reativa. No primeiro caso, “o mundo larvário que nela habita terá grandes
-
-
minação, da reverberação das ressonâncias nas subjetividades, com o poder de
contaminar todo o seu entorno. É
5 “[...] emoção vital, a qual pode ser contemplada [...] no sentido do verbo afetar – tocar, perturbar, abalar, atingir [...]. Perceptos e
[...] um devir da subjetividade e de seu campo relacional imediato e,
a partir dele, de outros campos relacionais que habitam as subjetivi-
dades que o compõem [...] capilarizando-se rizomaticamente pelo
corpo do mundo e transformando sua paisagem [...] é a potência do
vivo que as ações do desejo buscarão expandir para ampliar nossa
condição de existir. O que a micropolítica ativa visa é, pois, à conser-
vação da potência do vivo que se realiza num incessante processo de
-
nial capitalístico que desativa a potência que o corpo tem para decifrar o mun-
do, e a subjetividade passa a ser orientada apenas por sua experiência de sujeito
– a subjetividade antropo-falo-ego-logocêntrica – ou seja, começa e termina no
próprio sujeito. E “por estar bloqueada em sua experiência fora-do-sujeito, ela
se torna surda aos efeitos das forças que agitam o mundo [...] ignorando aquilo
-
416 fetinístico, pelo poder de sequestro da força vital, da potência do vivo. Negri
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
não mais na relação entre a fábrica e a sociedade, mas no nível social, das for-
mas de exploração da vida, e isso, segundo o autor, já era problematizado na
de trabalho, que mostravam que o
capitalismo passava a exercer não só a função de controle da sociedade, mas
que entrava no corpo da vida. “O mundo do trabalho explora enquanto
ou seja, não explora mais apenas a “força de trabalho e sim como forma viva,
6
cooperação da qual tal potência depende para que se efetue em sua singularida-
de. “A força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo regime para
-
-
Os professores sentem esse poder cafetinístico, que extrai nossa força vital:
417
Ao que outro
professor completa:
8
e, principalmente, avaliação em lar-
-
9
418
-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
em um neocapitalismo que “[...] atinge as raízes da existência. Ele faz mais que
exigir submissão e obediência; ele molda e modula a subjetividade e a vida dos
:
. Então,
-
teis, criativos, conectados, maleáveis, que circulam por vários lugares, enredam-
-se com outros corpos pelas redes virtuais. Transitam, ou pelo menos pensam
que transitam, velozmente, sem barreiras. A única certeza é que o fazem com a
mesma velocidade de circulação do capital mundial. Esse, sim, sem barreiras,
sem fronteiras. Então não é necessária a força bruta para impor suas condições,
mas a mudança da força dos desejos. Corrompe-se a política do desejo, como
infância, suas energias sendo corrompidos para atender um jeito de ser e estar
E, para aumentar ainda mais nossa perplexidade, o que vemos hoje é algo que,
num primeiro momento, parece paradoxal, contraditório, que é a aliança entre
neoliberalismo e neoconservadorismo extremo, porque o alto grau de comple-
um dos presidentes mais bem avaliados da história do Brasil, que hoje é pro-
clamado por parte da população que aprovava seu governo como um bandido
de alta periculosidade e, junto com todo o Partido dos Trabalhadores, fonte de
toda corrupção no Brasil. Isso nos faz compreender por que Dilma sofreu o im-
peachment por um crime não cometido, ou pelos menos que outros já haviam
cometido e que não foram afastados de seus postos de comando. E isso tudo em
meio aos nossos gritos: Não vai ter golpe! Como agravamento da situação, temos
Mas, quando somos tomados por esses sentimentos, aloja em nós a política
de subjetivação guiada pelo inconsciente colonial cafetinístico. Perdemos a po-
tência do combate da micropolítica ativa e tendemos a nos deixar levar pela
o -
nha, despolitizada: o representado
essa conjuntura:
é permitido
(os temas)
ainda, situações de professores que são readaptados em outras funções por não
condição como mal-estar docente, por sabermos “[...] que algo não vai bem,
subjetividade.
