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E ESTÉTICA

CURRÍCULO
1

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR ORG.


Janete Magalhães Carvalho | Sandra Kretli da Silva | Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni ORG.
CURRÍCULO
E ESTÉTICA
Organizadoras
Janete Magalhães Carvalho (PPGE/UFES)
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)

Capa, editoração, diagramação, ilustração


Fernanda Cristina Martins Pestana

Revisão
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)

Tiragem
E-book (PDF)

Ficha Catalográfica
TÍTULO

ISBN

Impresso no Brasil
1a Edição - outubro | 2020
ISBN:
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
3

CURRÍCULO
E ESTÉTICA

Janete Magalhães Carvalho


Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (Org.)

1 a E D I Ç ÃO | 2 0 2 0
V i tó r i a - ES
Sumário 2 Currículo da
cidade e o direito
de aparecer:
PREFÁCIO 9 aliançar que faz
diferença
OS SIGNOS ACERCAM-SE
Glaucia Carneiro
Antonio Carlos Rodrigues
de Amorim (FE/UNICAMP) (UFMG) e Marlucy
Alves Paraíso
APRESENTAÇÃO 15 (UFMG) 49
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Janete Magalhães Carvalho (PPGE/UFES),
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES) e Tânia Mara
Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)

4
TÍTULO

1 A ferramenta e o objeto do teatro


numa ideia de aprendizado
Renato Mendes (Unicamp) e
Sílvio Gallo (Unicamp) 31 4 Por docências não
dogmáticas e existências
não mínimas nos
cotidianos escolares

3 Transcriação de signos:
infantil, aula, docência
Janete Magalhães
Carvalho (UFES/CNPq),
Steferson Zanoni Roseiro
Sandra Mara Corazza
(UFES) e Suzany Goulart
(UFRGS/CNPq) e Silas
Lourenço (UVV) 89
Borges Monteiro (UFMT) 69
5 9

E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Fazer morada na infância: imagens
Narrativa,
de currículos em devir-criança
cinema e
César Donizetti Pereira Leite
realidade: a
(UNESP), Bianca Santos Chisté (UFR)
ousadia de
e Giovani Cammarota (UFJF) 115 pensar-estranhar
outros mundos

DE EDUCAR
Graziele Corrêa

| CURRÍCULO
O cinema abrindo alas para os Amorim (UFV) e
devires passarem Eduardo Simonini

DA ARTE
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFV)

SUMÁRIO
(UFES), Nathan Moretto Guzzo 211

CURRÍCULO E ESTÉTICA
Fernandes (UFES) e Sandra
Kretli da Silva (UFES) 169

8 Encenações curriculares: inspirações nas obras


de Pina Bausch
Ana Paula Pereira Marques de Carvalho (UERJ)

6
e Rita de Cássia Prazeres Frangella (UERJ) 193
Signos artísticos

10
e aprendizagens
involuntárias “Mamãe, vamos nos esconder?”:
Carlos Eduardo as artes crianceiras em tempos de
Ferraço (UFES/ monstruosidades necropolíticas
CNPq) e Marco Luciane Tavares dos Santos (UFF)
Antonio Oliva e Marcio Caetano (UFPel) 231
Gomes (UFES) 137
13 Força, forma e pintura: movimentos na formação continuada de
professores a distância
Jaqueline Magalhães Brum (UFES) e Nilcea Elias Rodrigues (UFES) 291

11 Vestido, quimono e
peruca, produções 14 Quando as imagens
vão à guerra: currículo,
narrativas e mosquitos, bactérias,
imagéticas de vírus, ciências,
si: rostidade e tecnologias…
professoras em devir Thiago Ranniery (UFRJ) e
Maria da Conceição Júlia Pompeu (UFRJ) 319
Silva Soares (UERJ) e
Simone Gomes da
Costa (UERJ) 257

6
TÍTULO

15 As imagens-cinema como
SUMÁRIO | CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR

máquinas de guerra do
pensamento: currículos e

12 (Des)caminhos: as imagens-
cartazes potencializando
docências e...
Camilla Borini Vazzoler
Gonçalves (UFES), Eliana
a vida coletiva com as
aprendências insurgentes na Aparecida de Jesus Reis
diferença (SEME/SERRA) e Tânia
Juliana Paoliello (UFES), Mara Zanotti Guerra
Priscila dos Santos Moreira Frizzera Delboni (UFES) 339
(IFES) e Alba Jane Santos
Lima (IFES/UNIRIO) 273
17 Pensando com a 20 Materiais artístico-

E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


presença: currículos como narrativos, cotidianos
performances cotidianas e formação docente:
Alexandra Garcia (UERJ), fluxos aprendentes
Allan Rodrigues (UERJ) e coletivos na
Leonardo Alburquerque perspectiva das
(SEEDUC/RJ) epistemologias do Sul
387
Graça Reis (UFRJ), Inês

DE EDUCAR
| CURRÍCULO
19
Barbosa de Oliveira
Signos artísticos e conhecimento: (UNESA/UERJ) e

DA ARTE
um ensaio contra-epistemológico Marina Santos Nunes

SUMÁRIO
Patrick Stefenoni Kuster (UFES) 435 de Campos (URFJ) 453

CURRÍCULO E ESTÉTICA
7

16 Oficinas artísticas

18
na periferia: práticas
educativas para O que pode a escola?
aprender e afetar o Atravessamentos do cinema
corpo coletivo nos/dos processos de
Lysia da Silva insurreições e resistências
Almeida (IFES), nos cotidianos escolares
Davis Moreira Alvim Terezinha Maria Schuchter
(IFES) e Izabel Rizzi (UFES), Fabio Luiz Alves de
Mação (UFES) Amorim (Faculdade Estácio
365
de Sá) e Jaconias Dias
Rodrigues (UFES) 409
8
TÍTULO

PREFÁCIO
OS SIGNOS
ACERCAM-SE
Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

PREFÁCIO
Faculdade de Educação, Unicamp

9
Dizer de uma vida qualquer, como é a que os currículos (com)
portam e liberam, é arrastar, simultaneamente, seu esgotamen-
to para fora das lógicas do possível e reivindicar o acesso da
areia do deserto ao liso espaço do mar que ondula. Não sei se
pelo serpentear dos trilhos de trem que recortam as montanhas
e acabam por instaurar na vida que ali é vivida à espera pelo
acontecimento que, de tão lento, não chega ou que, de tão sur-
preso, passa-nos despercebido.
Os cortes da linha de trem em montanhas fazem delas frações de deslocamento
e criam o novo das cicatrizes na vida da qual se exige ressurgir sob o ferro, a
pressão e o atrito das faíscas, pequenas e invisíveis ruínas da resistência – da

pedaços de carvão.

Nesta época do ano, em que o vento inicia sua jornada em busca de uma umi-
dade perdida do tempo e que o céu vai ao encontro de um azul pa[li]decido, a

de Ponta de Areia de Milton Nascimento e Fernando Brandt. Arranca em mim


os trilhos sazonais que não me deixam esquecer as praças vazias e as casas es-
10
quecidas das quais sou a viúva no portal.
PREFÁCIO | OS SIGNOS ACERCAM-SE

Perder-me, no percurso do deserto ao mar, e misturar-me com os cristais minús-

a um todo ou fragmento representável.

Desse modo, vagueante, vem chegando uma questão à superfície, que se es-
tende para dois campos de estudo de meu interesse – imagem e currículo – e
assim ela se pronuncia: seria mesmo de uma realidade capturável e unívoca que
eles falariam? Currículo e imagem ganham intensidades diferenciais à medida
que não têm mais a função de referir-se apenas à palavra ou ao conhecimento.
Portanto, a subjetivação que a imagem faz ao currículo indica-lhe, em termos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


discursivos, tanto sua vinculação aos signos e às marcas, quanto à incapacidade
-

trabalham intensivamente à busca dos deslocamentos.

Para Deleuze, a imagem não é objeto, mas sim processo; isso exige a percepção
das realidades e sua apre(he)ndizagem marcadas pela passagem de uma cultura

geradas em um universo de redes e devires, gérmens de questionamentos sobre


onde começa e onde acaba a imagem, nos entremeios de transparências e di- 11

O possível, com as imagens, acontece sem mediação; o currículo (qualidade


dada pela coincidência entre objeto e sujeito) subjetiva-se por imagens que in-
terpretam, circulam e falam delas mesmas. Nasce uma condição paradoxal entre
signos e currículos.

Desfere-se um curricular que exige radicalizar a imagem. Segundo Buci-


-
gem criativa: o funcionamento do pensamento, seu poder e seu impoder. Pois é
realmente através da imagem que o pensamento se vincula com seus limites e
margens: o impensado, o irrevogável, o inexplicável, o intolerável, até da vio-
lência e da morte.

Prolifera-se um contexto de relação entre mente-mundo em um tipo de am-


biência próxima a processos de apre(he)ndizagem que estão mais associados
a dobras, a dispositivos de se voltar do exterior para o interior e ao exterior ser
devolvido. Deixando nascer uma corporeidade táctil, de percepção dispersiva e
membranosa do ambiente, de estar vivo como uma característica de retorno da
imagem que passa por algum anteparo humano- não humano que a apreende,
para, em seguida, retornar ao mundo/à realidade/às visualidades com as inten-
sidades de tal encontro.
12
Rastreiam-se movimentos local/cotidianamente distintos de devir, modulados
PREFÁCIO | OS SIGNOS ACERCAM-SE

pelas experiências idiossincráticas de resistência; um revés a um processo em


que um povo, uma escola, uma multidão, uma matilha, uma onda sonora, uma
invasão de raios luminosos, se esforçariam para produzir sociedades que per-

-
bram cada seção de uma vida segmentar, larva que contém a asa da borboleta, e
que também abre a pele e a ferida por gosto exatamente da carne que putrefaria?
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Referência

Nietzsche Deleuze, imagem, literatura, educação. For- 13


14
TÍTULO

APRESENTAÇÃO
CURRÍCULO E

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ESTÉTICA DA
ARTE DE EDUCAR

APRESENTAÇÃO
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Organizadoras
15
15

pela professora Dra. Janete Magalhães Carvalho, denominada


Imagens, signos artísticos instigando aprendizagens nos currículos
em cotidianos escolares: potencializando a constituição de corpos
coletivos (período 2020-2025), cujo objetivo principal foi e é esti-
mular os movimentos experimentados na constituição dos campos
intensivos em seu desenvolvimento, por meio do agenciamento

educação básica. Isso com a pretensão de envolver a multiplicida-


de de pensamentos e desejos e pensar diferencialmente a aprendi-
zagem tanto de estudantes como de professores, a partir das rela-
ções que estão sendo engendradas, buscando o restabelecimento
nos cotidianos escolares do sentido do público e do coletivo.
A trajetória percorrida pelo grupo de pesquisa “
da Diferença em Currículos e Formação de Professores”, nestes últimos anos, so-
bre aprendizagem de professores, estudantes e currículos nos cotidianos, aponta

de modo que ultrapassem a dimensão estritamente disciplinar. Nesse sentido, é


relevante a realização de pesquisas que tratem da problemática de o coletivo
escolar se constituir como comunidade compartilhada, em processos de comu-
-
ção entre imagens, signos artísticos e aprendizagem, pesquisem como imagens,
constituídas de potências objetivas (de fora), podem promover alterações pro-
16 fundas nas formas subjetivas (de dentro), conferindo singularidades que, com-
APRESENTAÇÃO

imagens põem o pensamento para funcionar e podem fazê-lo estremecer...

Buscamos, assim, o agenciamento do desejo de aprender potencializado pe-


los signos artísticos, visando a uma estética da arte de educar que ultrapasse a
dimensão de uma docência dogmática e um ensino compartimentalizado. To-
mamos o conceito de signo em Deleuze que aparece ao longo de toda a sua
obra, ligando cada um de seus livros e artigos ao desenvolvimento de diferentes

signos que insiste virtualmente em seus livros e artigos. Pode-se dizer mesmo
que as diferentes problemáticas às quais se dedica Deleuze se enriquecem quan-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


do apreendidas tendo em consideração a experiência do signo. Nessa teoria, o
signo é afecto, ou seja, é um sentir diferentemente nos encontros e corresponde
à variação de nossa potência de existir. Isso ocorre porque o signo envolve uma
diferença de nível constitutiva, uma heterogeneidade irredutível aos dispositivos
que seguram a diferença pela analogia no juízo, pela semelhança no objeto,
pela identidade no conceito e pela oposição no predicado. Um dos aspectos
-
-

17
o mais aberto nem o mais importante. Além disso, nessa teoria o pensamento
deixa de ser um ato de boa vontade de uma consciência soberana, como ocorre
nas imagens tradicionais do pensamento, pois, para Deleuze, pensar implica
uma violência, ou seja, é uma atividade disparada involuntariamente pela força

Cada existência provém de gestos que a instauram e não advém de um criador


como ponto de origem, pois é imanente à própria existência. Desse ponto de
vista, podemos pensar a existência a partir dos limites dos seres ou podemos
pensar a existência a partir dos gestos que instaura, da forma tomada pelos seres
quando aparecem. No primeiro caso, a potência de existir é limitada, enquanto
no segundo é revelada a maneira do existir, a curvatura singular, que, assim,

Nas escolas, o contato com as crianças evidencia as existências dos mundos

e, de imediato, seremos atravessados pelos mundos de todas as espécies que a


alcançam – seres imaginados coletivamente, experiências ordinárias, expressões
e situações improváveis. Tudo, nessa relação, aponta para a multiplicidade de
possíveis da existência.

Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
18 artísticos, fazem-nos ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
APRESENTAÇÃO

-
des de vida.

potência artística. Para os autores, a arte cria as condições de existência dos


mundos ao traçar planos de afecções que, circulando, esbarram no plano da
vida continuamente. A arte cria mundos justamente para sacudir a vida estag-
nada, por fazer ruir os fundamentos demasiadamente certos da paz ensejada a
gritos da professora que exige um silêncio que nem mesmo ela suporta. “Trata-se
sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num com-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Busca-se forçar o pensamento a pensar, movimentá-lo em meio a signos que nos
transportem para outros possíveis, tal como no

— —Quem é você?

— —
— 19
A própria Alice explicou:

Desse modo, objetiva este livro a abertura dos intermundos que habitam nossas
infâncias e nossas pesquisas. É composto não somente de textos escritos por
-
sultados de pesquisas e ensaios muito plurais em duplo sentido: a) pelos signos

b) pelo número expressivo de instituições de ensino superior aqui representadas


por meio de seus pesquisadores que conosco se envolveram nessa viagem atrás
de um Coelho Branco que, olhando o relógio retirado do bolso do colete, conti-
nua a correr e, passando por este livro, sempre faz uma reverência e diz:

— Vai começar tudo de novo!

Assim esperamos que vicejem outras ideias, outras parcerias, outros afetos e
afecções que, atravessando estas páginas, potencializem novas discussões, pro-
blematizações e que, incansavelmente, sempre comecemos tudo de novo na
diferença da repetição.

O livro, antes que jorrem novas ideias e comece tudo de novo, apresenta vinte
20
capítulos.
APRESENTAÇÃO

O primeiro tem o título A ferramenta e o objeto do teatro numa ideia de apren-


dizado
Aborda alguns elementos da sensibilidade estética no processo de aprendizado
em torno de experiências possibilitadas pelo exercício do teatro. Tais experiên-
cias estéticas não são dissociadas de sua perspectiva social, abrindo-se pois os
horizontes para uma educação transformadora de si e do mundo.

Currículo da cidade e o direito de aparecer: aliançar que


faz diferença, explora a noção de cidade como um currículo, um território onde
é possível aprender no encontro com signos e afectos, que podem atravessar o

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-

-
rias-forças, dentre as quais destaca: o aliançar e o hesitar.

O terceiro, Transcriação de signos: infantil, aula, docência, de autoria de San-

aula e a docência em sua relação com a transcriação de signos. Aborda como


em aula, nesse tempo de distanciamento, a docência vê a si mesmo em um 21
monitor, uma imagem entre outras, em mosaico, em destaque, a depender da
plataforma. Esse encontro de fantasmas jogando com signos torna a pedagogia
uma espécie de espectralidade que deve ser transcriada em outra docência,
outra aula e outro infantil.

-
Por docências
não dogmáticas e existências não mínimas nos cotidianos escolares, opera com
a noção de uma docência não dogmática que reconhece a pluralidade dos in-
termundos. Utiliza pinturas feitas pelos alunos, atreladas a trechos das conversas
estabelecidas entre eles, concluindo pela necessária instauração de gestos e/ou
modos de criação em frente à lógica de controle e redução da vida infantil das

O quinto, Fazer morada na infância: imagens de currículos em devir-criança,

caracterizar a educação infantil? Currículos como modos de experimentar mun-

produzidas por professores, auxiliares, crianças? Conclui por um outro limiar


de currículo, um devir-criança como aquele território que se projeta como fora,
como perigo e como experiência.
22
O sexto capítulo, escrito por Carlos Eduardo Ferraço (Ufes) e Marco Antonio
APRESENTAÇÃO

Signos artísticos e aprendizagens involuntá-


rias, enfoca a força dos signos artísticos como condição de re-existência ante
os mecanismos de diminuição de vidas, reverberando na produção de múltiplas
aprendizagens, caracterizadas como involuntárias, que insurgem em diferentes
processos-movimentos educacionais. A produção de possíveis para as vidas to-
-
lidade de produção de movimentos de re-existência e de criação.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
O cinema abrindo alas
para os devires passarem, argumenta que o encontro com as imagens-cinema
em redes de conversas força o pensamento, impulsionando o corpo coletivo na
invenção de novos movimentos curriculares e na busca de mais sentidos para os
processos de aprendizagensensino.

O oitavo capítulo, com o título Encenações curriculares: inspirações nas obras


de Pina Bausch, escrito por Ana Paula Pereira Marques de Carvalho (Uerj) e Rita
de Cássia Prazeres Frangella (Uerj), propõe a discussão de uma concepção de
currículo a partir de uma inspiração bauschiana, na potência das provocações 23
que ela nos incita, especialmente no que diz respeito à tensão ambivalente entre
as dimensões pedagógicas e performáticas que dessacralizam o currículo como
lugar da tradição e, nessas articulações ambivalentes, contingencialmente, evo-
cam uma temporalidade iterativa e intersticial.

ê -
Narrativa, cinema e realidade: a ousadia de pensar-es-
tranhar outros mundos, toma como base um documentário sobre Manoel de
Barros em sua perspectiva de realidade inventada, no movimento de construir
outros arranjos de sentido-sensações. Conclui que, no estranhamento de certe-
zas, as imagens-narrativas fílmicas podem fazer com que sejamos convidados e/
ou obrigados à (re)invenção de um mundo.

No décimo capítulo, “Mamãe, vamos nos esconder?”: as artes crianceiras em


tempos de monstruosidades necropolíticas, de
e Marcio Caetano (UFPel), os autores buscam pensar e escrever os modos como
-
corporam os acontecimentosexperiências com a pandemia nas artes cotidianas
do cuidado com as crianças da casa e das escolas. Narra como a arte das crian-
ças e seus desenhos se revelam potente recurso de um mundo para além do iso-
lamento, do medo do contágio e do que vem ou pode vir em decorrência dele.
24
O décimo primeiro capítulo, escrito por Maria da Conceição Silva Soares (Uerj)
APRESENTAÇÃO

Vestido, quimono e peruca, produ-


ções narrativas e imagéticas de si: rostidade e professoras em devir, objetiva
a criação de espaçostempos para, por meio de fabulações imagéticas sobre si,
simultaneamente, interrogar, refuncionalizar, potencializar as tessituras das redes
-
tências e invenções e, assim, problematizar o sistema corpo-genêro-sexualidade.

O décimo segundo capítulo, (Des)caminhos: as imagens-cartazes potenciali-


zando a vida coletiva com as aprendências insurgentes na diferença, de Julia-
(Ifes/Unirio), discute sobre o movimento de ocupação das escolas públicas de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


um ensaio, a escrita tangencia uma análise a partir de signos artísticos como a
obra Caminhando,
Rosa, em sua relação com as linhas desejantes que emergiram insurgentes nos
movimentos de ocupação.

O décimo terceiro capítulo, escrito por Jaqueline Magalhães Brum (Ufes) e Nil-
cea Elias Rodrigues (Ufes), denominado Força, forma e pintura: movimentos na
formação continuada de professores a distância, problematiza como a força
micropolítica produzida nas relações de afetos e afecções em um curso EAD em
Matemática pode afetar a forma macropolítica, utilizando elementos da pintura
25
(forças, elementos relacionais e formas) para análise dos enunciados discursivos
dos cursistas sobre o curso a distância.

quarto capítulo, Quando as imagens vão à guerra: currículo, mosquitos, bacté-


rias, vírus, ciências, tecnologias… O texto sugere como a imagem é convocada
para lidar com a presença monstruosa da combinação mosquito, bactéria e tec-
nologia sem que dispense ou preceda essa fantasmagoria. Essas relações e suas

curriculares. Exploram como essa convocação torna ambivalente agir enquanto


estamos juntos com esses outros, visto que o currículo se torna o campo para
construir uma aliança ecoimagética interespécies.
O décimo quinto capítulo, As imagens-cinema como máquinas de guerra do
pensamento: currículos e docências e
-

abrir linhas, devires, agenciamentos, acontecimentos nos encontros com ima-


gens-cinema entendidas como máquina de guerra do pensamento que permite a
abertura para outros/novos territórios ainda não sentidos e vividos de currículos
e docências e aprendências.

-
26
vis Moreira Alvim (Ifes) e Izabel Rizzi Mação (Ufes), em
APRESENTAÇÃO

periferia: práticas educativas para aprender e afetar o corpo coletivo, enfocam

-
liê de Ideias – ponto de cultura e espaço de produção e divulgação de projetos
de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários e eventos
culturais. Os autores abordam, em especial, o encontro elaborado a partir de
material disponibilizado pelo Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca de São
O décimo sétimo capítulo, Pensando com a presença: currículos como perfor-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mances cotidianas, de -
do Alburquerque (Seeduc/RJ), discute como somos, como performers, suportes
vivos. Nossos corpos e falas são as narrativas de imagens móveis que buscam
-
tes do cotidiano em deslocamentos mobilizados com performances, sons e ima-
gens busca desdobramentos de uma escrita de si permeável e inacabada como
a própria arte.

O décimo oitavo capítulo, de autoria de Terezinha Maria Schuchter (Ufes), Fabio


O que 27
pode a escola? Atravessamentos do cinema nos/dos processos de insurreições
e resistências nos cotidianos escolares, visa a tecer problematizações sobre a
-

ser inseridos no cotidiano escolar como artefato disparador e questionador das


questões vivenciadas no tempo presente.

Signos artísticos
e conhecimento: um ensaio contra-epistemológico, objetiva explorar as possíveis
relações entre os signos artísticos e a atividade do conhecer inerente a uma pesquisa.
No alcance dessa análise, na relação entre experiência sensível e produção de conhe-
cimento, assumindo seu caráter inventivo, acena para o estatuto necessariamente clíni-
co-ético-estético-político na produção de conhecimento. Na perspectiva da produção,
um conhecimento insurgente a toda forma de exploração da vida aponta a força de se
pesquisar por meio dos signos artísticos.

Oliveira (UNESA/UERJ) e Marina Santos Nunes de Campos (URFJ) denominado


-
tes coletivos na perspectiva das epistemologias do Sul, associa narrativas de si
presentes em bordados e em histórias contadas por professores em sua relação
28 com processos coletivos de aprender, sobre si e sobre o mundo, e promover, a
partir daí, uma ecologia de saberes, como pressupõem as epistemologias do Sul,
APRESENTAÇÃO

estabelecendo relações mais igualitárias entre diferentes saberes e racionalida-


des. Reconhece, assim, nas situações e experiências , possibi-
lidades emancipatórias e coletivas de formação.

Boa leitura!
Referências

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


O cotidiano escolar como comunidade de afe-
tos

Proust e os signos -

Tradução de Bento Prado

-
29

As existências mínimas

NASCIMENTO, Roberto Duarte Santana. Teoria dos signos no pensamento de


Gilles Deleuze -
TÍTULO

30

1.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
31

A FERRAMENTA
E O OBJETO DO
TEATRO NUMA IDEIA
DE APRENDIZADO

Renato Mendes
Sílvio Gallo
1

Sílvio Gallo2

“Vida e arte são as chamas gêmeas da revolta”


Emma Goldman

1 Sempre à mão
Ao longo de diversas experiências educativas que emergiram em diferentes mo-
mentos da história, o caráter lúdico e pedagógico das artes, a experiência do
fazer bem como a fruição estética por parte dos aprendizes, foi um aliado valo-
32 roso dos mais variados projetos de aprendizagem. Se tomamos como exemplo
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

primeiros anos do século XX, o projeto de uma educação integral era marcado
pela afetividade, evidenciando a importância estética no aprender, como pode-
mos ver no seguinte trecho:

Ademais, não se educa integralmente o homem disciplinando sua


inteligência, fazendo caso do coração e relegando a vontade. O ho-
mem, na unidade de sua funcionalidade cerebral, é um complexo;
tem várias facetas fundamentais, é uma energia que vê, afeto que
rejeita ou adere ao concebido, e vontade que se cristaliza em atos,
o percebido e amado [...] Cuidaremos para que as representações
intelectuais que a ciência sugerir ao educado sejam convertidas em

1
Instituto de Artes da Unesp.

2 Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e Pesquisador do CNPq.

3 Escuela Moderna de Barcelona

na experimentação. O racionalismo de Ferrer, no entanto, dava extrema importância ao afetivo nos processos de aprendizagem.

animado inúmeras escolas anarquistas, inclusive no Brasil.


sentimento que ele as ame intensamente. Porque o sentimento, quan-
do é forte, penetra e se difunde pelo mais profundo do organismo

-
der em seu livro : ainda que o aprender seja uma expe-
riência no pensamento, ele é totalmente marcado pelo afetivo e pelo estético,
visto que somos levados a aprender – e a pensar – pelo encontro com signos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


enigmáticos que nos provocam problemas que são da ordem da sensibilidade. É
a sensibilidade, pois, que nos move a aprender.

Neste texto, perseguiremos alguns elementos da sensibilidade estética no pro-


cesso de aprendizado em torno de experiências possibilitadas pelo exercício
do teatro. Tais experiências estéticas não serão dissociadas de sua perspectiva
social, abrindo-se pois os horizontes para uma educação transformadora, de si
e do mundo.

33
como até em determinados momentos em que a instituição escolar não estava
disponível – ou exercia uma função contrária à formação subjetiva emancipado-
ra dos sujeitos – ela foi usada como recurso para a construção de imagens e lin-
guagens que provoquem movimento tanto pessoal quanto, e sobretudo, social. O
-
tra a manutenção de um corpo cotidiano, e possibilita estremecer subjetividades.

um de seus produtos os corpos docilizados, longamente amansados nos bancos


escolares através dos anos, preparados para a obediência, para os ritmos de
trabalho, para a produtividade requerida pelo mundo capitalista. O teatro, com
seu trabalho corporal, também passa pela disciplina, visto que sem disciplinar
o corpo a atuação não é possível. Mas, trata-se de um disciplinamento que abre
horizontes, que possibilita estar no mundo de formas outras, implicando em pro-
cessos singulares de subjetivação. Diferentemente de uma sala de aula, o corpo
da serialização produzida em nossa sociedade, visando a submissão e a obe-
diência, uma prática teatral poderia ensejar?

Num exemplo pontual não muito distante de nós, embora muito bem ocultado
-
-
xão crítica acerca de questões sociais. Foi o caso das vilas operárias, organizadas
e engajadas por anarquistas que compunham a linha de frente dos primeiros
anos da luta proletária no Brasil, no então nascente século XX. Uma das poucas
pesquisadoras a se desdobrar sobre o tema, num trabalho verdadeiramente ar-
queológico em busca do que era mantido ocultado nesse capítulo história, Ma-

que os sujeitos integrantes dessas comunidades se instruíam e se formavam, bem


como ensaiavam insurgências contra o entendimento de mundo premido pelo
senso comum e imposto subjetiva e diariamente pelos meios convencionais,
inclusive escolares.
34

Coube, nos primórdios das lutas sociais, ao movimento anarquista


A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

no Brasil, amparado por vozes estrangeiras e brasileiras, a luta contra


a exploração imposta por um sistema injusto. Para que isso fosse al-
cançado, foi necessário um trabalho sistemático de conscientização
voltado para a classe trabalhadora [...] Um meio mais forte e direto
veio juntar-se aos jornais, livros e palestras: o teatro social, como o
chamavam. Impressionando ouvido e visão, o teatro anarquista estava

Pois não apenas o caráter informativo e de difusão de ideias era próprio dessa
expressão popular, mas nela, e a partir dela, intentava-se fomentar a produção
de saberes pela estética, e uma formação sensível de quem a praticava. Atores
e atrizes, criadores no palco – ou nos mais variados espaços improvisados que
de palco lhes serviam – operários e operárias ensaiavam serem sujeitos ato-
res ativos, não alienados das relações cotidianas fora do espaço da represen-
tação.
luso brasileiro que conviveu e biografou grande parte do movimento operário

forma alguma se limitava a ela:

A imprensa publicada em idioma italiano também comentava o Teatro


Social, libertário, fundado em São Paulo, exaltando seu valor como
veículo de propaganda ideológica e de protesto contra a exploração

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


do homem pelo homem, e como divertimento sadio a nível familiar,
de educação ácrata

-
mente a popularidade dos teatros formativos, e a consciência de seus partíci-
pes de que era nesse teatro, feito amadoramente pelos próprios operários, que
essa camada da população tinha sua experiência pedagógica: “Toda região,

35
(PETTINATI, apud
ideais sócio-políticos ácratas ou o ofício cenológico eram apreendidos nessas
representações. Era por meio do aspecto lúdico do Teatro Social que anarquistas
e demais trabalhadores e trabalhadoras estudavam de maneira livre sua própria
formação ética e também os demais temas do conhecimento humano, como
nos lembra Rodrigues: “É lícito dizer que um dos grandes méritos do movimento
anarquista foi o Teatro Social, ativo em todos os campos do conhecimento, da
ciência, da cultura, da solidariedade humana e ideológica, a níveis nacional e

É evidente que os anarquistas exerciam essa ação com o teatro, em seu caráter
didático, de maneira própria, particular, de maneira instrumental aos seus obje-
tivos enquanto projeto de sujeito e projeto de mundo – ideias que perpassam e

4 narra as histórias de diversos operários


das primeiras décadas do século XIX, de variados ramos e articulados em uma liga saint-simoniana de cooperação, que apro-
veitavam suas horas de lazer e de descanso – suas noites – para exercer atividades artísticas: pintavam, esculpiam, desenhavam,

princípio, não estava reservado a eles, era sua forma de emancipar-se da condição de exploração e de dominação, exercitando as
atividades estéticas.
constituem a educação. Porém o exemplo a que acima recorremos, ainda que
com certo vanguardismo, não é algo novo ou sequer único na história.

Se nos avançarmos à segunda metade do século XX, poderemos observar uma


das mais profícuas propostas de utilização das artes cênicas como instrumento
formativo que se tem. O dramatista alemão Bertolt Brecht desenvolverá seu no-
minado Teatro Didático, prática que compõe o corpo do que se convencionou
chamar Teatro Épico. Em seus aprofundados
frisará que, a sua maneira e segundo seus interesses, sua experiência ecoa outras
vozes dessa emergência na história: “o teatro épico nada apresenta de especial-
mente novo (...) já os mistérios medievais, o teatro clássico espanhol e o tea-

preocupado com as grandes lutas políticas de seu tempo, o marxista Brecht se


engajará na investigação acerca de uma arte teatral que, buscando exercer sua
qualidade educativa, permita examinar de maneira crítica a sociedade, forme
ética e esteticamente tanto quem o exerce quanto quem o assiste, e sirva como

36
Não buscamos aqui apropriar e atribuir o arcabouço brechtiano ao bojo do Tea-
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

tro Social anarquista, tampouco descaracterizar a experiência pedagógica lúdica


e social ácrata, adequando-a à proposta épica. Apenas partimos do mote seme-
lhante, até certo ponto aliado, no comprometimento com um pensamento e
uma prática educativa que emancipe os sujeitos por meio de sua sensibilização
e conscientização ante às relações sociais que caracterizam opressão. No seio

lembrará que todo grande artista tem seu espaço e sua relevância determinados
por si, sendo comparações entre eles de caráter apenas analítico. Numa impor-
tante, embora pouco estudada, obra de análise de diversos textos teatrais de seu

Partamos do exemplo histórico dos primeiros anarquistas para conceitos


mais modernos, cientes de suas particularidades. Se nos propusermos a pensar
a educação para além do campo institucional escolar, mas não o excluindo, e a
pensarmos de maneira atrelada à sociedade em seu entorno, o que de nenhum
modo, querendo-se ou não, ela deixa de estar, podemos perceber potências cria-
doras de diferença e resistência subjetiva nessas experiências de teatro muitas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


O palco principiou a ter uma ação didática. (...) O teatro passou a ofe-

aberta apenas a todos aqueles que desejavam não só explicar como

-
lisemos então a possibilidade de aprendizado por meio lúdico teatral, exami-
nando tal proposta de devir brechtiano.

37
2 Percepção afetiva do mundo: aprender teatro /
aprender com teatro
O teatro, assim como a educação, e sobretudo o teatro na educação tem a ca-
pacidade de apurar uma percepção afetiva do mundo por parte dos sujeitos.
A construção e interpretação cognitiva e também física corporal de imagens
interpretativas e representativas adentra um entendimento que extrapola o pen-

tenha desenvolvido um pensamento base acerca de tal possibilidade de apren-


dizado, e a utilizado de maneira engajada com um entendimento crítico e uma
proposta de transformação de mundo, foi o diretor e pedagogo teatral brasileiro
Augusto Boal, em seu laboratório de criação que culminou na consolidação da
Estética do oprimido -
dor da obra de Brecht, acerca das múltiplas possibilidades da linguagem sensível
como produção de saber, ele é categórico quanto ao ato político que representa:
(...) temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois
que pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma su-
bliminal, inconsciente, profunda! Temos que repudiar a ideia de que
existe uma só estética, soberana, à qual estamos submetidos – tal ati-
tude seria nossa rendição ao Pensamento Único, à ditadura da palavra

A palavra como universo conhecido tende a aprisionar o pensamento nos lu-


gares conhecidos. No entanto, o pensamento sensível, dos sons e das imagens,
que impressiona ouvido e visão constituindo uma força, não se basta em si para
combater o Pensamento Único. É necessário dominar o campo das palavras
para conseguir opor-se a elas, criar palavras novas, somar e pluralizar símbolo
e sensação. A formação dos sujeitos por meio das ferramentas teatrais perpassa
o campo da razão e da palavra enquanto leitura crítica de sociedade, como de-
termina Brecht:

(...) um dos elementos mais característicos do teatro épico, o chamado


efeito de distanciamento. Tal efeito depende de uma técnica especial,
pela qual se confere aos acontecimentos representados (acontecimen-
38 tos que se desenrolam entre os homens nas suas relações recíprocas)
um cunho de sensacionalismo; os acontecimentos passam a exigir
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

uma explicação, deixam de ser evidentes, naturais. O objetivo do


efeito de distanciamento é possibilitar ao espectador uma crítica fe-

Nas perspectivas de Boal e Brecht, podemos perceber uma evidente preocupa-


ção com a função social da arte, o entendimento do artista como cidadão e tam-
bém a qualidade do cidadão como artista. Essa qualidade em que, entendendo
o mundo como experiência estética, o sujeito passa a agir simbólica e pratica-
mente no seu meio social, é fundamental não só para o objetivo das formulações
-
ção. O fazer e o fruir artístico pouco ou nada se distinguem, e existem no sentido
de constituir e educar um sujeito emancipado, jamais alheio, ao seu todo. Não
se constrói assim nada de novo, mas se revela algo já existente na palavra, no
sensível e no trato com o outro.
O artista mostra o escondido, não o óbvio, e nos faz entender através
dos sentidos – torna consciente o que estava em nós impregnado. No
tempo, surpreende o instante; no espaço, o invisível.
No teatro – a mais complexa de todas as artes porque a todas inclui
com suas complexidades –, os artistas (cidadãos) devem fazer-nos ver
o que temos diante do nariz e não vemos, entender o que é claro e

Sendo o trabalho artístico um ato de criação, não necessariamente de algo novo,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e não a partir do nada ou sem referências anteriores, ainda assim um exercício

emancipada. A apropriação da palavra e o desvelamento dos sons e imagens são


ferramentas da construção de si, potencializadas pela vivência estética do fazer
fruir teatral, e se mostram ferramentas educativas fundamentais para se pensar
uma cultura outra. “Criar nossa própria cultura, sem servidão àquelas que nos
são impostas, é ato político e não apenas estético; ato estético, não apenas polí-

A atividade teatral pedagógica perpassa, portanto, o campo da formação do 39


sujeito enquanto produtor de sua própria linguagem. A partir desse sujeito auto
constituído e em relação constante com o seu todo, o teatro também pode ser
pensado como instrumento de aprendizado de outros campos do saber. Como
linguagem, o teatro pode e é usado também como comunicação educativa.

3 Aprender com teatro


A formação nas ciências também é constitutiva na personalidade do sujeito,
tanto quanto a arte, de maneira que “A ciência e a arte têm de comum o fato

são complementares e conviventes na formação


pedagógica. Evidente que esse convívio não se dá sem um contágio saudável
entre os saberes, de forma que nenhum se mantém puro. Do teatro, podemos
dizer que não representa a si, ou não se basta tendo a si mesmo como único
tema. Ao representar qualquer relação social, o teatro permite e até exige, se se
pretende bom teatro, entender e analisar o objeto representado, alimentando-
se de sua ciência. Seu aprendizado se dá de maneira objetiva ao jogo de cena,
e esse jogo se dá, ou ao menos assim deve prosseguir, de maneira divertida,
visando enquanto forma, entreter.

Em contrapartida a esse ensino prazeroso, são muitas as críticas à maneira dura


como a instituição escolar engessa o saber e torna o ensino algo penoso, numa
herança evidentemente clerical em seu modo de ser. Numa de suas muitas e
mordazes críticas aos educadores, ao comparar sua capacidade educativa à po-
“parents and tea-
-
Por tal distância do universo cognitivo e
social daqueles que deveriam educar, a pensadora concluirá com espanto que
as instituições, da maneira como são concebidas a priori, pouco têm a de fato

40
De maneira mais polida, mas não menos crítica,
Brecht enfatizará que o ensino costuma se dar de modo enfadonho, e propõe o
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

educação mais ampla em seu escopo, e mais engajada no saber e no discurso


crítico acerca dele:

É voz corrente que existe uma diferença marcante entre aprender


e divertir-se. É possível que aprender seja útil, mas só divertir-se é
agradável (...) O que podemos dizer é que a oposição entre aprender e
divertir-se não é uma oposição necessária por natureza, uma oposição
que sempre existiu e sempre terá de existir.
-
nal, etc... é indubitavelmente penosa. Mas deve ter-se em conta em
que circunstâncias e para que objetivo ela se processa. Trata-se, na
realidade, de uma compra. A instrução é mera mercadoria, adquirida
com objetivo de revenda. Em todos aqueles que ultrapassaram a idade
escolar a instrução tem de ser levada a efeito quase que em sigilo,

7
pois quem confessa ter de aprender coloca-se, simultaneamente, num
plano inferior, considerando-se alguém que sabe pouco. (...) O gosto
pela instrução depende então de muitos e variados fatores. Mas, não
obstante, há uma forma de instrução que causa prazer, que é alegre e

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vida e seu modo de trabalho criativo, portanto estetizado, o tornam uma ins-
piração mais poderosa e uma maior ameaça ao tecido social do que qualquer
outro orador:

41

Contudo, entender que arte e ciência são saberes complementares, e que são
mutuamente permeadas uma pela outra, exige não desconsiderar que a ciência
possui sua própria estética, suas próprias imagens e seus próprios sons, consti-
tuindo sua forma de se apresentar e ser lida. De maneira recíproca, há arte na

observável quando se lhe ensina em uma relação de prazer e diversão.

Poder-se-ia mesmo escrever, hoje em dia, uma estética das ciências

das experiências; Einstein atribuiu ao sentido da beleza uma função

8 Em tradução livre: “Não necessariamente porque seu objetivo é fazer proselitismo, mas porque ele pode se expressar melhor

percepção verdadeira retrata os erros sociais com seriedade e ousadia , pode ser uma ameaça maior ao nosso tecido social e uma
O que a arte teatral tem a oferecer no ensino da ciência é, sobretudo, o trei-
namento do olhar do sujeito para que seja capaz de traduzir essa estética do

de expropriar o monopólio da linguagem que pertence aos que Boal chama


opressores, e tornar os signos da ciência e, consequentemente, seu conteúdo,
acessíveis, legíveis, reescrevíveis e defrontados com a sua dimensão social. O
entendimento teatral que contém a relação com as outras artes em movimento

maneira ativa e crítica, tornando-se sujeito do conhecimento e expropriando os


saberes do opressor.

-
são, temos que entender que só através da contracomunicação, da
contracultura-de-massas, do contradogmatismo; só a favor do diálo-
go, da criatividade e da liberdade de produção e transmissão da arte,
do pleno e livre exercício das duas formas humanas de pensar, só as-
sim será possível a liberação consciente e solidária dos oprimidos e a
criação de uma sociedade democrática – no seu sentido etimológico,
pois, historicamente, a democracia jamais existiu. Dela, pedaços sim.
42
Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser
usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passi-
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

va contemplação absorta. Não basta consumir cultura: é necessário


produzi-la. Não basta gozar arte: necessário é ser artista! Não basta
produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos
e continuados.
Em algum momento escrevi que ser humano é ser teatro. Devo am-
pliar o conceito: ser humano é ser artista!

Entender o sujeito – ou cidadão, como queria Boal – como artista é perceber a


vida e as relações entre vidas como obra de arte, e a arte em que os sujeitos se
relacionam em situação tem nome e história: teatro. As relações se estetizam
de maneira consciente, apropriada, e então o aprendizado e a constituição de
-
zação das relações. O aprendizado, dessa forma, desenvolve sua potência por
ser divertido, como um jogo teatral. “Não fora esta possibilidade de uma apren-
dizagem divertida, e o teatro, em que pese toda sua estrutura, não seria capaz
de ensinar. O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde

-
do-se didáticas ou não, propõe apenas a difusão de um determinado discurso
político, deformando os aprendizes a meros reprodutores de conteúdo. De todo,
não é o que pensamos junto ao material referido: “O verdadeiro propósito do
teatro épico era, mais do que moralizar, analisar. Assim, primeiro, analisava-se a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


partes se aproveita do objeto. Mais e diferentemente de se educar sujeitos conta-

análises e, no limite, uma deliberada e consciente auto formação.

tática de oposição ao discurso único, à violência de uma subjetividade imposta


e passiva que determina a estética de mundo e de agir. Uma vida que se coloca
enquanto obra de arte é um constante aprendizado contra a violência unici- 43

(...) a violência do poder não está apenas no seu exercício – está na


sua existência! Como a violência pode se manifestar sem que seja
exercitada? Pelo espetáculo, pela estética. Como se revela e pode ser
combatida? Pela estética e pelo espetáculo, que se extrapola para a
realidade onde se torna real e nela se completa. Uma Nova Estética é

Urgente, de fato, se se quer uma educação emancipatória, para o muito, e não


para o um. Urgente que aprendamos. Urgente que atuemos.

4 O olhar estético é uma estética


Pudemos observar que para pensadores e pedagogos teatrais engajados em pau-
tas sociais o exercício e a fruição da arte teatral podem ter utilidade educativa
para a formação de sujeitos, tanto quanto para uma proposta de transformação
-
res pétreos como a superstição, e que prepara homens e mulheres para recons-

Falhando como pedagogia se tentar impor novos valores que subs-


tituam os velhos em seus dogmas, a grande qualidade didática do teatro estaria
em abalar os pilares dos costumes e das relações.

É, pois, o teatro uma útil ferramenta para o ensino, e uma arte que se alimenta e
contribui para as demais ciências, não se encerrando em si. Porém não devemos
presumir que só haja sentido na arte teatral quando dela se extrai algo de útil.
A estética, apropriada e na contramão do entendimento estéril de mundo que
as imagens prontas nos oferecem, mesmo sem perder sua essência combativa,

qualidade pedagógica que aqui analisamos é uma possibilidade, não um limite,


muito menos uma fronteira. À arte, bem como à e ao artista, reserva-se o direito
44

força de produção de estética e olhares de mundo, castrando-a de toda a sua


A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

que aprender não seja a função de quem estetiza despretensiosamente. Mesmo


o engajado Brecht, comprometido com uma ideia clara e objetiva de revolução
social, que se vale de maneira inequívoca da estética como ferramenta, reco-
nhece e defende que: “Nem sequer se deverá exigir ao teatro que ensine, ou que
possua utilidade maior do que a de uma emoção de prazer, quer orgânica, quer

mundo mais nitidamente, deve-se atentar também para a forma, imagem e até
som da própria lente, reconhecendo-a como beleza em si. A lente é forma antes
mesmo de ser lente. Sem o direito de também não ser didático, o teatro nada
teria a ensinar.

9
-
nalmente não para uma determinada estética, uma forma ou uma função, mas
sim para a perspectiva do múltiplo que dele se abstrai e expande. “Tornando a
crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever
se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possi-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


compõem um nomadismo de linguagem. “Não sou: estou sendo. Caminhante,

-
mação constante, repleta de aprendizagem que é crítica ao longo que consegue
divertir, e que é divertida, produzindo formas e linguagens a partir dessa diver-
são, como: “o teatro leva o seu espectador a uma atitude fecunda, para além do
simples ato de olhar (...) o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio
da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que

45
viver que formam ao sujeito artista de maneira autogerida sobre si. Isso ciente de
que essa auto formação, mesmo sobre si, se dá sempre em relação.

Assim como não há teatro solitário, uma proposta pedagógica que se pensa a
partir da teatralidade necessita do encontro com o outro. A despeito de ensaios,
que preparam a estética e a formação para o momento em que se dão, mesmo
em monólogo, o teatro se dá no mínimo do encontro entre este que atua e ao
menos uma pessoa que lhe expecta. Trata-se de uma arte que ocorre no espa-
ço invisível que há entre duas ou mais pessoas durante o momento em que se
relacionam, tornando-o visível, palpável, palatável e criticável. Revela-se assim
o invisível unindo olhares. “É que a unidade social mínima não é o homem, e

Uma educação que se pense a partir da relação artística que chamamos teatro
habita, portanto, o convívio sensível. É atenta à estética que emerge da contradi-
ção. Estetiza de maneira ativa o mundo que se produz com o olhar e, sobretudo,
5 A potência menor do teatro... e do aprender
Um manifesto de menos, dedicado
à obra teatral de Carmelo Bene, relevando o caráter minoritário da arte e do tea-

de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado,


de uma situação. É aqui que o teatro ou a arte pode surgir com uma função po-

de transformação reside nos movimentos de minoria, visto que o maior é por

força de conservação, de permanência, de manutenção do . O devir-


-menor é o que desestabiliza, introduz novas variáveis, abre um horizonte de
possibilidades, convida a experimentar potências outras de pensar e de existir.
A arte é um dos vetores de possibilidade de devir-menor, quando produz sensa-
ções que disparam esse desejo de ser outramente. Aí reside sua função política,
46
para eles chama nossa atenção.
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

O teatro surgirá como o que não representa nada, mas apresenta e


constitui uma consciência de minoria, enquanto devir-universal,
operando alianças aqui ou ali conforme o caso, seguindo linhas de
transformação que saltam para fora do teatro e assumem uma outra
forma, ou se reconvertem em teatro para um novo salto. Trata-se de
uma tomada de consciência, embora ela nada tenha a ver com uma
consciência psicanalítica, tampouco com uma consciência política
marxista ou brechtiana. A consciência, a tomada de consciência, é
uma grande potência, mas não é feita para as soluções nem para as
interpretações. É quando a consciência abandona as soluções e inter-
pretações que ela conquista sua luz, seus gestos e seus sons, sua trans-

não podia mais interpretar nada; não havia mais obscuridades que

-
ção das fórmulas, há a mais modesta apreciação do que poderia ser
um teatro revolucionário, uma simples potencialidade amorosa, um
Reencontramos assim com Deleuze, mas também trilhando uma outra direção,
aquilo que ao longo deste texto perseguimos com Brecht e com Boal e na com-
panhia dos anarquistas: um teatro político, que em sua própria ação é formativo,
produz educação, mobilizando as sensibilidades. Aqui o processo político de
conscientização perde sua carga de buscar uma maioridade, uma emancipação
que se produz ao se sair de uma condição de menoridade, de inferioridade, que
implica em ser dominado, oprimido. Conscientização, aqui, é entrar em um

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


devir-menor que oportuniza novas possibilidades; não se trata de ser iluminado
nem de iluminar quem quer que seja, mas de encontrar a alegria sensível das
múltiplas potências que podem ser experimentadas.