aprisionam e criar outras imagens que libertam dos modos únicos de pensar e
agir, provocando movimentos inventivos que emergem na coletividade. Como
-
tra nas camadas mais obscuras do fascismo e consegue tirar dali algo para cons-
truir um horizonte de vida coletiva. Desse modo, os diálogos com os professores
objetivaram pensar movimentos de resistência possíveis na criação de correntes
de ar vital por entre a lama tóxica gerada pelo capitalismo globalitário na socie-
425
Eu tenho esperança, apesar
de esperança;
vão acontecendo aos poucos, nos projetos da escola, nas atitudes dos professo-
violino, pelo menos paramos para ouvi-lo. Outro professor relata: apesar desse
a situação estava, realmente, muito boa, uma forma de alucinação coletiva seria
que tende a fazer crer que o que se consuma é o inevitável. E ainda as formas
de controle e vigilância. Passamos do panóptico – controle físico e material –,
constituído das técnicas disciplinares, às tecnologias biopolíticas. No primeiro,
produz-se o conhecimento apenas do corpo, do indivíduo; no biopoder, visa-se
-
que outras técnicas de poder já estavam sendo gestadas – técnicas que não se
literatura a ser lida pelo povo. Nessa empreitada, produz, com o auxílio das
-
nhecimento. Desse modo, o Partido totalitário impede que a população tenha
contato com a produção discursiva que possa emergir com a leitura de livros
considerados como ameaças ao poder. Entretanto essa personagem apaixona-se
por Winston, com quem passa a se encontrar às escondidas, porque o Partido
Os professores, o tempo todo, pareceram querer mostrar uma relação muito pró-
nas escolas, mas também trouxeram em suas falas indícios sobre a possibilidade
de insurgir, de resistir: Vivemos, na política atual, uma cultura de vigilância do
-
sores problematizando, explicitando suas angú
tempo, propondo, buscando, re-existindo no seu fazer pedagógico. Isso porque,
-
, ou seja,
existências, nossas experiências deslocam, movimentam os cotidianos escolares
428 íveis
formas de re-existir, mover o pensamento para os modos de insurgir e resistir na
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
-
ral. E pudemos sentir o quanto o cinema pode contribuir, no sentido de nos levar
a criar, inventar, discutir acerca de novos/outros modos de existir insurgindo,
engendrando resistências no contexto atual.
Considerações finais
Os autores referenciados neste artigo têm apontado algumas formas de insur-
gir, resistir e produzir novos/outros processos de subjetivação que tendem a su-
perar ou minimizar os efeitos perversos e destrutivos do inconsciente colonial
cafetinístico. Não basta resistir macropoliticamente, “é preciso o combate pela
do comum, “para isso é preciso tomar para si a responsabilidade como ser vivo
e lutar pela reapropriação das potências de criação e cooperação e pela cons-
-
siva. Se é uma construção histórica, é uma construção humana. Se é uma cons-
trução humana, podemos intervir. Se podemos intervir, podemos crer que outras
formas de viver, que produzem outros mundos, outras escolas, são possíveis. Um
mundo sem tristeza. Porque nossa aposta são mundos e escolas sem tristeza – a
aposta deles é o contrário. Apostam na tristeza. Porque nada alimenta mais este
sistema que a nossa tristeza, porque a tristeza nos fragiliza e imobiliza. Assim,
nada alimenta mais o capitalismo que a nossa tristeza. A tristeza nos impede de
lutar pelo que acreditamos.
educação e cinema!
431
Referências
Multidão
______. Bem estar comum.
______. Declaração
Resumos...
1984
Ensaios do assombro
-
435
De todo modo, era inequívoco que elas agiam me atraindo em secretas cumpli-
cidades. Eclipsando categorias conhecidas, causavam uma deserção terrível e
intrigante. Como num ímpeto imprevisível, adentrava-me nos labirintos de seus
signos insólitos numa experiência irreversível.
Nessa incursão sem volta, suas verdades se revelavam senão pelas próprias mu-
danças que em mim causavam. De sorte, não eram verdades que pré-existissem
indiferenciadamente a quem se revelam, bem como não se revelam a qualquer
um em qualquer tempo bastando ter os melhores instrumentos e os métodos
mais adequados.
aqueles que em seus segredos distintamente se iniciam. E, apreendê-las era uma
peripécia que não podíamos antecipar, muito menos repetir. Ainda assim, ini-
ciar-se em seus segredos não era um exercício cinicamente aleatório.