Uma trilha semelhante encontramos nos processos educativos. Também aqui


se pode pensar a conscientização como um devir-menor do aprender, que se
produz nos múltiplos encontros com signos, para além de uma emancipação na
qual somos guiados pela iluminação de outrem.

potências estéticas no e do aprender. Para além dos corpos docilizados pela 47


disciplina da instituição escolar o teatro potencializa experiências corporais de
liberdade, de sentir o intangível, de experimentar devires-menores e aberturas
de novos horizontes. Processos singulares de constituição de si mesmo, no com-
bate aos modos massivos de subjetivação em série a que somos submetidos. Arte
e vida como chamas da revolta. Em outras palavras, uma experiência libertária
de educação.
A estética do oprimido
. Coletados por Siegfried Unseld. Tradu-

. Rio de

A escola moderna. São Paulo: Biblioteca Terra

História da Sexualidade II – o uso dos prazeres. Rio de Ja-

História da Sexualidade III – o cuidado de si. Rio de Janei-

Vigiar e Punir
Ditos e Escritos V – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Ja-
48
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

. South Carolina:

RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários


. Rio de Ja-

João Roberto.
CURRÍCULO DA CIDADE
E O DIREITO DE
APARECER: ALIANÇAR

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


QUE FAZ DIFERENÇA
Glaucia Carneiro
Marlucy Alves

49

2.
Glaucia Carneiro1
Marlucy Alves Paraíso2

Função-educadora das dissidências artivistas de gênero e sexualidade na cidade


Naquele dia chego em casa e registro no caderno de notas que estava cada vez
mais convencida de que, mesmo fugazes, havia nas performances de Ed Marte
potências de uma função-educadora na cidade. Uma função ao mesmo tempo
desmanteladora da ordem e das normas de gênero/sexualidade atribuídas aos
corpos, e afirmadora de possíveis. Ora, se o aprender demanda a articulação do
pensamento com o acaso, com um pouco de caos, ao criar algumas instabilizações
no cotidiano das cidades, as performances artivistas de Ed Marte acabam
inventando outras pedagogias, pedagogias em movimento, pedagogias clandestinas,
pedagogias disparadoras de signos dissidentes.
Caderno de Achados e Inventados, 2020, p. 1073

50
TÍTULO

3 Caderno de Achados e Inventados é o nome dado ao caderno de campo onde foram realizados registros das feitas
com a transartivista
O direito à cidade é considerado, atualmente, parte dos direitos humanos a
serem garantidos pela sociedade civil. Se, por um lado, as metrópoles são espa-
ços violentos, segregadores, excludentes, depredados e que não oferecem con-
dições de vida igualitária para seus habitantes, principalmente, corporalidades
consideradas desviantes, por outro lado, ao desmontar a linguagem da gramá-
tica normalizadora, os artivismos produzem desterritorializações que inventam
saídas para a indiferença, a estagnação e o fechamento dos corpos na cidade.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ao acionarem o riso e conectarem-se com a alegria e o humor mordaz dos arti-
vismos, os corpos que transitam pelas ruas podem se abrir e experimentar novos
-
xos e signos acionam um outro modo de compor com a cidade. Em tempos de
fechamento dos corpos, isso soa como um convite à abertura.

Exploramos aqui a noção de que, a cidade é um currículo, um território onde


se é possível aprender no encontro com signos e afectos, que podem atraves-

os corpos se deixam afetar pelos signos artivistas, ampliam-se a capacidade de


51
sentir e de permitir que eles sejam atravessados, tocados e sensibilizados pela di-
ferença que emerge do encontro com a arte. As performances de Ed Marte , seu
movimento desviante e, por vezes, incompreensível, realizada nas ruas do baixo
, provocaram em nosso grupo de pesquisa
a sensação de uma baforada de caos, de um sopro de vida selvagem.

currículo das er-


râncias, que cartografamos com Ed Marte. O currículo das errâncias tem como

4 Ed Marte se auto declara uma Artivista Queer em suas redes sociais

6
matérias-força diferentes componentes, dos quais destacaremos, neste trabalho,
o aliançar e Argumentamos que, ao reivindicar o direito de corpos
ilegíveis, como as corporalidades trans, aparecerem, circularem e vivenciarem
as ruas, os artivismos criam uma aliança intensiva, fazendo deste aliançar um
componente relevante do currículo das errâncias cartografado. Para desenvolver
tal argumento, dividimos este capítulo em três partes. Na primeira, apresenta-

Mombaça, pode ser compreendida como uma aliança intensiva na cidade. Na

produzidas pelas corporalidades desobedientes, reunidas ao redor de Ed Mar-


te. Na última parte, discutimos como o modo de vida errante das dissidências
de gênero e sexualidade dispara uma pedagogia hesitante, que faz com que se
aprenda algo novo, mesmo que, à primeira vista, seja considerado estranho,
incerto e pareça não compor com o corpo que passa no momento em que as
performances acontecem.
52
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

1 “O mundo é meu trauma”:


currículo, corpografias e errâncias

tais performances, também acaba participando dessas ações. O procedimento


experimentado, na pesquisa que subsidia este artigo, de recolher coisas efême-
ras do currículo da cidade investigado e, ao mesmo tempo, experimentá-las no
ponto de contato com o corpo de uma artivista trans, bem como no atrito com
os corpos passantes, isto é, das pessoas que circulavam pelo centro no momento
em que se davam as performances, é aqui denominado – como se
pode ver no trecho a seguir:

Saia para rua depois de acenar, como faz todos os dias, para o por-
teiro. Escolha o caminho da esquerda [nunca vire para a direita!] e
não se intimide se o vento congelante, que vem do noroeste da ave-
nida ameaçar paralisar seu corpo. Esfregue as mãos, aqueça o rosto e,
com os olhos levemente cerrados, se incline para vencer a resistência
-
pere os carros passarem. Cruze os braços e proteja o peito, enquanto
imagina de onde vem tanto frio, já que nas últimas décadas, em Belo
-
mente as mãos no rosto buscando alívio. Reinicie a caminhada e,

da senhora sentada ao seu lado, que provocará uma sequência de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


chegar, suba com cuidado os sete degraus para não tropeçar. Olhe ao

a bolsa, não pegue o livro! Isso, guarde-o! Coloque os fones de ou-

vamos em frente. Isso! Desça na Avenida Santos Dumont. Siga em


direção ao viaduto Santa Tereza. Olhe ligeiramente ao redor e observe
como quase todas as pessoas são cinzentas e apressadas. Observe o
corpo magro do hippie vendendo artesanato na esquina, seus dedos
ossudos e cheios de anéis e, por favor, não pare para conversar dessa

Desvie com cuidado do corpo adormecido e, anestesiado pela cacha-


ça, do morador de rua e se vier àquela vontade de chorar, chore! Se 53
não acontecer, caso sinta que já tenha derramado todas as lágrimas

e Ed Marte, em breve, iniciará suas performances pelas ruas do baixo


centro. Sinta que um raio de sol desponta entre as nuvens atrás do
Parque Municipal anunciando que a tarde vai esquentar. Pare! Olhe!

aguarda logo à frente!

Jota Mombaça, uma transartivista nordestina, cujos trabalhos são reconhecidos


no circuito internacional de performances das dissidências de gênero/sexuali-

deparamos com Ed Marte pelas ruas da cidade, o encontro com Jota Mombaça
provocou um bloco de sensações. Não porque tal artista se autodenominava er-
rática, e, estávamos a busca de práticas errantes para dar mais vida a um currícu-
lo. Não se tratava da subjetividade de Jota Mombaça, mas, das forças produzidas
pelo encontro com os signos artivistas experimentados.

, espécie de texto-despacho que Jota Mombaça es-

de modo visceral como é doloroso criminalizar a apresentação de gênero dos


corpos. Sendo que, em relação à transfobia, ao discurso de ódio e ao racismo, a
lugar de fala, já que é um coletivo de cultura
transgênera e periférica, o primeiro coletivo mineiro a lançar uma coletânea de
poemas e textos exclusivamente de autoria trans.

não pode ser reduzido às pessoas, às coisas ou às enunciações. De um aconteci-


afectos
54 que atravessaram os corpos das pessoas que participaram da performance rea-
°
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

é feito de expressividades que ainda não foram comprometidas pela representa-


ção, recognição, opiniões e/ou clichês. Os acontecimentos ganham uma impli-
cação política forte por sinalizarem mundos por vir. Não por indicarem um fu-
turo a ser atingido, não se trata disto, mas pelas que proporcionam no
instante mesmo que irrompem. A espécie de leitura-despacho realizada por Jota
Mombaça, naquela tarde de setembro, acionou a ativação/potencialização do
corpo pelo corpo. Atualizou no currículo perfografado, alianças que produziram
afecções e mudanças nos corpos de quem participou da performance proposta
por Jota Mombaça.

Ao trabalhar em torno das relações que se dão entre “monstruosidade e hu-

transitiva e desviante que é própria da vida e de corpos que assumem um modo

7 Texto disponível em: https://piseagrama.org/o-mundo-e-meu-trauma/


errático de existência como forma de resistência. Os corpos dissidentes são uma
espécie de manifesto vivo contra qualquer tipo de normatividade que rebaixa a
vida. Manifestam por meio de suas a capacidade de se transmu-
tarem, de entrarem em devires, passando de uma situação a outras, recusando
limitações impostas ao seu modo de reexistir. O vitalismo que emerge de corpos
em desobediência de gênero/sexualidade, como os de Jota Mombaça e os que

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que o que é vivo tem de mudar continuamente, mudar de formas, de normas,
de se desviar, de inventar errâncias, de produzir o que Brian Massumi denomina

Esse vitalismo é uma questão de ética já que, de um ponto de vista spinozista,

a sua potência de existir e de, portanto, reexistir.

Jota Mombaça recusa qualquer tipo de normatividade onde parece não haver lu-

55
político de convidar um homem cis eurobranco a calar-se para pensar melhor
antes de falar, introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vi-

de privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e


-

cis não possam falar de transfobia! O que Jota Mombaça chama atenção é, sobre
o modo como uma uma “matriz de produção de subjetividade sanciona a igno-
rância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza

cis

8
2 “Não mexe comigo que eu não ando só”:
currículo e corpos em aliança pelo direito
de aparecer nas ruas

trata-se de um tipo de agenciamento que liga as minorias sexuais e de gênero


às populações precárias. Trata-se não só de uma questão de virada, ética, mas,
-

Durante todo o tempo em que Butler esteve em São Paulo, ela foi escoltada por
seguranças, já que, ela, foi citada nominalmente, em uma petição pública que

êxito, ao se dirigir ao portão de embarque no Aeroporto de Congonhas, Judith


56

militante em fúria, que segurava um cartaz em defesa da família tradicional, e


CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

teoria
e nos direitos das minorias sexuais e de gênero. Ocorre que, atualmente,

pelas quais a guerra ou condições sociais designam determinadas populações

-
cárias de modo mais abrangente.
Entender como a precariedade se liga aos processos de reconhecimento das nor-
-

socialmente expostas a um risco muito mais alto. Todavia, torna-se importante


relacionar esses marcadores de violência às intersecções de raça e pobreza que
-
ções necropolíticas -

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


rem não apenas no Brasil, mas, encontram-se em operação em todo o chamado
Sul global.

-
gêneras, com habilidades diferenciadas, corporeidades apátridas, corpos ,
mas também minorias raciais e religiosas é a precariedade. Não se trata, obvia-
mente de uma identidade, mas, de um marcador que atravessa as fronteiras das

possui muitas características que admiramos e que, costumam ser atribuídas a


corporeidades femininas. O acolhimento, a doçura e a atenção cuidadosa
57
que dá aos corpos que moram nas ruas, prostitutas, pessoas com proble-
mas de alcoolismo e principalmente jovens que cumprem penas e/ou medidas
socioeducativas, tudo isso somado a uma invejável agenda ligada a diversos

seu envolvimento com projetos na periferia, como o Favela é isso aí e A Casa


Rosa de Ed Marte, dão evidências das potências dos corpos em aliança. Jota

corporeidades precárias é justamente seu vetor de força política. Esse modo de


criação surge como uma importante linha desviante em relação a projetos ar-

10
O ato de aparecer e ocupar as ruas das cidades não constitui apenas uma
instância de expressão, de reivindicação de certas pautas políticas, mas, da pro-

seu direito de aparecer. Ao fazerem isso, estão expandindo o campo visual e po-

-
ternizadas, torna-se, assim, um marcador transversal de um agir em conjunto.
-

3 Currículo das errâncias e a pedagogia da hesitação:


quando um corpo estranho faz a gramática
58 normalizadora vacilar
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

Os signos que fazem vibrar o estranhamento e a perplexidade disparados pelas

Mombaça têm a potência de atravessar os corpos que caminham pela cida-


de e colocá-los em estado de hesitação. A arte sabe muito bem jogar com às
incertitudes. Cabe à arte movimentar, agitar, tremer, fazer a língua costumeira
-
-

dado ao racional. As performances dos artivismo trans fazem, por sua vez, ver o
não visto e o não enunciável em relação aos gêneros e à sexualidade que apa-
rece nas ruas das cidades. Tal uso dialógico, disjuntivo e heterogêneo é extraído
dos encontros e atritos que ocorrem entre os corpos passantes com as perfor-
mances artivistas de gênero e sexualidade. O que pode um corpo que não se
performance de Ed Marte, ocorrida em um domingo no Parque Municipal de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Prazer, Ed! Retratinhos com você
O burburinho começa quando a artivista chega ao Parque Américo
-

e chapéu, segurando uma sombrinha em uma mão e, na outra, uma

mesmo de encontrar um local para pendurar a placa e dar início à


performance, uma profusão de olhares curiosos provoca uma movi-
mentação ao redor da artista. Além da curiosidade, sinto que outros
blocos de sensações são experimentados ativando no corpo passante
o riso, o estranhamento, a inquietação, as incertezas, até o repúdio
por aquele encontro com o estranho, o esquisito. Tão cedo e logo ali

frente ao lago onde muitas famílias passeavam de barco, de pedali- 59


nho ou no cisne. Do outro lado do lago, avista-se a roda-gigante e o
carrossel onde muitas crianças gritavam alto, se divertindo. Contor-
nando o lago, há o vai e vem de cavalinhos e charretes e vendedo-
ras ambulantes de algodão doce e fotógrafas de lambe-lambe. Sinto

não binária da artivista, provocando uma sensação de estranhamento


ainda maior. A artista, então, se posiciona ao lado da placa. Passam
alguns segundos e a primeira pessoa vê a cena, lê a placa, olha para
Ed Marte, lê a placa de novo, para de caminhar, olha pra Ed Marte no-
vamente e não esconde o riso ao constatar que se tratava de “tirar uma

em frente ao lago e depara-se com a cena, para minha surpresa, deci-

em troca abraços amorosos de Ed Marte. Até mesmo a lambe-lambe

um retratinho com Ed Marte.

E tudo o que separava corpografias tão distantes


subitamente falha
por força de um despretensioso
encontro com a diferença no parque!
Durante a performance Prazer, Ed, retratinhos com você foi possível captar cer-
tos traços, marcas, ritmos, graus de variações que atravessam os corpos no en-
contro com as sensações de estranhamento produzidas pelos signos do transar-
tivismo. A presença híbrida, hiperbólica e performática de Ed Marte nos locais

vacilar as noções de certo e errado, normal e anormal obrigando o pensamento


a sair dos trilhos da racionalidade. O espaço público é para todas as pessoas!
-
ção de brigar, elas brincam, ao colocar no parque da cidade uma corporeidade
ininteligível naquela manhã corriqueira de domingo. A artista faz isso sem pan-

diferentes do seu de que a diferença é uma coisa boa, que é certo ser diferente
ou o certo é ser diferente.

ser uma pessoa não binária e nem tenta convencer ninguém de que ser assim é
algo bom. A presença da artivista naquele espaço também não tem a intenção
60
têm os mesmos direitos que os
corpos héteros e cis gêneros. Contudo, ao colocar o seu corpo desobediente
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

na rua, a artivista já está performando esse direito pelo simples fato de existir,
como qualquer outra pessoa ali. As performances de Ed Marte são, portanto,
minimalistas, sutis, delicadas, a voz e os gestos da artista são suaves, amorosos,
seu corpo exala um delicado cheiro de incenso, por se tratar também de uma
instrutora de kundalini yoga. Apesar da barba e do corpo peludo remeterem a
certa imagem-clichê de que corpos assim têm que performar uma postura viril,
masculina, máscula, Ed Marte é bastante suave. Todas essas emissões de signos
discrepantes produzem uma atmosfera no sense -
dade de, ao se passar pelo corpo da artista de mai hesitar e, em seguida, sorrir.

As performances artivistas também produzem uma espécie de hesitação nos cor-


pos que ativa uma função-criadora, disparada pelos signos dos transartivismos.
Tais signos que emitem sensações de estranhamento e perplexidade nos corpos
passantes. Esta função-criadora chamamos de Pedagogia da Hesitação. Ao pro-
duzir essa espécie de gagueira na língua normativa e controladora dos corpos, a
pedagogia da hesitação opera uma desmontagem nos códigos de normalização
dos gêneros e da sexualidade.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


portanto, na gagueira, a produção de uma espécie de abalo, uma fricção na li-
nearidade dos dizeres. Isso implicaria na produção de uma série de suspensões
e, ao mesmo tempo, de prolongamentos não esperados. Ora, gaguejar é um tipo
de expressão desviante, uma maneira de fazer a língua maior tremer, vacilar.

de desterritorialização do pensamento. Um modo de fazer a língua maior hesi-


tar, tremer, entrar em variação e produzir uma vibração.

Ora, o verbo hesitar vem do latim hesitarae que carrega o sentido de não saber
61
agir de modo confuso ou desconexo; balbuciar. O procedimento da hesitação
no currículo investigado é responsável pela produção de uma fricção no modo
acelerado como os corpos passantes caminham pela cidade. Tal procedimento é
um componente importante no currículo da cidade por produzir uma hesitação
nos corpos; produzir uma espécie de gagueira, isto é, fazer a língua da gramática
normalizadora dos corpos tremer, vacilar, diminuir a velocidade corriqueira e
perceber algo diferente.

-
-
rialização em certos códigos costumeiros. O uso desviante da literatura possibi-
lita, por exemplo, a invenção de objetos e temas menores cuja potência política
é extremamente maior. As performances artivistas de Ed Marte, ao seu modo,
também produzem algo novo nas práticas de gênero e sexualidade comumente
aceitas, sob a condição não de negar outras práticas, mas de multiplicá-las.
A pedagogia da hesitação torna-se um componente importante no currículo da
cidade por produzir desvios e desterritorializações tanto nas práticas urbanas

das pessoas. Produzir errâncias, hesitar, aliançar, diferençar é, também, curri-


cularizar, isto é, produzir novos currículos tanto quanto a nossa capacidade de
desejá-los. Curricularizar tem a ver com a nossa tenacidade e capacidade de
inventar currículos que acolham a diferença. E, o que sacode o corpo, o que faz

seca, engessa e morre.

O diferençar mostra que sempre é possível experimentar outros modos de exis-


tência, reexistir, existir de outras maneiras e que, apesar de todas as diferenças
que nos separam, não perdermos o comum a tudo que é vivo e tem vida. Mesmo

outras maneiras. É a inconstância que compõe e decompõe a vida e os currícu-


los, entre eles, o currículo das errâncias aqui apresentado.
62
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Juraci
RETRATINHOS

63

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

64
PRESENÇA
JURACI

65

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

66
FILME
Referências
O fantasma do gênero:
https://m.
-
Acesso em:

Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A resistência ainda é uma opção, diz Judith Butler sobre
Bolsonaro. Disponível em: https://medium.com/@leticiaquatel/a-resist%-
-

Currículo das Errâncias com a Pedagogia da Hesitação: corpo,

exercício ativo e experimental sobre um território em constante transforma-


67
ção. Práxis Educativa -

Paulo - Revista Brasileira de Cultura


Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forence Universitária,

______________. Lógica do Sentido.


Platôs 3
_________________________. Kafka:

MASSUMI, B. O que os animais nos ensinam sobre política.

Revista Concin-
nitas
O mundo é meu trauma. Disponível em: https://pisea-
grama.org/o-mundo-e-meu-trauma/
Notas estratégicas quanto aos usos políticos do con-
ceito de lugar de fala. [Entrada de blog]. Disponível em:
org/pt/corpo/notas-estrategicas-quanto-aos-usos-politicos-do-conceito-de-lu-
gar-de-fala
Palestra proferida no Ciclo de Conferências “Vozes
do Sul: lugar de fala. -

Pesquisas sobre currículos, gêneros e


sexualidades.

68
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Sandra Mara Corazza
Silas Borges Monteiro

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


69

TRANSCRIAÇÃO DE
SIGNOS: INFANTIL,
AULA, DOCÊNCIA

3.
Silas Borges Monteiro (UFMT)

Este texto é uma composição de notas. Foram trazidas de outras circunstâncias


para serem experimentadas nesse momento em que emergem indagações de-
correntes da experiência do distanciamento social produzido pela pandemia
-
ça viral, pesquisadores das humanidades também trabalham para dar respos-
tas aos efeitos da impossibilidade dos estudantes irem aos prédios escolares,
na educação básica e no ensino superior. Aprendemos a tratar o ensino como
70 um fazer-em-proximidade física; essa geração experimentou a formação escolar
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

um determinado modus -
idamente, a contabilidade da aula, anotando quantas vezes ouve a palavra “pre-

ali na aula, aguardando a apresentação do conteúdo do dia que será feita pela
docência responsável por aquele tempo-presente.

A impossibilidade da presença na mesma sala fez surgir a necessidade de que


plataformas de comunicação pela internet viessem a ser utilizadas como um

substituída, nesse caso, por avatares ou a simples tela sem imagem. Isso tam-
bém não é novo; estudantes se desligam da aula, rabiscam cadernos, encenam
interesse, mesmo estando a pensar em outras coisas. Isso não é novidade para
docente algum.
Embora haja transposição de grande parte do vivido em sala de prédio e na sala
-
tram no dia e hora marcados para a aula, a própria imagem vista, a exaustão nar-
císica, a conversão em fantasma, tal como Derrida se refere a Marx: “aprender
a viver com os fantasmas, no encontro, na companhia ou no corporativismo, no
-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-

Aprender a viver é amadurecer, e também educar: ensinar ao outro e


sobretudo a si mesmo. Apostrofar alguém para lhe dizer «vou-te en-
sinar a viver» ça, vou-te formar,
ou mesmo domar. A seguir, e o equívoco deste jogo importa-me ainda
mais, este suspiro abre-se também a uma interrogação mais difícil: a
viver, poderá isso aprender-se? Ensinar-se? Poder-se-á aprender, por
disciplina ou por ensinamento, por experiência ou experimentação, a
ão, eu nunca aprendi-a-viver.
71

Temos, por insistência histórica e cultural, que docentes são, igualmente, edu-
cadores; educadores ensinam, no limite, a viver. Essa impossibilidade apontada
por Freud “aceitei o
– educar, curar e governar –, e eu já estava inteiramente ocupado com a segunda

-
eca, se assumirmos que “É preciso durante toda a vida aprender a viver e, o que
talvez cause maior admiração, preciso durante toda a vida aprender a morrer.

Este ensaio pode soar taciturno demais a um tempo já entregue às paixões tristes;
-
ar: assim ensino eu. E somente para criar deveis aprender! E também a aprender
que ainda acreditava que todos deveriam aprender tudo o que ela lhes ensina-

respondem mas faz mover a vida: “desaprender o dado e o feito, que é o melhor
caminho para que ela possa retomar, no tempo certo do intempestivo, o camin-

apresentação é recebida pelos estudantes como “signo que é preciso decifrar,

-
signos,
signo

posição do infantil, como desejo de estar reunidos para manipulação de signos,

72
Em aula, nesse tempo de distanciamento, a docência vê a si mesmo em um mon-
itor, uma imagem entre outras, em mosaico, em destaque, a depender da plata-
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

forma; esse encontro de fantasmas jogando com signos, torna a pedagogia uma
espécie de espectralidade em duas dimensões. Outras vez, a professora indaga,
com anúncio de dias possíveis à vida e à alegria do infantil: “O que, atualmente,
temos condições de saber e fazer? O que, daqui para a frente, poderemos fazer
-

Para isso é preciso desaprender-perder-esquecer o dado e o feito, que


nos legaram de herança, fazer deles uma coisa-nenhuma ou nenhum-
-dado, nenhum-feito. É preciso desaprender o aprendido para poder
ser partícipe da força de transformaçã ção, procriação
e criação da educação. Ser educador não é só acumular, guardar,
conservar, usar, mas também abandonar, largar, gastar e, neste gasto,
Notas de INFANTIL
-
nhos recorrentes, muros fantasmais e criança; é dele a frase: “o maior delito do

taciturna. O infantil nos acompanha pela vida, posição subsumida por Freud

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-

necessidades : nossos impulsos e seus prós e contras.


Cada impulso é uma espécie de despotismo, cada um tem a sua perspectiva que

infantil poderia ser uma forma de despotismo que quer impor como norma aos
outros impulsos. O infantil, que experimentou invergações no século XX, do
73
adulto em miniatura ao déspota do consumo, do sujeitado ao sujeitador, traz-
nos questões encharcadas de dubiedades ao primeiro quarto de tempo do século

efeitos às pessoas da infância, acostumadas aos encontros sociais da instituição


escolar se veem impostas às telas dos computadores, não como virtualidade do
jogo ou do audio visual, mas como espectador do que fazia junto com outras
pessoas de sua idade.

A infância, como criação moderna, não se confunde com o infantil. O infantil

de força, infantil é o anúncio do adiamento de que haverá uma suposta

Das velhas e novas


mulherezinhas, ePub). Deleuze interpreta como segmento da vida, junto com
-
homem superior, e não como infância:

A infância é a primeira manifestaçã ência que, na natureza


chama a suplência. A pedagogia esclarece, talvez mais cruamente,
os paradoxos do suplemento. Como é possível uma fraqueza natural?
Como pode a natureza solicitar forças que não fornece? Como é pos-
sível uma crianç

Contra o princípio do cogito cartesiano, que requer uma natureza decaída para
-

e sua pedagogia, não cristã, mas, igualmente, não iluminista, mas, ao modo

egípcios, eternas crianças, e também na arte trágica são apenas crianças que não
sabem que sublime brinquedo nasceu sob suas mãos

74
“um combate incessante e sistemático contra as formas que [essa Figura] veio adquirin-
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

como alternativa, mas por recolocarem as antigas questões do pensamento ocidental

crianças devem ser atualizadas em função das atuais circunstâncias, pois haverá sempre

Se já estamos convencidos das ambiguidades experimentadas pelo vivente em seu

crianças em estar no prédio escolar fez ver como se trata, atualmente, a infância.
A exigência de uma política de ocupação dos espaços em meio a uma pandemia
evidenciou limites da compreensão da criança, embaralhando a infância com o

heterogeneizar o que é atravessado, e sua evidência é a fácil sinonímia – o que

heteronomia típica do pensamento da representação. Assumimos com Derrida


que para além da conceitualização que distingue, entre esses conceitos “não há
uma margem

Notas de INVENÇÃO
Sem dúvida, elevada suspeita de impostura paira sobre essa docência, que so-

profundo cresce continuamente uma máscara, graças à interpretação perpetua-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que nos foi impingida pela sociedade como simples transmissão, no direito à
docência criadora? Em qual resolução ou lei, está garantido o direito de so-

as imagens que impelem o professor a uma transformação efetiva da docência,


a partir da retomada criadora de si e do seu fazer? Como pesquisar a lucidez
onirocrítica e, ao mesmo tempo, manter as ambivalências entre sonho diurno e
75

-
femático dos seres que a docência cria na ordem da necessidade, cuja crença
cultural repousa sobre um fantasma compartilhado, espectro docente que escre-
ve, isto é: distingue, escolhe, seleciona, ao preparar as palavras para interpretar
o enxame móvel de sua aula. Palavras que seguem hábitos de generalização,
mas que também lutam contra a trama da própria linguagem e fazem experi-
mentações, ao, supostamente, estabelecerem regras e descrições. Como poetas
e intérpretes, a docência é da ordem de seres da sensação artística, coproduto-

necessidades do presente, executando operações intervencionistas, feitas numa


comunidade de críticas, para que não se tornem totalitárias:

Não insistimos acerca do episódio central de um enredo metafísico para a aula,


que abrigaria a imprecisão ociosa, as ciladas da persuasão e a ganga da facili-
dade; ao contrário, encontramos nesse complexo poetizar um pulverizador de
aquele que foi por não ser existindo. Aparecendo como um espírito antigo, que
busca nova morada no mundo dos sonhos, a docência dá a impressão de realizar
um “leve rapto poético característico dos dormentes de olhos abertos e dos so-

mágicos, cava cogitos surracionais, outorga continuidade descontínua a obras


e autores, penetra em controversas relações e individua a tradição com outras
problemáticas, para fazer jus ao sentido de traditio, enquanto ato de passar de

a permutação e o movimento como agentes estruturantes da aula sonhada.

Como docentes que criam suas aulas, trabalhamos em direção ao seu secreto
poético, de maneira que, mesmo que lhe atribuamos aparência de similaridade
com o original, procedemos a uma mudança de timbre, na maneira de apresen-
-
dores, pois, na prática de liberdade de recriação dos originais, velamos para que
não percam a sua luminosidade de criação. Como autores-operadores, zelamos
76
pela pervivência ( ) não somente das matérias traduzidas, para além
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

implicamos a nossa própria pervivência, ultrapassando a docência que garante


a sobrevivência.

Essa sobrevida, sob o signo da invenção, faz a docência criar em paralelo, porém

-
nha, escrevemos centelhas de aulas, em sonhos de tinta, traduzindo uma escrita
cósmica, que nos outorga o direito de sonhar com a mutação paradigmática e

factuais, mas, sobretudo, com as noções de história e tradição, cultura e civili-

por carecer de um efetivo valor de criação.


Notas de SIGNO
No mesmo ano que Friedrich Nietzsche nasceu, Freud publicou sua mais co-
nhecida obra,

símbolo e a forma como o interpretar. -


tureza do símbolo? Foucault usa sêmeion, que diz sobre a marca pela qual algo
é conhecido, como uma verruga no rosto, uma cicatriz no queixo, o amor pelo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


cinema, a pontualidade obsessiva da hora da caminhada; em Marx, Nietzsche
e Freud semeion se tornam . Contudo, há nuances semânticas, aqui,
pois sêmeion é marca identitária; tem uma história mais complexa,
aqui assumido como junção de duas partes. Antagonista do , -
olos é aquilo que divide. Se vencermos a tentação do pensamento fácil para
escaparmos das tramas da representação que vincula esses termos com o uso

dispositivos que, de algum modo, cria um intermédio onde não havia, ao que
faz sentido na teoria psicanalítica de Freud na interpretação dos sonhos. Se o
77
sonho for efetividade do desejo, sua realização é juntar o que era separado o faz
de modo único, pois o sonhador sabe que as junções são coladas com fraturas
criando um apagamento do que reúne e do que separa com a evidência do

e signo-interpretado. É pela via da interpretação que o signo força o pensamen-


to a pensar e o abre a novas interpretações. Tal como uma colcha que junta
retalhos de memória e as tece aleatoriamente, como Aracne, que ao ver seu
lenço destruído por Atena, enforcou-se de tristeza. Tecidos de signos aracnêmi-
cos, nascidos da falta de ar, transformado em pesadelo. Como nos sonhos, os
signos podem ser feitos de material aleatório sem encapsulá-lo na via de mão

amentando ou conjurando uma presença que já não é e talvez nunca tenha


sido. Ambos, signo e sonho se furtam a um todo, não cabem no logos e não se

a exatidão circunstancial de sua produção.


Derrida leva adiante as indagações sobre o logos: o vê dando as cartas mais do
que a mão lhe permite. Ao longo do modo como se conta a história de tudo que
sucedeu ao jeito de falar-pensar dos gregos o logos deu as cartas como um crou-

o jogo deveria ser descentralizado. Esse centramento do logos como aquele que
d signo, alimenta uma fantasia de que o símbo-
lo-imagem-som é um veículo de transporte de carga cujo conteúdo é composto
de pacotes muito bem organizados e empilhados de todos os sentidos possíveis.
O logos De certo modo, é do que trata a ordenação do logos como operador de

metafísica ocidental, é logocêntrica, pois ela é determinada a partir de um funda-


mento: “todos os nomes do fundamento, do princípio ou do centro, sempre des-
presença é garantida pela
imagem sonora? É a presença estrutura de origem? Seriam signos composições
-
veu: “Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos,
78
trás pra frente: o estilo tem no tempo dos signos pathológicos o seu sentido. É
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

isso exilante

nos servem signos? “Ah, nessa terra também, também O mal não cessa, não dura
Notas de AULA
Deixamos para trás a ênfase tecnicista que nos tomou um dia. Como espectro,
ainda nos ronda, ainda mais com as tecnologias da informação e da comu-
-
-ciência. Também, aprendemos a desinvestir em pedagogia humanista, marxista,

nosso aprendizado pelos enganos já cometidos em nome de nossas convicções.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Como andarilhos, seguimos os movimentos recentes da docência, produzidos

transmite, recupera e preserva a tradição; de outro, transgride os cânones cien-

valores, maneiras de existir e modos de subjetivação.

79
constelações intertextuais e intervivenciais, urdidura do entreaberto e entrecru-
zamento de vozes, que nos levam a vivê-la poeticamente (Aquino; Corazza;
Poética de aula, constituída pela necessidade dos acontecimentos,
formulada por desamores, paixões súbitas, golpes de misericórdia, grau zero de
substituições, que nos faz desaprender o costume, as crenças e o bom senso: “a
aula como gesto fronteiriço entre violência e celebração. Um ato feito a naval-

aula e concede o que esta não possui, nem dá, mas pode criar: “Amar + escrever
= fazer justiça àqueles que conhecemos e amamos, isto é, testemunhar por eles,

Para além do processo tradutório, da singularidade criadora do fazer didático e

fantasia de Aula, cientes de que “uma vontade, uma fantasia circula mais rápi-

morada de afetos, quadro de poiesis e paragem de estudo, que dissipam a cama-


da de poeira do sempre-igual, que principiava a recobrir a noção pesquisada de
Em meio ao drama do mundo, somos ocupados, outra vez, pela inquietude do
espírito analítico e distância do que ameaçava tornar-se repetitivo. Tal volta no
parafuso dá-se por intermédio de choques e solavancos, contorções violentas,
zonas viscosas e o despertar de um presente, tido como a ruína de um tempo
que queda. Isso porque, se não estivermos presos por correntes, de que vale ain-

da vigília, que combate a ditadura do consensual e o fascismo social, mediante o


desejo de mudar o ler e o escrever, o pesquisar e o pensar, fazendo eco ao con-

este é o seu trono. Adulo meu delírio como um lindo cavalo. Falsa dualidade do

Então, para que, na dimensão poética, transcriemos arquivos didáticos e curricu-


lares – dos quais somos arcontes, guardiões e traidores –, a docência se apresenta
como o nosso direito de sonhar aulas (Corazza). Direito exercido sob a condição
-
tistagem, que promove minorização e disfarce, duplicidade literária, tela pintada
80
de logros, passos em falso, alucinação de um pensamento que pode ser incon-
sistente, embora não esteja em desacordo com a realidade. Sonho, assegurado
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

aqui não estão.

Ao poetizar uma aula, traduzindo imagens fantasiosas – dotadas de anterioridade


psíquica, relativamente às ideias e à linguagem –, sonhamos matérias excepcio-
nais ou gastas pelo hábito e opacas ao olhar, que adivinhamos, escavamos e
recolhemos, criando a paixão encontrada em toda obra artistada. Na Aula, de
qualidade acontecimental, sonhamos em voz alta a pesquisa, como diz Barthes

resiste e cede, como carne amante, o sonho faz a docência ganhar em valência
e operância vitais, pois reúne forças encantadas, que existem apesar de seus cri-
adores: aqueles que acreditam, junto aos poetas, que nada pode “ser estudado,
Notas de DOCÊNCIA
O termo espectro, de Jacques Derrida, apresentado em Espectros de Marx, suste-
nta uma posição de possibilidade do pensamento da não-presença, característi-
ca de todo texto, ente ou ser. O que resta (trace) em um texto não é espiritual-
mente transcendental, nem pleno de corporeidade: “a palavra phantasma, em

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


como força de decisão, se refere mais à potência de cindir do que aterrorizar.
A noção de espectro é essa não-presença operatória; embora espectros estejam
rondando, é a presença-ausente que interrompe o espaço-tempo do movimento,
melhor visto no cinema, pois é “arte do fantasma, isto é, ele não é nem imagem

tem também uma aparência fantasmática. É algo que não é nem real nem irre-
-
mente entregues ao destino: incontroláveis, presenças não vistas, sem imagens,
81

assim como o espectro é o jogo da presença-ausência: uma tragédia-metáfora.

Feita a partir de espectros, deve haver outra docência, não feita por cópia e re-
produção do mesmo, como exercício do adoecimento da vontade, presa a uma
só forma. Pelo contrário, no caminho inverso da cópia, da imitação, há de se
encontrar outro caminho, tortuoso, de disseminação. O sentido não está dado. A
produção de sentido é efetivada em disseminação. A pedagogia há de ganhar out-

A potência de uma docência dos espectros é ser feita com a disposição de


pensar e criar à partir da diferença, trazer matérias e formas escolhidas para o
ato educativo em uma posição que arrisca descarregar o peso da orientação ou
direcionamento do ato pedagógico. O debate põe sob suspeita a “transposição

original, especular, como reprodutibilidade própria dos espelhos, que se submete


ao original; docência dos espectros é reino da indecidibilidade. A dependên-
colide com o conceito de espectro. A ideia de transposição didática prende-se à

deve ser transposto do âmbito do especialista ao do não-especialista. Ao invés


da transposição didática, a docência dos espectros pede uma didática como ato
tradutório; no lugar da transposição, que seja a tradução, investindo seu empen-
ho em criar modos e sentidos tradutores no ensino:

Tratamos, desse modo, a concepção de didática como um movimento


do pensamento, uma direção tradutória dos atos curriculares — por
si próprios, transcriadores de elementos artí ó -
tí ção, que implica menos transportar ou transpor [...] os
sentidos de uma língua para outra e mais verter ou recriar: dotando-se
da consistência de romper com o estabelecido; empreendendo novos
recomeços; apropriando-se do antigo ou do estrangeiro e tornando-os
seus, ao entrecruzá-los com a língua didática e fazer ressoar a sua voz

Como convite à tradução, a docência transcria seus conteúdos traduzindo-os,


82 pois abandona a instrução catequética e se abre à cena trágica como oferta dio-
nisíaca ao jogo da indecidibilidade, ao ato de criação, à força da disseminação.
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

da vida, um estilo.
Conclusão —
DOCÊNCIA TRANSCRIADORA
[1] As rupturas vividas em tais dias de distanciamento extrapolam argumentos
pedagógicos de resistência ou adesão. É uma situação-limite que afeta com po-
tência ainda não experimentada os modos regulares de viver e de fazer educa-
ção. Eis aqui uma consideração de espectatura: o rompimento da resistência
de manter-se naquilo que sempre foi. Um novo cenário quer forças de criação

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e domínio. Assim, há que se considerar a criação de novas experiências com a
leitura e a escrita, com a aula, com a docência.

[2] A realização de um didática-artista concebe “esse território didático indis-

das velhas práticas aos novos tempos. É preciso vencer a vontade de verdade

petulância não pode sustentar que a resposta às circunstâncias já está dada pelas
práticas e meios tão bem reconhecidos na esfera educacional. O ato tradutório 83

[3] A expressão cartesiana “At certe videre videor, audite, calescere” (Descartes,

um certo parecer-a-si, algo que é visto-não-visto, visto-de-si, um golpe narcísico


às pretensões de estabilidade. Esse compõe matéria e
exposições didática. O retrato inerte das condensações metafísicas evapora em
possibilidades de leitura e escrita, meios e suportes, como convite à experimen-
tação tradutória das novas circunstâncias e suas práticas.

[4] Como tradutores, docentes exploram a força da virtualidade dos instrumentos


que lhe estão ao dispor. A tecnologia, giz ou tablet, se mantém como potência
-
nicação, embora façam parte, como toda tecnologia, da emergência do novo; a
-
jamin escreve: “Já se disse que ‘o analfabeto do futuro não será quem não sabe
escrever, e sim quem não sabe fotografar’. Mas um fotógrafo que não sabe ler

Analfabeto digital, como se diz hoje, soa igualmente problemático. As circuns-


tâncias do distanciamento não pede solução técnica, mas a bem conhecida for-
ma como fazemos aula; deslocado da centralidade do problema da técnica, há
que manter a indagação quanto ao estilo:

Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do esti-
lo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de
signos, incluído o tempo desses signos — eis o sentido de todo estilo;
e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim
extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo — a mais
multifária arte do estilo de que um homem já disp s. Bom é todo es-
tilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca
nos signos, no tempo dos signos, nos gestos — todas as leis do perío-
do são arte dos gestos.
84

O bom estilo sabe comunicar a potência de um estado interno no ritmo do tem-


TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

po dos signos. Aqui, talvez, seja o ponto que inaugura os diversos começos do
ensino, como experimentação recorrente das circunstâncias das vivências, com
atropelos e conquistas. A resposta a isso está em lugar algum. Será por invenção

outra educação.
Referências
O camponês de Paris. (Tradução Flávia Nascimento) Rio de

O direito de sonhar. Tradução José Américo Motta Pes-

A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Dane-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Aula.

e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. (Tradução Sergio

Haroldo de Campos – Transcriação. Organiza-

Conhecimento e devaneio: -
85
Uma vida de professora.
O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFR-

escrileitura da diferença). Pro-Posições, C

pesquisar em educação.
A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poe-
sia curricular.

Crítica e clínica. (Tradução Peter Pál Pelbart) Sao Paulo: Edi-

Mil platôs.
Diferença e repetição.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. (Tradução Miriam Schnaiderman; Renato

DERRIDA, Jacques. (Tradução Joaquim Torres Costa;

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e

DERRIDA, Jacques. Marx en jeu


DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver:

DERRIDA, Jacques. (Tradução Fernanda Bernardo)

DESCARTES, René. Méditations métaphysiques. -


86
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

Nietzsche, Freud e Marx.

FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Bra-


sileira das Obras Completas de Sigmund Freud.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. (Tradução Paulo César De Sou-

Os Pensa-
dores,
Ser e tempo. (Tradução Fausto Castilho) Campinas /

Para ler Bachelard.


Kaddish por el hijo no nacido.
Docência artista: arte, estética de si e subjetiv-
idades femininas.
-

O manifesto comunista. (Tradução Regina

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


futuro.

O nascimento da tragédia ou Helenismo e


pessimismo.

Assim falou Zaratustra. (Tradução Paulo César de Sou-

In: Noéli Correia de Melo Sobrinho (org). Escritos sobre educação. Rio de
87

Fragmentos póstumos: 1885-1887:

Diálogos.
-
TÍTULO

88

4.
POR DOCÊNCIAS

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


NÃO DOGMÁTICAS
E EXISTÊNCIAS
NÃO MÍNIMAS
NOS COTIDIANOS
ESCOLARES 89

Janete Magalhães Carvalho


Steferson Zanoni Roseiro
Suzany Goulart Lourenço
Suzany Goulart Lourenço (UVV)

Introdução

Prática recorrente: sexta-feira, um professor monta o projetor na sala, instala o


-

conversa com sua turma sobre o que aparece na tela: modos de pintar, artistas e
lares distantes, política, temas discutidos em sala em outros momentos.

Em outro espaçotempo escolar, as crianças são convidadas a conhecer obras de


90
Elas vão percebendo que essa artista trabalha com porme-
-
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

vras soltas... As conversas se delineiam a partir da história da artista, mas princi-


palmente da força de suas obras. O movimento do pensamento busca encontros
-
duzem em suas vidas? De que modo a escola pública possibilita alçar outros
horizontes? Uma indagação emerge com ênfase: podemos exercitar a arte de
sonhar a própria vida? Ou nos arrancaram a possibilidade de sonhar?

Assim, a intencionalidade deste artigo é promover um exercício de deslocamen-


to conceitual e ético-estético das existências mínimas no âmbito da docência.
Isto é, visamos a operar com a noção de uma docência não dogmática para uma
abertura existencial que reconheça a pluralidade dos intermundos e almeje a
superação do estado passivo dos alunos. Para tanto, partimos da premissa de que

1 Artista mato-grossense, mas que viveu boa parte de sua vida no Espírito Santo, formando-se na Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes).
a arte e/ou os signos artísticos possuem o caráter especial de explorar afetos e
afecções inusitados, ampliando nossas relações com o mundo.

Mas, por que apostar nas existências mínimas? Por que defendê-las?

Todas as existências deveriam conquistar por elas mesmas sua legitimidade ou

de escolas públicas brasileiras e de crianças e professores que ocupam esses

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


espaçostempos, estamos falando de existências que são a todo momento con-
testadas. Existências que são sempre questionadas: devem ou não ocupar deter-
minados lugares?

torno das potencialidades dos signos artísticos. As falas foram gravadas e trans-

texto, como pinturas feitas pelos alunos, conjugadas aos trechos das conversas
estabelecidas. Ao longo do texto, as falas aparecerão em itálico e com espaço
91

-
va não remete a um sujeito, pois o sujeito é ele próprio um agenciamento de
enunciação, isto é, ele se constitui em um plano de consistência por meio de
agenciamentos. Em todos os momentos, as conversas ocorreram em múltiplas
vozes, típico de um trabalho em sala de aula.

Buscamos, assim, seguir as linhas dos gestos docentes e infantis que evidencias-

resistência em frente à lógica de controle e diminuição das potências de vida,


procurando fazer ver enunciações infantis e docentes, na tentativa de ir ao en-
contro de seus mundos e de nos colocarmos com esses mundos.

2
incessantemente. Os dois polos do conceito de agenciamento não são, portanto, o coletivo e o individual: são antes dois sentidos,

de um sujeito preexistente que lhe poderia ser atribuído: logo, o próprio está na medida de seu anonimato, e é por esse motivo
-
do, não sendo consideradas tanto as existências mínimas de seres reais, como,
principalmente, as de seres virtuais como potencialidades que acompanham cada
existência: aquilo que ela poderia ser dentro de um quadro de possibilidades.

Pensando nos processos educacionais, o direito à educação atravessa toda a


trajetória da luta pela educação pública e da valorização do exercício docen-
te. Brigamos avidamente pela escola pública, pelo direito à educação de todos
os sujeitos. Todavia, com o avanço das políticas neoliberais, vimos o direito à
educação ceder espaço ao Durante o início da década

educação, ora dos direitos à aprendizagem. Decerto nenhuma das duas defesas
minava os males possíveis ou instaurava uma realidade educacional ideal para
as condições reais de trabalho. Ainda assim, toda a discussão sobre os direitos à
educação foi substituída após a promulgação da Base Nacional Comum Curri-

desenvolvimento de habilidades e competências, ignorando-se que, sem aber-


92
tura para o campo dos possíveis, docentes e crianças são privados do direito de
existir de tal e qual maneira.
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Contrapondo essa redução, faz-se necessária a compreensão de que uma crian-


ça pode participar de muitos planos de existência como se pertencesse a vários

-
brança no espírito de outro. Tantas maneiras de existir em outros planos... Nesse
sentido, os seres são realidades plurimodais, multimodais; e aquilo que chama-
mos de mundo é, de fato, o lugar de vários intermundos, de um emaranhado de
planos que ora chamam uns aos outros à existência, ora se dispersam entre os
mundos que lhes são cabíveis.

Cada existência provém de gestos que a instauram e não advém de um criador


como ponto de origem, pois é imanente à própria existência. Desse ponto de
vista, podemos pensar a existência a partir dos limites dos seres ou podemos
pensar a existência a partir dos gestos que instaura, da forma tomada pelos seres
quando aparecem. No primeiro caso, a potência de existir é limitada, enquanto
no segundo é revelada a maneira do existir, a curvatura singular, que, assim,

Nas escolas, o contato com as crianças evidencia as existências dos mundos

e, de imediato, seremos atravessados pelos mundos de todas as espécies que a


alcança – seres imaginados coletivamente, experiências ordinárias, expressões
e situações improváveis. Tudo, nessa relação, aponta para a multiplicidade de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


possíveis da existência.

Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
artísticos, nos fazem ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
-
des de vida.

potência artística. Para os autores, a arte cria as condições de existência dos


93
mundos ao traçar planos de afecções que, circulando, esbarram no plano da
vida continuamente. A arte cria mundos justamente para sacudir a vida estag-
nada, para fazer ruir os fundamentos demasiadamente certos da paz ensejada a
gritos da professora que exige um silêncio que nem mesmo ela suporta. “Trata-se
sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num com-

Importa, assim, assumir uma concepção de docência que, inserida no plano

complexidade e multiplicidade dos encontros dos corpos que se esforçam para


perseverar e potencializar a vida ativa e, portanto, ético-política.

Desse modo perspectivar uma docência não dogmática implica visualizar uma
docência aberta à diferença e à instauração de uma docência que considere a

uma palavra de ordem. Um conversar com, no lugar de um falar sobre, nutrindo


Uma docência exercida num plano de imanência que vai assumindo consis-
tência à medida que o criam por meio de experimentações. Plano povoado por
docentes em devires-simulacros compostos por processos transversais de “artis-
-

A consideração dos possíveis de uma docência não dogmática passa pela inven-
ção dos desacordos e criação das diferenças numa espécie de alteridade dese-
jante, isto é, uma alteridade que supere as representações binárias e modulares
do tipo: “[...] eu, macho, em meu lugar, falando em nome das mulheres; eu,
poder patrimonial, em meu lugar, falando os ‘desvalidos’; eu, professor,

Uma alteridade como uma invenção e não um dado. O outro que está em mim
supera a visão de um outro apartado de mim, abrindo-se ao não humano do
homem, à natureza, à coletividade, ao universo múltiplo, como um desejo de
agenciamento de uma comunalidade expansiva, devir aos mil afetos e desejos.
94 Outro, portanto, que reage: outro em devir, um devir outro que resiste inclusive
à fundação da docência, mesmo porque “[...] o que deve ser fundado é sempre
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Deve-se, pois, resistir à representação da docência como objeto de fascinação


programado, de controle, que aniquila o outro pelas paixões tristes e que pre-
tende a uniformização e homogeneização dos alunos enclausurados num futuro
longínquo do porvir, fabricados pelas leis do mercado, apartados da transversa-
lidade do presente, tratados como invólucros. Alunos como jogo regressivo dos
adultos que, numa caricatura de docência, se permitem falar pelo outro, pensar
para o outro, inserindo-o na tentação conservadora cuja fabricação equivale a
sustentar a validade de superioridade de algumas existências sobre outras.

do que tradicionalmente ocorre nas escolas nas quais é valorizado o princípio


formal que organiza as práticas e fundamenta as existências, torna-se necessário
-
coletivos de criar vida e de fazer surgir sementes caóticas em meio aos ordena-

Eis nosso ponto de partida: explorar as existências que, reduzidas ao quase nada
– o nada é sempre inatingível –, não fazem outra coisa senão amiudar-se. E, pe-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


O s virtuais como vetores de transformação
Uma existência é marcada por uma dose de real que lhe permite ou lhe nega

“[...] não há um único modo de existência para todos os seres que povoam o

os mundos necessários para que todas os seres continuem a viver.


95
Ainda que os mundos sejam compossíveis, há sempre a sobrepujança de uns
sobre outros; há sempre a diminuição de mundos quando esses, de algum modo,
se retiram do arcabouço de mundos necessários para a alimentação do modo
capitalístico de existir.

-
tros que, entretanto, não mais lhes dão as condições necessárias de existência.
Esse é, por princípio, o modo de efetivação das forças capitalísticas: o consumo
radical de mundos e o descarte imediato quando as existências e os mundos
não lhes são mais vantajosos. As existências, por acaso desse movimento, são
diminuídas e empurradas para outros mundos que nem sempre as suportam ou
as desejam.

Ora, no contexto escolar, esse tipo de ação é palpável. Ainda que um professor
trabalhe toda sexta-feira com pinturas em conversas com sua turma, no momen-
to em que ele estende aos alunos um conjunto de pincéis, tinta e papel gros-
so próprio para tinta, a turma começa a perguntar o que eles precisam pintar.
Pedem instruções, ordens. Como é um trabalho realizado na escola, evidente-
mente se caracteriza como uma atividade escolar e, por efeito, deve haver uma
resposta correta.

A questão é pertinente: como praticar qualquer liberdade em face às expectati-

mas também expectativas do professor que, de algum modo, espera poder exer-
96
citar liberdades de uma única vez.
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

crianças estranham, mas também o professor. O choque é duplo. Podem as


crianças instaurar novas realidades, novas experimentações, diante da usurpa-
ção de suas singularidades? Podem, no limite da inexistência, conquistar uma
existência mais real, mais consistente? Com que gesto? A arte permite que as

plano dos virtuais, do real e da atualização da potencialidade das crianças nos


cotidianos escolares? As existências mais frágeis, próximas do nada, exigem com
força tornarem-se mais reais?

A questão, aqui, é sobre nossa capacidade de percepção, de apreender o valor e


a importância dos modos de enxergar os mundos e suas nuanças. Portanto, antes
de problematizar o ato criador que permite às crianças instaurar existências sin-
gulares, é preciso se perguntar o que e como percebê-las e, para isso, é preciso

criança e a sua presença.


As existências, por sua vez,
nós, em práticas de controle e de criação. Afetamo-nos com elas continuamente,
todavia nem sempre sabemos como agir diante desses afetos que invadem
nossos corpos.

universos concomitantes que invadem as existências e nelas se intercruzam,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nuvem

o mundo tátil ou facilmente exprimível. O cosmo das coisas seria marcado por
certa duração, isto é, uma coisa sendo compreendida por sua capacidade de

o marcado justamente pelos seres que povoam nossas imaginações, que preci-

existências. Junto a isso tudo, além e aquém de todos os outros mundos, con- 97

parte. Eles estão aí, à nossa volta, eles aparecem, desaparecem e se transformam
à medida que a própria realidade muda. Aparecem como ideias, pequenos lap-
sos, rugas que surgem no canto dos olhos da criança que titubeia com um lápis
na mão enquanto pensa em fazer um desenho no canto do caderno – faz ou não
faz? Faz um traço, cria uma imagem; o pensamento já se foi; arregala os olhos,
apaga.

Por um lado, é o universo mais vasto, mas é também o mais evanescente, o mais
inconsistente, o mais próximo, aparentemente, do nada.
IMAGEM 1 _ Escravas na cozinha

98
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).

— Isso são escravas!


— Não era pra ter nenhuma!


— É, não era! Mas, e se as cores fossem diferentes? E se tudo fosse diferente?
— E se nem fossem escravas?
O virtual interpela a realidade das coisas a partir de sua necessidade de fazer-
-existir, de fazer-ver.

Não há uma só realidade que não esteja acompanhada de uma nuvem de po-
tencialidades que a segue como se fosse sua sombra. Cada existência pode tor-
nar-se uma incitação, uma sugestão ou o germe de outra coisa, o fragmento de
uma nova realidade futura. Toda existência torna-se legitimamente inacabada e,
portanto, com abertura para uma existência singular.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Real, atual e virtual são imanentes um ao outro, existindo uma diferença de
natureza, mas não de grau, ou seja, o virtual é simultâneo ao atual, visto que a
lembrança é simultânea à percepção. Desse modo, o atual exprime as forças do
virtual em produzir diferenciação no real, podemos, então, dizer que o possível

Nesse enredamento entre real, atual e virtual, produzimos movimentos de atua-


lização que nos forçam à diferenciação, potencializando impulsos vitais que
deslocam o pensamento e, tratando-se das enunciações infantis produzidas nas
99
escolas públicas e atravessadas pelos signos artísticos, fazem-nos desprender das
formas e apostar nas forças. As forças das tintas, tecidos, bordados, miçangas,

forças: as crianças saltam na/com as obras da artista, compõem também seus


blocos de sensações, visto que a arte é um modo de liberar a vida. Com a arte
tornamos “[...] sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos

— Os desenhos dela parecem de criança! [risos]




— Ela usa muito pintura em tecido, usa um tecido mais grosso, pois ela usa tinta

dela tem sempre algo escrito?


— Sim!!



-

atual. Entramos no domínio do

como virtuais, pelo contrário. São eles, os virtuais, que ditam as condições de
sua passagem para a existência, apesar da sua indistinção. A conversa com as
crianças que pintaram a cena Escravas na cozinha deixa isso bem claro: não se
trata, em absoluto, de recriar a memória tal qual ela se efetivou; ao mesmo tem-
po, não se trata de fazer de um modo qualquer. O virtual, ao se atualizar, cobra
do real as condições cabíveis para sua existência. Cada esforço criador, cada
investida é como uma proposição de existência que o virtual consente ou não,
segundo as exigências cambiantes da construção/organização que se esboça.

As enunciações infantis produzidas nos encontros com as obras da artista Nelma

100 de sonhar a própria vida interpela as condições dessas existências – existências


despossuídas. Isso porque estamos a fazer ver enunciações infantis que se des-
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

dobram em meio a condições obscuras de existência, mas que, mesmo assim,


buscam criar máquinas de luta.

Desse modo, a relação entre a existência virtual e a existência concreta, em que


a única certeza parece ser a passagem de um modo a outro para ver como essa
existência virtual se transforma pouco a pouco em existência concreta, é deno-

em existência concreta.

Eis que, se, nas escolas – de modo geral –, predominam as existências assujeita-
das pelas macropolíticas e/ou pelos modelos prescritivos de ensinar e aprender

tempestade, uma erupção vulcânica. As escolas públicas periféricas são conhe-


esquecidos pelas forças políticas majoritárias que tendem a capitalizar tudo o
que lhes for apresentado. Todavia, tal qual o professor preocupado com as práti-
cas de liberdade e seus alunos que explodiram em um arrombo de escravas-não-
-

IMAGEM 2 – O chão sob nossos pés

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


101

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).


— Vai ver os meninos , ué! Tem mão de tudo no chão,

nossa realidade pelos planos decenais, pelos parâmetros e diretrizes, pela BNCC
-
rar o mundo’ em lugar de extrair impressões dele, trabalhar nos objetos, nas
pessoas, nos acontecimentos, colado ao real [em sua relação com o virtual e

vida, lutamos pelo direito de existir nas escolas públicas.

102 O direito de existir


POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Mas o que acontece quando nossas crianças estão totalmente despossuídas –


-
gundo determinado modo? O que acontece quando não é oportunizada uma
existência não mínima, tanto no sentido das condições concretas de existência,
como com relação à abertura para os possíveis virtuais se atualizarem produzin-
do novas experimentações no real?

A partir de nossas apostas e defesa pelas existências mínimas, compreendemos


que tal luta perpassa pela dimensão político-afetiva, tendo em vista que o pro-
cesso de atualização que coloca em jogo as forças dos virtuais é potencializado
pelos afetos/afecções engendrados num contexto, no caso, das escolas públicas.
Nesse sentido, nossa defesa não pode se dar apartada do entendimento de que

em condições existenciais ainda mais limitadas.

atribuem à imaginação um importante papel na formação de um entendimento


ativo. Negri focaliza sua atenção na dimensão social da imaginação, ao invés de

da imaginação, a mente compreende não apenas suas inadequações, mas tam-


bém o mundo socialmente constituído de sua experiência, de modo que razão e
imaginação não seriam polos excludentes, visto que o objeto do conhecimento
-
cas, crenças herdadas socialmente – deve ser pensado como o que nos permite

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Nessa compreensão, a base afetivo-imaginativa é fundamental para a inserção
das crianças na problematização e experimentação do mundo, porém estaria a
educação escolar abrindo possibilidades para a ampliação do campo existen-
cial? Abertas às paixões alegres, as crianças das escolas públicas compartilham
seus desejos por essa ampliação e buscam as potencialidades do mundo.

IMAGEM 3 _ Pé de risos para todos


103
Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).

— Desenha uma fruta!


— Desenha melão, igual teve hoje na merenda! [risos]

, o problema da existência não é o da sua facticidade,


da sua irredutível contingência ou do seu absurdo. O problema é mais elemen-
tar: trata-se de existir realmente. Para ele, seria necessário compreender que a
questão é tanto política quanto esté

outra, estão privados desse direito, como os docentes e as crianças, subjugados


pelas prescrições e hierarquizações, na ambiência escolar.

No mapa do mundo, as crianças despossuídas ocupam um ponto minúsculo,


quase invisível. Elas vivem num espaço cada vez mais exíguo e o tempo perde
104 toda a continuidade e se reduz a uma sucessão de instantes. Ele é tão pouco real
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Os despossuídos vivem, portanto, uma espécie de condição Para eles


a espoliação tornou-se uma aquisição e eles não reivindicam mais nenhum
direito. Nasceram despossuídos e, como não têm os meios de possuir a si

Mas a grande questão é que o sistema capitalista maquínico os captura de tal


modo que eles nem mesmo mais se incomodam com esse estado de espoliação,
pois têm outros problemas dos quais o mais importante é menos o viver – é so-

3
educação o deixaram com traumas. Por conta disso, ele aprendeu a ver o mundo do modo do pai, e a última coisa que desejaria
era ver o mundo por tal perspectiva autoritária.
Apesar dessa luta pela sobrevivência, ambicionam alguma coisa. Os despossuí-
dos não reivindicam nenhum direito sobre nada, não aspiram a nenhuma posse.
Na maioria das vezes, nem compreendem o que lhes perguntam. Só que eles
nunca podem satisfazer essa pretensão de somente sobreviver, pois nunca con-
ão se mexer. Sempre circulam
vibrações que impedem de acabar com aquilo, pois os virtuais, em relação com
o real, agem acenando alternativas possíveis.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Entretanto, se essa decisão não lhes pertence, não mais do que o resto, de modo
que têm que continuar se submetendo aos gestos, às vozes, às percepções que
os agitam, apesar de tudo, eles descobrem o interminável, negando o silêncio,
a imobilidade, o negro, o cinza ou o branco como derradeiros limites, pois o
negro nunca é total, o silêncio nunca é completo, a imobilidade nunca é per-
feita. Alguma coisa persiste inexoravelmente. Podemos chamar de vitalidade, se
quisermos, uma força que não lhes pertence, mas à qual eles pertencem e que
lhes impõe um mínimo de atividade.

105
IMAGEM 4 _ “Só de boa”

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).


— -
mava “Chuva” e tinha uma garota parada no meio de uma chuva, com um sor-
ía

-
ó

Assim, os despossuídos, em existências mínimas polí são


agitados por existências mínimas virtuais que se manifestam em tremores, so-
bressaltos, lembranças que os ajudam a alcançar zonas de atualização de possí-
veis, em que novas problematizações e experimentações surgem em modos de

conta histórias de fuga da polícia, conta sobre os anos em que esteve longe da
escola, conta sobre as tantas vezes em que se calou por obrigação. Nada a abate.
106
menos como uma ausência de vontade de vida e mais como uma vida vagante,
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

despreocupação que ela usa como modo de resistência, como modo de cruzar
os mundos travando batalhas com um sorriso tímido, com uma paz singela. Seja

seu modo de existir, as existências mínimas em contato com a força da arte e de


seus signos são lembradas em suas potências vitalistas. A arte pode funcionar,
para as crianças, como um modo de criar mundos desejantes.
Forças ético-estético-políticas
disparadas pelos signos artísticos
Em Deleuze, potência rima, decerto, com imanência.

por signos, a potência implica também a compreensão de que a política, em De-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Éticos porque os modos de existência envolvem a corrosão da ordem moral das
coletividades dominantes, ligando-se não a modelos, mas ao poder de afetar e
ser afetado nos encontros. Estéticos, visto que os estilos de vida são efeitos de
acontecimentos inconscientes pré-individuais que criam novos modos de sentir,
ver e dizer.

Assim, não para menos, o signo artístico pode nos fazer pensar a experiência
intensiva de novas formas de sentir, enfrentando as forças dominantes ao mesmo
tempo em que torna possível o surgimento de mundos inesperados. Por essa ra-
zão, a teoria deleuziana dos signos se torna uma prática política, isto é, o signo
107
se torna um elemento multiplicador das estratégias de intervenção política, re-

é uma
tendê
entidades das zonas tidas como estéreis ou inabitáveis para a sensibilidade. A
força da arte aparece justamente onde os terrenos mórbidos parecem prosperar.
não se chocam com o limite das suas possibilidades, seu desejo
de alcançar outros possíveis povoados de qualidades puras e abstratas extrapola

ência
de uma arte? Como instaurar novos seres nessas zonas, se for verdade que não
existe nada alé

Dizíamos, inicialmente, que a catástrofe é necessária para a conversão dos limi-


tes entre o atual e o virtual, para a composição de mundos entre mundos. Aqui,
coisidades) efetivamente se cruze com os virtuais, para que haja atualização da

os rasgos dos limites – os limites do aceitável, os limites dos afetos, os limites do


cabível. É preciso que uma catástrofe seja semeada.

Daí, justamente, que o concreto não é a materialidade dos corpos neles mes-
mos; antes, é o ruído da sua vibração. O concreto da vida é animado por movi-
mentos, palpitações vibrantes, pela brisa litorânea que, ainda que fraca, nunca
cessa – carrega consigo grãos de areia e maresia. A catástrofe não precisa ser
apocalíptica; deve, antes, atravessar as concretudes com maior intensidade da
vida. Desse modo, precisamos criar captores, transmissores, detectores de movi-
mentos. Isso vale, para transformar sensibilidades, para todas as artes.

-
como da arte – isto é, como
fazer a vida expandir suas possibilidades artísticas. Nessa expansão, as crianças

108 existências na escola pública. Existências mais alegres, sonhadoras, coloríveis,


livres. Os signos artísticos convidam as crianças a sonhar a própria vida e as
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

afetam a experimentar a vida como prática de liberdade.


IMAGEM 5 _ Alegria de aprender

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


109

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).


— Mas, você não é anjo, né, João? [risos]

— Como assim?


— Então, pronto! Fechou!
O trabalho com signos artísticos tem se mostrado extremamente potente como
possibilidade menos estruturada e formal de entendimento dos processos de
aprendizagem que acontecem nas escolas. Assim, mesmo considerando a força
dos determinismos prescritivos que hoje buscam conformar a vida das esco-
las, faz-se necessário investigar a multiplicidade de mundos que nelas coexis-
tem, exigindo-se, para isso, a atitude de mergulhar nesses universos de virtuais,
atuais, reais sempre em busca de produzir mais mundos compossíveis para as
-

Assim, falar sobre uma docência não dogmática implica problematizar, expe-
rimentar, acompanhar movimentos que vão transformando a cultura da escola,
fortalecendo a criação coletiva, conduzindo para o questionamento e a carto-

-
cando a necessidade de abertura para o aprender e o ensinar na perspectiva do
pensamento em movimento, considerando que, para que alunos e professores
110
produzam as suas aprendizagens sem medo, eles necessitam que sejam opor-
espaçostempos para capturá-las e afetos que
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

potencializem modos coletivos de se constituírem como aprendentes no plano


cotidiano de imanência da vida.

A constituição de encontros produtivos que fomentem a emergência do públi-


co e do coletivo, potencializados pelas experimentações, fundamenta-se em

fundamentais.

-
car a liberdade em pintura fazem-nos não apenas rir, mas também tropeçar nos
próprios pensamentos em modos de agir e pensar. Em uma sala de aula, per-
guntar pelos virtuais que atravessam os universos é possível? Como atentar-se a

manter a produção de vida sem que, com isso, outras existências sejam afeta-
das. Jogo de pincéis: aplicar camadas de cores sem que nenhuma delas se perca
totalmente, deixando, ainda, vislumbres das cores em camadas, em diferentes
pontos. Produzir um mapa das cores. Encontrar, em meio às existências míni-
mas, o menor
falamos mais de despossuídos. Onde as minoridades fazem vez, as existências
exigem que olhemos de perto bem atentamente, com o olhar colado nelas para
enxergar até o calor dos corpos, o brilho dos olhos, o tremor das vozes.

tudo é visto sob nova perspectiva, de ângulos, cheiros e tamanhos diferentes.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ali, deparamo-nos com existências que resistem ao modelo imposto produzin-
do vida como reinvenção. Ali, as existências mínimas transitam em seu duplo
sentido – primeiro como corpos mínimos que incitam a abertura perceptual
para anular o segundo sentido, isto é, anular a lógica dos corpos de nossas

para as existências que interessa instaurar para produzir uma vida na educação
escolar pública.

111
Referências
Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o

Base Nacional Comum Curricular (BNCC): educação é a base. Bra-


-

-
zación de lo vivente. In: BRITO, Maria dos Remédios de; COSTA, Dhemer-
Variações deleuzianas: educação e pensamento e

O cotidiano escolar como comunidade de afe-


tos
-
sas em currículos com os cotidianos escolares. Revista Linha Mestra, Cam-

O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFR-


112

Diferença e repetição
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

. Tradução de António Magalhães. Por-

Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo:

Lógica do sentido

Proust e os signos -

Kafka: por uma literatura menor. Tradução

Tradução de Bento Pra-


Fernando José Fagundes Ribeiro. Cadernos de Subjetividade: especial De-

Educação & Realidade

Carta ao pai

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Pen-

As existências mínimas

Educação e So-
ciedade
NASCIMENTO, Roberto Duarte Santana. Dimensões políticas da teoria deleu-

Conexões: Deleuze e política e resistência e... Petrópo-


113

La anomalia salvaje -

Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras,

-
Anais eletrônicos [...].
Disponível em:

O vocabulário de Deleuze
TÍTULO

114

5.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
‘FAZER MORADA’
NA INFÂNCIA:
IMAGENS DE 115

CURRÍCULOS EM
DEVIR-CRIANÇA

César Donizetti Pereira Leite


Bianca Santos Chisté
Giovani Cammarota
César Donizetti Pereira Leite1
Bianca Santos Chisté2
Giovani Cammarota3

Aforismo de descurricularizar um currículo


Um currículo em devir-criança é possível?
O que pode um currículo crianceiro?
O que pode um currículo arteiro?
O que pode um currículo infantil? Infantilizar o currículo é possível?
E se um currículo fosse muitos? Nos plurais?
para ser lambido, babado, melado - currículo pirulito –
lírico, alvoroçado, festivo - currículo palhaço
vassoura, gancho, ponte, estrada, cama - currículo brinquedo
delirante, embriagante, insano - currículo brigadeiro
misterioso, profano - currículo só-riso
falante, barulhento, cortante, extravagante - currículo periquito
onde às coisas que não servem para nada - currículo-inutilezas

116 Experimentar mundos


Correr mundos
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

Cair nos mundos


Ser de outros mundos

Petecar mundo
Saltitar mundos e fundos
Sair do mundo

Sob a pele do chão


Em terra chã e safada
Na comunhão com bandos e matilhas
Nos corpos vibrantes e desejantes
Nos resíduos, nas miudezas, nos inutensílios e ignorãças
No vento cumprido que vai para além do mundo
Como fazer para si um currículo em estado árvore, em estado infância?

3
Fazer morada
“Eu estava sentado no chão de uma sala ‘de aula’, perto da porta. Observava

aproximam e me oferecem um carrinho de brinquedo para que eu possa junto


com eles brincar. Depois de algum tempo uma das crianças começa a passar um
carrinho na sola de minha sandália, enquanto a outra usa meu braço de ponte,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


para com outro carrinho passar de um lado para o outro de meu corpo. Os cor-
pos das crianças se misturam, buscam espaço, criam espaços, exploram o espa-
ço. Os corpos das crianças rompem, nos movimentos, os espaços dos próprios
corpos identitários, misturando braços, pernas, atravessando os sons, criando
ruídos marcados por palavras, risos, verdadeiros corpos sem órgãos.

eescapam àquilo que é previsto nos modos de pensar as crianças, a escola, as


imagens que ali se apresentam e as imagens que as crianças apresentam em suas
capturas através dos equipamentos, das tecnologias. Passamos, eu e as crianças, 117
um bom tempo sentados, brincando. Esse momento foi interrompido pela che-
gada do Diretor da creche, que parou ao lado de fora da sala. Eu me levanto

vemos se aproximando a nós a professora do berçário II de mãos dadas com uma


criança. Ao chegar a professora, apontando para mim, ela diz: “ele te viu e me

-
ciosa, sem palavras, sem sons, sem ruídos. A troca de olhares durou vários mi-
nutos, o silêncio ali instalado era povoado de sensações, de aprendizagens, de

a mim, pude, ao menos no campo do sensível – no campo sensível –, saber algo


sobre pesquisar com crianças, pesquisar com crianças e produção de imagens,
pude ver e enveredar por uma rede de saberes que se conectam a afetos, ideias,
pensamentos, imagens e montagens. Pude ver, pelo e com o olhar do Joaquim
(nome da referida criança), que estar e pesquisar com crianças, professores, pro-
dução de imagens na Educação Infantil, tem alguma coisa a ver com procurar
formas de dar visibilidade ao que a nós se apresenta; que o que o olho captura
e que captura o olhar talvez seja algum tipo de gesto, algum tipo de movimento,

que ensina que a experiência é uma dobra que nos coloca de alguma forma em
contato com o fora; que pesquisar e experimentar com imagens, com produção
de imagens realizada por crianças pequenas e professores de Educação Infantil
é se lançar em uma aventura com o fora, com a infância das coisas, com os ‘não
sei’ de partida e de chegada, com as incertezas, com os medos, com os mundos

***

Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o cor-


po, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o
que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o cor-
po pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado

118

Partimos de duas ideias centrais: a ideia de “descaracterização da Educação


‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

essas considerações e as desloquemos para nos colocar diante de questões que


se fazem presentes e que vazam constantemente no universo da Educação e,

pode a Educação Infantil? O que pode a infância nos ajudar a pensar acerca da
Educação e da Educação Infantil?

Ainda retomando as questões apresentadas acerca do ‘corpo’ e de suas potên-


cias na Educação Infantil poderíamos nos perguntar: que corpo habita a Edu-

Educação das crianças pequenas? Corpos plurais, povoados de multiplicidades


metamorfoseado em gestos, em posturas, em imagens, em modos de conhecer,
em formas de criar conhecimento. Um corpo vivo, confuso, desfocado, frag-
mentado, pulsante das crianças pequenas e das imagens que rodeiam o univer-
so da pequena infância. Um corpo que converge um povoamento de modos
e formas de conhecer, de apresentar o que conhecemos, ou ainda, na mesma
perspectiva de Michel Serres, “vejam o que quero mostrar: que não existe nada
no conhecimento que não tenha estado primeiramente no corpo inteiro, cujas
metamorfoses gestuais, posturais e a própria evolução imitam tudo aquilo que

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
ríamos chamar de um corpo para a Educação Infantil. Será possível pensar um
corpo único, identitário para a Educação Infantil? Ou ainda, seria possível carac-
terizar a Educação Infantil?

-
-
lhaços e em dois mil aspectos notórios refazer um novo corpo onde nunca mais

119
fragmento do universo da Educação Infantil compor um ou muitos novos corpos
para isso que chamamos de Educação Infantil?

Entre corpos e desejos e sonhos será possível ‘caracterizar’ a Educação Infantil?

dados, circunscritos por aquilo que falamos sobre a Educação Infantil e sobre a
infância? Como estar a altura do acontecimento educação infantil e seus tantos
-
poralidades urgentes, como estar a altura disso que estas muitas vezes escapam
aos discursos seguros e objetivos de modos demarcados pelos espaços e tempos
adultos da educação?

Mergulhados em experiências infantis, que perpassam por diferentes movimentos,


criamos, pelas imagens, pelas palavras, pelo texto, não um corpo único, dado,

ele é desterritorializante; desloca-se no tempo, com o tempo, para reativar o de-


Pensar a educação Infantil por e com blocos talvez nos façam escapar ao olhar
adulto, presente nos discursos acadêmicos, sociais, nas Políticas Públicas, que
dizem, pensam e produzem ideias, modos de agir com a criança e modos de
ser criança, que ao mesmo tempo em que proliferam formas de incluir, de inclu-
são, povoam nos seus agenciamentos identitários espaços possíveis de exclusão,
pois criam corpos, criam modulação de corpos, modulam corpos. Modulações
que operam para fazer o corpo seguir uma certa linearidade, uma determinada
normalidade, uma prescrição determinante, circunscrita pelas culturas sobre e
-
mos para as possibilidades (e apostamos em possibilidades) não dos discursos
moduladores e homogêneo das massas, mas sim para as potências dos coletivos
de crianças pequenas. Para isso, o texto se apresenta na perspectiva de ‘blocos’,
composições que escapam à linearidade do texto acadêmico para dar vez a
expressões de multiplicidades, de proliferações coletivas que se constituem no
encontro com crianças. Tais blocos apresentam como problema enfrentamentos
entre infância e currículo, entre o corpo vivo de uma infância e de um currículo
120 que compõe com e apesar de modulações, normalizações.

Um texto em blocos: fazer morada naquilo que a infância investe como ins-
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

tância sempre problemática. Sola de sandália ou estrada de carrinho? Braço


ou ponte? Passar de lado a outro do corpo ou fazer travessia com um carrinho?
Tudo se passa como se Joaquim nos convidasse a abandonar a lógica do ou: é
que ou nos levaria a um binarismo do verdadeiro e do falso, fazendo colar um
fato ao acontecimento: é uma sola de sandália, é um braço, é mover um objeto
de um lado ao outro do corpo. Estrada, ponte e travessia, elementos do falso,
expressariam tão somente aquilo que a criança tem de imaginação, aquilo que a
criança cedo ou tarde terá de abandonar em favor de uma modulação, de uma
representação. Tudo se passa como se Joaquim nos convidasse a fazer morada
nas conexões, entrar em um bloco de composição do e

sandália e estrada de carrinho e braço e ponto e passagem de um lado a outro e


travessia com carrinho e e e...
Currículo: e se ele não desejasse formar, mas...
Como pensar o Currículo, pensar o currículo na Educação infantil? Dentre as
muitas possíveis escolhas – poderíamos discutir a Base Nacional Comum Cur-
ricular, algo sempre presente colocando-se como ‘ordem do dia’ –, uma opção
política se apresenta: a de produzir, quem sabe, uma discussão infantil do currí-
culo na educação infantil. Para tal, não procuraremos por uma escrita ordenada,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


(pois também a infância talvez não seja tão prolixa), nem por uma ordenação
alinhada a uma certa cronologia nos modos de pensar e para pensar o currículo
(pois a infância não é uma condição de certa cronologia, mas uma condição da
e de uma experiência). Aqui a proposta é a de infantilizar o currículo para poder,
quem sabe, pensar um currículo para a infância.

Em um olhar mais atento para as Escolas de Educação Infantil o que talvez ve-
mos são pés e mãos e olhos e bocas e dedos e cabelos e pelos e dentes e unhas
e chinelos e sapatos e gritos e sons e ruídos e palavras e objetos e cenas e focos 121
e des-focos e cadeiras e tetos e chãos e pessoas e meninas e meninos e riscos
e riscas e choros. Temos espaços e percursos e travessias e andanças e chão e
crianças e crianças e crianças e crianças e crianças e e e....

Poderia isso nos dizer algo sobre a Educação? Sobre a Educação Infantil? Sobre
a Educação de crianças? Sobre crianças?

Segundo o Dicionário Etimológico do Ensinar e Aprender de Castello e Mársico

Tudo o que se estuda dentro do sistema educativo está organizado em


um currículo organizador da prática. Curriculum é, em latim, o dimi-
nutivo de currus e alude tanto a uma corrida como àquilo que faz a

referência às instâncias que devem ser percorridas, ao estilo de uma


corrida, as experiências presentes nessas corridas, para poder dar por
cumprido um trajeto educativo, uma experiência – Currículo é próxi-
mo, íntimo à travessia, currículo e travessia se confundem.
E ainda, nesse dicionário temos que “Esse substantivo neutro latino tem sua cor-

Currículo: um enfrentamento do mundo como periculum, como travessia perigo-

as conexões que nele produzimos. Com isso, é a própria imagem do currículo


como espelho de saberes derivados de um mundo desde sempre aí que se esvai.
O periculum coloca em xeque a tradição e suas modulações, sua imagem esta-
bilizada do mundo e da experiência, convocando uma travessia sem caminho

Periculum: experimentar mundos ou entre currículos

da escola. O espaço, contíguo ao prédio das salas de aulas e dos pátios e espaços
122 cheios de cimento, faz a escola ocupar o quarteirão todinho. Tem espaço para
uma horta idealizada e cuidada por professores e alunos do ensino fundamental
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

e tem espaço para árvore e tem espaço para um estacionamento improvisado


para professores e funcionários da escola. Para meninas e meninos da educação
infantil, tem espaço para brincar de esconder entre os carros, subir na árvore,
comer amora que ainda não amadureceu, mexer em plantas de uma horta em
periculum: um menino encontra um caramujo.
Encantado, ele o toma nas mãos e sai correndo, exibindo o pequeno tesouro que

periculum passa de mão em mão: umas mais, outras menos, as crianças querem
saber o que era aquilo. E as perguntas vêm: é um caiacólis? Ele não vai sair?
Cadê a mamãe e o papai do caiacólis?
menino leva o caramujo consigo. No caminho, exibe o pequeno tesouro a quem
encontra pela frente. E assim, uma adulta logo ralha: isso traz doença, menino!
Periculum, o caramujo é arremessado ao lixo por
um menino choroso, carente do tesouro abandonado. Agora vai lavar essa mão!
A tia não viu isso não?
-
ramujo, quer levar o caramujo para casa. E também no dia seguinte, e também
no outro e também no outro... Diante de um caramujo que parece insistir em re-
tornar, um periculum deveio currículo: atividades para fazer desenhar caracóis,
para fazer escrever C de caracol, para fazer ouvir histórias de caracóis... E o me-
nino, sem caracol... Na semana seguinte, hora de voltar para a horta. No meio
de tanto currículo, outro caramujo, outra festa, outro tesouro: eis que o menino

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


encontra outro caramujo. Dessa vez, cauteloso, leva o novo tesouro para a sala
em silêncio, quase clandestinamente. Sem alarde, põe o caramujo na mochila.
Vou levar para casa! Caiacólis é do El! E apontava para si mesmo, sorriso de festa.
Ele não tem papai e mamãe, o caiacólis é do El!

Um menino e seu tesouro, uma ameaça a uma tradição que se traduz em currí-
culo: curricularizado, um caramujo se afasta do periculum e da travessia singular
de um coletivo de crianças que se encontram, se chocam inesperadamente com
um novo. Enquadrada, uma certa travessia é tomada como uma travessia certa:

123
no encontro com um caramujo é represado e canalizado em um currículo, um

visita a horta ainda faz vazar todo corte, todo controle. Um periculum se repete
e difere antes que se poder virar a esquina para voltar à sala de aula.

***
Entre as possíveis ideias que acenam
podemos pensar o currículo aliado a
ideia de experiências.
Esta possui um ex
liga a certa exterioridade, nos liga ao exterior. A experiência então, nesse sen-
tido, não é algo de um mundo pessoal, interior, de uma faculdade psicológica

travessia, percurso, caminho, viagem... A palavra experiência presume portanto


a saída de um lócus, de um lugar, a saída de ‘si’ até uma outra coisa, um passo,
um caminho até outra coisa. Essa travessia, esse percurso, esse caminho se apre-
sentam como uma aventura e, portanto, tem algo de incertezas, supõem riscos!
É um perigo! Assim, se currículo alude a perspectiva de uma experiência, de um
percurso, ele nos coloca diante de incertezas, de caminhos e travessias a fazer.
Porém, sendo assim, o currículo não tem relação alguma com lugares de que
partimos, ou lugares que buscamos. Ele não é utópico, nem tampouco atópico,
não tem topos, não tem lugar – currículo é travessia ou, dito de outra forma,

124
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

serve de referência para uma utopia: é aventura, sorte, destino e acaso.

Sendo assim, pensar um Currículo para a infância, para a Educação Infantil seria
-
vessias, mapear um percurso no qual, junto à criança, atento ao acontecimen-

possam às vezes tortas, às vezes longas, outras vezes curtas, retas e sinuosas,

transversam, que cortam e são cortadas. Interrompidas e pontilhadas, são linhas

pelas linhas são modos de cartografar os espaços, os afetos.

produzidos por linhas. Somos singularmente, coletivamente e também como


massas (e)feitos de linhas. São muitas linhas, são muitas as suas formas. Na vida
se entrelaçam em um emaranhado imanente, intensivo em uma constelação de
vida. Existem as linhas duras – as dos próprios currículos, das leis, das políticas,

que pode ser chamado de um segmento, que diz algo, que sempre apontam para
certa mobilidade.

de um emprego, de uma religião, de uma doutrina, de uma abordagem, entrar

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


modos de ser nos diferentes espaços, modos de ser homem, modos de ser mu-
lher. Essas linhas de segmentaridade duras parecem ser importantes, talvez até
necessárias nos processos de subjetivação, mas é possível estar em uma linha
e ao mesmo tempo traçar outra(s). As linearidades duras criam mecanismos re-
gulatórios de controle, os Currículos muitas vezes se apresentam como linhas
-
sas, muitos lugares, muitos modos, nas escolas muitas vezes, pelo currículo,
anulamos as multiplicidades com as poucas saídas. Talvez, possamos produzir,
juntamente às crianças, ou ainda de modo mais radical guiados pelas mãos, pe-
125
los olhares, desejos, necessidades das crianças algumas linhas possam ser mais

possam ter algo de arte, de dança, de artes visuais, de corte e costura, da trama

desenrolar de nossas práticas no cotidiano. Se alguém te perguntar qual é a sua


linha, crie uma linha de fuga.
126
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

Linhas / Arquivo Grupo IMAGO/UNESP

Linhas de fuga, algo tal como um desalinhar, formas e modos de propor novos
arranjos para poder alinhar novamente, perder a linha, mas sem perder o traço
da linha, o trajeto das linhas, as marcas de singularidades, os modos de alinhar,
realinhar, escapar, produzir o novo. Traçar uma linha de fuga é produzir algo
real, no real. Traçando linhas e outras linhas, depois e com outras linhas. Entre-
laçamentos de linhas e encruzilhadas, cruzamento de linhas.
para não manter um estado de coisa, é preciso movimentar o indeterminado
Era uma vez um lugar distante, mas muito perto também.
Um lugar habitado por crianças, e também por adultos.
Um lugar cercado de céu, sol, ar, e parede, cimento, e teto também.

ora mais rápido, como a velocidade da luz, ora lentamente como uma lesmatartaruga,
ora descansando como o coelho da fábula que compete com sua amiga de casca dura.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Neste lugar, em um dia e tarde qualquer, como em outros dias, crianças sonecam.
Crianças suspensas dormem encostadas a um berço, a um chão, a um colchão armadas
no tempo.
Abre. Fecha. Olha entreolho. Se move. De um lado, do outro, para o outro. Escuta. Silêncio.
Uuuuuu ziiizziiiz bumbumbumbum nhanaaanhaaahanhaa. Sornam espalhadas entregues

127

ressoam: O sono atrapalhou a alimentação de Tingo! Ouça de novo! O


sono atrapalhou a alimentação de Tingo! De novo, mais devagar. O sono
atrapalhou a alimentação de Tingo! Comichões!! Um corpo clama cama.

corpos clamam? O que os corpos gritam? A vontade está no corpo ou fora


do corpo? O currículo tem vontade de sujeito sem corpo, sem desejo, sem
sonho, sem afetos, sem nada! O aconteceria se não interrompermos o curso?

“Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar


Por

desejos, vontades que não sejam de infâncias.


‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

128
Entre linhas e corpos temos/vemos imagens, povoamos e somos povoados por
signos. Imagem: do latim imago, semelhança, representação, retrato. Signo: do
latim signum -
ção, de um retrato? Como um currículo chega a operar pela marca da seme-
lhança, da representação e do retrato? Era uma vez um lugar distante, mas muito
. Pela força
da semelhança, uma rotina, pela força da representação, um sono, pela força do

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


retrato, crianças que dormem. Uma marca curricular: inserir na rotina de crian-
ças da educação infantil um momento dedicado ao descanso, ao sono. E o en-
treolho... para fora da imagem! E se se move... isso não é currículo! E se Uuuuuu
ziiizziiiz bumbumbumbum nhanaaanhaaahanhaa... é só um desvio! Restos de
uma semelhança, de uma representação, de um retrato querem fazer domar
uma vida que pulsa com a sonecagem. Fazer domar: adequar corpos a espaços
e tempos, conjurar para mais longe da rotina da hora de dormir o entreolho que
abre, o corpo que mexe sem sono, o balbucio – baixinho ou não!. Não parece
tão difícil de direito, não é? É só saber fazer obedecer, conjugar rotina e poder,
separar o pode do não pode, insistir em fazer de crianças uma imagem, uma 129
-
mo, até a criança Mesma aprenda o currículo Mesmo e controle o Mesmo não
só nela, mas também por aí, com a coleguinha Mesma, a professora Mesma, o
mundo Mesmo.

E a sonecagem... o que há e que desvia esse suposto Mesmo


de direito no currículo? O que há, nisso que ainda pulsa com, sob e sobre as
rotinas de um currículo, insistindo num rasgo de pausas e ligeirezas, às vezes
velocidade da luz, às vezes lesmatartaruga? Toda imagem é signo, todo signo
é imagem. Na seara de um outro dueto, signo é aquilo no mundo que força a
pensar, que escapa completamente ao Mesmo de direito suposto sempre lá. Não
será signo essa força do que acontece, a aventura, o perigo, a experiência? Não
será aquilo que só é posto debaixo de um tapete interpretativo do Mesmo de
direito por uma força das mais reativas?

Entre linhas e corpos produzimos e criamos imagens, rasgamos e somos rasga-


dos por signos:
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

130
O “fundo de um pátio da infância”, essa imagem despojada e ainda assim
úmida de sentimento

gestores, familiares e crianças?

E se fosse uma conversa entre o currículo (armado, ordenado, seriado, temporalizado) e as


imagens vertiginosas, embaçadas, viradas, focadas.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Do que gostas?

De onde vem sua força?

Do que você ri?

O que queres?

O que promove?
131
O que pretende?

Para que serve?

“E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos, organizamos
e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que tão-somente
imagem?

Se também esse currículo fosse apenas imagem?

E se o próprio pesquisador só pesquisasse a partir da imagem que faz da pesquisa?

Se, antes, inclusive, de o pesquisador pensar o currículo da infância e a infância do currículo


fosse necessário ter inventado essas imagens – dentre elas, a de pesquisa e a do próprio
pesquisador – para, só então, poder pensar?

Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse
o pensar?

“E se essas pesquisas, que extraem imagens e forjam modos de existência, tornassem o


pensamento que os pensa de novo possível, promovendo inéditas articulações entre arte,
Entre linhas, corpos, fissuras: a educação em devir
Pode, a educação, povoada por suas normas, leis, regras, por seus discursos,
conceitos, saberes, poderes devir? Pode a educação com suas imagens dogmá-
ticas ser outra? Pode a educação discutir seu(s) currículo(s) a partir de imagem,
das imagens, pensando que currículo e imagem guardam relações com signos?
E se tomarmos o signo como na semiótica mais clássica, como representação,
bem como a imagem também o é, pode a educação devir? E se a imagem,
com sua marca de imagem dogmática, que tudo representa, revela aliada a um
currículo pronto, acabado, fechado, nos apresentariam apenas um espelho do
pensamento que contém as representações para as coisas?

Mas, e se também, nos afastarmos destas proposições-perguntas e tomarmos


como experiências educativas as linhas que atravessam espaços, tempos, corpos,

encontros podem povoar nossas experiências com o fora e como periculum?


132 Seria o periculum, uma aposta na travessia e no acontecimento?

O signo, de muitas dessas semióticas, ditas como clássicas, arrasta o currículo


‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

para a seara de uma relação de poder que é, no mais das vezes, uma relação de
dominação e de modulação. Esse currículo expressa uma vontade de potência
negativa, um triunfo de forças reativas, pois ele se quer como manutenção e con-
servação e ele só pode conservar às custas de uma morte da variação.

Porém, quando o signo, se apresenta como algo violento, porque faz pensar, o
jogo se inverte completamente. A aposta é exatamente que o fora constitui o pe-
riculum a ser enfrentado e que ele não só não está garantido de antemão (já que

como também coloca em perigo toda uma tradição expressa, toda uma cultura
dada, o corpo não está contido no espaço, mas é o próprio espaço da diferença,
como no caso da cena apresentada no ‘fazer morada’; o caramujo como ele-
mento que põe em jogo todo um movimento de contenção da experiência e do
perigo em forma de representação, ainda que subsista como desejo pulsante em
um menino que acaba encontrando outro caramujo; ou ainda a sonecagem, que
desloca todo um tempo ritmado e previsto e atrapalha a alimentação do Tingo.

Podem esses signos, essas imagens, essas cenas se apresentarem como motores

são mais imagens dogmáticas do pensamento. Pois, somente no exercício de


composição com as crianças que algo pode brotar, que algo pode efetivamente
ser criado. Essa é a experiência, esse é o periculum: o de um pensamento que
não se sedentariza e não supõe sua verdade, universalidade e unicidade como

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


no sentido metodológico, mas sim como aquilo que acontece. Esses currícu-

mínimo de possível para constituir o movimento perigoso, para produzir a ex-


periência do próprio nomadismo, para encontrar nesse nomadismo sua própria
necessidade.

Assim, a educação entra em devir, em devir-criança, pois nos tira das imagens
dogmáticas que ligam nossas práticas de poderes aos nossos modelos de infân-
133
deslocamentos, no corpo, nos afetos, deslocamento tão necessários e pulsantes
presentes na cena com Joaquim, ou ainda outros tempos que emergem no caso
da sonecagem e os saberes e poderes que atravessam o episódio do caramujo.

O elemento problemático que esses deslocamentos efetuam acabam por inse-


rir essa condição infantil no seio mesmo do acontecimento, um efeito in-fans,
uma suspensão das modulações, da linguagem e da racionalidade que se impõe
como imagem dogmática. Um devir-criança seria quase que como o limiar do
currículo, aquela região, aquele território que se projeta como fora, como pe-
rigo e como experiência dentro disso que está esquadrinhado e previsto. Daí

além-mundo, algo fora do currículo. Eles compõem essa região fronteiriça mais
interna que todo o interior.

***
Um currículo em devir-criança o que pode produzir? Um invencio didática?
-
ciso saber:

134
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

Desinventar objetos;
Repetir, repetir, até ficar diferente;
Partir sempre do descomeço;
Mudar a função das coisas
“Desaprender oito horas por dia”.
(BARROS, 2013, p. 299-300).
Referências
ARTAUD, Antonin. Escritos.
BARROS, Manoel de. Poesia Completa.
Oculto nas palavras: dicionário
etimológico para ensinar e aprender.
O que se transcria em educação?. Porto Alegre-RS:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Kafka: por uma literatura menor. Belo

Ética III.

relatos, corpos, acontecimentos. Revista Digital do LAV

SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

135
TÍTULO

136
6.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
SIGNOS
ARTÍSTICOS E
APRENDIZAGENS
INVOLUNTÁRIAS 137

Carlos Eduardo Ferraço


Marco Antonio Oliva Gomes
Carlos Eduardo Ferraço
Marco Antonio Oliva Gomes

A arte afugenta os medíocres


(Karin Aïnouz)

Entre vazios, burrices e esquecimentos

históricas e políticas e, nesse sentido, o que interessaria não seriam a individua-


138 lidade nem o detalhe, mas as leis e as generalidades; não o microscópio, mas
o telescópio.
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Nessa direção, seria possível conjecturar, com


presidem às mudanças no mundo são aquelas nas quais prevalece o vazio, con-
siderado por ele como o meio portador de generalidades que, aliadas à burrice
e ao esquecimento, produziriam seres estúpidos, pessoas tolas que, em seus
gestos, palavras e sentimentos, involuntariamente expressos, manifestariam leis
e generalizações que não percebem.

Ao se referir à análise que Proust realizou sobre o poder do esquecimento social,

curiosidade como saber o que se passa na cabeça de um tolo. Num grupo, aque-
les que são como papagaios são também ‘aves proféticas’: sua tagarelice assinala
Mas com ela o mundanismo ganha velocidade na emissão dos signos,
perfeição no formalismo e generalidade no sentido: coisas essas que
formam um meio indispensável ao aprendizado. À medida que a es-
sência se encarna de modo cada vez mais fraco, os signos adquirem

nervosa cada vez mais exterior, excitam a inteligência para serem in-

Nada mais atual e oportuno para pensar sobre os tempos sombrios que estamos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
mentada é que, a cada dia, somos tragados por acontecimentos de um tempo
-
ceitos ainda mais infames ou mais estúpidos do que os já vividos. Negacionis-
mo, xenofobia, racismo, homofobia, ódio, terraplanismo, infâmia e violência
são algumas das principais características dos tempos atuais, que têm produzido
diferentes mecanismos de diminuição e muitas vezes de anulação da potência
das vidas, sobretudo daqueles considerados diferentes.

Tais tempos convocam-nos, mais do que nunca, a usar a inteligência sobre as 139

burrices, os vazios e os esquecimentos que imperam, pois, conforme observa

De fato, vivemos tempos em que prevalecem necropolíticas que dizimam vidas

as dos homens infames2


importam e precisam ser banidas do convívio social por meio de tecnologias

em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e
criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais as vastas populações são submetidas a condições
de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’

2
ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui,

3 Contrária a essa lógica, destaca-se o movimento ativista


comunidade afro-americana, que faz campanha contra a violência direcionada às pessoas negras. Acesso em:
Disponível em: -
tar-no-df-refaz-mural-com-rosto-de-mandela.ghtml

140

Na educação, a lógica do obscurantismo dos tempos atuais faz-se valer por meio
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

de programas que defendem princípios antidemocráticos, privatistas, excluden-


tes e autoritários, como o Escola sem Partido , que tem incentivado práticas de
perseguição, de ódio e de violência contra os educadores e os estudantes que
re-existem às inúmeras tentativas de extermínio da diferença e de negação do
Outro como legítimo Outro.

No entanto, apesar dos diferentes mecanismos de opressão que, a cada dia, se

preciso destacar a existência de inúmeros movimentos capilares de resistência,


de re-existências que cotidianamente insurgem em meio à micropolíticas ativas
de conservação do vivo e de movimentos de produção do real social. Como

4 Brasil, e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib [...].

documentos disponibilizados pela campanha, o emitiu uma resolução em que repudiou


.
Evidentemente, nenhuma micropolítica existe em estado puro; esta-
mos sempre oscilando entre várias. O que faz diferença é nos dispor-
mos a combater as tendências reativas a nós mesmos, ou seja, em
nossas ações e relações. Este é um trabalho de uma vida: um trabalho
incessante e que está no âmago da ética de uma existência.

Movimentos insurgentes, como as lutas e os enfrentamentos protagonizados por


diferentes coletivos estudantis educacionais que, com o lema #ocupaescola,
partem de uma ação localizada, conseguiram envolver milhares de estudantes

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em todo o Brasil em defesa de princípios, tais como democratização, gratuidade,
laicidade, pluralidade, qualidade, inclusão e direito à diferença para a escola
pública brasileira.

Trata-se de coletivos estudantis educacionais assumidos desde a superação da


dicotomia indivíduo x sociedade, não se reduzindo a uma dada dimensão da
realidade que se opõe à individualidade, característica da modernidade, mas
como plano de coengendramento e de criação. Planos de consistência ou de
composição de hecceidades que insurgem por entre os planos das formas-subs-
tâncias mediante ações-relações coletivas comuns e dispensam protagonismos, 141

Conceber o conceito de coletivo para além das dicotomias historica-


mente constituídas é dar visibilidade a uma outra lógica – uma lógica
atenta ao engendramento, ao processo que antecede, integra e consti-

Partindo dos conceitos de prática, molaridade-molecularidade e rede, as auto-


relação limitado aos seus termos
constituídos, indo em direção à ideia de plano relacional produtor dos termos.
Desse modo, do ponto de vista ontogenético, tal plano é anterior às próprias
interações e fusões operadas entre indivíduo e sociedade e topologicamente se
situa no entre, nos interstícios, no hífen indivíduo-sociedade, como ampliam

5 manifestações e ocupações de escolas secundárias

projetos de lei da ‘PEC do teto de gastos’ a , projeto ‘Escola sem Partido Novo Ensino
Médio . Acesso em: .

6 Disponível em:
Denominamos esse plano como ‘coletivo’, insistindo que ele não se
reduz ao social totalizado e que seu funcionamento não pode ser
apreendido através de dinâmicas das relações interindividuais ou gru-
pais, uma vez que essas acontecem entre seres já individuados.

constitui-se, ainda, como um plano de produção de subjetividades. Subjetivida-

como processos de subjetivação, sempre coletivos, uma vez que agenciam estra-

inclui sistemas pré-individuais/pré-pessoais (perceptivos, de sensibili-


-
nológicos, ecológicos, etc.) [...]. Podemos até falar em subjetividades
individuais e subjetividades coletivas. Individuais, porque ‘em certos
contextos sociais e semiológicos a subjetividade se individua’ [...]. Co-
letivas, porque ‘em outras condições a subjetividade se faz coletiva,
o que não

142
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Disponível em: -
-
Com isso, quando nos referimos aos coletivos estudantis educacionais, estamos
falando não dos sujeitos que protagonizaram as ocupações, apesar da impor-
tância que eles tiveram, mas das multiplicidades que proliferaram e se expandi-
ram além desses sujeitos, encharcadas pela lógica dos afetos
como possibilidade de enfrentamento das atuais condições de degradação das
relações de solidariedade.