Apenas as ocasiões difusas do dia-a-dia de uma escola, vividas e feitas por gen-
tes ordinárias, podiam dizer, e em ardis oportunos, dos sentidos obscuros que
nelas se forjavam. À medida que me adentrava em seus segredos instigantes,
entretanto, suas verdades comunicavam acima de tudo um horizonte clandesti-
no de forças em cujas relações faziam esgueirar as próprias gentes e coisas dos 437
limites apertados do hábito e de tal maneira que eu mesmo não podia deixar de
sofrer seus traiçoeiros efeitos.
lancinante vastidão, mais sentida do que vista, dessas relações desiguais de for-
ças difusas do cotidiano nas quais parecia que tudo fugia de si.
-
masiado vertiginoso. Eram meninos que molhavam formiguinhas e meninos de
cabeças chatas, o subversivo ordinário elevado a seu expoente. Estudantes nes-
sas escolas, seus gestos formavam expressões dessa terrível experiência cotidia-
-
neamente conhecidas. Essa dimensão terrível assumia nos gestos desses meninos
um intolerável que já não podia ser escamoteado.
-
tidiano já nada fastidioso e a própria brecha por onde era possível ver tudo
escapar. Formavam, assim, uma condicionalidade pujante na qual era possível
vislumbrar o dia-a-dia de uma escola numa abertura para matizes de realidades
se fazendo.
-
tivação vigente por onde mostravam, ainda que não se quisesse ver, que tudo
fugia. E não só mostravam, como contagiosamente instigavam, a contrapelo, a
tudo fugir. Por certo, outros testemunhavam o mal estar causado nessas expe-
riências um tanto desatinadas, o que depunha de certa maneira a meu favor.
438
tura desse cotidiano escolar permeado por terríveis elementos que o transversa-
lizam? Como produzir conhecimento em Educação desde esses acontecimentos
erráticos que, suscitando crises, nos coloca nesses focos de criação num coti-
diano escolar? Como suportar o mal estar que nos causam e o fremido que agita
os anelos que (nos) encerram e (nos) dominam, assumindo todas as suas conse-
quências? Como pensar as coordenadas de pesquisa desde uma transversalidade
que não se subjuga a unidades de categorias e formas homogêneas?
Sem desprezar a força da modalidade epistêmica das ciências e seus efeitos (mo-
nocórdios) sobre a experiência do conhecer, queremos judiciosamente indicar
a possibilidade de maneiras heurísticas irredutíveis às ciências consagradas sem
deixar, num mesmo movimento, de questionar a univocidade das ciências como
linguagem legitimadora da experiência do conhecer.
Com isso, por meio dos signos artísticos, queremos evidenciar uma modalidade
de produção de conhecimento que assume o processo de subjetivação no qual
está imerso, e ao fazê-lo não deixa de mostrar-se como uma atividade que se
realiza coletivamente, ativando a sensibilidade daqueles que o vivem, como
Com o
sobre o que lhe acontece (os mitos, as histórias orais, os discursos religiosos...),
-
válido e o que é linguagem sem sentido, forma uma matriz da experiência cien-
dos tempos .
para colocar em discussão o que seria, por outro lado, o sensível implicado nas
artes como dispositivo também de formação de pensamento, embora de um tipo
de pensamento diferente das ciências.
1 -
epistêmicas e ontológicas. Incorremos, com o limite posto por esse texto, em deixar de ver algumas nuances distintas, dando a
impressão ilegítima de continuidade a um rebento histórico que atravessa os séculos. Contudo, vale destacar que no século XX,
paradigma
do próprio paradigma.
Mas que conhecimento é esse das ciências? O que se quer alcançar com o ver
3 Enfatizando a racionalidade empírico-formal de matriz baconiana, não podemos deixar de mencionar a racionalidade lógico-
-formal de matriz galileneana com seus intercessores matemáticos por meio dos quais cria a linguagem de conhecimento sobre
a natureza. Sobre essa matriz galileneana há
se ele não seria uma modalidade de idola, a contragosto do postulado baco-
niano. Colocando dessa maneira, entendemos que os idolas que o projeto de
racionalidade baconiano tanto se esforçou para se desvencilhar, pelo mesmo
esforço não pode deixar de produzir seus próprios idolas. Mais do que uma
4
não deixa de
Destacando o limite desse texto, contudo, reiteramos que não é
-