Coletivo impessoal como plano de coengedramento e de criação que, como

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


visto durante os movimentos de ocupação, os jovens resistiram, re-existindo co-
letivamente, potencializando processos de produção de subjetividades ante o
vazio, a burrice e o esquecimento das políticas governamentais de educação em
vigor naquela época que continuam a produzir efeitos perversos e desastrosos
nas escolas públicas brasileiras.

Movimentos de re-existências, planos de coengedramento e de criação que são


produzidos em meio a diferentes signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísti-
-
143

com base na obra de Proust , este texto tem por objetivo central potencializar a
força dos signos artísticos como condição de re-existência ante os mecanismos
de diminuição de vidas, reverberando na produção de múltiplas aprendizagens,

7 “Abordamos uma época em que, esfumando-se os antagonismos da guerra fria, aparecem mais distintamente as ameaças princi-
pais que nossas sociedades produtivistas fazem pairar sobre a espécie humana, cuja sobrevivência nesse planeta está ameaçada,
não apenas pelas degradações ambientais mas também pela degenerescência do tecido das solidariedades sociais e dos modos
de vida psíquicos que convém literalmente reinventar. A refundação do político deverá passar pelas dimensões estéticas e analí-
-

8
à doença, à subjetividade, a pensamentos, a sentimentos, à política, à sociedade, a uma folha que cai, um cheiro ou um sabor

na obra sobre Proust, há um processo de elaboração que se desdobra, paralelamente, em outros escritos publicados que antece-
dem o livro. Movimento que será observado nas resenhas produzidas pelo autor e, especialmente, em duas que podem fornecer

Disponível em:
caracterizadas por nós como involuntárias, que insurgem em diferentes proces-
sos-movimentos educacionais.

Para tanto, ao mesmo tempo que pensamos com


dos signos artísticos na produção de possíveis para as vidas tomadas em suas
-
rentes sujeitos-coletivos em diferentes espaços-tempos educacionais, incluindo
as ocupações.

As referidas imagens não foram trazidas como exemplos ou aplicações das dis-
cussões teóricas, mas como rasgos, como atravessamentos, como cortes no de-

produção de movimentos de re-existência e de criação de possíveis. Em compo-


sição com o texto, também foram trazidas imagens do movimento #ocupaesco-
la, nas quais a própria escrita foi assumida como imagem: imagem-texto-escri-

144
TÍTULO

Disponível em: -
Sistemas de signos:
...mundanos e amorosos e sensíveis
e artísticos e mundanos e...

sistemas que recortam o mundo, mediante uma discussão do tempo que rompe
com a doxa, que supõe uma temporalidade linear e segmentar de um sujeito
sitiado no presente, capaz de rememorar coisas de um passado e prever algo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


para o futuro.

comum para pensar o tempo em meio a multiplicidades com acelerações, di-


minuições, saltos e rupturas em lugar de passado-presente-futuro, emaranhado
de temporalidades.

Tempo turbilhão com suas variações e durações em lugar do Chrónos, do tempo


medido, implicando, assim, outras possibilidades para pensar a aprendizagem,
não mais reduzida à cognição, mas como invenção. Aprendizagens inventivas 145
como efeitos de diferentes encontros , ao dis-
cutir a obra de Proust, dá-nos algumas pistas:

Na obra proustiana, os signos aparecem formando sistemas totalmente


-
do prévio para resolver um problema: na Recherche, os signos recor-
tam o mundo sem formar relações entre continente e conteúdo, nem
relações entre as partes e o todo. [...] Se o caminho do aprendizado
passa pelos signos mundanos, amorosos, sensíveis, até chegarem aos

não se dá de forma linear: há como que linhas de tempo privilegiadas,


que atravessam cada sistema de signos, num movimento ascenden-
te e descendente, em que cada sistema de signo participa de modo
desigual. Uma vez alcançado o universo mais espiritual - signos da
arte -, esse sistema arrasta consigo todos os outros, como um atrator
caótico, conferindo um sentido totalmente novo para os sistemas que

Na Recherche, os signos da arte reagem e retroagem sobre os outros


sistemas e tempos - tempo que se perde (signos mundanos), tempo
perdido (signos amorosos), tempo que se redescobre (signos sensíveis)
- para conferir-lhes um caráter de verdade que, de outra forma, cada
sistema em si mesmo não conseguiria alcançar. (g.n.)

10 Disponível em:
de Proust como “[...] a exploração dos diferentes mundos dos signos, que se

mesmo tempo, muito hábeis em decifrar signos de uma especialidade e conti-


nuar completamente idiotas para os demais. Não há como saber nem prever.

A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de


signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se descobre ne-
nhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e inter-
pretação. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes
signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira,
não podem ser decifrados do mesmo modo, não mantêm com o seu
sentido uma relação idêntica. (g.n.).

de signos, a saber:
mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos. Em um primeiro círculo, teríamos os
146
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão
reduzidos e em tão grande velocidade. Em um mesmo momento eles
se diferenciam, não somente segundo as classes, mas segundo ‘famí-
lias espirituais’ ainda mais profundas. De um momento para outro
eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros signos.

Disponível em: -

11
Nesse sentido, no decorrer do texto, usamos alternadamente cada uma delas.
uma ação ou até mesmo um pensamento. Ocupam o lugar dos nossos pensa-
mentos e, assim, não remetem a nada, a não ser ao próprio imediatismo. São
emitidos no vazio, por isso se propagam com velocidade. Estão desprovidos de
sentidos, porque são
ressalta: “Por essa razão a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações
é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a ‘substitui’, preten-
de valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensa-

sua vacuidade, embora não se possa concluir que esses signos sejam
desprezíveis. O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível
se não passasse por eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes
confere uma perfeição ritual [...] Somente os signos mundanos são
capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo
sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los (g.n.).
147

-
ção dos signos que esse alguém traz consigo ou é capaz de emitir. Amar seria,
então, tornar-se sensível a esses signos do outro, buscando apreendê-los. Para

O amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado


aparece como um signo, uma ‘alma’: exprime um mundo possível,
desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mun-
do, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma
pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas
à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das
almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar
‘explicar’, ‘desenvolver’ esses mundos desconhecidos que permane-
cem envolvidos no amado.

que têm por efeito substituir o pensamento e a ação, os amorosos, por sua vez,
são tidos como mentirosos, uma vez que não podem dirigir-se a nós, a não ser

invocariam uma exaltação nervosa, “[...] mas o sofrimento de um aprofunda-


mento. As mentiras do amado são hieróglifos do amor. O intérprete dos signos
amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está con-

dada relação entre os signos do amor e a amizade: “[...] Um amor medíocre


vale mais do que uma amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de
-

que, de certo modo, nos deixa confortáveis, nas relações amorosas somos con-
vocados a decifrar os signos da pessoa amada, silenciosamente. Assim, conclui
148
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Disponível em: -
-

12
Kriterion
ou qualidades sensíveis, isto é, os signos sensíveis, que nos proporcionariam
“[...] uma estranha alegria, ao mesmo tempo em que nos transmite uma espécie

Uma vez experimentada, a qualidade não aparece mais como uma


propriedade do objeto que a possui no momento, mas como o signo
de um objeto ‘completamente diferente’, que devemos tentar decifrar

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


através de um esforço sempre sujeito a fracasso. Tudo se passa como
se a qualidade envolvesse, mantivesse aprisionada, a alma de um ob-
jeto diferente daquele que ela agora designa. Nós ‘desenvolvemos’
esta qualidade, esta impressão sensível, como um pedacinho de papel
japonês que se abre na água e libera a forma aprisionada.

asso-
ciam os signos sensíveis aos signos da natureza. São signos que exalam sensi-
bilidades, produzem alegria e brincam com o imprevisível. De acordo com as

149
A estes signos se devem os encontros que nos surpreendem por sen-
sações, por memórias revisitadas, por vapores inexplicáveis. [...] No
entanto, seu efeito imediato é a necessidade de um trabalho no pen-
samento: procurar o sentido do signo, organizar novamente o pen-
samento para representar o que ele despertou. E por assim dizer, o
fracasso diante do retorno a organização, a materialização, pois não
há possibilidade de estabelecer uma imagem pelo que afetou corpo-
-
de que ‘o sentido material não é nada sem uma essência ideal que ele
encarna’.

Ao tentar estabelecer relações entre os signos mundanos, amorosos e sensíveis,

nos libertar dos estados de limitação-representação-materialidade a que estamos


submetidos cotidianamente.

13 Disponível em:
Ou seja, com os signos sensíveis, ainda não conseguimos atingir a dimensão
de uma vida bonita, espiritual, como acontece com os signos artísticos. Mesmo
assim, as qualidades sensíveis e as impressões nos colocam nesse caminho, pois
produzem, mesmo com toda sua materialidade, efeitos de alegria

[Os signos sensíveis] não são mais signos vazios, provocando-nos

signos enganadores que nos fazem sofrer como os do amor, cujo ver-
dadeiro sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São sig-
nos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria

Completando, com base em Proust, sua discussão sobre os signos, Deleuze

seu sentido em uma essência ideal . Ao dizer que os outros signos convergem
para a arte, pois, no nível mais profundo, o essencial está nos signos artísticos,

150

-
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

tros? É que os outros são signos materiais. São materiais, em primeiro


lugar, por causa de sua emissão: eles surgem parcialmente encobertos
no objeto que porta. As qualidades sensíveis, os rostos amados, são
ainda matéria. [...] ‘Os signos da arte são os únicos imateriais’.

signo imaterial e um sentido inteiramente espiritual, cuja essência seria exata-


mente a unidade entre signo e sentido, tal como é revelada em uma obra de arte.

14 “Cada sofrimento é particular na medida em que é sentido, na medida em que é provocado por determinada criatura, em determi-
nado amor. Mas, porque esses sofrimentos se reproduzem e se entrelaçam, a inteligência extrai deles alguma coisa de geral, que
também é alegria. [...] O que repetimos é, cada vez, um sofrimento particular, mas a repetição é algo alegre, o fato da repetição
constitui uma alegria generalizada. Ou melhor, os fatos são sempre tristes e particulares, mas a ideia que deles extraímos é geral e

15 “O que é uma essência, tal como revelada na obra de arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que constitui o
ser, que nos faz concebê-lo. [...] Mas, o que é uma diferença última e absoluta? Não é uma diferença empírica, sempre extrínseca,
entre duas coisas ou dois objetos. “[...] ela é alguma coisa em um sujeito, como a presença de uma qualidade última no âmago
de um sujeito: diferença interna, ‘diferença qualitativa’ decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem
a vida: todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu

Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de


seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estra-

de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispo-


mos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais diversos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


151

Disponível em: -
Ao pensar os signos artísticos como superiores aos signos da vida e, ainda, como
os únicos capazes de fazer coincidir signo imaterial e sentido espiritual, Deleuze

vem a dar no mesmo, como o sujeito-artista consegue ‘comunicar’ a essência

estilo de um
artista em transformar elementos da materialidade da vida (a cor para o pintor,
o som para um músico, a palavra para um poeta...) em coisas inteiramente espi-

O verdadeiro tema de uma obra de arte não é o assunto tratado, sujei-


to consciente e voluntário que se confunde com aquilo que as pala-
vras designam, mas os temas inconscientes, os arquétipos involuntá-
rios, dos quais as palavras, como as cores e os sons tiram o seu sentido
e a sua vida. A arte é uma verdadeira transmutação da matéria. Nela
a matéria se espiritualiza, os meios físicos se desmaterializam, para
refratar a essência, isto é, a qualidade de um mundo original. Esse
tratamento da matéria é o ‘estilo’.
152
Ao fazer coincidir essência e estilo, uma vez que, em princípio, a essência seria
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

sempre um nascimento do mundo e o estilo esse nascimento continuado, re-

diferença, diferença pura


-

Por essa razão uma grande música deve ser tocada muitas vezes, um
poema, aprendido de cor e recitado. A diferença e a repetição só se
opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não
nos faça dizer: ‘A mesma e no entanto outra’.

espécie de auto-repetição que percorre os mais variados meios e reú-


ne objetos diversos; a repetição constitui os graus de uma diferença
original, como, por sua vez, a diversidade constitui os níveis de uma
repetição não menos fundamental.
são
duas potências, duas dimensões inseparáveis e correlatas da essência. Assim, te-
ríamos que um artista não envelheceria por se repetir, uma vez que a repetição é

artista envelhece quando, “[...] pelo desgaste de seu cérebro, julga mais simples
encontrar na vida, como pronto e acabado, aquilo que ele só poderia exprimir

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


meio aos tempos de embrutecimento dos afetos, estupidez, ofensas, infâmias, ca-

-
verberações os signos artísticos potencializariam no sentido de ajudar-nos a re-
-existir ante a barbárie e os individualismos que caracterizam o real social atual?

Se apostamos na ideia de multiplicidade em composição com a coexistência


de linhas molares, moleculares e de fuga, então é possível acreditar que nem
tudo está dominado. É possível promover-fortalecer movimentos, como os que 153
aconteceram com os coletivos estudantis no #ocupaescola, de modo a favorecer
encontros, cada vez mais frequentes, com os signos da arte. Não se trata de se
tornar artista, mas de fazer valer a força desses signos na produção de um mundo
de possíveis, cada vez mais plural, onde a diferença se constitua como o destino
a que todos nós estamos sujeitos.

16 “Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e essas linhas são de muito diversa natureza. O primeiro tipo de linhas que nos cons-

a família – e depois a escola. [...] Numa palavra, todos os tipos de segmentos bem determinados, em todas as espécies e direções,
que nos fragmentam em todos os sentidos, pacotes de linhas segmentadas. E ao mesmo tempo temos linhas de segmentaridade

de micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que a nossa história. [...] Ao mesmo tempo ainda, há como que um terceiro tipo de
linha, este ainda mais estranho; como se algo nos levasse, através de nossos segmentos, mas também através de nossos limiares,
para um destino desconhecido, não previsível, não preexistente. Esta linha é simples, abstracta, e contudo a mais complicada de
Disponível em:

154

Aprendizagens involuntárias
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

-
ganizam em círculos], é preciso pensar que eles se cruzam, se interseccionam,
possuem interligações mostrando que, mesmo com dimensões temporais privi-
legiadas, “[...] cada um também se cruza com as outras linhas e participa das

êm os outros signos, os que constituem os domínios da


vida? Por si mesmos o que nos ensinam? Podemos dizer que eles nos
põem no caminho da arte? De que maneira? Mas, sobretudo, uma

reagir sobre os outros campos e tornar-se o centro de um sistema que


nada deixa de fora de seu âmbito?
primeiro lugar, o que nos soa óbvio, que não é possível fazer da vida uma obra

sem interagir com os demais signos, isto é, os signos artísticos só se fazem poten-
tes em nossa vida à medida que atuam sobre os outros signos do domínio da vida.

signos mundanos, precisamos usar nossa inteligência ante o tsunami de atroci-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


dades, esquecimentos, burrices e vazios que têm caracterizado os tempos atuais,
antes mesmo de cogitar a possibilidade de uma vida como obra de arte. De acor-

Os signos mundanos e os signos amorosos, para serem interpretados,


precisam da inteligência. É a inteligência que os decifra: com a con-
dição de ‘vir depois’,
movimento, sob a exaltação nervosa que nos provoca a mundanida-
de, ou, ainda mais, sob a dor que o amor nos instila.

Entretanto, decifrar os signos que constituem os domínios da vida e nos colocam 155

no caminho da arte não é algo que ocorre de maneira premeditada, natural,


intencional. É preciso sempre um encontro-acontecimento, um acaso, uma con-
tingência que nos force a pensar, trace uma linha de fuga e nos jogue para fora
dos sistemas constituídos por esses signos. Partindo do pressuposto de que o que

contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele [o signo]

Nessa direção, ao tomar para si a proposta de Proust de opor as ideias de coação


e de acaso à ideia de método acaso dos encon-
tros e a pressão das coações seriam os dois temas fundamentais do escritor. A
verdade, então, vai depender de um encontro que violente nosso pensamento,

17
Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada
é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer
oculto em nós mesmos se não tivéssemos os encontros necessários;

certas crenças. [...] Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos
esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento
dos encontros, preferimos a facilidade das recognições.

Assim, pensar não se limitaria à representação, à recognição, ao reconhecimen-

dimensão da criação, entendida como gênese do próprio ato de pensar, sempre

Em lugar do pensamento voluntário, tudo que força a pensar, tudo


que é forçado a pensar, todo pensamento involuntário que só pode
pensar a essência. Só a sensibilidade apreende o signo como tal: só
a inteligência, a memória ou a imaginação explicam o sentido, cada
qual segundo uma determinada espécie de signo; só o pensamento
puro descobre a essência, é forçado a pensar a essência como a razão
156
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Assim, se acordamos sob a força da inteligência contra a estupidez, a


mentira, a frivolidade e o vazio que vigoram nos signos dos domínios da vida,
não é possível negligenciar a potência do imprevisível-acaso-acontecimento

Só a arte realiza plenamente o que a vida apenas esboçou. As remi-


niscências, na memória involuntária, são ainda vida: arte no nível da
vida, consequentemente metáforas ruins. Ao contrário, a arte em sua
essência, a arte superior à vida, não se baseia na memória involun-

signos da arte se explicam pelo pensamento puro como faculdade das


essências.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
157

Disponível em: -
rismo-moral/

Nessa direção, perguntamos: Como pensar, então, as aprendizagens em meio


-
terísticas, pistas, sentidos, movimentos, processos poderiam ser esboçados, de
modo a violentar nosso pensamento em direção a uma18 aprendizagem não res-
trita aos territórios da recognição-representação, mas entendida como um efeito

o destino inconsciente do aprendiz?

18
encontro que não é particular nem universal. Está em jogo a intensidade de uma aprendizagem que não se produz na generalidade
-
tentando deslocar sentidos em termos
das aprendizagens que acontecem em meio aos sistemas de signos, como aque-

em relação aos sentidos afetos às aprendizagens que acontecem entre os signos

Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência


tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam,
os selecionariam e decidiriam que um é ‘melhor’ que o outro. Ao con-
trário, não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida
se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas inten-
sidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que
não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou
vulgar, cheio ou vazio, independente Bem e do Mal, e de todo valor
transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência,
(g.n.).

Assim, considerando a força dos planos de imanência e os teores das existên-


158 cias na produção de sentidos nas diferentes vidas, importa, então, não mais
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

como acontece nas teorias tradicionais da recognição, mas pensar em “aprendi-

signos em suas múltiplas temporalidades.

De fato, se esses sistemas constituem multiplicidades temporais e se diferenciam


constantemente, então não seria possível considerar que a aprendizagem teria
uma única dimensão, mas se diferenciaria tantas vezes quantos forem nossos

determinados signos e continuar completamente idiotas para os demais.

19
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Disponível em: -

Ou seja, não há como saber-prever que signos produzirão, ou não, aprendiza-


gens em nós. No entanto, de qualquer modo, sempre será necessário sentir o
efeito violento de um signo que excite, force, ameace, violente nosso pensamen-
to a decifrar-interpretar, a procurar os seus sentidos, conforme infere Deleuze 159

Aprender diz respeito essencialmente aos ‘signos’. Os signos são ob-


jeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender
é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se
emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe apren-
diz que não seja ‘egiptólogo’ de alguma coisa. Alguém só se torna
marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tor-
nando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma
predestinação com relação aos signos. Tudo que nos ensina alguma
coisa, emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de sig-
nos ou de hieróglifos.

inexoravelmente pelos diferentes encontros-acasos com os signos mundanos,


amorosos, sensíveis até chegarem aos signos da arte, então é forçoso pensar
que esse caminho jamais será linear, sequenciado, hierarquizado, gradativo e
cumulativo, mas acontecerá ao sabor das experiências, dos acasos, das tempo-
ralidades, do involuntário.
Aprendizagens involuntárias sujeitas ao fracasso, por isso mesmo potentes para
a produção de possíveis para o mundo. Aprendizagens involuntárias quando,
-

-
nou clássica para o pensamento traz uma tirania implícita pela pretensão de ser
a única possível. De modo a questionar essa tirania, a autora traz, ainda com
involuntário, quando o autor advoga que a nova ima-
gem do pensamento se constitui como uma aventura do involuntário, uma força
de atuação no pensamento que o força a pensar e ultrapassa as faculdades. Nas

O pensamento involuntário é diferente da inteligência, que é volun-


tária. O pensamento não é um componente da nossa estrutura psico-
lógica, porque esta estrutura, que seriam as faculdades, funcionaria
160 segundo a nossa própria vontade, seriam volitivas. A nossa percepção
e a nossa inteligência, por exemplo, buscam as organizações lógicas,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

sempre a serviço do nosso interesse e da nossa utilidade. Nitidamente


há em Proust uma distinção entre inteligência e pensamento, pois o
pensamento não pertence a nossa estrutura psicológica, é involuntá-
rio, e seria através do pensamento que poderíamos fazer arte, novos
mundos e não a mera reprodução, a mera representação que a inteli-
gência dotada de uma lógica abstrata busca, pois esta se organiza em

o reconhecimento, a recognição Na hora que o pensamento emerge,


as faculdades voluntárias rompem com o reconhecimento, tornam-se
involuntárias, são forçadas a pensar o novo, e aí emerge o pensamen-
to como faculdade das essências (g.n.).

Assim, como defendemos, a aprendizagem não seria da ordem da inteligência-


-representação-recognição, apesar de não desconsiderarmos sua importância,
mas estaria implicada no próprio ato de pensar que, como dito, acontece em

20 Disponível em: -
nos levam, com uma dose de sorte-acaso, em direção aos signos artísticos.

Diferentemente da visão clássica de inteligência, que reduz a aprendizagem à bus-


ca da verdade, as aprendizagens involuntárias
acaso-caos. São vórtices que arrastam os signos tentando decifrá-los sem a preten-
-
do defende que, para as imagens como vórtices abertos ao caos, o pensamento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


[...] não ama a verdade nem quer a verdade, porque nós estamos no
ápice do involuntário. O involuntário é a aventura de um pensamento
não mais submetido à vontade de verdade. [...] No exercício involun-
tário, todas as faculdades atingem seu próprio limite [...] O objeto da
imaginação é o imaginado, o objeto da percepção é o perceptível, o

exercício transcendente, involuntário, fora dos seus limites, ao invés


de uma percepção indiferente, a percepção apreenderá o impercep-
tível, a memória apreenderá o imemorial, o pensamento apreenderá
o impensável.

161
Ao considerarmos o que nos força a pensar e, ainda, a condição de indetermi-
nação e permanente abertura ao acaso das aprendizagens involuntárias, enten-
demos que, assim como acontece com o ato de pensar, as aprendizagens volun-
tárias não necessitam de um método prévio, nem de uma boa vontade, como

-
mento voluntário, tudo o que força a pensar, tudo que é forçado a pensar, todo

Disponível em:
Por uma vida como obra de arte ou...
É preciso estar na hora do mundo!

arte de viver. Assim, ao ponderar que sempre esta-


mos passando por mudanças em nossa vida, que criam outras-novas relações en-
à condição de inventar a vida a cada instante
e simultaneamente assumi-la como obra de arte. Ao estabelecer relações entre

O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione


apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também
seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os
artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de
arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas
vidas não?

162 -
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

é e, nesse sentido, precisaríamos forçar-nos a buscar uma nova estilística da exis-


tência, compondo “[...] a forma de relação que se tem consigo mesmo à ativida-
contextualiza:

Assim, não se trataria de sublinhar a relação de um homem consigo


mesmo, mas de implicar a forma de relação que se tem consigo mes-
mo a uma atividade criativa, como uma prática em que é possível
criar uma forma singular de vida, a qual, ao ser experimentada, pode-
rá ser aceita, ou não, no campo social. [...]
A vida bela não precisaria ser uma lida de confronto direto com a
sociedade, com a moral ou com a ética; todavia tratar-se-ia de um do-
mínio estratégico em que o indivíduo criaria continuamente um modo
de vida e de constituição de uma forma sujeito nos atos diários. [...]
Nessa direção, em uma estética da existência, a qual pressupõe a re-
lação do sujeito com a vida como algo da ordem da criação e na qual
se negaria justamente a noção de autocentramento, a autenticidade

21 Disponível em:
poderia emergir do resultado da relação que o sujeito estabelece com
a existência, em seus atos diários. Sendo assim, a autenticidade de
uma obra ou de uma vida viria das relações que o sujeito estabelece
com a existência e com o viver e não de uma suposta autenticidade
do sujeito.

De fato, para uma nova existência em que a ascese se institui como força para
que cada um de nós constitua a própria ética, tendo a estética da existência
de uma vida bonita como referência, não interessariam as ações pautadas pelo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


narcisismo, pelas práticas individualistas e egocêntricas, mas aquilo que o autor

assumimos, tentariam escapar das inúmeras e recorrentes estratégias de sobre-

atuais, se converteram em necropololíticas.

Trata-se, então, de uma autenticidade em direção à produção de uma vida bo-


nita em nossas ações cotidianas, movidos pela criação de outros-novos modos

Deleuze. São escritos que nos mobilizam a produzir movimentos em favor de 163

em uma vida potente e proativa, e não apenas contemplativa. Nas palavras de


:

é, antes de tudo, uma injeção de entusiasmo e de alegria num mo-


mento em que o desânimo e o pessimismo tomam conta de todas
as críticas. Ela nos leva a um tipo de otimismo que não consiste em
pensar de forma positiva, racionalista, sempre buscando algo melhor
a ser alcançado, como uma forma constante de auto-engano. De uma

que tudo repousa sobre uma base frágil, fugidia, contingente, e, as-
sim, tudo pode mudar, tudo pode ser possível, se distanciando, dessa
forma, de todo e qualquer tipo de niilismo.

faz-se urgente, em nossa vida, um exercício ético-estético-político, de modo


a potencializar

22 Disponível em: -
-Da-Diferenca
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completa-
mente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo signi-

escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo


de superfície ou volume reduzidos. É o que você chama de pietás. É
no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência
ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo
tempo de criação e povo.

Mas, como voltar a acreditar no mundo não apenas como uma atitude indi-
vidual, uma ação protagonizada por um sujeito autocentrado, mas como um
efeito de forças que se insinuam coletivamente, como aconteceu no movimento
#ocupaescola? Sem negarmos as possibilidades de ações particulares de enga-
jamento político-social, interessa-nos pensar na dimensão das multiplicidades,
das linhas de forças e dos devires.
164
devir,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

uma ideia do autor que nos pareceu interessante, a saber: a aposta no que De-
leuze chama de devir todo mundo, isto é, a possibilidade do exercício de uma
involução criadora, de modo a fazer mundo, fazer um mundo. Nas palavras do

Se é tão difícil ser ‘como’ todo mundo, é porque há uma questão de


devir. Não é todo mundo que se torna como todo mundo, que faz de
todo mundo um devir. É preciso para isso muita ascese, sobriedade,
involução criadora: uma elegância inglesa, um tecido inglês, confun-
dir-se com as paredes, eliminar o percebido demais, o excessivo para

queixa e ofensa, desejo não satisfeito, defesa ou arrazoado, tudo que


enraíza alguém (todo mundo) em si mesmo, em sua molaridade. Pois
todo mundo é o conjunto molar, mas ‘devir todo mundo’ é outro caso,
que põe em jogo o cosmo com seus componentes. Devir todo mundo
é fazer mundo, fazer um mundo [...]. É neste sentido que devir todo
mundo, fazer do mundo um devir, é fazer mundo, é fazer um mundo,
mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas de indiscer-
nibilidade. [...] É o mundo que entra em devir e nós nos tornamos
todo mundo.
-
de, para poder estar na hora do mundo, isto é, eliminar tudo aquilo que excede
o momento e concomitantemente incluir tudo o que ele inclui, pois, conforme
hecceida-
de em que nos situamos e se insinua em outras hecceidades por transparência.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Eis a ligação entre imperceptível, indiscernível, impessoal, as três vir-
tudes. Reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, para encontrar sua
zona de indiscernibilidade com outros traços e entrar, assim, na hec-
ceidade como na impersonalidade do criador. Então se é capim: se
fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se fez um mundo
necessariamente comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que
impedia de deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas.

Ao voltarmos ao início do texto, quando falamos sobre os tempos sombrios em


que vivemos na atualidade, pensamos que só com a força-potência da inteli-
gência e da arte, em meio às aprendências involuntárias, é que teremos alguma 165
chance de estar na hora do mundo e quem sabe nos tornemos todo mundo em
um devir mundo. Sabemos que não é tarefa fácil, pois não
depende de nós, individualmente. Trata-se de algo que acontece ao acaso entre
as coisas e as pessoas. Teríamos que devir-capim em lugar de desejar ser árvore,

Estamos cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em árvores,


em raízes ou radículas, já sofremos muito. Toda cultura arborescente
é fundada sobre elas, da biologia à lingüística. Ao contrário, nada é
belo, nada é amoroso, nada é político a não ser que sejam arbustos
subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício e o rizoma. [...] Muitas
pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é
muito mais uma erva do que uma árvore.
166
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Disponível em:

Talvez a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar, como

ideal, mas “[...] acreditar em suas possibilidades em movimentos e em intensi-


dades, para fazer nascer ainda novos modos de existência, mais próximos dos
Pode ser que acreditar neste mundo, acreditar nesta vida, tendo em vista todas as
crueldades e absurdos presenciados cotidianamente, tenha se tornado algo mui-
to difícil e, para alguns, até mesmo impossível. Entretanto, é preciso não desistir
nem sucumbir e, cada vez mais, acreditar na força das redes de laços afetivos
e sociais, como aquelas que os estudantes produziram com as ocupações das
escolas. É preciso poder acreditar nas possibilidades de outro mundo, como nos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-

solidão; isolados e desamparados, tornam-se vulneráveis à propagan-


da totalitária, presas fáceis do poder. [...] Indivíduos isolados uns dos
outros, incapazes de estabelecer redes solidárias, carentes de interação
humana possível com o mundo na esfera pública e provada tornam-se
indiferentes e desinteressados também em relação a si mesmos.

Talvez, a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar no


possível como categoria estética: Possível, por favor, senão sufoco! Talvez a úni- 167
ca coisa que nos reste em nossas singularidades é seguir em frente de braços
dados ou não, mas sempre caminhando e cantando, pois, logo ali na esquina do
tempo, quem sabe a arte nos assalte de surpresa e nos faça continuar acreditan-
do que nossa vida sempre vale a pena. Não a vida como algo transcendental,
uma vida, cada vida. Para isso, como nos ensina o
poeta,

Pelas ruas marchando indecisos cordões


Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão.

23
Referências
. Por-

Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio

Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio

Diálogos
. Rio de Janeiro: Forense Universitá-

. Rio de Janeiro:
168

Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed.


SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

MBEMBE, Achile.
.

Alfredo. Para uma vida não-fascista


A hora da micropolítica
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
O CINEMA
ABRINDO
ALAS PARA
OS DEVIRES
PASSAREM 169
Ana Cláudia Santiago Zouain
Nathan Moretto Guzzo Fernandes
Sandra Kretli da Silva

7.
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFES)

Sandra Kretli da Silva (UFES)

O cinema abrindo alas


para os devires passarem produzindo linhas de vida

Ô abre alas
que eu quero passar
Ô abre alas
que eu quero passar
Eu sou da lira
Não posso negar
Ô abre alas
Que eu quero passar
(Chiquinha Gonzaga)
170
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

fez ecoar esse canto por muitos e muitos anos


em diversos carnavais abrindo alas para movimentos de alegria ao povo brasi-
leiro. Por entre corredores, movimentos intensivos, corpos, imagens, crianças,
jovens, professores e professoras, rotina, invenção, adentramos as escolas com a
-
tos e dos encontros com as imagens-cinema.

Nossos corpos trouxeram consigo


foram armazenadas de outros encontros com os cotidianos escolares. Imagens

meio de imagens-ação -
tras, produzidas externamente, que movimentaram nossos corpos em imagens-
-percepção -

1
brasileira. Foi com a música Ó abre alas que o carnaval se consagra como festa popular.
em imagens-afecção
escrita, pois afetaram nossos corpos-pensamentos.

as imagens-cinema em processos de formação inventiva em redes de conversa-


ções? “[...] Restam os corpos, que são forças, nada mais que forças. Mas a força
já não se reporta a um centro, tampouco enfrenta um meio ou obstáculos. Ela

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


imagens, logo, nosso corpo-pensamento é constituído por elas. Somos atraves-
sados por imagens-forças e forças-imagens. Imagens de todos os tipos. Imagens
reais e imagens virtuais. Imagens-movimento e imagens-tempo. Imagens orgâni-

-
mos os cotidianos escolares e nos envolvemos em meio às redes de conversações
171

forças e somos mobilizados por forças que passam a habitar nossos corpos. For-
ças-imagens que agem e reagem umas sobre as outras.

Nesse sentido, nossos corpos são forças que se entrecruzam com outras forças.
E é em busca desse desejo de nos afetar e sermos afetados e, assim, expandir a
potência de ação coletiva, que o presente texto-imagem se compõe com as rela-
ções de forças produzidas com crianças, jovens e professoras no encontro com

que impulsionem a criação de outras/novas imagens de escola possíveis.

-
tes, habitamos um corpo atravessado por imagens diversas. Um corpo múltiplo,

Imagens cinema. Imagens escola. Imagens de vida. Na com-posição de um cor-


po-força-coletivo que se encontra com o outro do pensamento, que afeta e é
afetado nas relações estabelecidas.
Assim, o presente artigo objetiva problematizar a força das imagens cinemato-

as imagens cinema, em redes de conversações, força o pensamento, impulsio-


nando o corpo-coletivo a problematizar os processos de aprendizagemensino e
a criar movimentos aberrantes que impulsionam as invenções curriculares.

modelizar e padronizar as escolas, os professores, as crianças e os jovens. Apos-


tando que os encontros com as imagens em processos formativos possibilitam
movimentos aberrantes que provoca uma ruptura nos mecanismos de aprisiona-
mento, abrindo alas para os devires e linhas de fuga para a expansão dos proces-
sos de criação coletiva.

torno dos conceitos de imagem-cinema, movimentos aberrantes e pensamento


. Toma como aporte teórico-metodológico as redes de conversações en-
172 tre praticantes dos cotidianos escolares, apostando na capacidade de indivíduos
e grupos colocarem-se em relação para produzirem e trocarem conhecimentos,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

saberes e afetos movidos pelos agenciamentos de formas/forças comunitárias,

Nesse contexto, o campo problemático deste texto se constitui com o seguin-

construção coletiva de outros possíveis para os processos aprendentes e os mo-


vimentos curriculares inventivos?

trocas de experiências e de criação coletiva, pois as conversas mobilizadas pelas


afecções das imagens mobilizam o pensamento fazendo o corpo-coletivo pul-
sar e vibrar, abrindo alas para uma multiplicidade de devires, afectos, saberes,
linguagens e culturas circularem, provocando novos movimentos curriculares e
outros possíveis para as escolas.
Para caminhar nessa discussão, apresentaremos alguns movimentos de nossas
experiências de pesquisa em diálogo com pensamentos de outros pesquisado-

O primeiro movimento intitulado “Movimento um

movimentos de pesquisas junto às crianças e professoras de Educação Infantil

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que, no encontro com as imagens cinema, produzem diferentes imagens de pen-
samentos, abrindo o campo dos possíveis para a composição de novas imagens

Já o segundo, “Movimento dois -


-
édio do muni-

e os processos de aprenderensinar na escola.


173
ovimentos in-conclusivos” não para fechar a discussão, mas
como uma pausa para retomar alguns questionamentos e para se pensar nos mo-
vimentos diversos que se tecem no encontro entre imagens-cinema e Educação.
MOVIMENTO UM:

Cartografias de encontros com crianças e professoras


de educação infantil e imagens-cinema
-
ve o planeta. Saturado de partículas tóxicas do regime colonial-capitalístico,

aprisioná-los.

Esse ar que nos sufoca tem se espalhado densamente com a força de uma ima-
gem dogmática do pensamento que emoldura a educação brasileira. Essa ima-
gem, além de ditar os interesses curriculares dominantes, legitima uma maneira
de aprender em detrimento das demais, distanciando assim, de novos processos
de subjetivação e de outras possibilidades de criação.

de imanência da escola, e a estas mobilizamos nosso desejo de escrita, pois, por


174 meio delas fomos afetados, sendo, portanto, impossível pensar em uma única
imagem idealizadora de educação e, sim, em imagens outras possíveis de inven-
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

tividades na/da escola.

Buscamos, assim, por meio do encontro das crianças e das professoras com os
-
cessos curriculares instituídos quanto nos processos aprendentes, para pensar
a complexidade de acontecimentos inventivos e de vida que vibram na escola
-

aposta na potência das imagens-cinema enquanto forças que movimentam os


pensamentos de crianças e professores em devires outros.

ir à sala de vídeo. Já estávamos inseridos nas redes de conversações antes mesmo


-
ção com as redes afetivas que iam se tecendo junto aos movimentos aberrantes
que abrem alas para os devires passarem.

Os encontros das crianças e das professoras com as imagens-cinema não se re-


duziam apenas aos momentos de exibição e de conversas na sala de vídeo, mas
eram eternizados nos corpos-pensamentos, pois as imagens-afecções que desli-
zavam por entre imagens-cinema e imagens-escola na composição de cenas de
vida intensiva e inventiva.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
ções de imagens fílmicas, as crianças e professoras percorriam com a câmera do
desejo, em corpos-coletivos vibráteis, abrindo alas para o devir-criança fabular e
inventar outras imagens para as infâncias, para os processos de aprenderensinar
e para os currículos.

Emergiam-se movimentos aberrantes e inventivos em meio às afetações dos cor-

potência das imagens que distanciava os corpos orgânicos de um regime fechado


175

que se abriram ao campo dos possíveis. Corpos que se abriam para a força dos
encontros com as imagens. Forças que se expandiam na rede de conversações,
fazendo pulsar a vida emergente “[...] que sabe se transformar, se metamorfosear
de acordo com as forças que encontra, e que compõe com elas uma potência
sempre maior, aumentando sempre a potência de viver, abrindo sempre novas

Ao nos aproximarmos dos encontros com os signos artísticos do cinema, des-


locamos diferentes imagens-escola possibilitando-as ir além de uma imagem
habitual e dogmática que tenta endurecer nossos corpos em uma ação prees-
tabelecida. Assim, somos movidos por nossos impulsos criadores a fabular, a
entrar em composição com um devir-criança inventivo e a viver intensamente os
movimentos por meio da potência criadora da infância.

Nesse sentido, a professora fabula uma nova imagem para o Dia das Mães na
escola: -
sabafa uma professora em uma das redes de conversas movida pelas afecções
das imagens-cinema: “[...] Já problematizamos esse currículo movido por datas
comemorativas. Desculpem-me, mas eu me recuso a parar o que estou fazendo

-
rimentar outras linhas, a apostar nas linhas de fuga, nas linhas de vida intensiva
e inventiva que se movimentam pelos afectos e afecções cotidianas. Ressalta
que está com um projeto com as crianças denominado Invencionices infantis
e que todos os dias as crianças produzem coisas extraordinárias, por isso, não
precisaria parar para confeccionar cartões: “[...] Eu gostaria mesmo era de expor
as invencionices das crianças e mostrar as suas aprendizagens e que os pais
reconhecessem e valorizassem a potência desses processos inventivos criados

As crianças compõem todos os dias novas imagens para as escolas. Em alguns


momentos, as professoras entram em composição e acompanham as linhas de
fuga de seus alunos, dando brechas para o devir-criança habitar o corpo-escola.
176 Ao mesmo tempo em que são capturadas pelas políticas de avaliação ou pelas
diretrizes curriculares centralizadoras, deixam o corpo deslizar entre as peralta-
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

Ora, a infância e suas imagens, juntamente com aquilo que nela e por
ela deriva em múltiplas formas, acenam-nos para uma efetiva políti-
ca inventiva que, escapando das normativas e das disposições gerais,
criam campos de experiências que vazam por micro-poros; apresen-
tam virtualidades estéticas impensáveis.

em redes de conversações com as professoras de Educação Infantil possibilitou


pensar as relações cotidianas:

“[...] Este curta-metragem me faz lembrar uma imagem que me mar-


cou no encontro passado. Percebi em uma das cenas em que aparece

2
uma cadeira vazia. Como aquela cadeira vazia, pequena, desfocada,
me impactou, me afetou! Remete-me uma ausência, ausência de nós

-
bro, também, de uma reportagem de um senhor que vendia picolé
em frente a uma escola há mais de trinta anos que se emocionou ao
aprender a ler. Uma aluna se sensibilizou ao perceber que o amigo

-
me. As crianças se esforçam para expandir a nossa vibração. Estamos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


IMAGEM 1
Cena do curta-metragem “Carregando as baterias”

177

Fonte:

Dessa narrativa que emerge a partir das imagens de uma animação nasce uma

-
-

as imagens provocam no corpo-es-


cola? O que faz expandir a força vibrátil inventiva da escola?

3 Entendemos efeitos como produções coletivas em devir.


As professoras apontam que são as invenções cotidianas que expandem a potên-
cia de ação coletiva. São os encontros com as crianças que as revigoram. Ressal-
tam que as conversas com as famílias quando buscam a escola para comparti-

expandem a potência de ação coletiva. Destacam que se faz necessário apostar


e acreditar nas experiências cotidianas tecidas com as crianças.

intensivo, inventivo. Tempo-duração. Deslocam pensamentos. Função de fabu-


lação. Circuito de imagem real-imaginário. Imagens atuais e virtuais que se mis-
turam e se confundem.

A fabulação, no entanto, se diferencia da imaginação, pois “[...] a fabulação

um fantasma. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados


178
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

os sentidos e produzem diferentes imagens.

Apostamos, então, no encontro com imagens-cinema e imagens-escola na com-


posição de imagens-infância que desterritorializam os territórios escolares, ima-

estética sem pretensão de convencimento porque o registro produtivo de suas

Como a imagem a seguir que movido pelas afecções das imagens-cinema, uma
criança -
vanta, ela precisa falar sobre o que as imagens deram a pensar. As que seguem a
-
ça de volta ao seu lugar. A criança levanta-se novamente.
IMAGEM 2 _ Um menino que não para...

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


179

Fonte:

De modo geral, as crianças e as professoras, no encontro com as imagens-cine-


ma, compõem diferentes imagens-escola que se distanciam de um movimento
hierárquico e linear. A potência das imagens nos provoca a produzir movimen-

que pensam a educação para além das lógicas normatizantes, que reproduzem
uma imagem dogmática de pensamento, do currículo e da aprendizagem. Mas,
que se lançam em prol de uma educação em devir, engendrada aos seus acon-
tecimentos inventivos.

A potência dos signos artísticos nos move em meio às afecções que tocam nos-
sos corpos e nos impulsionam a um agir impensado pela racionalidade modeli-
zante, mas que passa a emergir em nossos corpos-pensamentos com as experi-
mentações afetivas vivenciadas.
Nesse sentido, as crianças e as professoras, movidas pelo devir-criança e im-
pulsionadas com as imagens-cinema, insurgem, deslocam e fabulam imagens

acontecimento, compondo resistências que nunca deixam o corpo parar, mas o


movimenta em constante devir.

Portanto, nesse movimento de afetação com imagens e com crianças, afrouxa-


mos o arco sensório-motor habitual, deslocando práticas verticais de currículos
e de docências, “por atos de criação de um corpo-pensamento em devir-deva-

entrecruzamento de forças que habitam os corpos e os permitem sonhar. Por


entre potências de vida que se tecem no real e no imaginário, nas dobras da re-
180
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
MOVIMENTO DOIS:
Cartografias de um encontro com jovens
e adolescentes e imagens-cinema

Depois do Cineclube Valente


eu não consigo mais assistir a um filme
e não conversar. Eu preciso muito falar!

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


(Estudante e cineclubista)

Como dito, o que nos interessa, são os movimentos aberrantes, no sentido de-
leuziano do termo, daquilo que insurge dentro de um movimento e extrai, dele,

para perfurar o que se repete, possibilitando outras relações, dando abertura


para novas composições.

Nesse sentido, segue nossa opção de acompanhar a potência de criação que 181
habita os espaçostempos
-
cadoras dos processos de aprenderensinar
-
dos no estado do Espírito Santo, por realizadores capixabas. Uma exibição que
acompanhamos teve como temática o meio ambiente. Assim, problematizamos:

potencial do cinema nos processos de aprenderensinar?

-
vimento um outro tipo de movimento, que foge à centragem, à coordenação-
-seleção, à construção vertical, que é a aberração de movimento ou movimento

ocasião de surgir diretamente, e de livrar-se da subordinação ao movimento,


que acompanhamos possui uma forma
hollywoo-
dianos
locais, que trazem outras imagens, sons, paisagens e se preocupam em buscar

após as exibições engendram possibilidades de ampliar os efeitos provocados


-
mentos. A partir de uma intencionalidade ético-político e estética, com a “forma-

intensidades dos encontros-imagens-conversas

apostamos que o cinema possui imenso potencial para colocar o pensamento


em movimento. Assim, buscando imprimir alguns efeitos de um encontro no
cineclube na escola, destacamos os agenciamentos reverberados a partir da exi-
bição do curta-metragem .

182 O curta-metragem
um curta-documentário. Nele, a cineasta apresenta um recorte em três atos, que,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

-
tes pontos do rio após o rompimento da barragem de rejeitos no desastre-crime

4 -

as mostras e de acordo com a temática, escolhem os curtas-metragens que serão exibidos, bem como o roteiro para as conversas.
Todo o desenvolvimento é feito de maneira coletiva pelos integrantes e as exibições são para alunos da mesma escola.

5
IMAGEM 3
Cena 01: Rio das lágrimas secas, dirigido por SaskiaSá.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Em todos os atos elencados, mulheres, moradoras das comunidades atingidas,
contam as histórias do que mudou com a chegada da lama, seus dramas, medos,
183
expondo perdas que ultrapassam questões materiais, como as memórias de um
lugar que não existe mais, a relação de vidas que são tecidas na relação com o
-
des, viajam pelas paisagens, pelas culturas, pelas memórias das mulheres, pelas

O objetivo dos cineclubistas com a exibição, que teve como tema o meio am-
biente, foi movimentar o pensamento em relação às questões relacionadas à po-
luição, ao desperdício de água, à produção de lixo, ao desperdício de alimento,
ao excesso de consumo. Após a exibição, encaminhávamos para as conversas e
o roteiro preparado pelos cineclubistas traziam algumas perguntas para intensi-
Algumas questões foram apresentadas problematizando as nossas relações com

Uma rede de conversas possibilitou


os estudantes e professores a confrontarem as relações que eles desenvolvem na
escola, no trabalho e nos vários espaçostempos que eles transitam com práticas
que preservam ou não o meio ambiente e, ainda, que expandem a potência do
corpo-coletivo.

— Igual eu vejo geral na hora do recreio, a pessoa sentada assim na

184
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

Em outro momento, nas conversas, apontamentos para possíveis soluções foram


levantados, como disse uma estudante,
ou “o lixo não é apenas um
-
tro estudante

Ao propor discutir o meio ambiente tendo como disparador as imagens cinema,


o cineclube acaba por abrir possibilidades para, em meio as redes de conver-
sações, que imagens-lembranças sejam confrontadas, expandidas e atualizadas
por novas imagens narrativas. Em processos aprendentes que decorrem de um
jogo coletivo, de convergências, confrontações, discordâncias, problematiza-
ções e, sobretudo, abertura e exposição para que, neste jogo, fossemos atraves-
sados pelos múltiplos corpos-experiências que compõem aquele cenário.

Mais adiante, a partir de uma pergunta acerca da importância dos nossos rios
para nossa vida de forma individual e coletiva, os estudantes revelam conheci-
mentos que são atravessados pelas experiências de vida, pelas vivências nos es-
paçostempos que eles residem, mostrando que os processos de aprenderensinar
extrapolam a escola por que se constituem em redes de afectos e de afecções,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


para com-partilhar a sua experiência de vida:

- 185

— É o capitalismo!

Por vezes silenciadas pelos processos colonizadores de uma cultura-escola-currí-


-
ciações que navegam por paisagens e culturas menores, que proclamam como
forças descoloniais outras formas de vida, outros modos de habitar, de saber.

Apresentam-nos processos aprendentes que não se restringem à escola, exce-


dem, como quando, a partir de suas experiências, uma estudante nos conta sobre
a relação da disponibilidade do caranguejo na natureza e o valor no comércio.

As imagens e narrativas expressam saberes que são inseparáveis do conhecer,


sentir, viver, habitar, experienciar, que se nutrem um do/no/com outro, num
processo de constante antropofagia encontram conhecimentos que extrapolam
e nas possibilidades de intercâmbio com os contextos vividos pelos estudantes
e professores.

Entendendo que uma proposta, uma atividade ou a imagem que se produz delas,
antes que prisioneiras das imposições podem ser sem fronteiras, pode circular
-
tras imagens, outros movimentos de pensamentos.

Para que isso ocorra, é fundamental que haja o fortalecimento dos grupos, -
dos aprenderensinar e outros currículos

da capacidade dos grupos e indivíduos estabelecerem e criarem relações “para


produzirem e trocarem conhecimentos, resultando, então, no agenciamento de
formas/forças comunitárias, com vistas a melhorar os processos de aprendiza-

186 É na coletividade que se inscreve esse currículo, se desdobrando a partir dos


encontros no cineclube, que se compõe na coletividade como corpo político.
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

Muito embora, coletividade não deve ser entendida como homogeneidade ou


espaço estriado, mas como “o aparecimento da pluralidade e da diferença que
interrompem a

força a comunidade a se transformar e que faz seu devir sempre aberto e per-

forma-
-
larmente impulsionar agenciamentos coletivos de enunciação para pensar o im-
pensável no cotidiano escolar, ver o que não é visto, sentir o que não é sentido,
produzindo um transe a partir da quebra dos automatismos da imagem-pensa-
mento. Indicam fugas das situações globalizantes nos modos de aprenderensi-
nar
que serão exibidos, bem como, das problematizações que serão lançadas no

-
culdade de ver, educando o olhar, onde as imagens possibilitam uma ruptura com
o vínculo sensório-motor como unidade do movimento, trazendo novas forças
deslocantes para as exibições. E “[...] educar o olhar é justamente permitir que
ele seja sem educação, isto é, jamais passivo de ser tolhido na potência de seu

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


“Como a aula passou rápido”:
há um tempo de intensidades que não pode ser apenas o tempo cronológico,
linear ou sequencial. O que temos experimentado muitas vezes, no encontro
com as imagens-cinema no cineclube, é abertura para tempos outros. É um tem-
po de experiências, acontecimental, que dá sovas nas formas rígidas de certas
hierarquizações e controle dos tempos escolares. Um tempo preenchido por
reticencias, que mesmo sendo curto, - feito os curtas-metragens -, dura pelas
intensidades que produz. 187

Um tempo duração que esfolia nossa pele deixando o rastro dos seus efeitos no
Movimentos in/conclusivos
Não acreditamos ser possível concluir uma escrita que se pretende pensar e

que se constitui por encontros afetivos e intensivos. Por isso, continuamos a nos

-
colas públicas municipais e estaduais do Espírito Santo? Acreditamos que muitos
foram os afectos, pois apostamos que o cinema abre alas para os devires. Devi-
res-crianças, devires revolucionários, devires...

-
letiva. Claro que também nos deparamos com afectos tristes que reduzem a
potência de agir de crianças, jovens e professoras, porém, logo que os afectos

agarrávamos a essas forças vibrantes, revigorantes de vida.

-
188
mes, mas, sobretudo, conversar e problematizar sobre os seus efeitos no nosso
pensamento. Assim, buscamos nesses encontros com as imagens justo ideias,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

c
em programas televisivos: “[...] que, é próprio do devir-presente, é a gagueira nas
ideias; isso só pode se exprimir na forma de questões, que de preferência fazem

-
tência da imagem-cinema nos encontros que estabelecemos com crianças, estu-
dantes e professores para fazer a língua gaguejar em meio às redes de conversa-
ções
modos de pensar, fazer e de viver os cotidianos das escolas, abrindo frestas para

A coletividade se fortalece em redes de conversações produzindo um posiciona-


mento político, marcado por experiências que desacomodam e abrem alas para
os devires passarem. “[...] O plano de vida, o plano da imanência é atravessado
por diferentes linhas, forças e formas, o que implica dizer que entrar em relação

ao citar Deleuze atuam, “[...] como uma força de fora que se aprofunda (se creu-

com as imagens possibilita a ruptura sensório-motora que leva a situações óticas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e sonoras puras, fazendo com que os praticantes do cotidiano se deparem com
o intolerável presente na banalidade cotidiana, como o exemplo da inquietude
do menino que não para diante das imagens-cinema e dos jovens que coletiva-
mente tentam inventar melhores relações com o mundo.

Deleuze aponta que a relação do homem com o mundo só pode ser restabele-
cida pela fé na imanência. A relação do homem e do mundo é, portanto, o in-
-possível, o in-pensável que precisa ser pensado e construído com os possíveis.

mais cabe ao artista acreditar e fazer acreditar numa relação do homem com o 189

-
versações constituem-se como espaços de trocas de experiências e de criação
coletiva, pois as conversas mobilizadas pelas afecções das imagens violentam o
pensamento fazendo circular uma multiplicidade de saberes e de culturas, que
provocam uma aprendizagem movida pela rede de afectos, fazendo emergir no-
vos movimentos curriculares e outros possíveis para as escolas.

Nossas experiências com as imagens cinema têm mostrado que professores e


estudantes instigados por elas expressam sentimentos/pensamentos que expan-
dem a força do coletivo nas redes Compondo momentos inten-
sivos-inventivos de formação, que possibilitam múltiplas criações curriculares,
tecidas em meio a uma grupalidade que se expande de maneira intempestiva,
revolucionária, democrática, colaborativa, sensitiva, inventiva, e...
Referências
A Evolução Criadora.
Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito

nas imagens errantes: micropolítica estética e devir-infância. In: RODRI-

e educação em errância: inventar escola, infâncias do pensar. Rio de Janei-

-
ções. Revista Teias

-
tituição de um corpo coletivo em devir. Revista Educação Temática Digital.

190 Devir-docência potencializando a aprendiza-


gem sem medo.
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

O cotidiano escolar como comunidade de afe-


tos
-

escolar: a potência da imagem-cinema fazendo a língua pegar delírio. Mo-


mento -

Imagem-Tempo

Conversações. Tradução de Peter PálPelbart. São Paulo: Edi-

Rio de Janeiro: Editora


Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia.

como máquina de guerra: movimentos de pensamentos e criações curricu-


lares

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada.

-
gens-tempo como dispositivos para fazer a língua gaguejar na produção do
Cinema e forma-
ção de professores e currículos e...
Crianças cineastas e seus roteiros criarteiros:
infâncias, currículos e docências inventivas. Dissertação (Mestrado em Edu-

191
TÍTULO

192
8.
ENCENAÇÕES

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CURRICULARES:
INSPIRAÇÕES
NAS OBRAS DE
PINA BAUSCH
Ana Paula Pereira Marques de Carvalho 193

Rita de Cássia Prazeres Frangella


1

Entrée3
Dizem os artistas que cada encenação é sempre única. Mesmo numa temporada
longa, cada momento de entrada no palco tem sua própria dinâmica; luz, som,
cores, movimentos que se repetem, mas irrompem novas possibilidades, sensa-
ções outras que o encontro corpo-som-movimento provoca, sempre outras. Os
tradicionais repertórios dos espetáculos de ballet abrem espaço para variações
que permitem, ainda que sob a marcação ritmada, tradição, música e enredo,

da transmissão/tradução, da encenação que remete a uma origem e que a rasura


194 em suas variações. Mas tudo é movimento... E as performances curriculares, a
que movimentos remetem?
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

A abertura ao outro e às diversas interpenetrações de sentidos que percebe-

entrelaçamento com a dança - a arte da bailarina Pina Bausch . Sua obra nos

1
Pró

2
Estado do Rio de Janeiro/ UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/ CNPq, Cientista do Nosso Estado/ FAPERJ, Procientista/

3 Os subtítulos, que marcam as seções no texto, nominamos como as partes que compõem um grand pas de deux nos grandes es-
petáculos de ballet. Um grand pas de deux normalmente tem cinco partes, que consiste em uma entrada (introdução), um adagio,
duas variações (um solo para cada bailarino), e uma coda (conclusão). -
ra-de-um-grand-pas-de-deux.html

4
novas formas de participação do terceiro setor nas políticas públicas educacionais. O foco da investigação era um projeto chamado

Projeto Trilhas, considerado uma importante política pública pelo Ministério da Educação, visa à formação continuada de profes-

utilizando os materiais do Trilhas em sala de aula. Nos imbricamentos desses vídeos, a pesquisa foi se deslocando entre performan-
convida a enxergar a arte não somente como possibilidades para o processo de
ensino-aprendizagem em sala de aula, seja na educação básica ou na formação

político-curricular sob a perspectiva da experiência inesperada, deslocando nos-


so olhar para a o pulsar da vida que faz parte da prática docente. Assim, neste
texto, propomos a discussão de uma concepção de currículo a partir de uma
inspiração bauschiana, na potência das provocações que ela nos incita, espe-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


cialmente no que diz respeito à tensão ambivalente entre as dimensões pedagó-

da tradição e, nessas articulações ambivalentes, contingencialmente, evoca uma


temporalidade iterativa e intersticial.

Dialogamos a partir de uma trajetória de pesquisas no campo do currículo que


vem defendendo a produção curricular como produção cultural, como enun-
ciação e nesse sentido, como processo de tradução-negociação em meio à im-
previsibilidade inerente às relações com o outro. Talvez seja exatamente essa

195
nas nossas investigações no campo das políticas curriculares sob o entendimen-

constante disputa. Movimentos/variações contingentes que se dão em ritmos


alternados, que compõem outras cenas que mesmo já coreografadas, marcam-se
pela iterabilidade que põe em cheque a ideia de reprodução.

Adágio – do encontro com Pina Bausch

dança teatral. Assim, a companhia passa a se chamar Tanztheater Wuppertaler,


ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

196

Fonte:
FIGURA 1 _
Pina Bausch.

-
Portal Press.
O processo de criação de seus espetáculos envolve a experimentação do cor-
po, sem a preocupação com a prescrição dos movimentos. Esse era o grande
diferencial de suas peças que variavam – trechos eram cortados, outros eram
incluídos – a cada apresentação. Entre os temas recorrentes em suas obras, des-
tacam-se as interações entre masculino e feminino, inspirando, inclusive, Pedro
Almodóvar Fale com ela, em que Pina participa, apresen-
tando uma sequência de dança. Pina Bausch era, então, conhecida pelas danças

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


atores-bailarinos e se baseavam nas experiências de cada um, incorporando um
pedaço de suas vidas. Porém, cada gesto deveria remeter a um outro gesto im-

de poder, inclusive na própria dança.

que os constituísse a priori, mas se davam a partir das múltiplas e imprevisíveis


197
possibilidades que se apresentavam com os bailarinos na provocação à improvi-
sação na montagem da encenação.

, Pina faz uma residência


-
-

e ouvidos bem abertos, de veias bem temperadas, atentíssimos aos sinais, às


cintilações, aos sons, aos perfumes e às emoções que a cidade lhes for sugerindo

5 Pedro Almodóvar Caballero é ator, produtor de cinema e roteirista, sendo um dos mais premiados realizadores da história do

6
olhar sensível sobre a vida e os costumes portugueses, apresenta no palco uma multiculturalidade de sentimentos: engano, alegria,
pobreza, tradição, prostituição, saudade, inocência, tempo, riso e choro. Como característica de todos os seus trabalhos, Bausch
desloca sentidos, numa negociação que põe em questão o próprio ser/não ser
da encenação. É dança? É teatro? Para além, de polarizações ou superposições,

performances em constante
processo de diferimento que se lançam, continuamente, à possibilidade de sur-

na contemporaneidade, de maneira que o teatro adentra a dança e vice-versa,


através do estímulo ao improviso de cada um do seu elenco, no movimento das
198
memórias de infância, desejos e angústias.
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

observa que, em suas criações, Pina Bausch não se limita aos gestos habituais
de cada situação:

[...] não se limita a atualizar a géstica do pensamento e das emoções


que envolve qualquer situação. As improvisações a propósito de um
tema podem provocar associações de palavras que o gesto transpor-
ta consigo e que remetem eventualmente para outros gestos, outras
palavras e outros pensamentos [...] não utiliza, pois, de uma só ma-
neira a relação palavra-gesto; sobretudo, porque não constrói um
tipo apenas de gestos. [...] Os seus gestos podem assim parodiar os

os dois membros de um par; podem sugerir os gestos do circo, bem


como dos jogos infantis; etc. O enxerto, a associação, o cruzamento,

e conhecidos tornam-se apêndices, variações e prolongamentos de


Desse modo, por meio de atos transgressivos, as criações bauschianas tensionam

ainda acrescenta que, sob seu ponto de vista, as criações realçam as descon-
tinuidades e avivam uma atitude desconstrucionista ao levarem para o palco
gestos cotidianos presentes em diversas práticas que, através da repetição e de
-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
-

Sob as perspectivas de que há um rompimento contínuo da linearidade do tem-


po e que a transparência do fato é impossível na sua totalidade, a arte transita

se refere, ao discutir o movimento da autoridade colonial. Sendo movimentos


que se interpenetram, o pedagógico relaciona-se à tradição, impossível de ser
199

impossibilidade de se evadir da metafísica que alicerça o pensamento. Porém,


devido ao próprio ato de repetição, que torna o político possível, a autoridade
colonial é sempre enunciada de forma diferente e a tradição é sempre rompida.
Neste sentido, a autoridade é produzida de modo ambivalente, em função dos
processos de tradução através do qual os sentidos são contestados continuamen-

estratégia e agência do outro.


1a VARIAÇÃO:
Acontecimentos coreográficos

tão patente: a notação precisa do movimento, a repetição em busca do deta-


lhamento e perfeição do movimento –
que requerem pernas, pontas, braços, posturas... a dança contemporânea, da
qual Pina é expoente, põe em questão a própria lógica de transmissão hierár-
quica da dança, numa leitura desconstrutiva que negocia com o corpo outros
movimentos possíveis, que observa, nas conexões com outros objetos cênicos,
um corpo indócil.

A ideia de transmissão e conservação de um repertório é tensionada pelo des-


locamento incitado pelo processo de criação de Pina Bausch: a elaboração dos
seus espetáculos se dá a partir de improvisações, de perguntas feitas por Pina e
as respostas/movimentos dados pelos bailarinos que geravam notações pessoais
de Pina e notações feitas pelos bailarinos. Notações diferentes que se entrecru-
200
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

-
gressoras, mas que não nega a herança da tradição clássica da sua formação – os
processos de produção da sua companhia envolvem aquecimento, exercícios,
movimentos do corpo não prescindem do ballet, mas o traz como herança. Der-

uma escolha, uma estratégia. Um herdeiro não é apenas alguém que


recebe, é alguém que escolhe, e que se empenha em decidir. [...]
A herança também, no sentido amplo mais preciso que dou a essa

na sua interpretação, em escolher. Ele discerne de maneira crítica, ele


diferencia, e é isso o que explica a mobilidade das alianças (DERRI-

7 Nomenclatura de passos do ballet, tradicionalmente mencionados em francês.


Uma herança que, para além da conservação, exige resposta; uma tensão en-
-

bauschiana se dá nessa ambivalência, na tensão entre a tradição e a performan-


-
pria Pina trata disso em entrevista e diz:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A técnica é muito importante, tem de seguir todo o percurso das téc-
nicas, isso é indiscutível. Mas depois ela está lá para ser usada para
qualquer outra coisa, para ser esquecida. É para isso que temos que
aprender, para esquecer e criar momentos de poesia, ou seja o que for

Assim, ao trazer uma outra perspectiva dos atos tradicionais do ballet através
da dança-teatro, Pina Bausch suscita que a tradição dos atos de variação dos
grandes espetáculos de ballet podem se performar não somente com o foco em
uma única linguagem que visa às demonstrações físicas dos bailarinos, mas que
o ballet pode ser lido nas múltiplas possibilidades que quebram uma suposta 201
linearidade atribuída à tradição, trazendo o performático como potência política

lidamos em nossas vidas.

Os movimentos constantes de rompimento da tradição inerente ao ballet, ainda


que essa tradição não se apague, remete-nos a questões importantes no campo
do currículo que dizem respeito ao que temos discutido/defendido: currículo
como enunciação cultural, como experiência. Entender o currículo como expe-
-
xando-se oscilar entre práticas de rotina e o novo constante, por entre atividades

impossível lhe é inerente e o constitui. E é na vivência do dia a dia que o currí-


culo é performado, no jogo do possível/impossível, demarcando a incomensura-
bilidade inerente à prática docente. Defendemos, portanto, que o currículo deve
ser percebido como um movimento de negociação de diferentes linguagens,
ações, imersa em processos de tradução.
-

problematiza, ao discutir como esquemas normativos naturalizam interpelações


sobre se não cabe a escola ensinar, o encontro com a dança-teatro de Pina Baus-
ch põe em questão tais perspectivas: não se trata de re-conhecimento, mas a
imprevisibilidade do gesto, da diferença imprevisível.

Inspirações bauschianas para pensar o currículo implicam em observar que não


se trata da negação da tradição, no caso, do ballet e sua técnica, mas um pro-
cesso criativo que se move no terreno da contingência e com ela negocia; sua
iteralibilidade desestabiliza uma autoridade posta como dada e absoluta. Iterabi-
lidade que se dá na inscrição performática da repetição – o gesto repetível, mas
sempre outro; repetição que não é mesmidade, mas o eu e o outro atravessado
pela alteridade.

Nesse sentido, é possível tomar essa inscrição performática como acontecimen-


to liminar. A ideia de liminaridade associada aqui é potente porque, ao afastar-se
202 da ideia de margem delimitadora, articula-se à ideia de Bhabha de entre-lugar
( no original em inglês), implica atravessamento, estar entre – transi-
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

Poderíamos alinhar a ideia de liminaridade à indecidibilidade. Recorremos aí à


Jacques Derrida para compreender o que chama de indecidibilidade: um rom-
pimento com a lógica opositiva e binária no transbordamento do cálculo ma-
quínico, não se trata de um ou outro e sim do que advém como outro e impre-
visivelmente rasura a pretensão de ordem, origem, presença/ausência. É o que

não como transcendência, mas acontecimento inesperado. Daí que indecibili-

incalculável dado sua contingencialidade e singular, uma vez que também o é


acontecimento.

Não se tratando de uma lógica opositiva binária, não se apaga a história, a tra-
dição, mas se trata de pensar a “inscrição do mesmo que não é idêntico, mas
como différance
para além do cálculo maquínico, mas que demanda decisão – responsável em
sua dimensão de alteridade –implica no esvaziamento da própria tarefa edu-
cativa, o que inferimos a tomada do ensino pela educação, num deslocamen-
to de sentidos que imputa o reconhecimento como tarefa da escola, tal como

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


movimento de espaçamento, um devir-espaço do tempo, uma devir-tempo do

2a VARIAÇÃO:
Kontakthof

- 203

-
malmente se referindo a pátios de escola ou de prisões, como local em que as

e, como as autoras destacam, um traço de uma lógica do paradoxo que impreg-


na o trabalho de Pina Bausch. A obra trata das relações humanas, com material
trazido pelos bailarinos e a partir da utilização de uma gestural cotidiano.

designar uma coisa, um objeto já aqui, já pensado ou representado, a palavra

espectral que mais evidencia sua virtualidade, o caráter performativo e iterativo


da nomeação, o que Pina dramatiza na evidenciação da ambivalência do ato
de nominar.
Das tantas questões que emergem nos rastros das questões postas em Kontakhof,
elas nos remetem a pensar currículo, trabalho docente como performances cur-
riculares. Em tempos em que o trabalho docente vai sendo diminuído em sua
dimensão autoral, subsumido à repetição a partir de determinações apriorísticas,

Propõe-se muitos e diferentes encontros, na interrogação mesmo de quem dan-


ça. Não bailarinos como bailarinos – mais que polarização, uma tensão perfor-
mática – é o mesmo e o outro ao mesmo tempo, o gesto deslocado em jogos de
linguagem indecidíveis, sempre instáveis, numa ambiguidade constitutiva.

Em nossa perspectiva, temos discutido o professor como curriculista, ou seja,


aquele que produz currículo e, por conseguinte, produz política. Empenhado
no fazer educacional e na sua relação com o outro, constrói outros modos de
-

204 na dança bauschiana transita na ordem da imprevisibilidade. A norma nos cons-


titui, mas aqui pensamos no que extrapola, como cada nova encenação, cada
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

do im-possível, na medida em que, ao ser performado, vivido, abrem-se outras


possibilidades de sentidos, sobrelevando a incomensurabilidade da linguagem,
produzida entre as tentativas de rotina e aquilo que o outro nos apresenta num
processo que é negociado constantemente. Assim, também os movimentos cur-
riculares encenados em cada escola, rede de ensino.

decorrentes das negociações e reinscrevem constantemente histórias descontí-


nuas. Signos duplicados que mobilizam sentidos num processo em que a auto-
ridade docente constitui-se como algo fronteiriço, intersticial, deslocada entre a
moldura de referência e o estado de espírito, movimentando-se em função do
-
gem, bem como sobre o papel do professor. Em nossas concepções, as relações
envolvem resistência, não sob o prisma da negação, mas como duplo, transitan-

deslocam na tensão entre o pedagógico e o performático que remete ao híbrido


como presença imprevisível e inadiável.

Cabe-nos pensar em performances curriculares, discutindo a ideia de performan-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-

[...] pode encenar-se enquanto estratégia híbrida em si, entre-meio de


emergência política contingente, performática na medida em que em
seus atos, repetindo e reinscrevendo políticas, o faz de forma iterativa,
atos tradutórios em que “o presente da tradução pode não ser uma
-

do entendimento do produção curricular como híbrido se dá na per-


cepção da performatividade da tradução, no inevitável encontro com 205
o intraduzível – diferença e alteridade - que uma perspectiva híbrida

Coda: das inspirações bauschianas


Em geral, essa é uma discussão que é trazida logo no início de um artigo, mas
tal ousamos a subverter os movimentos, deslocando-os e pondo em cheque uma
lógica continuísta. Dançamos conforme a obra de Pina Bausch para dizer do que
nos motivou a decisão de com ela nos colocarmos em diálogo.

caminhos não lineares. Dos muitos textos que se dão a ler, nossos diálogos se
articulam de forma multifacetada, nos atravessamentos entre os diferentes con-

teses, dissertações, apresentações em eventos, imagens, vídeos, e tantos outros


que borram as fronteiras do que pode ser pensado como produção do conheci-
poemas nos convidam, nos incitam, numa concepção de formação que ressigni-

pelas negociações e traduções culturais, que cria um espaço de ambi-

É nesse terceiro espaço, nesse ir e vir que se mobilizam movimentos

onde circulamos e neles produzimos – não só teses, artigos, textos


– mas planejamos, damos aulas, participamos/criamos blogs, grupos
de conversa, sites, -
venções possíveis do cotidiano, colocamo-nos na roda que, em seus
movimentos, fazem outras posições emergirem, geram algo diferente
e irreconhecível, trata-se de um tempo de tradução entre a autorida-
de e suas práticas performativas. É aí que nos confrontamos com as
impossibilidades que, paradoxalmente, são condição de possibilida-

inapreensível, deixa um traço de chance e ameaça que faz o possível


206 -
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

Nas teses e dissertações produzidas no grupo são frequentes os remetimentos a


-
tiva da arte o processo de articulação da aura e da ágora, argumenta acerca da

a arte tem a capacidade de revelar o quase impossível, o limite ate-

linguagem para os altos horizontes da própria humanidade e – na

estilos visionários, nos seus vocabulários de vicissitude – para revelar


a sua própria fabulação, a sua fragilidade , no momento de sua articu-

8 -
Nos termos do autor, um entre-lugar mediatório que não está nem dentro nem
fora da arte, mas nas bordas da inscrição/observação, como acontecimento e

pensar o processo político-curricular mais amplo num jogo de disputas por sig-

legitimar uma agenda de políticas com modelos universais para currículo, esco-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


la, formação de professores, aprendizado, avaliação.

Pensando em nosso processo e observando um contexto em que se prevê uma


formação de professores roteirizada
tornar a prática docente linear e colocar na atuação do professor a centralidade
das questões relativas aos problemas educacionais, a defesa por uma formação
numa perspectiva alteritária é pauta importante nas discussões sobre outras pos-
sibilidades de Educação.

Observa-se, portanto, que as tentativas de se projetar uma identidade docente,


bem como os caminhos para sua formação e prática, através de proposta polí- 207
ticas que incidem sobre uma rotina padrão, estruturada, para o sucesso do seu
trabalho, de fato estão tentando controlar o imponderável, dada a impossibili-
dade de se prever o ato de ensinar, assim como o ato de bailar que depende da
interação da plateia, por exemplo, para que o bailarino sinta a vibração dos seus
movimentos. Assim, a tradição é sempre quebrada enquanto os bailarinos com
suas sapatilhas de ponta e seus movimentos alongados tentam atingir o ápice
de suas performances, imprimindo cada vez mais energia a cada um deles, com
vistas à perfeição, o ballet de Pina nos apresenta um outro olhar.

Corpos desnudos nos mostram que há sempre outras possibilidades, que há sem-
pre um outro a ser considerado e que a perfeição é uma ilusão, mas é ela que
nos movimenta, que nos alimenta e também nos contribui para mobilizar o lugar
mediatório que ocupamos e dele não escapamos. Um lugar que esta
negociação de diferentes linguagens, ações, imersa em processos de tradução.

9 Remetemos ao contexto de recente promulgação pelo Conselho Nacional de Educação/ CNE da Base Nacional Comum para a
-
dade e abertura à ela que nos move. Pina nos estimula a pensar nos horizontes
frágeis da sala de aula e na importância de se pensar a educação como um pro-
cesso de subjetivação que so

Tal como a obra bauschiana, como um processo inusitado escrito a posteriori,


a formação se dá entre movimentos discursivos que sempre são mobilizados

as mais diversas formas, nas enunciações duplicadas e repetidas como processo


de intermediação e iteração.

A transgressão faz parte do currículo e no nosso último (e novamente o primeiro)

em que o currículo se inscreve, inclusive no que diz respeito à formação de pro-


fessores e suas práticas em sala de aula, sempre inacabadas.

208
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
Referências

Bausch. ETD - Educação Temática Digital

O local da Cultura.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


______. O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses – textos seletos. Rio

Poiésis

“Trilhas” nas políticas curriculares


no contexto brasileiro:

DERRIDA, Jacques. De que amanhã: diálogo Jacques Derrida e Elisabeth

209
______.
Políticas curriculares, coordenação pedagógica e
escola:

______. Por entre passagens: escola e currículo ou escolas e currículos? IN:


-

Talvez, o im-
possível.

INSTITUTO NATURA. Curso de leitura em voz alta pelo professor do Portal


Portal Trilhas. Disponível em: https://ead-trilhas-
-
of Pina Bausch. Revista Brasileira de Estudos da Presença

-
mento, reconhecimento e alteridade na teoria do currículo. Currículo sem
Fronteiras
-
Praxis Educativa
-
Estúdio,

-
ppertal Rev. Cena
M. Pina Bausch Lissabon Wuppertal. -
-

210
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
NARRATIVA, CINEMA
E REALIDADE:
A OUSADIA DE
PENSAR-ESTRANHAR
OUTROS MUNDOS 211

Graziele Corrêa Amorim


Eduardo Simonini

9.
Graziele Corrêa Amorim1
Eduardo Simonini2

As coisas são porque as vemos,


e o que vemos,
e como vemos,
depende das artes que tenham influído em nós.
(WILDE, 2003, p. 1086 – tradução nossa).

212 anedota:
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

Um homem desejava saber sobre a mente, não na natureza, mas em

computador começou então trabalhar para analisar seus hábitos com-


putacionais. Finalmente, a máquina imprimiu sua resposta numa fo-
lha de papel, como tais máquinas fazem. O homem correu para obter
a resposta e encontrou, caprichosamente datilografadas, as palavras:

Em sua anedota, Bateson indicou que a experiência humana está intimamente


relacionada à capacidade de construir histórias que, por sua vez, tendem a esta-
belecer coerências a organizar o existir de um indivíduo e de uma comunidade.

identitária com a qual somos registrados nos códigos da sociedade civil – temos

1 -

2 Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, pós-doutor em Psicologia, professor Associado no departamento de
mundo. Os nomes que nos individualizam são efeitos de um novelo de afetos,
de tramas e de enredos a se encarnarem não apenas nos documentos de um car-

Dessa maneira, um nome não é apenas uma propriedade particular, mas uma
-
riências e sentidos socialmente construídos nas comunidades. Podemos, assim,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


sentidos que em muito antecedem os nossos nascimentos. Mas a história do
nosso nome é apenas uma das primeiras a se colar ao nosso registro social. Isso
porque ao longo de nossas existências nos compomos em um emaranhado de
outras histórias – que narramos e pelas quais somos igualmente narrados – que
ganham sentido e consistência nos espaços cotidianos em que estamos imersos.
É, pois, narrando as nossas próprias histórias na interrelação com outras tantas
que nos são contadas em diferentes dimensões do viver, que atribuímos sentido
aos mundos pelos quais transitamos e, consequentemente, sentidos a nós mes-
213
mos. É, pois, junto às narrativas que outras tramas-existências emergem, enri-
quecendo e/ou empobrecendo um mundo que surge inseparável dessas mesmas
narrativas tecidas nos mais diversos convívios sociais.

Portanto, assumimos neste trabalho que o mundo não é um dado pronto, mas
fabricado em narrativas que constantemente podem arquitetar e produzir efeitos
de verdades, de afetos e de memórias. Narradores de mundos, somos efeitos de

quais nos enovelamos.

-
re a uma ilusória fantasia, mas a algo que é feito, fabricado e produzido no viver
os narram. E cada narrativa é sempre coletiva, apesar de algumas vezes parecer
individualizada e particular, como no caso de um nome próprio. Mas, da mesma
forma que nosso nome não se constitui em uma marca isolada das histórias a ele
atreladas, inventamo-nos nas narrativas que nos inventam, uma vez que:

depende do humano, e o humano depende do sentido. [...] não su-


portarmos o vazio. Somos incapazes de constatar sem imediatamente
buscar ‘entender’. E compreendemos essencialmente [essa nomea-

nossos mundos enquanto construímos, selecionamos e editamos histórias que

-
214

inacabado, em que as histórias narradas não se exaurem em si mesmas, pois


NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

quem escuta uma história se compõe junto com a mesma, enredando, assim,
muitas outras interpretações e sentidos que se concretizam em diferentes modos

Portanto, as narrativas que compõem os nossos cotidianos acabam por estabilizar


um sentido de concretude e essas histórias produzidas passam a ser as referên-
cias norteadoras das nossas existências. Desse modo, podemos considerar que

que ganham valores diferentes em grupos e tempos circunscritos. É nessa pers-


O cinema como narrativa
Na primeira metade do século XX, nos Estados Unidos, o cinema, até então uma
experiência nascente no mundo, ganhou uma nova linguagem quando David

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


[...] é a ordem em que os planos se sucedem em uma sequência tem-
poral, assim como a forma como os elementos que compõem um
mesmo plano são apresentados – simultânea ou sucessivamente. Co-
locadas juntas, as imagens se unem em uma nova ideia; estendemos
-

O recurso da montagem possibilitou com que as imagens fossem editadas e


selecionadas antes de serem apresentadas ao público, sendo que, para Bazin
215

que faz com que essa análise passe despercebida; a mente do espec-
tador adota naturalmente os pontos de vista que o diretor lhe propõe,

interesse dramático.

-
-
rolava a partir de uma sequência de imagens – muitas vezes desconexas – em
movimento, o desenvolvimento das técnicas de montagem permitiu a manipula-
ção tanto do movimento, da sequência narrativa e do tempo. Com a montagem,
a imagem igualmente passou a ser manipulada em uma intenção narrativa que
permitisse com que o diretor trabalhasse os afetos e induzisse maneiras de sentir
apenas para misturar diferentes linhas de ação, de modo a criar sus-
pense e emoção, mas também para construir contrastes dramáticos,
delinear o desenvolvimento psicológico de personagens e criar julga-
mentos morais. O uso desse tipo de montagem revela-se como clara
intervenção do narrador que, pelos contrastes, aponta motivações, in-

No entanto, essa nova forma de se fazer e de se pensar o cinema sofreu críticas


de alguns diretores que consideravam que “a montagem não desempenha em

sobre o mesmo.

Neste contexto de transformações pelas quais o cinema mais uma vez se encon-
216
trava, percebemos a dualidade entre dois entendimentos a respeito da realidade:
o entendimento dos críticos e o dos adeptos do processo da montagem. Portan-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

outras realidades para os espectadores. Assim, enquanto os primeiros acredita-


vam que a imagem tinha que reproduzir o real, os segundos ousavam na pers-
pectiva de que o cinema poderia também produzir realidades. A partir de então,

o romance, a comédia, o terror, o suspense, a aventura, o documentário, entre


tantas formas de narrar-produzir realidades que permitiam aos espectadores ex-
perimentar diferentes sensações-percepções-afetos.

É, pois, nos aliando à perspectiva de que as


são produtoras de realidades, que assumimos aqui um caminho investigativo

absoluta, mas como uma contínua montagem a sempre (re)abrir maneiras de


sentir e pensar. Contudo, consideramos importante destacar, neste trabalho, cha-
-
mos, assim, que toda imagem é inseparável da produção de uma narrativa que
a ela se adere, seja por um contexto histórico, seja pelas construções de sentido
que cada pessoa faz ao agenciar seu mundo à imagem apresentada. As imagens-
-narrativas ganham sentidos diferentes no processo de entrarem em contágio

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


blocos de sensações e vetores de pensamento. O que faz com que narrativas que
não se refiram a uma mera
descrição da realidade apresentada, constituindo-se também em uma fabricação
legítima de efeitos de realidade nos espectadores.

Só 10% é mentira, o resto é invenção


Procurando, pois, investigar e acompanhar os processos de pensar-aprender em
encontros com um grupo de estudantes do primeiro período do curso de Peda- 217

-
ções dos discentes a respeito de como pensavam a prática docente.

ganham intensidade em determinada cena social, e que indicam, a partir de suas


singularidades, os (novos) territórios a trilhar. Contudo, é importante considerar

-
dicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pes-

mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas (...).

pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar


sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e os resultados (PASSOS;
-
ciais não consiste na tarefa de a re-apresentar a realidade, uma vez
que o próprio conceito de realidade – enquanto dimensão indepen-
dente do pesquisador – é questionado. Ao contrário da tarefa de re-

em seu tramar, compõem mundos imanentes ao próprio viver. Então,


no movimento de cartografar realidades temos que o que está em jogo

não basta ao pesquisador se munir de instrumental metodológico; a


principal atitude que o mesmo deve assumir é tanto epistemológica
quanto existencial, ao considerar que não existe um mundo indepen-
dente das tramas que o tecem.

Então, cartografar é seguir processos – políticos, sociais, afetivos, estéticos, ima-


géticos... – que, estando abertos ao agenciamento com outros saberes e possi-
bilidades de existências, ganham intensidade em uma pesquisa. Praticar, pois,

218 os encontros em seus aspectos inusitados, imprevistos e inventivos. Desse modo,


“o método, assim, reverte seu sentido, dando primado ao caminho que vai sendo
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

Foi, pois, no movimento de agenciar imagens, narrativas, histórias de vida, afetos


e sensações que iniciamos uma pesquisa com o referido grupo de estudantes
-
-
cas diversas, promover discussões ativadas por palavras-chave como docência,

O grupo em questão era composto por cerca de dez discentes do primeiro pe-
ríodo do curso de Pedagogia que participaram de sete encontros (um a cada se-

este seguido por debates nos quais utilizamos de técnicas de dinâmica de grupo
para ativar estranhamentos, no deslocar os discentes de seus lugares de conforto
identitário e, assim, abrir passagem a possíveis invenções no agenciar de dife-
-
é estar exposto a

conjugar com o verbo inventar. Dessa maneira, o pensamento, enquanto inven-


ção, só é possível no estranhamento, nas fronteiras, nas rupturas, pois:

desabamento íntimo, uma aventura involuntária. Por isso, o pensa-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mento promove tantas dissensões, tantos dissensos e se confronta
com tantas iniquidades. Nesse sentido o pensamento, o ato de pen-
sar equivale a uma espécie de grito que proferimos convulsionados,
exasperados, quando desabam nossas convicções rotineiras e somos
arrancados simultaneamente das certezas do senso comum e das di-
retrizes do bom senso; quando somos lançados em uma aventura que
não planejamos, arrebatados em pleno voo pelo desconhecido. (...)
O pensamento resulta, pois, de uma urgência nova que irrompe em
nós como uma perda de centralidade, um desapossamento, um im-
pulso que nos atira além do domínio da utilidade prática da vida (...).
Essa experiência vertiginosa, fruto do desregramento das faculdades
intelectivas, se apresenta, para cada um de nós, certamente como um

219

Assim, neste artigo nos dedicamos a apresentar uma experiência de estranhar-


-
tes calouros, especialmente quando foi trabalhado o documentário “Só dez por

qual acompanha a produção literária do poeta Manoel de Barros. Consideramos,


contudo, importante destacar que um documentário, enquanto uma experiência

que é a realidade e do quanto esta pode ser re-apresentada


O cineasta português Manoel de Oliveira pressupunha, por exemplo, a existên-
cia desse acesso direto à realidade quando sustentou que:

não preparam a cena, é um documentário. A realidade está no docu-


Manoel de Oliveira acreditava, pois, na realidade enquanto um fato externo ao
cineasta e igualmente independente do processo de uma edição. O documen-
tário seria, então, exterior a interpretações, sendo a re-apresentação de uma

o documentário, trazendo para o debate o fato de que não existe neutralidade


representacional no cinema e muito menos no documentário, uma vez que:

através de Dan Rather, o Afeganistão se mostrasse. Na verdade, ele


nos é contado em uma narrativa que é produto de um meio, de um
poder, de contratos entre a empresa e seus clientes, assim como da
lógica de uma técnica. A clareza da informação dissimula as leis
do trabalho complexo que constrói; trata-se de uma falsa aparência
que, diferentemente da perspectiva ilusória de outrora, deixou de
fornecer tanto a visibilidade de seu estatuto de teatro quanto o códi-
go de sua fabricação.
220
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

-
de, pois ele é construído em arranjos complexos em que as narrativas são a todo
-
tativos que fabricam a realidade no ato de narrá-la. Nesse sentido, a própria

um estado puro, sendo sempre inventada nas narrativas.

E é exatamente essa perspectiva de realidade inventada que atravessa a temática


de todo o documentário sobre Manoel de Barros, sendo esta uma produção que
segue a poética deste escritor, no movimento que este empreende de construir
-
cantes: como o cisco, a poeira, a formiga, o caramujo, as latas enferrujadas, etc.
E logo nas primeiras cenas do documentário, é lançada ao espectador a seguinte
questão: a imagem retrata a realidade ou a inventa?
Todo o documentário, portanto, dialoga com a invenção na obra daquele poeta,
sendo que este considerava que inventar é uma atitude diferente do ato de men-
tir. Pois, enquanto a mentira é uma ação deliberada de falsear algo, a invenção
serve para aumentar o mundo. Como a realidade, em Manoel de Barros, não é
um fato cristalizado numa essência, mas dobras poéticas que ampliam a vida no
ato de fecundar as palavras, declarou ele (em um poema título ao documentário)

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Assim, o próprio documentário sobre aquele poeta se apresentou igualmente
como uma invenção multiplicadora de sensações e afetos naqueles que partici-
pavam do grupo de estudantes por nós fomentado. E, na discussão que se seguiu
à apresentação d
chamaremos de Bruno – se manifestou dizendo que achou:

(...) muito bom esse documentário! Mexe com as nossas sensibilida-


-
sas universais, em busca de dinheiro e nos esquecemos das coisas
221
banais, como, por exemplo, dar um abraço no outro e dizer que o
ama. Esse documentário me remeteu à minha infância, eu também
fui muito viajado.

até que Bruno considerou que:

-
tava sem me preocupar se agradaria ou não os outros. Eu não queria
ter perdido essa minha liberdade, mas perdi e sinto que preciso dar
mais valor para essa minha parte...

No decorrer da conversa, as questões que envolviam obrigação-prazer; traba-


lho-ócio; manifestaram-se no debate, inspirados por falas trazidas por Manoel
de Barros quando o poeta narrou a tensão entre essas polaridades em sua vida,
especialmente quando disse que:
meu pai me sustentou muito tempo. Primeiro dava tudo errado; ar-
ranjava muitos empregos. [Eu]Trabalhava um pouco, achava chato,
desistia. Passei dez anos no Pantanal com minha mulher. Depois de

poesia. Então eu comprei o ócio e aí que eu pude ser o vagabundo

debates sobre o sentido do trabalho produtivo e as possibilidades de realizá-lo


-

discussão que se estabelecia naquele momento, solicitamos aos estudantes que


narrassem, através de desenhos, de escritos e/ou de qualquer outra expressão

-
tranhamento em todos os presentes, até porque os colegas o enxergavam como

222
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
FIGURA 1 _
ilustração de Bruno

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


223
-
sado seus colegas, sendo que, ao perceber que foi desenhada uma pessoa que
aparentemente estava enforcada em uma corda, uma das estudantes questionou
Bruno se ele estava pensando em suicidar. Bruno respondeu dizendo que ela
poderia interpretar aquele desenho como desejasse; resposta esta que, por sua
vez, não suprimiu as apreensões que haviam surgido.

Todos ali já se conheciam do curso; estudavam na mesma turma; e em encontros


passados Bruno havia narrado vários episódios de sua vida. Entre eles, contou
que gostava de tocar violão, tendo inclusive convidado seus colegas calouros do
curso de Pedagogia para assistirem à apresentação que faria em um bar da cida-
de. A música era uma expressão imaterial importante na vida de Bruno, sendo
que, quando morava com os pais em sua cidade natal, teve uma banda de pop/

224
Diante do protesto dos pais, o estudante abandonou a antiga banda e o proje-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

em bares. Mas, buscando seguir o caminho indicado por seus genitores, aden-

particular de sua cidade. No momento, contudo, em que sentiu que não tinha
interesse pelas disciplinas oferecidas, abandonou o curso. Para sair do campo
de visão de sua família e ambicionando uma maior liberdade, foi, então, morar
na casa de um familiar em uma cidade do litoral paulista, retornando à casa

no início do relacionamento, o casal acabou tendo que lidar com uma gravidez
não planejada. Diante de tal fato, Bruno e a namorada decidiram morar juntos.
Ele se viu, então, diante de novas responsabilidades e decidiu retornar ao Ensi-
no Superior, fazendo a opção pelo curso de Pedagogia. Este era para Bruno um
curso de fácil acesso e a família (tanto a que constituíra com seus pais, quanto
a que constituía com sua companheira) insistia que ele precisava de um curso
responsabilidades) de pai, de marido, de estudante universitário.

-
no estava com dois anos de idade e ele morava com a mãe da criança, que es-
-

funcionava como uma instância tanto de motivação quanto de pressão para que

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
plicando um pouco o desenho que fez no encontro com o documentário sobre
Manoel de Barros, relatou ao grupo que as expectativas de sua companheira e

uma vida triste.

Foi quando, segundo Bruno, assistir ao documentário sobre Manoel de Barros


o desnorteou. O modo como o poeta escolheu para si uma vida simples, volta-

ansiedade que o obrigaram a (re)pensar o modo como vinha fabricando o seu 225
mundo. Passou, então, a se questionar: “quando e como perdi a minha liberda-
de? É possível recuperá-la? A liberdade de fato existe em um mundo que, a todo

Diante de tais questionamentos levantados pelo estudante, a partir do encontro

-
tos. Acontecimentos estes que ativam aprendizagens sustentadas não na “coleta
-

Bruno. Este não se sentia contente com o roteiro de aprisionamentos em que


sentia construir sua existência, e partilhou no grupo que aqueles encontros – em
íram
para que tomasse a atitude não apenas de se separar de sua companheira, como
também de assumir uma rota existencial mais coerente com suas motivações
musicais. Tanto é que semanas depois de seu depoimento a respeito do desenho
que realizou, anunciou ao grupo que havia se separado de sua companheira,
concluindo que “não pensem que estou mal, ao contrário, nunca estive tão certo
da atitude que poderia ter tomado. O melhor e maior consolo que poderiam me
-

(...) considerei que para ser feliz não é necessário seguir padrões –

ver, para se alcançar “um pedaço de tudo” - sendo viver a simplici-


dade, as coisas banais... – é preciso abdicar dos elementos univer-
sais. Estou, portanto, me sentido renovado tendo coisas consideradas

-
-
dos de existir e cabe aos espectadores permitir se sensibilizar com as narrativas
226 que mais lhes convêm; ou seja, que mais lhes afetam na cotidiana experiência
vivida. Acreditar, pois, na potência do cinema é percebê-lo para além de um
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

recurso de transmissão de informações ou de divertimento, podendo o cinema


acionar aprendizagens-estranhamentos a outras realidades e distintos modos de

a abertura a diferentes maneiras de enxergar uma perspectiva de existência vista


até então como natural e/ou imutável.

O tempo da imagem-narrativa não é, pois, o tempo do relógio, mas o dos afetos.


E mesmo que a tendência de nossa percepção seja a de produzir constâncias,
ordens e estabilidades – lançando-nos tantas vezes na cegueira de só conse-
guirmos ver o que desejamos enxergar – uma imagem-narrativa pode produzir

-
ções e percepções. Assim, uma imagem-narrativa, como acontecimento, não se
restringiria à perspectiva de produção de uma catarse – no sentido de expurgar
angústias passadas – mas de abertura ao futuro. Isso porque uma imagem-nar-
ter a potência de ativar conexões inventoras de realidades: outras montagens de

agenciar com a vida privada do espectador, pode, pois, se dobrar e/ou se multi-

-
cia de, para além de representar uma maneira de pensar, oferecer passagem a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


diferentes afetos. Estes poderão produzir múltiplas compreensões e efeitos a de-
pender de como cada espectador ou grupo de espectadores entra em composi-
-

a paternidade, a liberdade, a prisão, o enforcamento e também com a própria


-

227
do que se separar de sua esposa, assumiu a música como um dos propósitos
principais de sua vida. Tal decisão poderia vir a transformá-lo em um pedagogo
mais comprometido com a prática educacional – caso não viesse ele a também
desistir do curso –, uma vez que teria que confrontar também sua escolha pela
Pedagogia com o questionamento se aquele caminho era coerente com a reali-
dade que fabricava para si? Esta é uma questão para a qual não temos resposta.

Contudo, as tensões que atravessaram aquele grupo, e particularmente Bruno,


-
gemonização das maneiras coletivas de produção da realidade que, ao susten-

que não se atrelam às maneiras de existir narra-


das como socialmente válidas

3
social vivenciado por Bruno. -
possível diante da coragem sensível de se permeabilizar a novas aprendizagens,

de seu ineditismo.

Assumir a vida como fabricação inventiva não nos furta, contudo, da experiên-
cia de nos agenciarmos a medos, a angústias e a estranhamentos de nossas cer-
tezas. Nesse sentido, as imagens-narrativas podem nos lançar a estranhamentos
de sabores e sensações que, por seu exotismo, podem fazer com que fujamos
apavorados de universos em que não sustentamos um chão. Mas que, outras
tantas vezes, também podem nos deliciar com a produção de um novo prazer.
Apavorados ou deliciados, somos convidados – e tantas vezes obrigados – à (re)
invenção de um mundo.

228
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
Referências
BARROS, Manoel de. Autorretrato. In: BARROS, Manoel de. Poesia completa.

Mente e Natureza
Steps to na ecology of mind

O que é cinema? São Paulo: Cosac

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e

Um
concerto em tom de conversa
BRUNO, Mário. Um estilo (co)inspirando a vida. In: BRUNO, Mário;
Pensar de outra maneira a
partir de Cláudio Ulpiano
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise
229

Só dez por cento é mentira

com.br/index.htm
COSTA, Flávia. O primeiro cinema: considerações sobre a temporalidade dos
Cadernos de Subjetividade

Revista
Educação e Realidade https://seer.

Two regimes
of madness
DUARTE, Rosália. Cinema e Educação

As palavras e as coisas
A espécie fabuladora

: Pesquisa-

(Orgs.). Pesquisa, alteridade e experiência: metodologias minúsculas. Rio

Complete Works of Oscar Wilde

230
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
“MAMÃE, VAMOS
NOS ESCONDER?”:
AS ARTES

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE
MONSTRUOSIDADES
NECROPOLÍTICAS
231
Luciane Tavares dos Santos
Eduardo Simonini

10.
Luciane Tavares dos Santos1
Marcio Caetano2

Do esporro ao silêncio do isolamento social


-
tas de local/hora de festas e blocos de pré-carnaval, a notícia de que uma nova
doença, à época sem nome, assolava a população chinesa da cidade central

mundo afora como já ocorria com os coloridos blocos que se multiplicavam pe-

também de memórias com cheiro de suor e de sangue preto, agora cobertas de


232 restos de confetes e de purpurina que não sai nem com chuva torrencial (para o
horror de ambientalistas).
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

outros modos trabalhadores/as a adereçarem seus uniformes com balangandãs


vendidos pelos/as ambulantes que aproveitavam o momento para turbinar o ga-
nha-pão da família. Prenúncios do carnaval de rua: tantas pessoas espremidas

cidade maravi-
lhosa e cheia de encantos mil

e beijos com
-

1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) sob orientação da Profa.

na Educação e na Escola: estado da arte (UFF) e Políticas do Corpo e Diferenças – POC’s (UFPel). E-mail: tavaressluciane@gmail.
com

investigações desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Educação. E-mail: mrvcaetano@gmail.com


deral na repatriação do grupo de brasileiros/as que estava em Wuhan. Em carta
aberta, gravada e publicada no
se dirigia ao Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e ao Ministro das

operações de evacuação já realizadas por diversos países, enquanto sua situação

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
vam alegria junto aos que buscavam, nas festividades, os meios para suas susten-
-
des caixas de isopor, ou catadores/as, incluso crianças e idosos/as, recolhendo
latinhas jogadas no chão pelos/as foliões/ãs, passaram a compor o cenário dos

toma a cidade do samba no início do ano. Naquele momento é difícil crer que
qualquer pessoa imaginasse o que estava por vir: É carnaval, é folia, neste dia
233
ninguém chora

comemorava o seu segundo campeonato no carnaval da Marquês de Sapucaí;


crianças e idosos/as, quase todos/as pretos/as, ainda mais empobrecidos/as com
as reformas neoliberais, contavam as moedas obtidas com as vendas de latinhas.
Ainda sob os ecos do enredo de Ó mãe!

os jornais davam conta de noticiar o primeiro caso daquela doença estranha, a


, aqui no Brasil.

3 -

balaios a pé para vender peixe e quitutes pela cidade e assim ganhar o sustento da família. O grupo se formou por mulheres guerreiras

).

4
Era inevitável! Em tempos de avanços tecnológicos, a mobilidade daquelas pes-
soas que não catam latinhas no carnaval assumiu dimensões impressionantes em
meios as possibilidades de transportes, aéreos, terrestres, marítimos e ferroviá-
rios. Em questão de horas, uma pessoa foge dos blocos barulhentos que invadem

as nações, como seria possível uma doença de velhos/as chegar ao Brasil?

O Sr. Jair MESSIAS Bolsonaro garantiu e ainda garante, com ar profético, a


imunidade brasileira, mesmo após milhões de casos. Não havia muito tempo a
água chegava às casas cariocas com gosto/cheiro de esgoto e nada aconteceu.
Uma gripezinha não causaria danos a ponto de matar, disse mais ou menos o
presidente.

[...] O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente


passará. [...] No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta,
caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar,
nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha
234 ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela
conhecida televisão. Enquanto estou falando, o mundo busca um tra-
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

-
lando desde o início, venceremos o vírus e nos orgulharemos de estar
vivendo neste novo Brasil, que tem tudo, sim, para ser uma grande
Nação. Estamos juntos, cada vez mais unidos, Deus abençoe nossa
-

O negacionismo bolsonariano ainda continua latente. Em discurso enfático, o


presidente brasileiro anunciou: “Eu, pelo o meu histórico de atleta [...] não pre-

uma alga chamada Geosmina, matéria orgânica formada quando cianobactérias presentes na água se alimentam de outras matérias orgâni-
cas, como algas ou coliformes fecais. A crise suscitou aumento do preço da água mineral e consequentemente falta do produto nos
mercados, problemas de saúde na população, como diarreia, e demissões no alto escalão da Companhia. Até hoje, ao que consta,
Bolsonaro, como doença do “vírus chinês
-
cias de dietas vistas como saudáveis e práticas esportivas): o grupo de risco – do
qual inclusive, pedimos que nos permitam a ambiguidade, faz parte o presidente
que não se comporta como tal.

O discurso amplamente divulgado pela família Bolsonaro, em certo sentido, re-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


troalimentou a sensação de que pessoas com práticas saudáveis, com histórico
de atleta, que pularam amarelinha na infância eteceteras estariam imunes. Algo
semelhante observamos em relação às pessoas que não integravam o grupo de
risco, que supostamente passariam intactas pela pandemia. O fato é que a ne-

. Seus corpos, de trabalha-

para ganhar a vida nas zonas que possuem frentes para “fazer bicos

235

férias ao exterior, porque não precisam/precisaram catar latinhas, vender ade-

trouxeram nas malas o vírus como souvenir


-
cípio de Barra Mansa, que havia contraído o vírus em uma viagem feita à Itália
e à Alemanha, no entanto a primeira morte foi de uma empregada doméstica

que o contraiu em seu local de trabalho na capital: sua patroa também viajou e
souvenir.

6
raciais experimentadas pelos(as) chineses(as) mundo afora.

7 Boletim atualizado às 19h30

8 -
Em meio ao turbilhão de notícias, a docência que não se deixa parar se movi-

é que, em meados de março, torcia pelo decreto que suspenderia as atividades

( ) , seria impossível não se contaminar. Uma rotina estressante,


em transporte público quase sempre superlotado e sem circulação de ar, como
ela mesma descreve às vezes, tornou-se ainda mais insuportável por conta da
redução da frota na cidade, aumentando o risco de contágio.

236
também professora e estudante de doutorado, mesmo sem ter cria gerada em seu
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

que a sua pequenina estará protegida. O exemplo corrobora com o que já sabe-
mos, enquanto mulheres das camadas populares e pesquisadoras/es de gênero,
a rede de apoio social e afetivo entre mulheres de periferias é fundamental para

a maternidade, vida social, sexual-afetiva.

-
mioterapia. Estas e tantas outras mulheres da classe trabalhadora têm enfrentado
-
dade são fundamentais para isso. No que diz respeito às professoras, têm que

9
bairros: TransOeste, Santa Cruz à Barra da Tijuca; TransCarioca, Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim; e TransO-
límpica, Recreio dos Bandeirantes a Deodoro.
dar conta das exigências estabelecidas pelos empregadores, representados pelo
empresariado educacional ou pelas instâncias do Estado (federal, estadual ou
municipal), cuidar de crianças que também têm suas exigências, em um contex-
to que trouxe, dentre outras preocupações, a educação remota, além de cuidar
de suas necessidades pessoais e constituídas a partir do mundo de exigência
estética às mulheres.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


de comportamento frente as realidades objetivas da vida em meio à letalidade

da sociedade assistiu as redes de afetos tornarem-se online, mas outras foram


obrigadas a trabalharem com a perspectiva de redução de danos . Nesse cami-
nho, a internet assumiu contornos imensuráveis e várias dinâmicas do trabalho
produtivo entraram no estágio de . As ações governamentais assu-

conciliar rotinas de trabalho, com o cuidado de crianças e de pessoas idosas,


com horas extensas de convívio, muitas vezes, em espaços pequenos e sob con-
237
dições desfavoráveis.

inúmeras famílias conciliaram a luta diária pela subsistência, a manutenção do


trabalho formal ou informal e os cuidados domésticos com as atividades escola-
res que mantinham alunos/as em rotina de estudos. Agora, as aulas são virtuais

criaram grupos de WhatsApp11 em que docentes enviam vídeos e áudios com


atividades e conteúdo ou folhas mimeografadas/cópias com exercícios.

10 No geral, é entendido como um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os impactos ou danos associados ao uso de
drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Neste caso, tomamos emprestado o conceito
para pensar um conjunto de práticas e de políticas de pessoas que não podem realizar totalmente o isolamento social e buscam
conjugar o máximo das recomendações dos organismos de saúde com as necessidades cotidianas de subsistência no mundo de
precarização do trabalho e de necropolíticas governamentais.

11 O WhatsApp envia mensagens de texto e de voz, imagem, vídeo e documento em PDF de modo instantâneo, além de possibilitar
Nesse cenário, o âmbito da casa e do trabalho assumiram o mesmo contorno.
-
fera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das

pandemia, as dinâmicas impostas pelo mundo do trabalho derrubaram de vez a


falaciosa promessa moderna em que se distinguia o público e o privado (CAE-

domésticos, as dimensões da vida se implicam dentro das casas.

É nesse espaço em que tudo ocorre ao mesmo tempo e misturado que a arte das
crianças se revela como potente recurso de um mundo outro para
além do isolamento, do medo do contágio e do que vem ou pode vir em decor-
rência dele. São essas experiências de ser/fazer que nos motivam, no cenário
de pandemia, a pensar e escrever este artigo com e a partir dos modos como

de ser mulher, mãe, cuidadora, professora e sobrevivente na necropolítica, as


mãos das pequenas estão constantemente sujas de tinta guache, giz branco ou
238
de cera desenhando múltiplas janelas que as potencializam a imaginar carnavais
particulares, a parte boa daquele delírio coletivo de suor e confete todo bem
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

pertinho, sem o suor, mas com as serpentinas imaginárias e a segurança possível


de estar #emcasa.

seus pares, que teceremos este artigo, que é apenas uma entre as múltiplas pos-
sibilidades de entrelaçamento narrativo, embebido das experiências e posicio-
namentos das pessoas pesquisadoras que ora o escrevem, sendo que uma delas
faz parte do grupo. Assim, interessa-nos saber como as mulheres inseridas em
seus contextos familiares trabalham e incorporam os acontecimentosexperiên-
cias com a pandemia nas artes cotidianas do cuidado com as crianças da casa
e das escolas.

O grupo com o qual dialogamos se constituiu por ocasião de um curso de pós-


-graduação, na área da educação, da Universidade Federal Fluminense, bem
antes da pandemia; mulheres de diferentes regiões se encontraram em uma sala
de aula e formaram um grupo de WhatsApp -
tivos e, especialmente, para trocar ideias sobre as pesquisas em andamento, para
se apoiarem sobre questões acadêmicas, ou seja, formou-se, para além de trocas
de risadas e de momentos de prazer entre amigas, uma rede de solidariedade.

No isolamento, tornaram-se comuns no cotidiano do grupo trocas não sobre


questões acadêmicas, mas sobre maternidade; diálogos entrecortados sobre “ter

jornadas de trabalho das que são mães, também porque há aquela que deseja ser

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em breve e a que ainda não se decidiu se ainda quererá. O tópico de discussão
serve, muitas vezes, de ponte para conversas outras sobre como ser e o que é ser
mulher nos mais diferentes espaços e papéis, momentos em que são expostas
angústias, alegrias, descontentamentos com o mundo social instituído que afeta
mulheres dos mais distintos modos, momentos em que falam sobre como resistir,
responder a isso ou simplesmente desabafam.

Artes de ser e de fazer no/do/com o cotidiano do 239


#fiqueemcasa
-
leirados em buracos rasos, que somos levados a pensar sobre práticas cotidianas
de mulheres ditas comuns, que se jogam na arte de fazer, com a reorganização
dos espaçostempos, a elas imposta pela pandemia, de suas casasescolas. Esse
nos parece um caminho a seguir pelos subsídios que nos fornece para pensar os
modos como as pessoas se expressam e o que fazem com o que lhes acontece

Nesses lugares polissêmicos, o corpo humano pode ser entendido como lugar

Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a todos os


outros lugares do mundo e, na verdade, está em outro lugar que não o
mundo. Pois, é em torno dele que as coisas estão dispostas, e em rela-
ção a ele – e em relação a ele como em relação a um soberano – que
há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um diante, um
atrás, um próximo, um longínquo. O corpo é o ponto zero do mundo,
lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte
alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico,
a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas

imagino. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é
dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópi-

locus de investigação, um
grupo de WhatsApp, e nas suas participantes: corpos que estão naquele espaço
e em tantos outros ao mesmo tempo, tudo junto e misturado.

O aplicativo, acessado pelo celular ou computador, tornou-se há alguns anos


espaço digital de muitos espaços e tempos. Privilegiado no isolamento forçado,
junto com outras redes sociais, nele são realizadas diária e ininterruptamente
240

afeto etc. Cada grupo parece se constituir como um espaço absolutamente outro,
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

cada um seguindo uma organização e ordenamento, contendo suas lógicas, o

formular para explicar as heterotopias, a justaposição de “vários espaços que,

com acontecimentos distintos daqueles delimitados pela linearidade histórica

e futuro), mas também a remoção das expectativas, necessidades, papéis e deve-

Nessas estranhezas em que corpos são deixados a morrer pelas necropolíticas


governamentais, buscaremos as sensações criativas de práticas heterotópicas ba-

À medida que nos movemos para o horizonte, novos horizontes vão

é justamente isso que tem de nos botar, sem arrogância e o quanto


.
Com o autor, vamos percebendo os movimentos de narrar o imaginado, a cria-

heterotópicos, frente as durezas dos números que não cansam de nos escanda-
lizar e criar covas rasas.

Com ousadia, colocamo-nos a pensar nos grupos de WhatsApp como exemplo


contemporâneo de cotidiano, lugar de estudo, trabalho, mas também de prazer

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e de invenção, em que se está e não se está, em que se pode ser um e outro,
assim como nos colocamos a pensar na casa, lugar instituído a priori como lu-

quando os olhos do trabalho entram pela tela do celular, tablete ou computador


e visualizam a professora juntamente com os portarretratos, as cores desbotadas
e buracos das paredes, os corpos mal ou pouco vestidos que passam por trás das
cadeiras ou ainda os gritos das crianças que, mesmo sabendo que a mãe está tra-
se a mamãe
talvez pensem.
241
Entre tantos aprendizados, confusões, desesperanças e surtos diários provocados
por este novo cenário, um alento! Pausa forçada na educação remota que nos
sufoca com mensagens que revelam esquecimento sobre a ordem dos dias da
semana, desmemoriadas sobre o conceito de domingos e de feriados: as docen-
param para apreciar um desenho das pequeninas
que, por não terem suas atenções, buscam ao seu gosto o que fazer. Por alguns
minutos, paramos qualquer plantão de notícias que parecem irreais ou tutorial
-
quenas na sua produção artística, capturadas, sem se darem conta, pelas câme-
ras de celular sempre a postos.

Para o alento sufocante do dia a dia da educação remota, momentos de captu-


ras tornaram-se rotineiros. Uma magia, um fascínio que não é só o da mãe que
acha lindo tudo o que faz a cria em crescimento. As imagens compartilhadas
no grupo despertam nossos olhos espertos que buscam decifrá-las ou deter-
minar os estágios de aprendizagem da criança criadora, mas o fato é que elas
rizomaticamente somem as nossas explicações. São momentos de alegria com-
partilhados e, talvez por isso, a sensação de deslocamento a um lugar outro,
imaginado e colorido.

Os desenhos contam histórias e, por que não, ensinam a fugir da lógica da


-

apropriação artística das outras mulheres que, em meio ao caos de suas vidas,
enxergam, nas folhas rabiscadas das crianças, a aprendizagem e muitos tons de
leveza para continuar o dia que segue e se emenda com a noite.

Trazemos, portanto, as artes de fazer das mulheres e das crianças. A arte que faz
parte das experiências de ser das crianças, inserindo-se muito espontaneamen-
te nas suas brincadeiras, a que permite às mulheres dar continuidade aos seus
processos de aprender agora que a escola está fechada e realizar outras tarefas,
sendo adotada como tática. A produção de desenhos é possibilitada pelas mães
para deslocar as crianças e, mais do que ocupá-las, permite às mulheres estarem
e produzirem com elas espaços de criação, inventividade e de imaginação.
242 Na ilustração a seguir, apresentamos, alguns desenhos feitos pelas crianças, de
diferentes idades, ao longo dos meses em isolamentos social. Observamos neles
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

representações dos mundos das crianças em distintas fases, desde a garatuja

musicais, exploradas mais a frente; também de participantes de um reality show


chamado Big Brother Brasil -
-
rior, à esquerda).

Por meio das produções, é possível termos ideia também do grau de elaboração
das pinturas, cores, traços, detalhes que demandam pensar no que se quer re-
presentar, como e por quê, quais cores usar, que tamanho cada elemento terá,

caos pandêmico, a arte se torna acontecimento heterotópico. Pela arte, é possí-


vel imaginar outro lugar no mundo ou fora de seus limites, agora todo ocupado
pelo medo, um lugar em que brincar, sonhar, imaginar ainda é possível mesmo
com a enxurrada de notícias estarrecedoras.
ILUSTRAÇÃO 1 – Mosaico de desenhos feitos no isolamento social

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


243

O espaço da casa agora precisa ser, mais do que nunca, o espaço das artes e é
com tal realidade que queremos aqui dialogar: de fazer comida contando histó-
ria sobre legumes, de fazer bolo com a ajuda das pequeninas, de inventar jogos
e mais jogos para passar o tempo, de criar castelos com tampinhas de garrafas
PET, de modelar com massinha colorida uma mensagem enorme de “mamãe,

cores primárias para fazer surgir as secundárias, tão desejosas de fazer surgir
mais colorido, como resultado de magia, feitiço ou encantamento.

Como são arteiras as mulheres e suas crias em isolamento social; precisam,


mais do que nunca, serem arteiras para produzirem artes e sentidos outros para
as palavras que buscam colonizar o cotidiano, que nem sempre são positivas.
Preferimos aquelas ligadas às traquinagens, subversões e molecagens do me-
nino/a danado/a que insiste em não descer dali. São e precisam ser espertas,
sagazes, engenhosas para reinventar suas existências, criando e inventando mil
aventuras em casa, produzindo artes e sendo travessas, com sutileza e sensibi-
lidade, com risadas emocionadas e escandalosas via áudio ou textos em Caps
Lock, capazes de calar as angústias de não saber para onde estamos indo. Não
sabem, mas as arteiras dão as mãos, completa e absolutamente higienizadas
com tintas, e vão juntas.

A tinta guache (re)colorindo o #fiqueemcasa


“Mamãe, vamos nos esconder?” -
gunda voz em um áudio sobre assuntos diversos – aquelas conversas em que
-

muito permissiva por criá-la assim opinativa, expressando livremente vontades e


desejos. Não raro se culpa por trabalhar além da conta e perder o crescimento
Maldito capital!, vira-e-mexe xinga a superexploração de seu corpo e de
sua força de trabalho enquanto movimenta-se para concentrar tudo em um úni-
244
co lugar de trabalho, pelo menos. Pelo sim ou pelo não, opta por educá-la com
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

No grupo, todas são professoras da Educação Básica, convivem, aprendem com-

anos, que inclusive fez aniversário durante o isolamento.

São pedagogas, cientistas sociais/sociólogas, historiadoras, todas formadas em

de nordestinos/as e nortistas que no Rio de Janeiro chegaram em busca de refú-

muita luta que antes delas vieram e se estabeleceram em lugares periféricos do


bonito estado do sudeste em que muitos/as sonham em passar férias. Todas têm
rotinas em mais de um lugar de trabalho, em distintos bairros da capital e de
outros municípios da Baixada Fluminense. São professoras ou coordenadoras
pedagógicas, além de serem alunas de pós-graduação.

como se não hou-


vesse aula remota amanhã

no mundo da sua pesquisa, pois não mais retornou. Flavs também sumiu, talvez
estivesse lendo seu referencial teórico. Bel passou a madrugada escrevendo arti-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


go. Assim terminou mais um dia para as mães, professoras, doutorandas, respon-
sáveis pelo cuidado do lar: “Por favor, desligue seu microfone. Tem uma criança

Completamente exaustas, descansam ou desmaiam na cama? Não parece im-


portar, pois o trabalho as despertará às cinco, seis da manhã para maquiar a 245
casa e o rosto antes de aparecerem na tela para interagir com alunos/as. Mesmo

tendo pesadelos sobre como fará isso, no Fundamental I, pois tem alunos/as com
necessidades educacionais especiais, como autismo. Como fará não sabe, mas
trabalhará, pois precisa. O batom também nos parece livre de dúvidas; mesmo
que não gostasse, não poderia aparecer na tela de qualquer jeito, descabelada
ou com remelas.

Falamos aqui de mulheres responsáveis pelo sustento de suas casas e de familia-


res, sozinhas ou com seus maridos e amigas, o que corrobora com uma pesquisa
realizada pelo Observatório da Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, em

homens e mulheres responsáveis pelo sustento da casa (isoladamente ou de for-


-
No entanto, o orçamento doméstico já era assumido por mulheres antes. O fato de
-

que leciona vivem sob ameaças constantes de terem seus tempos reduzidos a
-
trinadoras que carregam outro vírus, o disseminando-o por meio
de lavagem de cérebros em prol do comunismo. Não raro, tais agentes alegam

se quer para o Brasil, que deve ser pautada em números, tecnologia.

-
ções de seus muitos/as alunos/as, programar o envio de e-mails em massa para
as turmas com mensagens de estímulos que o coordenador pediu e pensar nas
atividades das disciplina que serão dadas na semana, isso tudo sem esquecer de

246
ilustram um pouco da rotina da pequena insone com a arte.
TÍTULO

ILUSTRAÇÃO 2 _ A filha insone de Gabi


A escola remota parece uma live
espaço de, no mínimo, nove: suas seis escolas, além de ser o espaço da escola

perspectiva, criar espaços utópicos com o cavalete de desenhos nos parece não

seu banheiro com avisos sobre notas não lançadas e diários não preenchidos no

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


isolamento. O cavalete serve como modo de acompanhar o desenvolvimento da

da menina.

inconfundível, decifrá-las não para os diários escolares ou para avaliá-las com

ativando sua imaginação, retirando-a do mundo do capital maldito, do álcool


em gel, do vírus, do tal de novo normal... de tudo. Por um momento, ambas se
247
convertem em estado de folia.

O estado de folia na casa


de Flavs se materializa em uma parede azul, ou melhor meia parede azul e che-

Bel. A história dessa parede é incrível, pois nos parece a tentativa de criação de
um lugar fora de todos os espaços da casa, o outro lugar, ainda que nela, ainda

sair para comprar apenas itens essenciais para manter sua subsistência, muda
sua rota do mercado para uma loja de tintas, e nela compra uma lata de tinta
azul, inconfundivelmente azul, uma que já é própria para que crianças risquem,

Não podemos deixar de lembrar dos lendários tapetes voadores do Oriente dos

lugares de utopia. Chamativa, inconfundível, tentadora e convidativa, parece


berrar assim como o tapete nos convida para
dar uma volta pelo céu. Claro que, em uma das fotos, perfeitamente se vê o giz
saindo dos limites do azul, que é inconfundível. A partilha de alegrias em cliques
já era tão parte do grupo que é óbvio que alguém se perderia tanto na belezura
da foto a ponto de reparar a rebeldia do pintor.

Na ocasião, também nos colocamos a imaginar, seguindo a vertente engraçadi-


nha-mas-intelectual, comentamos o quanto que era sensacional a indisciplina
do pequeno arteiro e que esta parecia ser um traço humano, a não aceitação

pequeno de ousadia lá no limite entre o permitido e o proibido. Por mais lindo


que seja o espaço, a imaginação e a capacidade de desenhá-la ultrapassa a meia

alergia.

O guri apenas estava desenhando a sua casa como a imagina, com janelas,
chaminé, plantas na frente, mas o grupo é de , prati-
248 cantespensantes, -
nar muitas possibilidades para a imagem: o corpo do pequeno não se deixaria
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

disciplinar pela mãe pedagoga tão facilmente e Bel, no seu momento visitante
do museu cotidiano do WhatsApp, imaginou que o guri pensava algo como nin-
porque o original mesmo foi um exemplo
clássico do falar cariocado cheio de palavrões nas vírgulas. Normal, o nosso
normal, que nada tem de novo.

De súbito, voltamos a falar sobre assuntos acadêmicos que estavam na ordem do


dia porque as mensagens não cessam e invadem os limites da nossa parede azul,
que tanto nos aconchega na dureza dos dias que já não sabemos quais são, só
sabemos que parece que trabalhamos mais. Digo voltamos, mas nunca deixa-

Os jeitos que misturamos nossas teorias e conceitos favoritos aos mais triviais
assuntos é uma das coisas mais bonitas e engraçadas do grupo. Talvez o simples
fato de escrever isso escandalize até os murais pomposos que anunciam defesas
sérias e sisudas nas paredes das universidades, mas é um elemento importante
na nossa central de apoio acadêmico. Entre um áudio e outro de “meninas, me

ILUSTRAÇÃO 3 _ A parede azul do filho de Flavs

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


249

Fonte:

-
po de visão enquanto estuda. Só que, assim como, em nossas casasescolas, so-
mos transportadas magicamente para lugares outros por meio da imensidão azul,
Flavs estuda, mas também pega carona no tapete voador possibilitado por ela ao

nossos estudos entrecortados pelas análises das criações das nossas arteirinhas.

A viagem acaba quando começamos a falar sobre o conteúdo das lives do Se-
cretário Estadual de Educação (RJ), Pedro Fernandes Neto. Parece que ele só se
comunica assim agora e o que diz não dá vontade de rir, embora pareça piada:
enviar exercícios por SMS para as turmas que, muitas vezes, sequer aparelho
de celular têm e lutam para conseguir lavar as mãos, em lugares onde a falta de
uma de suas mensagens no WhatsApp.

Na casa de Bel, o chão e a


agenda, ou planner, é que se tornam outros espaços, tornam-se acontecimen-
tos. Segundo narra, a pequenina gosta de montar legos, brinca com tampinhas
de garrafa PET, risca agendas, espalha papel, mas ama mesmo destruir o que

legos, todo certinho, tudo

-
coisas. Falaram um pouco sobre a
visão adultocêntrica que depositamos sobre as crias, no sentido de colocar nelas
o peso das regras a seguir e jeitos únicos de brincar. “Isso... dos nossos corpos

memórias do
250 cárcere, como podemos ler no rodapé da agenda, agora personalizada especial-
mente para a professora.
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

ILUSTRAÇÃO 4 _ Memórias do cárcere da afilhada de Bel

Fonte:
. -

distante do toque e do espaço do abraço, das brincadeiras em que temos a cer-


teza de que o corpo é topia

papel, imaginamos que é como se estivessem juntos novamente, as cores sujam,

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em um ótimo sentido, o branco sem graça da folha e aproximam os corpos dos

Big Brother Brasil e


o , as quais revelam o espaço heterotópico aberto pela televisão para

não acompanhava o programa passou a saber tudo sobre seus personagens, par-
251
ticipava das festas, comentava os acontecimentos e berrava com as eliminações
dos menos favoritos. Ouvíamos parte da vizinhança berrando e batendo palmas,

um reality show

ILUSTRAÇÃO 5 _ Os sensacionais desenhos do sobrinho de Vivi

Fonte:
Talvez o sobrinho dela tenha entendido um pouco melhor o que era uma pan-
demia e o que é necessário para superá-la ou vencê-la em comparação com as/
os demais arteiros/as por conta de sua idade. A percepção ganha ainda mais

integrantes de diversos países do mundo, muito famoso entre o público infantil,


que teve que adiar sua turnê, que passaria pelo Brasil, em março, por causa da

dessas interações com a televisão aberta o tempo todo e com a escola que, ago-
ra fechada, não o deixa ver suas amigas, amigos e professoras. Talvez só esteja
entediado com tudo e com muita saudade de ser arteiro em sentidos outros,
arriscamos dizer quando nos imaginamos crianças arteiras com muito potencial
para a molecagem.

A arte de concluir o que ainda está em acontecimento


Ainda estamos em casa, as artes ainda
252
nos transportam para momentos de alegria e risadas tão frouxas quanto as más-
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

caras dos governantes negacionistas, os quais seguem largando a própria sorte


de luxo. Ainda não estamos
de volta aos transportes superlotados que pegamos em dias comuns de trabalho,
no que chamávamos de rotina, mas já circula a notícia de que as aulas presen-
ciais retornam em outubro.

-
guntar o que seria se os que morriam antes são os que continuam morrendo, se
os/as professores/as, como nós, que eram massacrados/as antes pela opinião pú-
blica continuam sendo por aparentemente serem frescurentos/as e adeptos/as à
vadiagem por se recusarem a arriscar suas vidas e de suas/seus alunas/os em um
retorno escolar pensado para dar conta do delírio governamental da imunidade
brasileira ao vírus – surrealidade que para muitos/as parece trazer algum tipo de

Estranhos tempos, estranha doença. Enquanto isso continuamos com a “soro-


educação remota a todo o vapor, nossas relações afetivas na corda bamba da
volatilidade das emoções nesse contexto... tudo segue em modo de resistência

Estamos exaustas, mas transformamos em confete e serpentina tudo o que pode


parecer pequeno perto de uma palavra horrenda e assustadora como pandemia:
-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nhas, compartilhar virtualmente a sensação gostosa que é sentar-se para relaxar
tomando uma bebida com gosto de malte enquanto as/os demais moradores/as
dormem ou de transformar a lavagem de legumes em um grandioso aconteci-
mento para as crias.

Nossa rede de apoio também tem desconhecido a ordem dos dias da semana e
o conceito de domingo e feriados e isso é um efeito da pandemia também. O
grupo comprova que um mito das mulheres serem competitivas entre si foi cria-

problemas dos mais diversos, Bel complementa. Estamos exaustas de tudo e ain- 253
da temos que lutar contra a ideia muito bem estabelecida de que nos odiamos.

Nessa bonita conversa sobre a solidariedade ativa entre nós, todas se manifesta-
ram e se expressaram sobre experiências enlouquecedoras que nos atravessam
enquanto mulheres porque, como analisamos aqui, ousamos existir e não nos
privamos de frequentar espaços para além dos limites impostos. Sonhamos e
colocamos os sonhos em prática com a ajuda de tantas outras. Somos como o

estamos ajudando outras a colorir espaços, enxergar cor onde parece não ter.

No mundo de faz de conta dos Bolsonaros, mulheres arteiras precisam ser si-
lenciadas à força para não servirem de exemplo para as que infelizmente já
tiveram suas vozes roubadas antes mesmo de a ouvirem soar. Não sabemos,
de fato, como tudo terminará e quando sairemos novamente de casa para além
de comprar e fazer o essencial, mas, com nossas artices e risadas escandalosas,
avançamos e seguimos tentando avançar, de preferência, vivas.
Referências
A Condição Humana -

guest/censo-escolar

Pronunciamento do Senhor Presidente da República, Jair Bolsonaro,


em cadeia de rádio e televisão,
em:
#brasilcasadetodosnos -
do pelo canal Brasileiros em Wuhan. Disponível em:

CAETANO, M. Performatividades reguladas: heteronormatividade, narrativas

CRISE da água veja perguntas e respostas sobre o tema. G1 Rio. Rio de Janeiro,

254
FEBRABAN-IPESPE. Pandemia fortalece estruturas familiares e dá mais poder às
mulheres, aponta Observatório FEBRABAN.
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

Disponível em:

Cidade Maravilhosa.
-
ponível em:

O corpo utópico, heterotopias

-
-

O Estado de S.
Paulo, . Acesso em:
Bum bum Praticumbum Prugurundum. Sam-

Jornal LabCidade. Disponível em: . Acesso

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Em defesa da escola: uma questão pú-

MBEMBE, A. Necropolítica – biopoder, soberania, estado de exceção política


da morte. Arte & Ensaios – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ

-
troa. UOL Notícias. Saúde -
vel em:
- 255
cipatório dos currículos ‘pensadospraticados’ pelos ‘praticantespensantes’
dos cotidianos das escolas. In
Currículos, pesquisas, conhecimentos e produção de subjetividades

Foucault e Educação
11.

256
TÍTULO
VESTIDO,
QUIMONO
E PERUCA

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


PRODUÇÕES
NARRATIVAS E
IMAGÉTICAS DE SI:
ROSTIDADE E
PROFESSORAS 257

EM DEVIR
Maria da Conceição Silva Soares
Simone Gomes da Costa
Maria da Conceição Silva Soares
Simone Gomes da Costa

“Se quer seguir-me, narro-lhe;


não uma aventura, mas experiência,
a que me induziram, alternadamente,
séries e raciocínios e intuições.
Tomou-me tempo, desânimos, esforços.
Dela me prezo, sem vangloriar-me”
(ROSA, 2019, p. 69).

258
Ao lançarmos mão da frase do narrador-personagem do conto O espelho, de
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

compartilhamento pelo leitor das experiências narradas por professoras sobre as


suas formações docentes, entremeadas, indissociavelmente, por seus sonhos e
trajetórias de vida, a partir do recorte e do registro de alguns fragmentos destas
narrativas que aqui tivemos o critério de transcrever. Para tanto, nos debruçar-
mos sobre a pesquisa em andamento intitulada
1
,
cuja proposta consiste na criação de espaçostempos para, através de fabulações
imagéticas sobre si, simultaneamente, interrogar, refuncionalizar, potencializar,

sobre o feminino e a docência, suas potências e invenções, e, dessa forma, por


tabela, problematizar o sistema corpo-genêro-sexualidade. Interessa compreen-
der como nessa tessitura de estéticas de existência se estabelecem articulações

1
entre saber e poder, se exercitam relações de força e se constituem as disputas

contextos de formação e com as redes curriculares tecidas cotidianamente e,


com isso, criar espaçostempos para produzir com as mulheres que participam
da pesquisa novas/outras imagens de si e outras/novas imagens para pensarmos

das professoras, nos quais elas decidiram como se darão a ver, como querem ser

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vistas e ouvidas, pode se constituir em um espaçotempo para que esses objeti-
vos, juntos e misturados, sejam exercitados.

Neste artigo, vamos nos valer do conto rosiano O Espelho


aproximação e buscar decantar das experiências narradas pelas professoras par-
ticipantes da pesquisa os conceitos de rosto e rostidade desenvolvidos por De-
Mil Platôs. No conto, o narrador é surpreendido por

imediato, de pronto, não se reconhece nela. Sua reação diante da imagem que

259
remeteu, de saída, ao conceito de rostidade dos autores. No decorrer da história

limitações próprias do olhar, -


xões, série de raciocínios e intuições, a sua experiência em uma procura do eu
A seguir, nas palavras do escritor, o seu espanto inicial:

Dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em


ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi
-
sivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me
ódio e susto, eriçamento, pavor. E era – logo descobri... era eu mesmo

não é invólucro exterior, mas


-

são inscritos e também se escava o que a subjetivação necessita para


atravessar. É esboçado no , onde inscrevem-se os signos, e no -
co negro, necessário para processos de subjetivações, paixões e redundâncias.

contundente, pontua que


produção

frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutrali-


-
ções conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, cons-
ciência ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos
não formassem lugares de ressonância que selecionam o real mental
ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme a uma realida-
de dominante. O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo

-
cesso, reconhecer-se nele, pensamos ser possível relacioná-lo à projeção da ros-
tidade. Uma imagem constituída pelos processos da a partir
260
às relações
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

de poder. Daí o não reconhecimento por parte tanto do personagem do conto,

apresentadas neste trabalho, ao narrarem fragmentos de suas experiências e tra-


jetórias docentes em contextos que a remeteram à ação deformadora da engre-
nagem da
não a esperamos nos meandros de um adormecimento, de estado crepuscular,
de uma alucinação, de uma experiência de física curiosa
Rosa, mediante a narrativa de seu personagem, adverte aos incautos:

Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, dis-


traído das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas no rosto?

-
riam, justamente, os que operam as inscrições da rostidade, como proposto por
as máscaras moldadas no rosto?! A superfície onde

expressão, nem os dinamismos ?

Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade,

branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-


-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que
o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Não esperemos que a máquina abstrata se pareça com o que ela pro-
duziu, com o que irá

Buscamos destacar em nossos trabalhos as praticantespensantes dos cotidianos,


por entendermos, em acordo com a linha de pesquisa à qual nos associamos,
a relevância dos que as mesmas produzem em suas respectivas
práticas pedagógicas e os modos como vão se constituindo como professoras.

em rede possui, além da habilidade desenvolvida junto a sua formação inicial,


as tramas vivenciadas em suas trajetórias de meninas, mulheres, alunas, mães, 261
professoras e pesquisadoras. Interessa-nos, ainda, pensar como o emaranhado
espaçostempos
das escolas, do fazer pedagógico e das aventuras do Em acordo
com os movimentos sugeridos pelas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, faz-se
de grande importância, indispensável a incorporação dessas praticantes.

Nesse movimento, o mais importante nas pesquisas nos cotidianos é


praticantespensantes com suas memórias
de suas tão diferentes criações culturais e curriculares tratando dos
“ -
vas, como resposta a suas necessidades cotidianas, com seus modos de
compreender o mundo e nele agir, nas tantas redes educativas que for-

Trazemos para este artigo três professoras que se dispuseram a participar deste
-
cas, feitas em estúdio montado pelo grupo de pesquisa, se autoapresentando
do modo como desejam ser representadas. Esses fragmentos e imagens con-
à problematização da máquina abstrata de
produzir rostos, incluindo-se aí o rosto-professora. Tatiana, Shênia e Anna Paula
são professoras de diferentes segmentos da educação e, ao narrarem episódios
pontuais de suas trajetórias de vida e formação, nos oferecem as pistas para
compreender o funcionamento, a maneira como opera esta engrenagem polí-
tica. A partir da reação
suas imagens, seus rostos, seus corpos, seus cabelos ou suas vestimentas, ou
seja, pelo efeito causado no outro diante de seus modos de existir, podemos
-
-
tivam a existência, o modo como cada uma delas fabrica estética de existência,
sua produção de si e de mundo táticas (CERTEAU,
espa-
çostempos do pedagógico.

262
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
O vestido _ Tatiana

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Imagens do acervo da pesquisa. Foto: Maíra Mello

Meu nome é Tatiana, sou professora de Artes. Eu comecei a lecionar

um ano e retornei ao ensino público onde, desde então, dou aula nos
turnos da manhã e tarde, para as turmas de fundamental I até o ensino
médio. Eu tive várias experiências com crianças, até adultos, porque 263
na EJA a gente pegava principalmente idosos retomando o ensino.
Diante disso tudo, eu já tive várias experiências de boas até experiên-
cias ruins. Começando pelo fato de que eu não queria ser professora,
apesar de ser formada em artes visuais, eu nunca pensei que eu iria
ser professora. Eu prometi para mim mesma no fundamental I que
jamais eu voltaria a pisar numa escola. Não foi o que aconteceu, né?!

-
te a capacidade que eu, como professora, tinha de mudar a vida de
alguém. E foi a partir daí que comecei a enxergar a educação de ma-
neira diferente, em que eu poderia estar no comando da sala de aula,
que seria do meu jeito, porque desde pequena falava que nasci para

de mandar e não de obedecer, como quando fui criança, quando eu


sofri e tinha que seguir o padrão da escola, percebi que eu,
como professora, seria diferente. Isso fez com que eu seguisse fazen-
do pós-graduação em arte-educação e tentasse os concursos públicos

Na escola pública, no fundamental, onde eu cursei o primeiro ano


até a oitava série, até mesmo no ensino médio, não tive uma visão
de professor como alguém que me incentivasse a fazer alguma coisa.
Eu sofri muito preconceito em relação a uma síndrome que eu tenho,
que traz uma deformação craniofacial e afeta a audição. Eu usava
aparelhos auditivos desde um ano de idade e até entrar na faculdade,
o aparelho auditivo era extremamente visível, parecia um walkmen,
era uma coisa meio assustadora. Então, as crianças não queriam se
enturmar, nem eu mesma queria me enturmar com outras crianças

, preconceito, porque eu mesma fui sentir isso na pele, en-


tender o que era o preconceito, entender que o era algo que
poderia me afetar na vida, eu já era adulta.

que não queria ser professora – no último período, fui procurar está-
gio e eu teria que ter contato direto com o cliente; clientes de uma
classe social alta, era design de interiores e eu não consegui nenhum
estágio, porque todas as empresas foram bem claras em dizer que a
minha aparência física iria afetar o contato com o cliente, o contato
com o fornecedor, com depósito, então, apesar do meu currículo ser
bom para eles, a minha aparência física não era. Foi quando eu falei:
“o que eu vou fazer para mudar? Não tem como eu mudar minha

Aí eu parei para pensar, eu já tinha dado aula, sofri preconceito na


época que eu era aluna, mas como professora eu nunca tinha sido
questionada, nem por meus alunos, nem pelos meus colegas de tra-
balho, sobre o que é que eu tinha, se isso ia atrapalhar meu traba-
264 lho. Claro que tem alunos que são curiosos e perguntam: “Tia, o que
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

capacidade de trabalhar no meio disso tudo. Foi quando eu decidi


abandonar essa segunda faculdade no último período mesmo e me
dedicar à sala de aula. Daí resolvi mudar esse conceito de
e preconceito de todas as áreas, seja um preconceito em relação à
aparência física, a gênero, à sexualidade, cor, raça, entre várias outras
coisas, e isso é um tema que eu abordo semanalmente nas salas de
aulas. Não é de vez em quando, é semanalmente, e tá sendo mais
natural do que foi na minha época, quando o professor não podia
nem parar para falar o que era. Eu tive uma professora que disse que
eu tinha que aprender a lidar com isso, principalmente os alunos, os
colegas xingando, batendo, botando apelido, a culpa era minha. Já
disseram que se eu nasci assim era porque meus pais cometeram pe-
cado no passado. J têm que
andar juntas e não todo mundo junto. Agora, comigo em sala de aula,
é o contrário, todo mundo tem que andar junto, independentemente
de qualquer coisa.
As duas escolas em que trabalho – uma próxima da outra e também
uma mais violenta que a outra – têm um problema muito sério que é
a religião; a religião predomina na comunidade. Tudo que eu, como
uma professora, quero trabalhar, tem que passar pela comunidade an-
tes. Uma vez eu fui dar aula, era em março desse ano, eu estava com
um calor desses, a escola sem estrutura, sem ventilador, mas jamais

lá no intervalo eu fui comunicada pela pedagoga que uma mãe me


viu acompanhando os alunos até a sala de aula e falou que tinha uma
piriguete dando aula, porque estava com um vestido curto. Então eu
conversei com a escola e ninguém me falou para ir mais com esse
vestido, porque a mãe não aprovara. Eu não me preocupei mais em
relação à roupa, mas me preocupo em relação ao que a comunidade
pensa da gente. Já questionaram a diretora sobre qual processo o pro-
fessor passa para estar lá. “É a diretora que chama?
que a diretora vai na rua e cata um professor.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A professora Tatiana não atribui a sua escolha pelos espaçostempos escolares às
boas recordações de seu tempo de escola, assim como sua formação em artes vi-
suais também não despertou nela o desejo do exercício docente. Ao longo de sua
fala, vamos percebendo um pouco do caminho percorrido em seu processo de
formação e o momento que percebe que sua presença nos espaçotempos escola-
res, na condição de docente, poderia ser um lugar de produção de
outros ao abordar temas como discriminação e preconceito, diferente do que
vivera na sua experiência como estudante. O lugar de poder que passou a ocu- 265
par não seria exercido com práticas de repetição do que vivenciara; ela escolhe
tratar sobre situações que abordam a diferença não como elemento de produzir
exclusão, mas com a abordagem constante sobre o tema para buscar despertar
em seus estudantes a possibilidade de pensar a diferença como potência.

A relação com a comunidade escolar, apresentada em sua fala, destaca os li-


á temas que
não podem ser apresentados por supostamente representarem uma oposição ao
pensamento dos religiosos que fazem parte do entorno.

que não atende aos enquadramentos do rosto professora

se repensar tais critérios quando as docentes que compõem a instituição não


possuem o rosto que a máquina abstrata o reconhece como pertencente a uma
professora. O currículo aqui entendido como o conjunto de saberes que com-
põem o fazer escolar deve se enquadrar no rosto aluno. A professora Tatiana não
O quimono _ Shênia
Imagens do acervo da pesquisa. Foto: Maíra Mello

Eu brincava de ser professora, mas eu não tinha o sonho de ser profes-


sora. Pobre não tem o sonho de ser nada. Eu estudei no ensino médio
o curso técnico de contabilidade para ser auxiliar de contabilidade

uma cidade pequena, do interior, Nova Friburgo. Sofri muito precon-


ceito lá porque eu não sou apenas homossexual, eu sou homossexual
que dá uma mancha, uma pinta enorme. Perdi o meu primeiro empre-
go por conta de ser homossexual e aí vim para o Rio de Janeiro (...).
-
266
ria trabalhar com tradução, por isso escolhi Português/Inglês, mas aí é
fogo, quando entrei na sala de aula para dar minha primeira aula, aí
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

f*** u de vez! Não existe um lugar que eu me sinta melhor que a sala
de aula e é por isso que é o lugar onde eu sou mais sapatão (risos),
porque eu me sinto muito confortável, eu me sito à

eu sinto falta, mas é impossível eu não ser eu mesma lá.

Eram professores que faziam comigo, a própria direção che-


gou a me chamar só porque eu estava conversando com uma amiga
no banheiro; daí eu fui chamada pela direção do colégio porque en-
tendiam que eu queria experimentar coisas novas. Eu dizia assim: “eu

e isso foi muito difícil e foi assim a vida toda. (...)


Um dia, minha mãe foi me procurar na ginástica olímpica e eu não

meia turma que tinha implicado comigo. E aí eu gosto muito do meu


quimono porque não tem quimono feminino ou masculino, não exis-

gente separou: mulher compete com mulher, homem compete com

só e a gente tem um código de honra que a gente chama de “Dojo-


-
lavra hitotsu,
são importantes, não existe uma coisa mais importante que outra e o
primeiro de tudo é respeito; respeito e cortesia. Então, quando você
veste um quimono e entra no dojo, você não é um homem, você não
é uma mulher, você é uma pessoa, e você precisa do outro. Se é mu-
lher, se é homem, se é criança, o respeito é sempre o mesmo. Então,
essa coisa de você se despir da sua sexualidade – porque você se
despe mesmo da sua sexualidade – para você virar uma coisa com os
outros, com um conjunto, isso faz eu me sentir muito bem. Mas é por
isso que o quimono é muito importante para mim. Foi lá que eu me
senti mais respeitada, foi lá que eu resgatei minha autoestima, que eu
entendi que os corpos não são mostrados, eles são respeitados pelas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


suas idades, pelo que eles podem fazer, pelo que eles contribuíram

é boa porque você serve para me ajudar a crescer também e esse é o


princípio da educação freireana, aprender com o outro o tempo todo,

homem que é o melhor. Por isso, para mim, isso é tão representativo,
eu coloco isso aqui e acabou, eu sou só a Shênia.

O quimono é uma peça relevante para Shênia, porque ele borra a imagem que
-
cessários à não
267
espaçotem-
po em que as relações pessoais e de poder não se produzem e se reproduzem

(...) a máquina abstrata de rostidade assume um papel de resposta


seletiva ou de escolha: dado um rosto concreto, a máquina julga se
passa ou não passa, se vai ou não vai, segundo as unidades de rostos
A peruca _ Anna Paula

Imagens do acervo da pesquisa. Foto: Maíra Mello

-
do eu cheguei na faculdade, eu me apaixonei pela educação infantil,
então eu me intitulo professora de educação infantil, eu não me inti-
268 tulo professora no geral, apesar de já ter dado aula em (escola) parti-
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

Eu achei uma escola na zona sul de classe alta que estava precisando
de uma estagiária, e como era uma oportunidade que seria mais “fá-

no estilinho padrão e esse jeito mega-fofa que eu falo quando estou


muito à vontade. Aí eu entrei como estagiária e almejava ser profes-
sora lá dentro, mas realmente era muito difícil, era uma escola super-
concorrida e todo mundo sempre falava: “é impossível, é impossível,
é impossível! Só que é impossível, por quê? As outras estagiárias – e
isso é horrível dizer – mas a maioria das estagiárias eram “fora do

isso fazia com que elas não pudessem ser professoras lá, e isso eu não
entendia na época, porque tinha muita gente lá que era muito boa, só
que era negra e não podia ser professora. É ridículo isso. E lá nessa es-
Só que quando eu virei professora, foi o ápice da minha vida, foi o
-
tável, na época eu não tinha noção de onde estava me metendo, eu
não enxergava aquilo da maneira que realmente era, eu conversava
muito sobre o meu papel dentro da escola e estava em êxtase. Na
época – eu sempre quis – eu pintei o cabelo de laranja, eu era profes-
sora dessa escola, classe A, da zona sul. Assim que eu pintei não teve
problema nenhum. A minha coordenadora falou que estava bonito e
tal, dá aquele charminho, só que depois de mais ou menos um mês
começou um clima estranho, ela começou a dar uma ignorada de
leve, eu sentia que ela não estava me tratando mais como ela me

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


tratava. Um dia, eu cheguei na sala dela para conversar sobre um
assunto lá da escola e ela falou para mim com todas as letras que eu
teria que pintar meu cabelo de volta, que meu cabelo laranja não era
natural; ela usou outras palavras: “não existe gente que nasce com os

“Não, mas é muito mais comum, porque você não pensa num loiro,
num platinado? Aí eu falei: “Porque eu não gosto, simplesmente por-

para uma pessoa que acabou de ter o sonho realizado de ser profes-
sora, ouvir uma coisa dessa. Eu era muito novinha, então naquele
momento eu me vi num dilema, porque assim que eu entrei para

como mulher, como professora e quando eu me vi naquela situação, 269

e falei assim: “Não, vou pintar meu cabelo com paz na minha mente
para que eu possa conseguir continuar nessa escola, que é uma coisa
que eu quero agora, isso não vai me mudar
mesma, pintei o cabelo. Isso foi no mês de junho; em dezembro, eu
fui demitida. (...) Depois que fui demitida, fui procurar outro empre-
go, batendo de escola em escola, sempre procurei ocupar o espaço
de professora de educação infantil, porque é quem eu sou, eu sou
professora de educação infantil e quando eu chegava nas escolas as
pessoas perguntavam: “Será que você não quer uma turma maior?
-
sim: “Será que para ser professora de educação infantil você tem que

de altura; não sou enorme, mas sou grande pra dar aula pra criança
pequena, tem gente que acha estranho. Eu fui nessa escola que eu
trabalho hoje em dia, que foi a escola que eu estudei e eu ouvi isso
de novo. Eu estava tentando convencer a minha diretora que eu servia
para fazer aquele papel, falei dos cursos, da experiência, da pesquisa,
a convenci! Beleza, na época não tinha turma de maternal e ela resol-
veu me colocar no pré (pré-escola). Fiquei um ano no pré e voltei para
o maternal. Aí quando eu voltei pro maternal, volta essa questão do
pais estavam reclamando de mim, porque achavam que eu era muito
distante das crianças, sendo que nessa escola nova que eu trabalho,
os pais não entram na sala de aula, eles não circulam, eles não veem
o que está acontecendo. Só que eles viam só na entrada e na saída e
eles achavam que eu era distante das crianças. Essa era a palavra que
eles usavam. E quando a irmã que é diretora (lá é uma escola católica)
Aí respondi que

Eu: “Não! Aí ela falou: “Não sei se você sabe como é que lida com
criança...
que entrei na faculdade; cinco anos estudando sobre educação in-

estudou sim, claro, mas às vezes o tato com crianças tem que ter um
tom maternal, de mãe, de cuidado, de ser mais próxima à

Para ser professora de uma instituição de ensino, a candidata à vaga deve mos-

passou a entender do que se tratava. Reparou entre suas colegas quem não tinha
270
os traços que a da rostidade indicada para ocupar a posição
tão desejada naquela escola, isso incluía seu cabelo, que depois de um tempo,
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

e, consequentemente, foi demitida. Ao buscar outra instituição, novamente sur-

representante da instituição, para atuar com aquelas crianças, para convencer


aqueles adultos da sua condição, do seu rosto de professora.

o si e o mundo são

por sua vez, mergulhados num processo de transformação permanente. Des-


se modo, professoras se formam e são formadas, são produtos e produtoras de
mundos, engendradas num processo permanente de transformação, escapando
ao rosto e à -
(...) se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto

por um retorno à animalidade, nem mesmo pelos retornos à cabeça,


mas por devires-animais muito especiais, por estranhos devires que
certamente ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros, que
farão com que os próprios traços de rostidade se subtraiam à organi-
zação do rosto, não se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas que
escoam no horizonte, cabelos levados pelo vento, olhos que atraves-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-

a vida é “experiê
nos cerceia, nos soterra. Podemos, assim, pensar as possibilidades de ultrapassar
os muros e escapar dos buracos negros.

em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte —


exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obs-

271

Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em


( ). Sim,
destruímos essa concepção nos valendo da fabulação que contribui para nos-
sos processos de subjetivação, nossos processos de formação, além de ousar a
pensarmos em professoras que vão além do rosto, que fazem de suas trajetórias
experiências de produção de mundos, escampando pelas brechas das amarras
limitadoras da rostidade.
Referências
-
In -

Estudos do cotidiano, currículo e formação docente:

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano:

Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.

do devir-mestre. Revista Educação & Sociedade

A Invenção de si e do mundo.

272 Revista Digital


do LAV, [ http://dx.doi.
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA

In: Primeiras estórias


(DES)CAMINHOS * :

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


AS IMAGENS-CARTAZES
POTENCIALIZANDO A
VIDA COLETIVA COM
AS APRENDÊNCIAS
INSURGENTES NA 273

DIFERENÇA

12.
Juliana Paoliello
Priscila dos Santos Moreira
Alba Jane Santos Lima

Caminhando.
Além disso, traz fragmentos da literatura brasileira e músicas na composição desta escrita.
Juliana Paoliello (UFES)
Priscila dos Santos Moreira (IFES)

(DES)CAMINHOS: cortes-linhas da insurgência


e da produção do desejo na diferença

No novo tempo,
Apesar dos castigos!
Estamos em cena...
Estamos na rua...
Quebrando as algemas...
Pra nos socorrer...
274 (Ivan Lins)
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

FIGURA 1 _ Polifonia secundarista

Fonte: Disponível em:< -


na-pelo-poder-entre-governo-e-psdb https://jornalggn.com.br/educacao/
cinegnose-ve-o-futuro-em-escola-ocupada/
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
A escola é nossa! Ocupamos ela! Em defesa da educação! O Estado não pode
Entre tantos outros enuncia-
dos, os cartazes entram em cena nas ruas brasileiras com a força de um coletivo
estudantil (resistindo aos ataques e algemas) e gritam polifonicamente palavras-
-
-tempos escolares, que insurgem num contexto real social em que as políticas

constituição dos possíveis. 275

e resistia às lógicas sedimentares do Estado. O corpo estudantil, engendrado


com as intensidades das famílias, professores, artistas, intelectuais, invocava um
movimento de resistência que desestabilizava a racionalidade predominante
acerca das escolas e dos estudantes que nelas estudavam.

A insurgência praticada pelos estudantes secundaristas nos chama a atenção


para uma reinvenção nos modos de criar que impactou, sobretudo, nossos go-
vernantes, quando esses alunos protestaram ocupando um lugar, legítimo, da-
queles que compõem-habitam o território escolar.

Potencializar o que docentes e discentes têm produzido em movimentos que

como forças para capturar as singularidades é, portanto, apostar nos possíveis


que as subjetividades produzidas em meio às insurgências são capazes de efetuar.
(DES)CAMINHOS DOS DESEJOS...
Seguindo por diferentes pontos

“O sertão é sem lugar”.


(Guimarães Rosa)

O território escolar se constitui como espaço micromacropolítico1


de singularidades, afetos, agenciamentos, devires, intensida-
des, desejos... Desejos que agenciam todos os que povoam a instituição educa-
tiva, tecendo intercâmbios com outros campos do plano social. Desse modo, o
desejo aqui descrito se atualiza por sua condição de produção e não pela condi-

produções desejantes.

276 -
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

pensamento ocidental que adotou o caminho da ausência para pensar o desejo.


Isso muda radicalmente nossa concepção de desejo herdada desde Platão para
uma concepção do desejo como uma construção coletiva. Desejo é sempre um

Desejar é insurgir!

Somos máquinas desejantes. “Máquinas acopladas a outras máquinas, máquinas

O desejo inscrito com as intensidades (afetos e afecções) bifurca-se como ma-


téria de expressão e modos de existência. Por existência, entendemos aquilo
que diz respeito ao modo de sentir, “[...] criar e efetuar mundos que ajam sobre
crenças e sobre desejos, sobre vontades e inteligências, ou seja, que ajam sobre

1 não
podemos deixar de citar o macro, vice-versa.
as intensidades a procuram para se fazerem efetuar. Nesse entendimento, com

[...] as intensidades em si mesmas não têm forma nem substância, a


não ser através de sua efetuação em certas matérias cujo resultado
é uma máscara. Ou seja, intensidades em si mesmas não existem:
estão sempre efetuadas em máscaras-compostas, em composição ou
em decomposição.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Dessa forma, é a partir do desejo que esses planos se estabelecem, criando mo-
dos de existência mais potentes, ou não. Modos de existência que são produzi-
dos a partir dos acontecimentos que, por meio da problematização, transformam

uma paisagem, um contexto político. É quando o modo de desejar também se

FIGURA 2 _ Fita de Moebius por Lygia Clark


277

Fonte: Disponível em:< http://


Em Grande Sertão Veredas o real não está no
Travessias,
fronteiras, bifurcações e encruzilhadas nos movem a perceber o mundo como

social vigente (micropolítica reativa/mísera vida) quanto àquela que consegue


engendrar as sinuosidades do
micropolíticas ativas.

Como exemplo destas formas de perceber o mundo em um dentro-fora, um fo-

obra denominada Caminhando

de papel e une as pontas para formar um círculo. Antes, porém, gira uma delas

278
Moebius, na qual não se pode dizer onde é o dentro e onde é o fora.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

A artista quis despertar, por meio da produção dessas sucessões de cortes, que a
vida é um caminho cheio de curvas, cujas marcas das nossas atitudes e as conse-

-
É a transformação do papel de um jeito que ele
jamais será o mesmo novamente, um caminho que pode voltar ao mesmo lugar
- -, um caminho que vai se estreitando a cada curva da vida.

do mundo são captados pela via da percepção (a experiência sensível) e do sen-

é feita das experiências mais imediatas que fazemos do mundo, logo as linhas
sensíveis que reverberam as palavras-forças nas imagens-cartazes exibidas pelos
estudantes, nos afetam pela sua condição de efeitos de resistência e, portanto,
de insurgência! A vida é
trilharem novos e outros caminhos que surgirão. Sertão é isto: o senhor empurra
É
sua obra traz à tona o movimento das práticas artísticas. Importa ativar o clínico

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


(DES)CAMINHOS das políticas e das diferenças e.....

No novo tempo,
Apesar dos perigos!
A gente se encontra...
Cantando na praça...
Fazendo pirraça...
Pra sobreviver!
(Ivan Lins)

279

Ocupar e resistir!2

Os gritos ecoam nas vozes dos estudantes proliferando e fazendo chegar às uni-
versidades e institutos federais. Pirraçar, reivindicar, protestar, resistir! Resistir é
permitir que forças entrem em relação com outras forças: forças do devir, forças
-
vimento. Insurgência!

Estamos imersos num sistema capitalístico maquínico. Sistema esse que procura
se estabelecer a partir de relações de forças que sujeitam a sociedade à servidão

criação de mundos os quais produzem modos de existir que escapam aos me-
canismos de controle.

2 Algumas frases pronunciadas nas manifestações exibidas em telejornais nacionais.


O sistema capitalista da sociedade de controle fornece um mundo cuja formata-

ao compactuar com a ideia da manutenção de um mundo único, preconcebido.


À criação de possibilidades de existência, a partir de composições de forças que

a resistência não conota o sentido da recusa ou de reação, mas de (re)existência


ou insistência em outros modos de vida.

Esses contornos nos convocam a compor linhas de pensamento que contribuem


para movimentar ideias-forças que produzam sentidos acerca dos processos de
-
mam mundos possíveis para uma vida em expansão, ou seja, a criação de uma
política da multiplicidade.

-
cia ativamente os desejos. Ao delinear paisagens que compõem o cenário socio-
político e suas interfaces com o campo da educação, linhas mais éticas poderão
280 emergir como força de constituição de mundos que operam pela potência da
composição com o coletivo.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

-
blematização dos modos de existência é produzida, e entra em cooperação, nos
diferentes contextos de resistência. “As pessoas não estão sempre iguais, ainda
-
São forças que entram em relação com outras forças e
criam sentidos outros que transformam os modos de percepção de si e de mundo
na produção da diferença.

não se constitui pela ideia de substância, mas, sobretudo, pela ideia da diferença.
As
conceber a atividade não mais como produção, mas como criação e efetuação
dos mundos, considerando a lógica do acontecimento, e permitir pensar a re-
lação entre singularidade e multiplicidade como alternativa à oposição entre
individualismo e holismo.

Nessa perspectiva, o conceito de diferença percebida no diálogo com Deleuze

como e não como um desvio-padrão entre modelos


preconcebidos, compõe com planos que agenciam modos de pensar coletivos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e evidencia que o mundo é tecido por um conjunto de relações (físicas, vitais,
sociais) que constituem uma sociedade, ou seja,

(DES)CAMINHANDO... expansão da potência


por uma política da aprendência: política se faz “com”

281
“Sertão é quando menos se espera”
(Grande Sertão Veredas - GUIMARÃES ROSA)

Quando menos se espera, o coletivo se ativa: sertão nessa multiplicidade de for-


ças e produção de subjetivação é singularidade que se constitui em um ser-tão:
um ser-tão potente e e tão-insurgente e tão-coletivo e tão-sorratei-
ro e tão-fugidio e tão-inventivo e tão-inesperado e...

-
tes secundaristas, problematiza a ideia de política pelo viés do comum . Nesse
sentido, os modos de existência que resistem, não por via da recusa, mas pela
abertura à diferença, são subjetivações que não se sujeitam a planos institucio-
nalizados e que, portanto, não se opõem à dimensão criadora, instituinte e ativa

3 No sentido que se opõe e substitui a dicotomia de público e privado, socialista e capitalista, e as políticas baseadas nessa polari-
Desse modo, indagamos: que tipo de subjetividade a máquina abstrata tem pro-
duzido? Será que
O domínio de vidas que se sujeitam pela captura

Entretanto, os protestos nos apontam que, quando os estudantes reivindicaram o


esclarecimento das políticas dos cortes pela via da insurgência, eles agenciaram
abertura para os possíveis.

A aposta nos possíveis, como produção de subjetividades mais potentes, opera


pela multiplicidade, pelos processos de singularização e de efetuação de mun-

[...] O mundo é virtual, uma multiplicidade de relações, de aconteci-


282
mentos que se expressam nos agenciamentos coletivos de enunciação
(nas almas) e criam o possível. O possível não existe a priori como na
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

-
sibilidades são bem reais, mas existem fora daquilo que as exprime
(signos, linguagem, gestos); os possíveis devem atualizar ou efetuar,
trata-se de desenvolver aquilo que o possível envolve, de explicar
aquilo que ele a implica.

Assim, habitar mundos que já estão postos não promovem rupturas nem cria
aberturas. É permanência do mesmo. Romper não é uma tarefa fácil; demanda
esforço, demanda perseverar na existência, é vontade de potência. Ao acompa-

algumas linhas de resistência que delineavam paisagens problematizadoras so-


bre a possibilidade de subverter algumas lógicas contidas no império da máqui-
na abstrata.

Nesse movimento, a força-resistência dos estudantes (apoiados por grande parte


dos docentes) potencializou as danças inventivas de mundos possíveis. Mundos
esses que não estão postos pelo pensamento único que impõe um modo de ser
estudante, uma rostidade

Os enunciados dos discentes evidenciavam que, diante das situações postas


e impostas, era possível criar condições (mundos) que bifurcassem caminhos
para efetuar trajetos que seguem por linhas múltiplas e se conectam em pontos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis

Todos esses cérebros em cooperação efetuaram em nós um processo de inter-


venção que desterritorializa nossas concepções acerca da produção de políticas
para a educação. Os cartazes com enunciados “A escola é nossa! Ocupamos
ela!” -
dicações atinentes à não aceitação da Medida Provisória para o Ensino Médio e
.
283

FIGURA 5 _ Enunciados da resistência

Fonte:

4 A Proposta de Emenda Constitucional cria um teto para os gastos públicos durante vinte anos. Essa emenda inclui saúde e educação.
Nesse sentido, ocupar é um movimento de resistência, é reivindicar, é dizer “eu
-
tentes desses movimentos que emergem na e pela escola. Tais acontecimentos
dobram, desdobram e produzem outras maneiras de afetar e serem afetados pelo
mundo. A experiência da ocupação produz pertencimento, participação, ação

social é um consumidor passivo dos processos de lutas e desterritorializações.


Nessas experiências de ocupação, a relação dos discentes na “Primavera es-
-
e às políticas
públicas para elas estabelecidas.

Nesse sentido, o movimento ressaltou que os estudantes, apoiados pelos docen-


tes e por boa parte da comunidade escolar, estão profundamente interessados
284 no que acontece ali e se sentem corresponsáveis pelo formato e pelas condições
das aulas e dos processos aprendentes.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

-
ços de diálogos: redes sociais, vídeos, fotos e outros veículos de circulação para
fomentarem a problemática vivida nesse contexto. Os enunciados discentes se
proliferaram por meio dos agenciamentos coletivos em uma multitude que se

todo o Brasil.

As redes sociais, como força virtual, também foram canais de incentivo ao movi-
mento. Encontramos um canal no , denominado “Mexeu com os secun-
-
tuais e pesquisadores se posicionaram em favor do movimento dos estudantes

-
gareth Rago, sobre a reação do Estado ao movimento secundarista, publica o
posicionamento da professora da Faculdade de Campinas, que considera que
“[...] a reação do Estado a este tipo de movimento só pode ser muito negativa,

uma reação do Estado me parece uma reação de repressão” -

pertencer é

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ocupar o território que deveria ser deles [estudantes] e que, por ra-
zões absolutamente absurdas, é considerado propriedade de outros,
ou propriedade do Estado, ou da prefeitura, ou dos burocratas, ou dos
políticos, ou dos economistas, ou dos empresários, quer dizer, todos
se sentem no direito de decidir sobre a vida de pessoas em vias de se
tornarem adultas e que têm direitos sobre a própria vida. O primeiro
contragolpe que eles [estudantes] produziram foi dizer: essa vida é
nossa, esse território é nosso, nós temos condição de pensá-lo, nós
temos até condição de geri-lo e de propor coisas que são cruciais
para nós. Eles manifestaram com a própria voz algo que deveria ser
evidente, deveria ser óbvio.
285

O poder sobre a vida subjuga domínios de territórios e, portanto, em composi-


ção com estes intelectuais, corroboramos que o empoderamento dos dirigentes
deste país se coloca desfavorável aos movimentos que se constituem num co-
letivo. Entretanto, mesmo não operando o equipamento, discentes e docentes
compõem as maquinarias que, são engrenagens desse sistema complexo que
extensivos e intensivos, desterritorializando as sedimen-

movimentos-força que agem na produção dos possíveis.

Os possíveis são mundos criados a partir dos modos de pertencimentos/resistência


-

A potência criadora e inteligente dos adolescentes secundaristas se articulou


politicamente e produziu mundos possíveis em meio a tanta repressão. Os enun-
ciados desse contexto de luta nos advertiram sobre um governo reacionário que
tenta inibir modos de vida que buscam a produção e expansão de aprendências
mais potentes.
(DES)CAMINHAR continuum...

“Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais,
é só fazer outras maiores perguntas”.
(Grande sertão veredas - Guimarães Rosa)

Ao analisarmos o movimento desses estudantes como vetor de transformação


nas formas-forças -

Nesse sentido, a escolha/aposta pelo movimento de ocupação foi engendrada


por meio da potência irreverente dos adolescentes que evidenciaram que políti-
ca se produz no plano imanente dos territórios escolares (e não escolares) e que,

286
social não destituem suas possibilidades de pensar e resistir sobre a conjuntura
na qual eles estão inseridos. A potência insurgente da produção dos desejos
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

como força na constituição de uma política, são diagramas que, aumentam nos-

relação com outro, na composição coletiva.

Como percebemos, o sistema é uma máquina performativa que produz subjeti-


vidades passivas e, nesse sentido, o acontecimento enquanto mudança/transfor-
mação nos enredamentos da atuação do corpus que compõem as escolas pro-
duz sentidos distintos daqueles com os quais fomos habituados a conceber. O
pensamento moderno, cuja pungência de um pensamento único se empondera,
cria tentáculos para toda forma de captura, não somente da ordem mercadoló-
gica, mas também dos modos de existência que se aninham nas entranhas deste

-
dantes secundaristas exprimem o devir revolucionário e resistente da juventude
nesse território como produção de possíveis.

-
sil nesses três últimos anos é produzir insurgências cotidianas nos territórios
-
beremos possibilidades outras no campo da educação, do trabalho docente,
da militância discente e, portanto, de políticas mais comprometidas com uma

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ética da diferença.

Esse devir revolucionário, protagonizado pelo corpo estudantil, desestabilizou


os dispositivos da máquina abstrata, efetuando forças que se movem na super-
fície de um plano imanente, tornando as tentativas de capturas mais escorrega-
dias. Os acontecimentos insurgentes se efetuam pela condição da transformação
dos modos de existir e, por isso, pensar, problematizar, romper é compor com as

A governamentalidade furta formas de vida, desapropriando os modos de vi-


287
ver, os modos de existência e, portanto, as subjetividades. Então, eis que uma
expressão emerge como possível para exprimir certa dimensão da vida hoje: a

Nesse sentido, mundos outros poderão emergir como força-invenção da consti-


tuição de possíveis como aposta nas singularidades. Podemos, então, dizer que
uma política do comum está em conjunção com a perspectiva que concebe a
atuação dos docentes e discentes como campo de lutas e os currículos como
campo de disputa e invenção de outros modos de existência.

é produzir modos outros de existência nos acontecimentos experienciados no


campo educacional. Esses modos de existência abrem bifurcações que podem
produzir possibilidades de rompimento com o instituído. Dessa forma, a aber-
tura à diferença permite que as singularidades engendrem coletivos e cria-se
um corpo ativo que não se deixa submeter aos agenciamentos maquínicos que
o Estado tenta sujeitar. A condição da criação dos mundos possíveis é também
fazê-la recuar. Assim, o acontecimento, enquanto força transformadora, pode
produzir mundos no mais alto grau de potência com abertura à diferença.

A abertura de mundos possíveis não está pautada na busca de soluções e/ou


respostas, todavia requer escapar das formas preexistentes que têm por efeito
a anulação de mundos que não compartilham uma política do comum. A po-
tência do comum, ou a política do comum, produz (des)caminhos nos quais as
aprendências engendram sentidos para vidas que são tecidas na imanência dos
cotidianos das escolas públicas.

288
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
Referências
BONFÁ, Junior. As ocupações dos estudantes secundaristas sob a luz da Esqui-
zoanálise.

Conversações
______. Diferença e repetição

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


______. Deleuze: -

Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.

______. Mil platôs:

______. Mil platôs:


289

______. Mil platôs:

Le gouvernement de soi et des autres

Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record,

As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civiliza-

Signos, máquinas e subjetividades. São Paulo: Edições

jogo... Saude soc. -


-
-
Trópico

transformações contemporâneas do

Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada.


São Paulo: N
60 Frases de “Grande Sertão: Veredas” em comemoração
aos seus 60 anos de publicação. Disponível em:<
-

TRINDADE, Rafael. Deleuze e o desejo -

290
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
FORÇA, FORMA
E PINTURA:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


MOVIMENTOS
NA FORMAÇÃO
CONTINUADA
DE PROFESSORES
291
A DISTÂNCIA
Jaqueline Magalhães Brum
Nilcea Elias Rodrigues

13.
1 Introdução
Esta escrita busca problematizar como a força micropolítica produzida nas rela-
ções entre coordenação, professores, tutores e alunos, de um Curso de Especiali-
zação em Matemática para professores do Ensino Médio, ministrado à distância
pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), via Secretaria de Educação
a Distância (Sead) e a Universidade Aberta do Brasil (UAB), pode por meio das
práticas discursivas desse coletivo, produzir agenciamentos, problematizações
que possibilitem e não... afetar na forma macropolítica do referido curso.
292
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

um trabalho de pesquisa. A partir daí tivemos a ideia de buscar informações so-


bre o andamento do curso, uma vez que ele havia iniciado as aulas no segundo

importante sabermos sobre o seu andamento. Para tal, antes de irmos aos polos,
-
taforma Moodle, a respeito do andamento do curso, com o intuito inicial de
sabermos um pouco mais: sobre quem eram esses alunos? Por que estavam fa-
zendo o curso? O que esperavam? E a opinião deles sobre o trabalho pedagógico
exercido por professores e tutores de forma geral e já pensando em melhorias
que poderiam ser sugeridas para as próximas turmas.

1 -
tada pela EaD da Ufes, e é uma ferramenta que possui diversas possibilidades de comunicação entre
professor-aluno, aluno-aluno e aluno-professor, como chats, fóruns de discussão, dentre outras.
nos polos (coordenadores/as, tutoras, professores/as..) nas redes de conversação
é que se constituem as análises e problematizações dessa composição. Nesse
debate, utilizamos como intercessores teóricos autores de base pós-estrutura-
-
leuzianos que concernem à noção de área redonda, contorno, superfície plana

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


escrita ao problematizar como a força micropolítica produzida nas relações em
um Curso de Especialização em Matemática para professores do Ensino Médio,
ministrado à distância pode e não mudar aspectos da forma macropolítica. A

-
-

professores sobre seus perceptos em relação ao curso abrindo para possibilida-

293

2 Compondo com a teoria

colocar alguns textos junto a outros, com os quais não têm aparente-
mente nada a ver, e produzir, assim, um novo efeito de sentido. [...]
[ ] são

criação; pensar é, sobretudo, produzir o novo, fabricar ideias que escapam da


-

-
atualidade, esses novos meios reverberam em outras artes, como teatro e o cine-
-
te análogo ao da colagem numa pintura. [...] Seria preciso conseguir apresentar

fabricar conceitos e, mais que isso, é a possibilidade de criar conceitos: a cria-

-
dos, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles come-

-
294 ceitos, no entanto as ciências, as artes são igualmente criadoras; na esteira de
-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

ce com a criação de conceitos e a intercessão teórica é a força que atua nesta

matemática funções, e as da arte blocos de afectos e perceptos, blocos de sen-

O essencial são os intercessores “a criação são os intercessores. Sem

plantas, animais como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados


ou inanimados é preciso fabricar seus próprios intercessores [..]. Eu
preciso de meus intercessores para me exprimir e eles jamais se expri-
miriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isto

Os intercessores atuam nos encontros, nas conexões, que forçam o pensamento


para que saia de sua imobilidade, de sua letargia... Nesse movimento, reconhe-
cemos que sem os intercessores não há criação. E esta criação [de conceitos]
intensa e violenta onda de forças que faz pensar.

Essa noção de criação no interessa, sobretudo por compreendermos sua rele-


-
mento de tarefas com prazos controlados remotamente, o esforço para transpor
o que é aprendido no curso para a sala de aula como modelo a ser seguido,
coexistem com uma discursividade que aponta para a importância do curso na

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


prática docente, com a possibilidade de acessar a formação superior pela Uni-
versidade pública, com os agenciamentos produzidos em redes coletivas que
reverberam em aprendizagens.

Os enunciados produzidos por professores em um dos encontros da rede de


conversa demonstram estas tensões sobretudo no que se refere a importância do
curso para a docência na unidade escolar:

- 295
2

curso já estamos sendo preparados para fazer diferente , ou seja, ser

2
DOBRA 13 _ Carlos Chenier de Magalhães. Expansão XIV. 1968.

296
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Reconhecemos que fazer pensar e sobretudo forçar o pensamento na busca de


modos outros de docência é compor com a noção de criação, do “fazer dife-

que podem afetar tanto os movimentos formativos quanto a docência na Educa-


ção Básica.

3 As dobras são como um terceiro que atrapalha a binaridade. Estão ora dentro e ora fora, produzindo uma desterritorialização. A
-
lhães para fugir das representações na pintura.
2.1 Macro e micropolítica
Nesse sentido, “[...] decifrar os sinais das formas nos permite existir socialmen-

os modelos socialmente aceitos acabam por fazer parte e controle de nossa


status

são estabelecidas com outros corpos e não só necessariamente corpos, mas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
são as sensações e os afectos são
os devires, forças que transbordam o que passa pelos perceptos positivamente
ou negativamente.

as reativas (morais). Para a autora as forças ativas são as que nos colocam em
relação às formas como potências de vida, de transformação e de desterritoriali-
e produtoras de outros mundos possíveis. 297
Já as forças reativas, seriam aquelas que em nada nos ajudam a mudar o que está
instituído, seria mais ou menos como um quebra-cabeça no qual todas as partes
já estão determinadas, e aonde apenas um mundo seria possível. Portanto, nada
pode ser transformado. A força ativa luta pela mudança, enquanto a força reati-
va apenas reclama de não ser atendida pelas formas. “Sendo assim, é do embate
entre políticas do desejo (ativas e reativas) que esse constitui o campo de batalha

Mas e o que dizer das formas? Se depender de micropolíticas de reatividade...

do cm ameaça de desagregação de si mesma e de seu campo existen-


cial, já que ‘este mundo’, aquele que o sujeito o habita e no qual se
-

4 -
ração de força de trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal

a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos. Portanto cafetinada seria uma vida explo-
do poder da arte, no inicio de sua conversa devido ao consumo capitalístico que
acontece no meio das artes nos tempos atuais. No entanto, ela coloca depois em

e não, dependendo das forças ativas ou reativas em questão e toda uma conjun-

cinema, teatro, dentre outros, como intercessores potentes para problematizar o


nós aqui neste
texto escolhemos a Pintura.

2.2 Signos artísticos – noção de figura, contorno


e superfície plana na pintura
298
Uma vez que a arte entrou em nosso contexto e que escolhemos o signo da
Pintura para ser nosso intercessor poético, procuramos relacionar as discussões
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

último ao falar sobre “Deleuze e a pin-


tura Francis Bacon: a lógica
da sensação
uma estrutural e outra genética. E em relação à

vamos nos ater a essa análise estrutural.

Em relação ao primeiro elemento –


dirá que Bacon consegue se afastar tanto da representação, por não privilegiar

é chamada de

considerada forma...
-

-
do como objeto, nem representando um objeto, mas experimentando

PINTURA 1 _ Crussification (1933)

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


299

Fonte:

E irá chamar esse estilo de pintura como de uma carne, uma vianda, onde o
corpo e os ossos se confrontam e problematiza a questão dizendo que: “O cor-
po só se revela quando deixa de ser sustentado pelos ossos, ou quando a carne
deixa de recobrir os ossos, quando ambos existem um para o outro, em tensão

movem os agentes, suas intenções, critérios de avaliação, modos de operação,


-

animal, desterritorialização, diferença entre virtual e atual, sensações, intensi-


-
cluir que é fundamental destruir a organização em proveito de uma vida não
orgânica. Ou seja, desfazer “[...] o organismo em proveito do corpo, o rosto em
proveito da cabeça, Bacon pinta corpos sem órgãos, o fato intensivo do corpo,

O segundo elemento – a grande superfície plana. É a estrutura, o suporte. Não


está atrás, na frente ou ao lado, mas em volta. Para Deleuze não existe grande
é
modulada pela cor.

O terceiro elemento – Funciona como limite co-


-
300
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

exerce uma força centrípeda e a qual por sua vez isola, envolve, aprisiona e

liberada fuja da representação, da ilustração. “[...] Isso leva Deleuze a falar de


-

expansão. Porém...

Contraindo-se ou distendendo-se, o corpo tenta escapar de sua forma,


de sua organização, por um de seus órgãos, para se dissipar na grande
superfície plana e é apresentado pelo pintor no estado intermediário
entre corpo organizado e dissipado, como um corpo em devir. (MA-
PINTURAS 2 E 3 _ Exemplos de Superfície Plana e Área Redonda

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


301

Fonte:
Como que essas conceituações podem nos forçar a pensar a formação docente a
distancia tendo o signo da pintura compondo com essa problematização? A no-
ç nos ajuda nesse movimento sobretudo ao questionar o
modelo, a placa, a representação. Na primeira etapa do curso de Especialização
Matemática na Prática, foram produzidos fascículos com registro de conteúdos e
atividades a serem cumpridas pelos/as professores/as em formação. A força pres-

-
tionando o uso do fascículo como única fonte e avaliando como potente o fato
de alguns professores utilizarem estratégias, para além da apostila. Como no
relato a seguir:

“Base da disciplina foi a apostila, porém, alguns deles utilizaram pró-

302
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Essa tensão, esse deslocamento de mão dupla, que Deleuze observa na pintura

-
leuze a arte tem a potência de capturar as forças e esse movimento de captura ele
nomeia de sensação. “[...] a arte não é a representação ou comemoração do que
já foi ou do que já passou, o que as obras de arte fazem é entregar ao futuro um
2.3 Educação a distância e profissionalização docente
A Educação à distância (EaD), é tecida pelas mãos de vários atores: coordena-
ção pedagógica, professores, tutores presenciais e a distância, estudantes, dentre
outros. Além de ela estar conectada a todos esses atores também se conecta a
polos, ambientes virtuais, mídias e políticas públicas, formando um ambiente
favorável a criação e construção de um “conhecimento tecido em rede ou rizo-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Os cursos à distância ofertados pela UAB são dirigidos àqueles que não podem

Na famosa série de entrevistas realizadas por Claire Parnet


, ao chegar à letra

como ele pensa ser uma aula, para ele é algo muito preparado, ensaiado e isso
nos remete ao que seja ser um professor, ele precisa de inspiração e...
303
É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do
qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar.
É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que... É
muito divertido, é preciso encontrar... É como uma porta que não
conseguimos atravessar em qualquer posição.

As considerações de Deleuze sobre o professor se confundem com as problema-


tizações sobre a aula. Nas conversas com os professores/as, alunos/as do curso,
emergiram discursos que destacam a relevância da formação para o ato de ensi-

atuar como professor trouxe um preparo, uma perspectiva mais acen-


-

“Tem me feito estudar mais e me dá oportunidade de melhorar minhas


A docência, a aula, o encontro, essa “porta que não conseguimos atravessar em

sentido de buscar escapar da lógica template, que busca moldar a formação do-
cente na EAD, evidencia-se, entre tantas outras dimensões, no caráter represen-
tacional e prescritivo dos cursos: a forte ênfase instrucional estabelece, a priori,
o que o(a) professor(a) em formação deve ser, o que deve saber e como deve agir,
estabelecendo uma medida única. Esses movimentos de captura tentam excluir
os outros modos de vida que deslizam, escapam da medida única. No entanto,

do cálculo, da medida.

Em um dos Polos visitados o grupo tecia redes de afetos com a poesia, com o
teatro, a música, em bons encontros possibilitados entre os estudantes, professo-
res, tutores e tantos outros que se movimentaram na composição do Sarau , do
304 Projeto Faróis ; em outro, conhecemos o relato de experiências nos ambientes
virtuais (não apenas no Moodle) de redes de conversas coexistindo com o for-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Seguem algumas interações via e-mail, são escapamentos que aconteceram na


vivência do curso:

Boa noite Professora “J”,


Meu nome é “E” e fui aluna da Especialização Matemática na Prática
-
-

5 Encontros promovidos por um dos Polos, pelo menos uma vez no ano, povoados de afetos em que a poesia, a música e performan-
ces coexistem em uma noite de bons encontros entre alunos, professores, coordenadores e tantos outros que quisessem compor
com as grupalidades.

6 Projeto de extensão que possibilita o acesso da comunidade ao espaço do Polo com oferta de cursos para a comunidade local...
Atenciosamente,
“E”

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Em relação ao curso ainda pensamos sim, mas somos muito atrope-

*** 305

“D”

“D”,
-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA

306
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Fonte:
DOBRA 2
_ Carlos Chenier. S/t.
Nessa tensão qual seria o limite comum? O elo, o lugar de troca, nos dois sen-

prescrição e da criação? Apostamos como na Pintura em Bacon, nas composi-


ções que buscam escapar de uma forma, expandir, dissipar, por uma docência
em devir.

A aposta de uma formação inventiva é fazer com o outro, e formar


é criar outros modos de viver-trabalhar, aprender, desaprender e não

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


apenas instrumentalizar o outro com novas tecnologias ou ainda dar
uma consciência crítica ao outro. Uma formação inventiva é exercí-
cio de potência de criação que constitui o vivo, é invenção de si e do
mundo, se forja nas redes de saberes e fazeres produzidas histórica e

São essas composições que se movem nos encontros, bons encontros, que nos
fazem apostar na formação continuada, na modalidade à distância, no poder de
invenção e de criação de nossos professores e alunos apesar de toda a prescrição
– São obras de arte – pinturas – em aberto.
307

3 Conversações
Com dito, realizamos uma pesquisa de natureza qualitativa e utilizamos ele-
-
cional) e grande área plana (formas), para fazermos uma análise discursiva dos
sujeitos envolvidos.

Além das problematizações já tratadas aqui no texto, linhas outras comporão


nossa escrita a partir dos enunciados produzidos nas conversações com as

Optamos por tecer as problematizações em blocos, no sentido de se apresen-


tarem em camadas acopladas, não desassociadas. Participaram da composição
-
ção e ano de formação; se atuam na docência, nível e disciplina; avaliação do
curso; pontos positivos e negativos das disciplinas cursadas; sugestões de me-
lhoria para uma nova oferta da disciplina; de que forma o curso pode contribuir
com a prática docente; importância atribuída à formação docente.

Matemática, a Complementação Pedagógica em Matemática também é parte


constituinte da formação, como detalhado na tabela a seguir:

Habilitação Docência Ano de formação* Disciplina/Nível

Matemática Ensino Médio

Matemática

gestão
*Consideramos a formação mais recente na área de matemática seja licenciatura ou complementação; para os casos de
não possuir licenciatura ou complementação, consideramos o ano de conclusão do curso de graduação.
308
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

A avaliação do curso nas camadas desse bloco, no desenrolar das conversas,


emergem em discursos sobre a relevância do curso para a formação acadêmica,
para a prática docente e sobre a qualidade dos materiais usados na Especializa-
ção; também reverberam questionamento sobre prazos de postagem das tarefas,
atraso na publicação da notas e necessidade de padronização dos trabalhos

-
ganizada, seria interessante se todos os professores nos desse um fee-
-
-
-

DOBRA 3 _ Carlos Chenier. Tropicália. Década 1960.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


309
Observamos que a forma está presente nos discursos, uma vez que a fala de uma
aluna aqui transcrita demonstra que gostaria que houvesse apenas um modelo
para apresentação de trabalhos, mas ela não é a única a pedir que os documen-
tos sejam os mais prescritivos possíveis. Por outro lado, há forças ativas agindo,

aprendizagens produzidas. Ou seja, algum agenciamento positivo os tocou.

a ênfase nos discursos assumem força, sobretudo por apontar como/quanto o


curso agrega conhecimentos para a prática da matemática no contexto da sala
de aula.

para a prática, despertando um interesse maior no conteúdo pelos

310 -
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Percebemos aqui também a ação de forças ativas ao enfatizarem a importân-


cia da especialização para a prática docente, mesmo porque o curso articula
o tempo todo conteúdo (o que ensinar) e prática (como ensinar), como ações
indissociáveis.

Os enunciados discursivos, tecidos na rede de conversas, apontam como po-

experiências nos encontros presenciais; novas sugestões de métodos; ativida-


-
ca pedagógica; professores bem preparados; os conteúdos; o envolvimento da
Matemática com o dia a dia, com outras disciplinas e com outras vivências; dis-
ponibilidade da equipe do curso, do professor, do tutor, conteúdos, etc. Como
evidenciados nas conversas a seguir:

“O curso está me proporcionando grande aprendizado e oportunida-


-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


“Fiz minha inscrição para o curso de Pós-Graduação “Matemática na

Como dito, das conversas emergiram sugestões, consideradas pelos participan-


tes, como relevantes para a melhoria das disciplinas, dentre elas destacamos:

-
311

“Ter uma interação com os cursistas dos outros polos, como por exem-

Destacamos aqui a força do micro no macro propondo um movimento nas estru-


turas estabelecidas de comunicação e de infraestrutura. Em relação à infraestru-
tura à falta de material impresso, cabe ressaltar que na primeira turma os polos e
os professores receberam o material impresso, contudo os textos para discussão
da teoria sempre foram disponibilizados no Moodle por todos os professores em
suas respectivas disciplinas.
Na camada Formação Continuada e sua importância para o cursista, os discur-
sos apresentaram forte ênfase à metodologia e conteúdos curriculares da Mate-
mática trabalhados no curso, citando a geometria, probabilidade, sólidos geo-
métricos, análise combinatória, dentre outras como aprendizagens relevantes
produzidas no curso... Em intensidade de força menor, aparece nos discursos a
relevância da formação continuada, sobretudo para renovar a prática docente,
para troca de experiência, para aprender novos métodos, e para a melhoria da
interação com os alunos.

312
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

“A formação continuada ajuda a renovar a prática docente, a própria


troca de experiências com colegas nos ajuda a renovar ideias de apli-

-
-
-
nam uma melhor interação/envolvimento dos alunos com o conteúdo

“A formação continuada dá ao docente maior suporte e conhecimen-


atualizado, portanto a formação continuada é de extrema importância

Aqui, percebemos como os alunos privilegiam os componentes curriculares para


sua formação. Pensávamos que por ser um curso de formação continuada que os
mesmos já estivessem consolidados alguns conhecimentos como: de conteúdo,
pedagógico e

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


necessitam expandir seus conhecimentos como uma força centrífuga de dentro
(micro) para fora (macro), ao invés de se aproximarem dos componentes curri-

percebemos que o curso ajudou nessa expansão ao notarmos que eles se sentem

-
ção dos professores e atuação dos tutores presenciais e a distância, as conversas
evidenciaram o reconhecimento do trabalho dos tutores ao atender aos cursistas
- 313
bém presencialmente, participação dos tutores nos encontros estimulando os
debates; em relação aos professores o fato de serem da área foi considerado de
grande relevância, consideraram como potente também a orientação por vídeo
ou mensagem de texto, utilização de estratégias metodológicas próprias e não
apenas o uso das apostilas e divulgação na plataforma das orientações sobre a
avaliação da disciplina. Como fatores negativos apontaram: tutores não con-
seguiam responder as dúvidas, mudanças de datas nos encontros presenciais;
demora em postar as notas, ausência de assistência nas atividades pelos pro-
fessores a distância, pouca diversidade de metodologias ; recomendam que a
interação aconteça por outras vias de acesso para além da plataforma Moodle.

-
-

7 Em parágrafo anterior as enunciações apresentaram forte ênfase à metodologia e conteúdos curriculares da Matemática trabalhados
no curso, nesse momento da conversa no entanto as metodologias são citadas como trabalhadas em menor intensidade no curso.
“Em relação aos conteúdos, alguns professores deixaram de dar o

DOBRA 4 _ Carlos Chenier. Rivers, A Flor. 1968.

314
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Fonte:
Ao olharmos para essas cinco ou seis camadas elencadas aqui, constatamos que
o Curso tem potencial, apesar de prescritivo, que os professores (estudantes)
precisam de uma formação continuada de qualidade e que a comunicação entre
professores e alunos precisa melhorar. Ou seja, vimos claramente a tensão exis-

-
gãos, em uma pintura em devir. E todo esse movimento só é capaz de acontecer

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


se o contorno (professores, professores tutores presenciais e a distância) estive-
rem atentos a esse duplo movimento.

4 Para não finalizar


-
-
nização da oferta de cursos a distância no Brasil, sobretudo no que se refere
ao Programa Universidade Aberta do Brasil. No sistema descentralizado as 315
universidades públicas ofertantes são parte de um consórcio de instituições de-
nominado UAB. Nessa organização, os polos, criados a partir de um acordo de
cooperação entre o ente federado (estado ou município) e a Coordenação de

na extensão da comunidade acadêmica. Parece que o princípio de unidade or-


gânica se evidencia na política dessas ofertas por meio de editais, de uma gestão
que visa dar uma organicidade entre a União, Estados e Municípios numa via
estabilizada, orgânica e linear.

Essa organização parece reverberar nos discursos produzidos nas redes de con-
versação que apontam para a necessidade de garantir os formatos, os mapas das
disciplinas, os Projetos de Cursos, como perenes, por vezes estáticos... No en-

outros possíveis da formação docentes que perfurem os clichês e permitam que


-
lítica de federalismo, Diretrizes, por exemplo) se constituam provisoriamente,
sobretudo quando a intensidade de forças micropolíticas avançarem no sentido
de aprendizagens outras, inventivas; “[...] é abrir o corpo a conexões de inten-
-
do nos referimos à provisoriedade não estamos desconsiderando a existência
das normatizações e políticas públicas de oferta da formação docente em EAD,
mas considerando que esses engendramentos coexistem com outras forças que
atuam para além da prescrição, que animam o corpo, captam forças e produzem
a diferença, rompendo com o dogmatismo e templates que insistem em engessar
modos outros que pulsam na formação docente.

[...] É fundamental destruir a organização em proveito de uma vida


não orgânica. Ou seja, desfazer “[...] o organismo em proveito do
corpo, o rosto em proveito da cabeça, Bacon pinta corpos sem ór-

Para n
para a problematização dessas questões, no encontro dos corpos e das ideias.
316 Emergem nas conversas tecidas uma busca pelas interações, pelo fazer que pos-
sibilite a experiência e não apenas a reprodução dos conteúdos dos fascículos,
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

das metodologias que se repetem... do contato distante e da pouca conversa...

Talvez aí a possibilidade que se apresenta é apostar em micropolíticas (forças)


ativas, para problematizar o instituído. Já que o macro (formas) move-se a partir
de organizações identitárias; e no micro apesar da dupla inscrição apostar nas
forças ressonantes e nas afecções (afetos positivos) que perpassam o corpo nas
políticas ativas é o caminho, já que as forças reativas não conseguem afetar e...
mudar o instituído.
Referências
BRUM, Jaqueline Magalhães. Redes cotidianas de saberes e fazeres matemá-
ticos

Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


______. Diferença e repetição

______. O abecedário de Gilles Deleuze. Brasília: Ministério da Educação,

Mil platôs

______.

DIAS, Rosimeri de Oliveira. Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro:


317

(Org.). O sujeito da educação


______. Linguagem e educação depois de Babel

. Rio de Janeiro: Editora

Encontros com
signos: possibilidades para pensar a aprendizagem no contexto da educa-
-
nível em:
PINTURAS DE FRANCIS BACON: -

-
Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada.

SANTOS, S. C. dos. Um retrato de uma licenciatura em Matemática a Distân-


cia sob a ótica de seus alunos iniciantes
Edu-
cational Researcher
-

Disponível em
Experimentação dos professores na EaD: formas,

-
ta Catarina, Florianópolis.

318
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
QUANDO AS
IMAGENS VÃO
À GUERRA:
CURRÍCULO,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


MOSQUITOS,
BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS,
TECNOLOGIAS…
319

Thiago Ranniery
Júlia Pompeu

14.
Júlia Pompeu2

Ponto.com/combate: um profícuo arquivo visual

FIG.1 _ Abertura do site www.wolbito.com.br3

320
TÍTULO

1 Bafo! Grupo de Estu-

da FAPERJ.

3 Abriremos cada uma das sessões deste texto com uma imagem do arquivo por nós explorado, esperando que funcionem como
epígrafes.
. O nome pode soar um tanto estranho à pesquisa em currículo. Trata-
se, contudo, de uma forma de combate a transmissão de doenças epidêmicas

-
cruz) no Rio de Janeiro, pretende combater as epidemias virais transmitidas por
mosquitos Aedes aegypti ao redor do mundo. O método é relativamente simples

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e se resume em inserir a bactéria do gênero , no mosquito Aedes
aegypti com o uso de uma agulha apropriada de microinjeção. A presença da
bactéria, já associada a vários insetos, reduz a capacidade infecciosa dos vírus .
Para tanto, seria necessário liberar, sucessivamente, mosquitos adultos e ovos
com no ambiente. Com os cruzamentos5, espera-se que a população
de mosquitos do local de liberação seja toda composta por Aedes aegypti com
,o . Através do site , o programa
divulga a iniciativa e o método do programa. Um dos seus braços é o site
, um projeto de aproximação com escolas públicas da re-
gião de atuação da Fiocruz e que busca integrar ao currículo de ciências expe- 321
rimentos sobre o desenvolvimento do Aedes aegypti. Esses dois sites juntamente
com alguns vídeos do canal WMP Brasil no serão nossos objetos de
exploração neste texto .

Nos últimos trinta anos, as estratégias de combate às doenças transmitidas pelo


Aedes aegypti -

um foco cada vez mais centralizado nos mosquitos e na produção de vulne-

políticas geraram um arquivo visual profícuo, densamente mediado, na maioria


das vezes, por tecnologias imagéticas e plataformas de compartilhamento di-
gital. Este profícuo arquivo de imagens abre espaços para um debate sobre os

4 A principal hipótese é que há uma disputa entre vírus e bactérias por nutrientes no espaço intracelular dos mosquitos.

5 Por meio de um mecanismo chamado incompatibilidade citoplasmática, uma fêmea do mosquito com a bactéria ao copular um
macho com ou sem a presença da bactéria produz ovos com a . No entanto, quando machos com a bactéria copulam
com fêmeas sem bactéria, não há produção de prole.

6 Texto produzido no âmbito do projeto -


to da FAPERJ e do CNPq.
[que] tira prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte
[que] tira perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções

fora do laboratório, [...] e há nenhuma parte do laboratório que não seja um


-
vestigam a pensar sobre o lugar oscilante das imagens nas economias globais
da biossegurança
possibilidades de abertura de futuros alternativos.

é de
um mosquito aliado ao combate das arboviroses, caracterizado por possuir um
jeito próprio, em virtude da co-presença da bactéria no seu organismo,

322
No site , a imagem, uma alegoria desenhada, do
mosquito apresenta o método do programa e as doenças transmitidas pelo mos-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

quito Aedes, como se o próprio conversasse com os visitantes internautas


funciona como uma espécie
de atrativo para as atividades didáticas e de experimentação propostas. Seria pre-
ciso ressaltar, contudo, que o endereçamento de cada site é modulado de forma
diferente segundo o público imaginado. Enquanto o
objetiva um público generalizado e com foco na divulgação do programa, o site
procura voltar o seu conteúdo para professores e es-
tudantes de ciências, buscando alcançar escolas. Os dois endereços apresentam
um número de telefone pelo qual o leitor pode contactar diretamente o
e enviar suas dúvidas para que o mosquito responda. Juntos, esses emaranhados

nós, marcos através dos quais se testemunha a convocação das imagens à guerra.

7 Extrapolaria aos limites deste texto qualquer caracterização ampla da contestada noção de biossegurança. Nós nos contentamos,
-
Em certo sentido, o que estamos chamando de um profícuo arquivo visual acom-

-
fato é um
arquivo performático imagético. Para seguir nesse direção, nós seguimos também
-
dade performática, um tom afetivo, uma relação com o observador, uma fenome-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nologia não apenas do conteúdo, mas como objetos sociais ativos projetando e se

arquivo a partir dos seus efeitos e afetos, a partir de uma passagem do que Ann
-

et al
enrosca criaturas, seres e entes, arrasta um elemento de incerteza e problematiza
as dicotomias salientes – natural/não-natural, humano/animal – constitutiva dos
encontros educacionais. Em virtude dessa ponderação, engajamos ainda nossa
análise com os estudos multiespécies que, concentrando-se nas espécies que co- 323
-constituem nossas vidas e histórias trabalham para romper como a suposta cen-
tralidade da vontade humana para a história .

Para tanto, dividimos este texto em duas seções. Na primeira, sugerimos como
a imagem é convocada para lidar com a a presença monstruosa da combinação
mosquito, bactéria e tecnologia sem que dispense ou preceda essa fantasmagoria.
Essas relações não são simétricas, envolvem trabalho mútuo, produzem atritos e
fricções e podem levar ao fracasso, de modo que suas recalcitrâncias ensinam

-
gunda parte, exploramos como essa convocação torna ambivalente agir enquanto
estamos juntos com esses outros: o currículo se torna o campo de construir uma

8
aliança eco-imagética interespécies. O não é apenas uma ferramenta

realizada por cientista endereçada para professores e estudantes. Ao invés disso,


como um artefato imagético, envolve o currículo em processos co-constitutivos
de tornar-se com
cultura, humano e não-humano, o social, o tecnológico e o ecológico.

Heróis contra a dengue: fazendo junto,


o que não foi possível fazer sozinho

FIG. 2 _Abertura
da sessão sobre a bactéria do gênero Wolbachia no site
Wolbito na Escola

324
TÍTULO
-

contingente à história, ela própria contingente a outras espécies, às “várias teias

histórico de cereais, fungos e humanos, traça o lento desenvolvimento de um

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


império rizomático de domesticação e regimes de propriedade centrado em tor-
no da casa da família, onde “humanos se enroscaram em suas poltronas com
seus animais de estimação e seus lanches simulados pela espécie para assistir

da relacionalidade interespécie promovida pelo arquivo visual . Preocu-


pados como relações interespécies são proporcionadas por plataformas digitais
de compartilhamento, mediando composições entre estado, educação e ciência,
perguntamos sobre como imagens participam das instituições que planejam a
325

Espetacular, o arquivo é uma ocorrência posta em circulação por pro-


cessos materiais de produção imagética e a partir do modo como vinculam

Testar a chamada das imagens à guerra é, pois, um modo de colocar a relação


entre currículo e ciências de uma maneira ligeiramente diferente: a conversão
do mosquito em um problema de segurança doméstica e, por meio desse qua-
lidade performática das imagens, oferecer uma perspectiva sobre como a divul-

o , um inseto biotecnoimageticamente fabricado, em um agente protetor

é um arquivo imagético, é porque, talvez, não esteja muito distante


-

Como um arquivo visual testemunha e performa, uma complexidade viva da


experiência curricular que emerge, agora, “a partir de interações onde todos os

adiante, seria preciso considerar o ciclo de vida do Aedes aegypti.


O mosquito possui uma metamorfose completa, passando por quatro estágios
ovo, larva, pupa e adulto. Os ovos são depositados próximo a uma superfície
aquosa e, quando entram em contato com a água podem, vir a eclodir. As fases
de larva e pupa são aquáticas e a fase adulta é terrestre, evitando, assim, compe-
tição por nicho. As larvas são detritívoras, alimentando-se de detritos suspensos
ou no fundo da água. Já os adultos se alimentam de líquidos açucarados, como

de sangue, elemento necessário para a maturação dos ovos. É nessa etapa que a
fêmea pode se infectar, ao picar um humano que possui a doença, e se tornar um
vetor do vírus (CASTRO et al et al Ae-
des tenha vindo do Egito e que, com séculos sucessivos de encontros coloniais,

tropicais e subtropicais ao redor do mundo, o Aedes é um mosquito descrito na


literatura especializada como antropofílico, isto é, prefere viver nos ambientes
urbanos próximos aos humanos porque as condições das cidades propiciam
seus hábitos de vida com maior disponibilidade de focos de água com matéria
326

Esta é a história contada em diversos dispositivos (vídeos, manual de orientação


QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

e sessões dos sites) em torno do . Uma história, sem dúvida, de ansie-

uns aos outros mutuamente em ligações que são, ao mesmo tempo, “hidráuli-

à explicação ao
misturar os mundos natural e social e exigir “reconceber a própria vida como um
conjunto interdependentes em sua maior parte não desejadas, [...] o que implica

medeia, materializa e tor-


na visível não somente o vírus, mas o modo pelo qual esta mistura ambivalente
de fronteiras é performada.

não estaria à espera de ser interpretada por um sujeito, antes “ela mesma está
podemos apontar que o arquivo visual não apenas retrata o experimento políti-
, mas se torna crucial para produção
da política e seu estatuto de legibilidade.

-
ratórios de ciências biológicas, argumenta que “modos biológicos de conhecer
o mundo e modos de digitais de conhecer o mundo são colocados em diálogo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


o trabalho com a imagem gera formas não previstas de relações entre objetos

recalcitrâncias na tessitura da política de combate. Isso porque, o que arquivo


visual não pode ser tomado desde uma pretensão realista do experimento cien-
e captura aspectos desse artefato a

educacionais e outras práticas sociais. É, aqui, que as imagens implicam o cur-


rículo. No vídeo de apresentação do DLO, o ,
por exemplo, professores são convidados a realizar o experimento de liberação
327
dos mosquitos com nas escolas. O experimento basicamente consis-
te em colocar ovos do mosquito com a bactéria em um ambiente com água e
alimento dentro de uma caixa protetora coberta com uma tela e acompanhar os
estágios da metamorfose do inseto.

Um fator importante dessa história é como a imagem “que atua sobre nós em
-
ção do arquivo visual é importante para o programa, não apenas porque
ampliaria o número de mosquitos com as bactérias nos ambientes ou porque o
criaria uma população civil treinada para trabalhar e reconhecer os mosquitos
transmissores de vírus. É importante, sobretudo, porque a inteligibilidade da mis-
tura é fortemente afetada e dependente da convocação da imagem à guerra. Mui-
to embora tenhamos nossas dúvidas de tomar tal prática um exemplo de ciência

associação com o idioma militar, o arquivo visual não deixa de testemunhar um


regime através do qual se permite uma organização alimentar a própria variação.
Todavia, podemos sugerir que que a imagem nos faz olhar não para uma ciên-
cia em geral e abstrata, mas para uma ciência que se exprime por “obsessões,

visual do traz “mais do que um saber em formação, [é] antes um saber


em movimento que aos poucos se constituiu, pela ação – aparentemente errática

Porém, seja de que for, por meio de uma série de experimentos imagéticos –
vídeos, desenhos, esquemas, disponibilidade de canais para comunicação – o
não deixa de ser enquadrado como mais sociável que o Aedes, mesmo
quando um está embutido no outro. O é melhor não somente em virtu-
-
no-imageticamente criados são criados conosco e por nós. A virada visual está
nesta mobilização de alianças afetivas. Enquanto outras políticas de combate
328
dependem do Estado adquirir meios de acessar a população e no controle dos
hábitos humanos como forma de reduzir as contaminações, O WMP é condicio-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

nado pela mobilização das imagens criar o de acordo com afetos de in-
timidade – o Heróis contra a dengue, no título de uns dos vídeos. Nem o Aedes
nem a bactéria estão contra nós, eles estão conosco quando se percebe que as
imagens participam desse enovelados de obrigações articuladas nos emaranha-
dos de naturecultura

regimes de propriedade, afeto e domesticação dentro de um império colonial. A


domesticação nos obriga a repensar modelos de controle total e resistência resi-
liente. Nem o Aedes estará exterminado, nem o testemunha uma altera-
ção genética através da qual o mosquito abandona sua necessidade de sangue.
permitirá sobreviver à epidemia.
Muito pelo contrário, as imagens relações afetuosas como condição para um tra-
não planejada e por guerra rigorosamente promovida. Na verdade, as “margens

diálogo com outras espécies, não nos deixa nenhuma certeza de como os mun-
dos das alteridades interespécies deveriam funcionar. Ao navegar entre educação,
ciência e estado, o arquivo visual complicam a pretensão de história das políticas

aliança nas quais nem os efeitos nem os parceiros estão garantidos, inscrita em

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


um pragmática imagem, isto é, em sua ação no mundo, ao invés de princípios
morais abstratos.

É, em virtude disso, o arquivo visual não é simplesmente o lugar da

um público mais amplo e, quase sempre, leigo. Antes, expõe como práticas

outras e como ocorre a tradução e a comunicação entre elas. Tomar o


como imagem é cartografar como é como incarna e performa um objeto afetivo
relacional, ao mesmo tempo, biológico, educacional e estatal. Nesta direção,
329
já que não é mais possível combater as arboviroses transmitidas pelo Aedes
sozinhos , é preciso juntar forças ao mosquito e a bactéria, aliar-se, se não para
ganhar a guerra, ao menos para sobreviver a ela. A guerra não é mais tanto con-
tra o mosquito e, sim, contra o invisível vírus -
locar-se da separação radical entre o mosquito e o humano para uni-los em um
combate? Enlaçar histórias que eram construídas em cima de um clima bélico de
-

Um passo para promover esse respeito é, ao que parece, convocar a imagem


para tornar-se um meio de cultivar a aliança diante e dentro do combate, apro-
ximando um parceiro, uma espécie companheira, para realizar outro sequestro

10 Os vírus pesam como aquilo que jaz excluído do complexo enquadramento dessas teias emaranhadas de tecnologia, ciência e edu-
cação. No entanto, extrapolaria aos limites deste texto explorar o enredamento imagético que estamos explorando nesta direção.
Aedes é quem traz a doença, o Wol-

bactéria e tecnologia. O que estamos sublinhando é, assim, que um aspecto


deste arquivo visual é como as relações interespécies, fomentadas por institui-

performadas através das imagens. Não seria sem propósito, portanto, aproximar
a convocação das imagens à guerra de um trabalho de tornar-se com, de modo
que impulsiona o currículo para um tornar-se com outros, sejam insetos, bac-

, essa teia emaranhada de mosquitos, bactérias,


tecnologia e vírus é uma parte extensa, embora nem sempre considerada, da

lugares e coisas em contínua relação de deriva, a imagem traça um conjunto

intermitentemente presente para nós mesmos, cada um de nós um para-self


330
Para-selfs têm uma relação subsidiária conosco, podem ser irregulares, desorde-
nados ou impróprios. De tal modo, as imagens também são, aqui, para-sites, ao
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

-
rentes dependendo de suas posições em relação a outros seres que vivem com

subjetividade como um agenciamento, uma montagem de seres e coisas que


chamamos de nossas, não é despropositado concluir que ações orientadas para
o combate aos outros os incluem no próprio agenciamento e, no arquivo visual
, só podem fazê-lo através da imagem, ou ainda, da imagem como meio,
como um campo de montagem e aliança, de montagem de alianças. Neste com-

xii) é instrutiva: “Nunca pense que você conhece todas as espécies envolvidas

da universalidade da ciência e da narrativa da composição de seus objetos e dis-

como se é submetido a um campo de afecção que espraia a atividade das prá-

transformação e mutabilidade.
Alianças eco-imagéticas, imagem-vetor

FIG. 3 _ Abertura da sessão sobre o Aedes no site Wolbito na escola

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


331

Com esta imagem do Aedes, nós nos voltamos, agora, para a provocação de
às vezes uma ‘cura’ para o que nos mata, seja o

funcionando no nível ao qual nós (quem?) nos acostumamos

esses animais são tratados e encaminhados à morte, levando a normalização da


morte do outro por um bem humano maior, nossa questão não é tanto indicar
que as imagens tornariam mais palatável a manipulação laboratorial de mosqui-

como a imagem, junto com a bactéria , é convocada a também com-


por o mosquito em laboratório nas múltiplas camadas das políticas de combate
-
camento, entretanto, a imagem, tanto quanto a agulha da microinjeção, torna-se
um vetor de relações. Nossa insistência em implicar currículo e imagem a partir
do arquivo visual é por suspeitar que, nesse retorno imageticamente
mediado, caberia à educação suspeitar da persistente lógica de matança, aquela
-
ão é matar que nos leva ao exterminismo, mas sim tornar
os

O título desta sessão conclusiva possa soar um tanto tentador. Contudo, não
estamos reivindicando nenhuma inocência sob o título de alianças eco-imagé-

retrabalhados pelo currículo e como suas ressurgências e recalcitrâncias giram


em torno da vida e da morte. É, bem verdade, que
o parasita é uma fonte de vida. Porém, em alguns momentos, sugere que deve-

332

recebe, [..] quem ganha e quem perde, e onde a hostilidade começa dentro da
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

-
rior, o quão provocador o pode ser ao não se concentrar na erradicação

convida a bancar um jogo afetivo relacional interespécies. Produto de um pro-


grama global de combate às epidemias transmitidas pelo mosquito Aedes, o ar-
quivo visual é um artefato que, ao ser performado, torna-se uma aliança
eco-imagética, cujas condições de possibilidade emaranham currículo, práticas

se debelam, quando a política de combate – e seu correlato apelo à distância


e ao extermínio – desloca-se para o idioma da domesticação – e seu pedido de
proximidade e intimidade.

Esperamos, entretanto, que considerar essas alianças eco-imagéticas não soe


como uma alternativa branda. Alianças sempre envolvem uma violência constitu-
ão implicam um vale tudo para todos, muito menos holismo
integrador e transcendental. Alianças eco-imagéticas envolvem muitas espécies,

Alianças eco-imagéticas são um nome que, longe de apostar nas imagens para re-

-
dade de perspectivas. Em resumo, nós buscamos escapar da fadiga crescente com
o idioma da guerra aplicado aos parasitas que vivem no corpo humano, notada

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
sos e imagens que são aplicados a organismos indesejados.

Embora uma sensação de segurança, de não ser devorado por animais selva-
gens grandes e ferozes, seja visceralmente poderosa, os humanos são mortos

descritas como de sucesso evolutivo, os mosquitos e vírus mataram juntos mais

-
333
tativas de tornar os espaços de interação humano-não-humano seguros, o arquivo
visual não deixa de testemunhar, à contrapelo, uma agência tenaz, adap-
-
manas, mosquitos, bactérias e vírus não podem ser separados, mas coexistem ao

-
teiras rigorosamente policiadas e extermínio implacável que a educação deveria

materiais, [e é] sua diferenciação contínua e não sua integração, que torna a vida

uma solução para o problema de viver com essas criaturas, tratamos de apontar,
ao longo deste texto, para como as imagens convocadas à guerra inserem um
persistente murmúrio: pensemos currículo com cuidado. Pensar com cuidado é
um requisito vital para estar em mundos interdependentes, nas palavras de Bella-
e imagens. As imagens podem servir, assim, como um campo de aprendizagem
de repensar cuidadosamente o currículo desde nossas relações com espécies

nos assolam é que a imagem, mesmo diante, ou ainda em virtude de estar den-
tro de campo saturado de poderes, é um vetor que aponta para a imaginação de
outros e novos mundos. Uma imagem-vetor transmite e inocula o sinal deles nos

estruturas frágeis do conhecimento humano, cheio de estranhos à espreita que


podem ser amigos ou inimigos.

Alianças eco-imagéticas são uma dança complexa que equilibra as forças da


vida, do crescimento e do cuidado, de um lado, e da morte, da decadência e
da dissolução, do outro, ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Esperamos que
o arquivo visual possa ter mostrado as diferentes maneiras pelas quais
-
mos ter demonstrado as maneiras pelas quais vulnerabilidade, violência e morte
são parte de compromissos contínuos e generativos com outros não humanos,
334
em vez de serem elementos negativos que podem ser reprimidos, ignorados ou
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

inocente, nem bom para todos os envolvidos, mas um processo desajeitado e

imagéticos que são convocados à guerra.


Referências
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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


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336

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QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

Society and Space

When species meet.

Modest_Witness@Second_Millenium.FemaleMan©_Mee-
ts_
OncoMouse™
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The emergence of multispecies ethnogra-
Cultural Anthropology

Journal of Linguistic Anthropo-


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Políticas da natureza
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O Biológico

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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


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Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial

. São Paulo: Cosac

Environmen-
tal Humanities
Estudos multiespé-
cies: cultivando artes de atentividade. ClimaCom
338
TÍTULO

15.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
AS IMAGENS-
CINEMA COMO
MÁQUINAS DE
GUERRA DO 339

PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E
DOCÊNCIAS E...
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves
Eliana Aparecida de Jesus Reis
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves (UFES)

Esta escrita-ensaio-experimentação foi produzida por afectos, intensidades e


experiências. Inspiradas em Deleuze, inventamos uma composição de escrita

com os signos artísticos das imagens-cinema, com os intercessores teóricos, com

demais, e que entra em relações de corrente, contracorrente, de redemoinho

340 A experimentação que provocou esta escrita foi um movimento de (tentar) li-
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

nos encontros com as imagens-cinema. Experimentar conceitos. Abrir nova vida.

na crença de um mundo. Acreditar no mundo como forma de resistência para

escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície

Nesta escrita-ensaio-experimentação trazemos alguns encontros com as ima-


gens-cinema a partir de três curtas-metragens: Piirongin Piiloissa, Comme um
elephant dans um magasin de porcelaine e The song for rain. Ao entrar em rela-
ção com os signos do cinema, propusemo-nos uma experimentação intensiva:
quais afecções são produzidas? O que nos é forçado a pensar nesse encontro
com as imagens-cinema em relação a currículos, docências, escolas? De tão
violento o encontro, o que o nosso pensamento não suporta pensar e, de tão
intenso, provoca rachaduras, rasuras, linhas de fuga?
É a violência de um encontro com uma exterioridade que dá lugar à
problematização, à
“[...] a verdade, levada ao nível dos problemas, liberada de toda conexão de
adequação a uma realidade exterior pressuposta, coincide com a emergência do

podem dar a pensar de outro modo?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
contros com os signos artísticos, podem engendrar pensamentos intensivos para
problematizar sentidos outros de currículos e docências e aprendências e vida...

O pensamento e seu fora: encontros, signos, afetos

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encon-


tro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre 341
de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação
verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensa-

se revelar como um afeto ou potência de afetar, relação entre corpos e afecções,


efeitos do devir, troca e captura; e implica em relação e experimentação, com-

é efeito de encontros, composição de relação e variação de potência, de forças,


de perceptos e afectos, experimentação.

A origem do ato de pensar implica alguma coisa que violente o pensamento, que
o abale e o arraste numa busca, constituindo-se em um problema. Ao invés de
uma disposição natural, há forças instigadas fortuitamente, provocadas por um
encontro. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento e a violência pro-
vocados pelo encontro, entendidos como uma relação que se estabelece com o
exterior, com o fora.
Dessa forma, ao entrar em relação com o fora, o pensamento assume as con-

impensável, alojando-se sobre um chão movediço não dominado por ele para
além da imagem dogmática que se assenta, a priori, em uma forma ao fora. Nes-
se tipo de imagem, que se exprime no modelo da recognição, há a preexistência
de um objeto no qual o pensamento deve se alicerçar. “O objeto pensado é
menos o objeto de uma descoberta do que o objeto de um reconhecimento,
pois o pensamento, não estando em conexão de absoluta estranheza com o que
ele pensa ou se esforça por pensar, antecipa-se de algum modo, prejulgando a

O pensamento não é exercido ao extrair o conteúdo explícito de uma coisa,

uma diferença. Assim, “[...] o encontro com um signo em um corpo intensivo,


movimenta o pensamento em processos de diferenciação aprendente, produzin-
do dobras que caminham da virtualidade para a sua atualização e realizaçã

342
heterogeneidade das maneiras de viver e de pensar para decifrar as suas impli-
cações e atravessamentos para fazer emergir o novo.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

-
tro; “[...] sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento,
O encontro com as imagens-cinema
como máquina de guerra do pensamento nômade
Para compreender a máquina de guerra, precisamos falar do nomadismo, pois,

(pontos de sobrevivência, de água, de habitação, de assembleia etc.). Mas é

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Mesmo que os pontos determinem trajetos, estes estão exatamente subordina-
dos aos trajetos estabelecidos por eles, ao contrário do que sucede no caso do

343

lugar fechado, atribuindo a cada um a sua parte, e regulando a comunicação

um espaço sem fronteiras, não cercado.

Enquanto o espaço sedentário é estriado, apresenta muros, cercados e cami-

-
caso do sedentário, em que sua relação com a terra está mediatizada por outra
coisa, por exemplo, regime de propriedade, aparelho de Estado etc.

um território. A terra deixa de ser terra e tende a tornar-se simples solo ou supor-

que se forma um espaço liso que corrói e tende a crescer em todas as direções.

Fazer do pensamento uma máquina de guerra é colocar o pensamento em rela-


ção imediata com o fora, com as forças do fora, que “[...] não é de modo algum
344 uma outra imagem que se oporia à imagem inspirada no aparelho de Estado.
Ao contrário, é a força que destrói a imagem e suas cópias, o modelo e suas
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

pensamento em um espaço liso, que ele ocupa sem medi-lo e para o qual não
há método e/ou reprodução possível, mas somente “revezamentos, intermezzi,

nem para constituir modelo e nem para fazer cópia. Assim, uma máquina de
guerra do pensamento é formada

[...] por um pensamento às voltas com forças exteriores em vez de ser


recolhido numa forma interior, operando por revezamento em vez
de formar uma imagem, um pensamento-acontecimento, hecceidade,
em vez de um pensamento-sujeito, um pensamento-problema no lu-
gar de um pensamento-essência ou teorema, um pensamento que faz
Enquanto o aparelho de Estado limita o elemento-problema para subordiná-lo a
um teorema com suas proposições demonstráveis, a máquina de guerra é o pa-
radigma da experimentação que instaura um devir-problematizante, ameaçando
tudo aquilo que é da ordem do saber, como conquista ou posse. E qual a relação
que fazemos das imagens-cinema como máquinas de guerra do pensamento?

pensamento, com a ressalva de que não carece de conceitos, mas de sensações

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que produzem subjetividades na medida em que causam um estado de estra-
nhamento entre o olhar e o desenrolar da história. “É uma força que nos leva ao
movimento do pensar, que propicia encontros, experiências, que nos possibilita
a surpresa, o choque, o silêncio, a indagação. Permite-nos habitar outros/novos

Assim, entendemos as imagens-cinema como campo possível de experimenta-


ção do pensamento e, como máquina de guerra do pensamento, elas disparam, 345
forçam o pensamento, colocam-no em movimento, produzindo o novo, a dife-
-
nando outros/novos modos de pensar. “Algo só é experimentado, só consiste,
no sentido forte, quando posto numa perspectiva que desloca pontos de vista,
-

Dessa forma, a nossa experimentação aqui consiste em, no encontro com as


imagens-cinema, liberar tantos seres e coisas que pensam em nós, pois “[...]
somos viventes, intensos e pensamos tão somente enquanto pelo menos algum
EXPERIMENTAÇÃO 1:

Piirongin Piiloissa
Caixas, compartimentos, sequências, números, horários, gavetas. Choca-nos o
curta Piirongin Piiloissa1 quando acompanhamos a sequência de imagens cujas
gavetas armazenam ordenadamente tudo aquilo que aparentemente correspon-
de aos elementos essenciais à
pequena gaveta, lá está o despertador tocando para avisar que é hora de acor-
dar. Fecha. Abre outra que contém apetrechos para fazer e tomar café; há outra
com linhas e adereços ordenamente arrumados; há ainda outras gavetas onde
são guardados esquadros, réguas, pequenos cartões com fórmulas matemáticas;
uma outra onde os objetos/caixinhas estão organizados em ordem de tamanho.
Abre gaveta. Fecha gaveta. Movimentos síncronos. Manter-se ordenada, organi-

Como não bastasse, a

346
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

IMAGEM 1 _ Estratificação. Segmentaridade. Sobrecodificação

Fonte: Piirongin Piiloissa

1 Piirongin Piiloissa é um
em inglês como Chest of drawers, ou Cômoda, em português (tradução nossa. Dispo-
nível em: ).
O que nos violenta no encontro com os signos artísticos do curta-metragem é
o quanto nos reconhecemos na personagem, capturados pela produção de dis-
cursos-formas que operam em planos de subjetivação do indivíduo, no plano

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


encontro com a imagem, o que o nosso pensamento não suporta pensar é que,

347
Isso ocorre nos modos pelos quais temos produzido processos de ensinoaprendi-
zagem com as crianças nos quais, muitas vezes, há um anseio pela manutenção
de gavetas: de conhecimentos, de horários, de etapas, do tempo chronos. Pres-
crição. Mecanização.
aprender, é necessário abrir e fechar os compartimentos do conhecimento. Para
tal, devemos seguir as batidas do tempo chronos, que sempre está de prontidão
para indicar o momento de abrir e fechar as gavetas. As crianças, as professoras
e os currículos bailam na cronometria desse tempo que corre e, muitas vezes,
escorre pelas mãos.

-
tenção das suas gavetas. Entretanto, por mais que as práticas discursivas ambi-
cionem o condicionamento dos corpos, na manutenção de currículos prescriti-
vos e regidos pela cronicidade do tempo, sempre há escapes, outros modos de

quando, abraçada à -
tantes, o tempo chronos chronos logo
volta a operar e a manta é guardada de volta na gaveta, seguindo-se, assim, as
suas atividades corriqueiras e cadenciadas de abrir e fechar gavetas. No encon-
-
ta, perguntamo-nos: qual o lugar dos afetos/afecções em meio à mecanização e
à regulação da vida?

Por mais insistentes que sejam esses discursos em manter-se intocáveis e imutá-
veis, no que concerne aos processos de ensinoaprendizagem, os corpos sempre
buscam pelos afetos e afeções. Por isso, mesmo que um corpo se mostre despo-
tencializado, “[...] endurecido em suas ações e pensamentos, e, insensível ante
as miudezas da vida, ele pode, no encontro com um signo (uma coisa, uma
música, uma poesia, um cheiro, um corpo), ser afetado por outra forma de exis-

há o fora que provoca processos de desterritorialização convidando a seguir ou-


tros caminhos aprendentes, mais coletivos e afetivos, cujo tempo não consegue
ser demarcado. Por isso, ele escorre pelas mãos, uma vez que as intensidades
ocupam uma outra temporalidade. Como fazer escapar afetos/afecções para in-
348
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

IMAGEM 2 _ O caos se instaura

Fonte: Piirongin Piiloissa


-
gura, ordenada, modelada e confortável, algo de fora pudesse tocá-la e desor-
ganizar as suas gavetas? O inusitado acontece quando uma criatura (será uma

uma multiplicidade de forças e relações de afetos que se convertem em um


pensamento da experiência para nós. Em movimentos de desterritorialização, a
é instigada a sentir a vida de outro modo. Nessas desor-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ganizações se constroem (des)caminhos aprendentes. As gavetas bagunçadas,
desordenadas, com elementos que nunca sequer tinham contato, fazem com

sempre em produção. Produção de produção. Uma força penetra, insinua-se em


outra forma, na brecha, na exterioridade, no fora. “O de-fora surge dentro como

áquina de guerra.

Os movimentos da criatura-traça distribuem-se nas gavetas, ocupando o espaço


e preservando a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já não
349
vai de um ponto a outro, de uma gaveta a outra, mas devém incessantemente,
sem alvo e nem destino, sem partida e nem chegada. A máquina de guerra “[...]
tem por objeto um espaço muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa

-
torializa e desterritorializa, faz do fora um território no espaço, consolida esse
território mediante a construção de um segundo território adjacente, “[...] des-
territorializa o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritoria-

criatura-traça-máquina-de-guerra é ela mesma uma “[...] pura forma de exte-


rioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade
que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de
-
ção e conservação.
Pensar é habitar o risco. O corpo-pensamento como corpo ético-estético-polí-

e conservação da oposição moral certo versus errado, ordem versus desordem,


dentro versus fora na composição de coletivos para manejar outros possíveis de
si e do mundo.

em um espaço aberto traçado pela criatura-traça em meio às coisas lineares e só-

trata-se da “[...] diferença entre um espaço liso (vetorial, projetivo ou topológico)


e um espaço estriado (métrico): num caso, ‘ocupa-se o espaço sem medi-lo’, no

pois os caminhos de aprendizagens são sempre um mistério cujos desdobra-


350 mentos derivam na amplidão das afecções que os corpos estão dispostos a pro-
duzir. São virtualidades que se atualizam e, na íntima relação afetiva dos corpos
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

com outros corpos e signos, desterritorizamos os pensamentos e produzimos


uma vida que anseia por composição. Olhamos para fora, ambicionando olhar
áquina desejante que criam e
fabulam aprendências.
Experimentação 2:

Comme un elephant dans un magasin de porcelaine

IMAGEM 3 _ O vendedor e as porcelanas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


351
Fonte: Comme un elephant dans un magasin de porcelaine

O que de pior poderia acontecer em uma loja de objetos frágeis como porce-
lana? No curta-metragem de animação Comme un elephant dans un magasin
de porcelaine,2 o vendedor atento cuida de cada objeto de modo a garantir que
xícaras, pires, pratos, bules, jarras e peças de decoração de porcelana estejam
sempre bem limpos e dispostos meticulosamente nas também frágeis prateleiras

enorme elefante azul adentraria misteriosamente a pequena loja? Elefante e

prateleiras de vidro, o lustre de cristais e as delicadas (e lindas) peças de porce-


lana, o enorme elefante tenta se contorcer e se mover em direção à única saída
para a porta.

2
-
IMAGEM 4 _ O inusitado acontece

352
Fonte: Comme un elephant dans un magasin de porcelaine
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

Aqui, os agenciamentos coletivos de enunciação se dão por meio de um con-

música cadenciados pelos movimentos dos corpos, dos gestos, dos objetos. “Um
agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplici-
dade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas

O que a força intensiva, provocada pelo encontro com a imagem-cinema, pro-


duz em nós, fazendo proliferar multiplicidades? Arrebatamento. Ressonâncias e
interferências instauram em nós um pensamento outro que faz deslizar as nossas

relacionado com a brutalidade e a força física em contraste com a fragilidade


das porcelanas. Ao mesmo tempo em que o elefante é grande, rude e pesado, ele
age com leveza e delicadeza ao pegar um vaso de porcelana que estava prestes
a cair devido ao susto do vendedor ao se deparar com o animal dentro da loja.
Como imaginar a delicadeza em um enorme elefante azul? Será possível o en-
contro entre a singeleza do enorme elefante em confronto com a delicadeza das
pequeninas peças de porcelana e o organizado vendedor no desejo de equili-
brar os desequilíbrios do elefante, do vendedor e das peças de porcelana? No
encontro com as linhas de segmentaridade dura ou molar, que produz uma terri-
-
roubo das linhas de desterritorialização que causa uma ruptura. Para Deleuze e

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


de fuga ou de desterritorialização, e elas mudam de natureza ao se conectarem
às outras.

nunca. Então, o que fazer?

[...] instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que


ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos 353
de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegu-
-
mento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço
de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estra-
tos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e rugir os
-

Conectar. Conjugar. Entrar em relação. Para os autores, imersos em uma for-

nós e em nós, para irmos dos estratos ao agenciamento mais profundo no qual
estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile... Conexão. Fluxos.
Experimentação.

Em uma articulação de forças, somos capturados pelos arroubos que o efeito das
imagens-cinema provoca em nós. O que nos dá a pensar? A força do pensamen-
-
ter umas às outras, pois os movimentos de desterritorialização e os processos de
reterritorialização estão presos uns aos outros, coexistem e se complementam.
Os caminhos de aprendências com as crianças também têm dessas coisas: ser
sensível à delicadeza e singularidade delas e caminhar junto aos (des)equilí-
brios curriculares que elas produzem. Talvez o professor seja como o cuidadoso
vendedor que, no encontro das crianças com os signos, sensibiliza-se às suas
criações e atualiza as virtualidades fabuladas por elas, produzindo, assim, pos-
sibilidades inesperadas para caminhar por currículos imanentes que escapam à
lógica de controle imposta pela ciência moderna.

Tratado de nomadologia

guerra é o dos afectos, que remetem a velocidades e a composições de veloci-


dade entre os elementos, tem-se, assim, que “[...] os afectos são projéteis, tanto
O agenciamento produzido com porcelanas e elefante

multiplicidade de elementos singulares, produziu em nós afecções para proble-


matizar a máquina de guerra do pensamento no sentido da invenção: “Aprender
354
a desfazer, e a desfazer-se, é próprio da máquina de guerra: o não-fazer do guer-
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

É no encontro entre o elefante e as porcelanas e o vendedor que a produção de


processos afetivos acontece. O elefante, com medo do inesperado, aspira a um
acolhimento e, no contato afetuoso do homem cuidadoso, o medo e o pavor de
se ver preso em um espaço pequeno e inóspito transformam-se em calmaria. Em

juntos, criam um caminho para passar pelas apertadas prateleiras de vidro com
as delicadas porcelanas em direção à saída. Juntos traçam possíveis, mas quan-
-
mente desaparece do mesmo jeito que apareceu, abruptamente.

Entretanto, o que nos afeta aqui não é a saída do elefante da loja, mas os agen-
ciamentos produzidos, os afectos que criaram movimentos, velocidades, inten-
Nas criações aprendentes que produzimos com as crianças, os signos que por
elas são fabulados, às vezes, podem parecer enormes elefantes que, no plano da
virtualidade, buscam a atualização. Afetar-se às fabulações das crianças corres-

essas virtualidades se atualizam e se realizam em mundos compossíveis, cria-


ções imanentes de currículos aparecem misteriosamente indicando-nos (des)ca-
minhos inusitados de proliferação de aprendências com as crianças.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Experimentação 3:
The song for rain
A relação professor, aluno e as aprendizagens e ensinagens tem os seus misté-

produzidos nesse processo, sempre no exercício de problematizar as interações

The
355
song for rain convida-nos a colocar o pensamento em movimento, no sentido
3

A pequena raposa busca meios para coletar um pouco de água de chuva que
cai incessantemente. A água escorre pela organização cinza da metrópole, cujos
prédios, praças e pessoas demostram certa apatia pela cidade. Porém, a raposa,
em seu pelo em tom alaranjado e munida de uma pequena sacola furada, cor-
re por todos os cantos em busca de um pouco de água. Um menino com seu
guarda-chuva é capturado
poderia ser uma boa alternativa para coletar a água de chuva. Aproxima-se, en-
tão, da raposa e, agarrado a ela, sai correndo, pois imaginava qual deveria ser a
resolução para aquele problema.

3 Curta-metragem em animação dirigido e escrito pelo chinês Zheng Ya Wen (2012).


IMAGEM 4 _ O encontro

Fonte: The song for rain

Muitas vezes, nas relações com as crianças, acreditamos ser possível indicar
os caminhos e meios para a aprendizagem, assim como fez o menino, obser-
356 vando de longe o problema e, imediatamente, buscando a solução. Todavia, as
aprendências e as ensinagens acontecem nas relações, no contato, na criação
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

de mundos e nos acontecimentos e agenciamentos que os encontros produzem.

O menino, então, segue para uma loja para comprar um pote e resolver o pro-
blema da raposa, mas, com poucos recursos, sai da loja frustrado com a peque-
na raposa e seu guarda-chuva. A raposa segue com a sua sacola em busca de
água e o menino abre o seu guarda-chuva para tentar proteger a raposa. Prosse-
guem caminhando menino e raposa, até que o inesperado os surpreende e, no
envolvimento afetivo, outras possibilidades de criação de caminhos aprendentes
se manifestam. Um vento inesperado leva o guarda-chuva que cai no chão vira-

usado de outro modo, pode servir de coletor de água de chuva. Eles saem em
busca das pequenas gotas pela cidade. A cada gota de chuva, o menino e a ra-

modos de agenciamentos, desterritorizalizando, juntos, caminhos aprendentes


que, na relação, ambos ensinam e aprendem.
IMAGEM 4 _ Composição de afetos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


357

Fonte: The song for rain

Tal qual a relação professor-aluno, ora ensinamos, ora aprendemos, ora fazemos
as duas coisas ao mesmo tempo. Mecanismos de controle instituídos em proces-
sos educativos, quando orquestrados pela lógica de um desenvolvimento linear
e progressivo da aprendizagem, tentam reduzir a docência à mera mecaniza-
ção dos processos de aprenderensinar. No encontro com o corpo-escola, nosso
corpo-pensamento é sacudido por um cotidiano encharcado de vida imanente
em que há inúmeras possibilidades de fazer a vida expandir. Desse modo, a
relação entre quem aprende e quem ensina extrapola os modelos padronizados
de currículo, de docências, de crianças. No corpo-escola, “[...] experimentamos
os possíveis de um currículo ‘arteiro’, implicante, em composição/relação com
outros corpos, fazendo proliferações com múltiplas variações, tensionadas por

Um corpo sensível afetivamente em encontro com outro atualizará virtualidades


na composição de currículos, produzindo processos de ensinoaprendizagem.
Construir aprendências com as crianças requer coragem para coletar gotas de

menino despede-se da raposa. Ela leva a água para um lugar ensolarado, cheio
árvores, uma paisagem bem diferente da cidade metropolitana.

-
poral: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as

358 no corpo, uma afecção que aumenta ou estimula a potência de agir e, na mente,
é uma ideia que aumenta ou estimula sua potência de pensar.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

Em sua ontologia, Spinoza apresenta que corpo e mente são modos de uma
mesma substância, na qual um corpo se distingue de outro por meio de uma
dinâmica própria: “Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo re-

spinozano, pela composição de outros indivíduos: “O corpo humano compõe-


-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também

várias maneiras: “Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequente-


mente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas

um sistema fechado e passa a ser concebido como uma pluralidade mantida


por uma série de trocas com o ambiente. Os “[...] afetos não têm imagem, nem
Devido ao fato de vivermos em relação, sendo esta que nos constitui, podemos

(movimento e repouso, velocidade e lentidão) e também pelos afetos produzi-


dos por outros corpos. A capacidade de um corpo ser afetado por outro deve-se

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ao grau de complexidade de sua composição interna. Composições: menino,
raposa, guarda-chuva, cidade, chuva. Somos constituídos na relação com o fora
entre dobras, gritos, silêncios, formas, forças, tempos, percursos... Somos enre-
dados nos encontros vividos com a escola em suas composições que seguem
“[...] deslizantes por entre os dedos endurecidos das máquinas de controle que
tentam capturar o corpo- currículo, o corpo-docência, o corpo-criança no coti-

mesma. Ambos se afetaram. Criaram, fabularam e construíram caminhos para as 359


aprendências a partir dos acontecimentos que experimentaram. Nós também já
não somos mais os mesmos...

Linhas, composições, itinerâncias traçadas nos encontros


Nesta escrita-ensaio-experimentação, produzida a partir dos encontros com
as imagens-cinema, apostamos nas diferentes linhas que compõem um corpo
vibrátil, corpo coletivo que move o pensamento, impulsiona-o, tenta fazer de

inventivo e intensivo, para experimentar currículos e docências e aprendências


e escolas e vida.

elefante e vendedor e porcelanas e menino e raposa e guarda-chuva e cidade


produziram em nós afecções. Como uma máquina de guerra, as imagens-cine-
para dar lugar a outros movimentos, um pensamento novo... Como máquina

-
riações de orientação e direção que engendram movimentos rizomáticos, tem-
porários e móveis, determinando mudanças de orientação dos percursos, das
certezas, para além da imagem dogmática do pensamento.

Ao entrarmos em relação com os curtas, habitamos espaços lisos e estriados, es-

pelas relações recíprocas entre si: de um lado, um espaço não polarizado, fun-
damentalmente aberto, não mensurável, povoado de singularidades e, de outro,

As imagens-cinema atuaram como disparadoras para fazer a língua delirar, ou


seja, para forçar o pensamento, colocando-o em movimento, produzindo o
novo, a diferença. Os agenciamentos no encontro com as imagens-cinema e

360 pegar delírio, gerando outros/novos modos de pensar, outras problematizações


AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

intensidades. Multiplicidades. Inventividade.

Nesses encontros com as imagens, entra-se em um movimento com


a vida, pois, ao se colocar em relação a uma imagem-corpo-com-
posição, busca-se experimentar a potência dos afetos engendrados a
partir dos encontros. As imagens-cinema criam potência de vida que
disparam intensidades, produzindo linhas que, ao habitar o plano de
imanência, levam à criação de maneiras de se pensar a vida da/na/
com a escola e, a partir dos afetos disparados, à possibilidade para
se pensar currículos, docência e infância. Nas imagens-cinema, há
encontros de corpos, onde diferentes vidas pulsam. A potência está

Assim, nas imagens-cinema, a vida pulsante está nos encontros engendrados


com o outro, possibilitados no espaçotempo da escola, o que produz diferentes
modos de existência, alteridade, formas de se pensar os movimentos curricu-
lares praticados no cotidiano escolar e sua relação com as docências e com as
aprendências e com a vida. A potência de vida presente nas relações impulsiona
a problematização dos modos de constituição de si surgidos na relação com o
outro e consigo mesmo. Assim, problematizamos a potência dos encontros para
dar a pensar outros sentidos para currículos e docências e aprendências enre-
dados à vida imanente, engendrada por meio dos afetos, afecções, linguagens e
conhecimentos que emergem nas/das relações.

Alguns questionamentos foram produzidos pela força intensiva do pensamento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
fante e as porcelanas e a loja e o menino e a raposa e o guarda-chuva e a cidade:

de experimentações curriculares e de docência? Como, nas afecções desse en-


contro, fazer ecoar o que mexe, gera, foge, devém, inventa, desliza, em vez de

modo esses (des)caminhos provocam movimentos de ruptura, de (re)existência e


potencializam novos processos de subjetivação, novas ideias/conceitos, conhe-
cimentos e invenções de currículos e de docências e de aprendências e de vida?
361
Assim, as imagens-cinema, como máquinas de guerra do pensamento, mobili-
zam e liberam uma carga de nomadismo e de desterritorialização, implicando
á um plano de
forças, de relações, que compõe o real social junto com objetos e sujeitos, “[...]
de modo aparentemente tão verdadeiro quanto o espaço-tempo que nos toca,
mas tão mutável quanto a nossa percepção em relação a ele. O que toca são
forças. Sempre há um conjunto de forças agindo em um lugar e o transformando
-
rículos e docências e aprendências como máquina de guerra implica apostar em
movimentos que se voltam contra a forma sujeição/servidão em direção a modos
de liberdade, como força intensiva de aposta e crença no mundo.

Os docentes e as crianças são aprendentes, estão em processos de aprendên-


cia, o que implica a compreensão da necessidade de colocar o pensamento em
movimento para muito além de modelizações curriculares e de docências. Tor-
na-se, então, cada vez mais imprescindível habitar um território como instância
provisória de experimentações para desterritorializar conceitos de currículos e
docências e apostar na articulação realizada no plano de imanência a partir de
uma rede de interações, pois é no encontro entre os corpos que as afecções são
produzidas. Portanto,

[...] nas relações entre crianças e professoras e crianças [...] as dobras


e redobras são produzidas, onde mundos compossíveis contagiam as
singularidades dos indivíduos e criam outros trajetos pelas dobras do
labirinto. Não há, assim, a pretensão de pensar que todos aprendem

labirinto de possibilidades, e cada criança percorrerá o seu à sua ma-

Os agenciamentos produzidos com as imagens-cinema são forças que levam


ao movimento do pensar, propiciam encontros, experimentações e possibilitam
surpresa, indagação, desterritorialização. Entre capturas e fugas do pensamento,
os movimentos de desterritorialização entram em uma zona intermediária, uma
zona de intensidade que, em um processo de reterritorialização, leva à constitui-
362 ção de territórios sensíveis rumo a uma vida outra e a um mundo outro. Assim,
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
Referências

escolar: a potência da imagem-cinema fazendo a língua pegar delírio. Mo-


mento
Conversações
Crítica e clínica

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

Diferença e repetição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra,

Mil platôs São P


Mil platôs
Mil platôs
As fabuloinvenções das crianças nos 363
agenciamentos dos currículos. -

REIS, Eliana Aparecida de. Currículos enredados por forças, afetos e afecções:
-

Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada.

. Tese (Dou-

Deleuze
364
16.
TÍTULO
OFICINAS ARTÍSTICAS
NA PERIFERIA:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


PRÁTICAS EDUCATIVAS
PARA APRENDER E
AFETAR O CORPO
COLETIVO
365

Lysia da Silva Almeida


Davis Moreira Alvim
Izabel Rizzi Mação
Lysia da Silva Almeida1
Davis Moreira Alvim2
3

Foi com questionamentos como esses germinando em nossos corpos que,

junto à comunidade do Território do Bem – região periférica localizada em

de Comunicação
um espaço educativo não-formal, onde se produzem, conforme a percepção
366
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

considerados como ‘menores’, menos sérios, ingênuos, por operarem muitas

é aberta para quem deseja construir ações que

entre outros formatos educativos – ainda que fora da institucionalização escolar.

3
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES).

4 -
-

locais.

5 -

6 -
ço de produção e divulgação de projetos de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários e eventos culturais.
várias temáticas e frentes de atuação artística. Este capítulo se dispõe a colocar
em foco algumas das atividades realizadas ao longo dos encontros, destacando
aquelas que nos mobilizaram a pensar uma arte-educação na qual, como indica
á espaço para a criação de novos modos de vida.

o encontro elaborado a partir de um material disponibilizado pelo Núcleo de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Uma arte-educação que experimenta
outros modos de vida
Existem formas muito diversas de pensar a arte e o campo da produção artística
de modo geral. Pelo menos desde a Modernidade europeia, contudo, opera-se

367
representação da realidade. No nosso entendimento, não se trata de perseguir a
arte da representação, pois não há nenhum problema com a arte cujo objetivo é
representar. Propomo-nos, porém, a abordar a arte atentando, em especial, para
seu aspecto inventivo e suas incursões no campo da experimentação.

A “arte é presença de algo que não estava antes; não se trata de revelação de

Compreendemos, aqui, que a arte é uma das formas pelas quais o sujeito se

que a arte tem a potência de compor linhas de fuga, criar afetos e multiplicar as

atividade criadora: ela cria blocos de sensações. A arte acontece por intermédio

a potência da arte reside nas sensações que experimentamos (DAMASCENO,


nossa intenção, com isso, desconsiderar o lugar da técnica artística, do estudo,
da preparação e da dedicação – fundamentais aos processos em artes. Assim

ão se faz arte de qualquer jeito, porque não

Com a abertura dessa perspectiva, procuramos destacar que há compreensões


sobre a arte nas quais ela já não ocupa o lugar daquilo que, de forma passiva,

contextualizados – para se deslocar pelo campo da experimentação. Nessa forma


de se relacionar com a arte e, também, de produzi-la, de vivê-la, de aprendê-

ansiosa por

[...] uma arte que seja motriz de uma docência que, ao mesmo tempo
em que se exerce, se experimenta, se (re)inventa e, fundamentalmente,
se vê num plano de construção ética, estética – e, mais do que
368 pedagógico, político –, atuando na diferença, sem pretender acabar
com ela, mas problematizando o consenso e as ideias prontas por
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

meio de devires, gestos e inscrições no mundo feitas de potência.


Em suma, essa arte em questão possibilitaria o exercício de outras
relações de poder no interior da aula mantendo, principalmente, uma

experimentar em si e com os outros diferentes modos de ser (SABINO,

A educação artística pode, então, atuar como uma potente fusão entre a arte e a
vida, uma experiência que não mais se associa “ao simulacro ou à elevação das
aparências do mundo, mas como projeto ético capaz de modelar a experiência

caricaturesco quando procura o “sentido fundamental de qualquer obra

morais das vivências artísticas, deságua em uma compreensão limitada e


para obter resultados pedagógicos. Para ele, a educação deve se preocupar em
estimular a criatividade e as aptidões criativas.

potencialmente artistas e que o espectador/leitor pode ocupar um papel ativo


diante da arte, pois o processo de criação e de percepção artística gera estímulos.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Além disso, consideramos que é importante entender que não se pode reduzir
a educação estética à transmissão de normas morais ou de um conjunto de

se desenha um sonho, uma criação do tempo presente que, como na intuição de


ção de relações afetivas e
modos de produzir afetos, compondo-se como uma prática ética voltada para a

possíveis para o corpo, a vida e a arte. Trata-se de pensar uma experimentação


artística que age não apenas contra a eternidade, mas também contra o seu
369
próprio tempo e, assim, opera sobre o tempo, em favor de outros mundos

Para forjar uma arte-educação que mais experimenta do que interpreta,


compreendemos que o elemento artístico na educação não pode ser apenas
um meio para expressar um contexto. A atitude estética é uma percepção e

um conteúdo que surge da vida, das experiências, das subjetividades e que,


portanto, extrapola as fronteiras dos espaços educativos, transbordando no
cotidiano e fazendo aparecer a diferença e o imprevisível do mundo comum

reduzida a uma apresentação de técnicas, explicação sobre correntes artísticas,


análise de obras, componentes de composição ou cores, pois “um ensino de arte
cujo foco esteja centrado nos códigos das linguagens artísticas pode facilmente

educação, ou fora dela, pode ser uma operação da ordem do afeto, do sensível
educação pela arte, extrapolando a obra de arte, os espaços tradicionais da arte
e, inclusive, os próprios artistas. Estivemos menos preocupadas em transmitir
conteúdos e mais inclinadas a ver a arte-educação como uma experimentação de
modos de vida, de criação de modos de vida e, portanto, de focos de resistência.

que nasce, por assim dizer, também no meio das artes, com Antonin Artaud.

não é uma noção ou conceito. Ele é,


antes, uma prática, uma experimentação inevitável, um limite, um devir outro
do corpo. O CsO passa pela busca de novas formas de experimentar a vida e
coloca o corpo no movimento das sensações e das afetações. Ele intenta compor
subjetividades outras, já não mais assujeitadas às capturas dos dispositivos de
poder, traçando um mundo e produzindo outros modos de ser. A arte pode,
portanto, despertar potências do viver, convidar a uma experimentação e
370
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

entendendo-a como um movimento que pode tensionar limites, provocar rasgos


e desterritorializar aquilo que os dispositivos de poder organizam e colmatam.

Oficinas artísticas na Varal:


aprender com fotografia, ilustração e literatura

ainda, por esse campo experimental para o qual a arte nos convoca –,

presa, exclusivamente, ao domínio dos artistas, pensamos que, enquanto


professoras, “deveríamos aprender com os artistas a inventar a nós mesmos, a
de que os espaços de cultura tradicionais da cidade estão simbolicamente
distantes da população, pois algumas pessoas não se sentem autorizadas a
acessar esses espaços. Também ao longo desse encontro, conversamos sobre os
processos criativos, momento em que alguns dos participantes relataram seus
entendimentos sobre a arte. Muitos enfatizaram que a arte é política, uma forma
de expressar suas percepções e deixar sua marca no mundo. Ou seja, ela não

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


deveria estar restrita aos espaços dos museus ou salvaguardada por um pequeno

quadrinista e morador do Território do Bem – fez algumas considerações sobre

algo necessariamente partidário ou vinculado a alguma ideologia. Só o fato de


Para Rocetti, a arte
está em tudo, no cotidiano, na vida corriqueira, e a produção artística surge daí:
quando alguém está sensível a algo no mundo e compartilha sua sensibilidade
371
em alguma produção artística, de modo que, ocasionalmente, encontra outras
pessoas que também se sensibilizam com ela, mesmo que de formas diferentes.

Movidas pelo desejo de trabalhar com a arte e, ao mesmo tempo, pensá-la com

Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca de São Paulo e distribuído gratuitamente


para professores, com o objetivo de realizar atividades em sala de aula. O
material é composto por uma série de envelopes coloridos, desenvolvidos em

que passaram por lá temporariamente. As obras são acompanhadas de textos

aos artistas responsáveis. Nesses envelopes também há textos de apoio, com


orientações aos educadores e propostas de usos. Um deles nos chamou atenção.
Trata-se de um incentivo aos professores e nos convidava a perceber o ensino
de arte como um estímulo para construir sentidos a partir das experiências. O
professor atuaria, assim, como um mediador e criador de possibilidades para
que os alunos percebam as obras e inventem sentidos para elas a partir de
nenhuma utilização rígida pode se impor à obra, porque o encontro com a arte
é sempre singular.

seu envelope, foi pedido que eles se imaginassem dentro da cena com a qual

integral daquela obra, antes mesmo de ler as informações sobre ela, a partir dos
sentimentos e afetações provocados por seu encontro com aquela cena.

Não desejávamos cumprir as exigências tradicionais de analisar uma obra a partir


das perguntas clássicas, a saber: qual o histórico do autor? Em qual contexto

ensino médio. Mas, por se tratar de uma tentativa de, justamente, desarticular a
institucionalização da arte, procuramos não dissolver a singularidade das obras
372 em questão numa grade conceitual rígida. O contexto pode ser importante em
outros momentos; ali, por outro lado, pretendíamos dar palco à surpresa, ao
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

acaso, ao improvável e, especialmente, aos modos pelos quais a arte afeta cada
corpo e, com isso, produz subjetividades.

vida, mas não consegue se adaptar ao mundo ou viver a liberdade.


FIGURA 1 _ Fotografia sem título (1976), de Cristiano Mascaro

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


373

Fonte:

O conto criado pela participante diz assim:

Tinha acabado de me dar conta: todas eram iguais. Figuras


perfeitamente moldadas em suas vestimentas e cortes de cabelo.
Todas falavam com o tom de voz ligeiramente agudo e amaciado e

Olhei para mim. Percebi que era uma versão caricata e disforme
dessas mulheres que sequer tinha certeza que existiam. Procurei por
todos os lados uma saída [...] Olhei vacilante para o grande papel
em branco que era poder ser qualquer coisa que não um manequim.
Desenhar a mim mesma livre. Sem saber o que fazer, voltei para a
caixa e tentei colar a porta, mas ela não encaixava mais. (Texto com
pequenas alterações gramaticais).
Nessa mesma dinâmica, um participante – cujo encontro se deu com a obra
Parede da Memória
aquela exposição era sobre sua própria família, que tentava recuperar sua
ancestralidade. A obra Parede da Memória é uma instalação de patuás nos quais
se registram fotos antigas de famílias negras, com intervenções de aquarela e
bordados. Nela, Paulino faz uma crítica à falta de representação negra nas artes
visuais, acentuando o modo racista como a sociedade brasileira se constitui,
invisibilizando a população negra. Esses elementos geraram muitos debates nas

dispostas no verso da imagem – sobre a autora e a obra –, elas se aproximavam

FIGURA 2 _
Detalhe da obra Parede da Memória (1994-2015), de Rosana Paulino

374
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

Fonte:
participante escolheu uma obra abstrata para criar sua história. Tratava-se do
quadro Ascens
Ela contou que viu na obra, sem ler o título e as informações, a imagem do

mundo, algo confuso, incompreensível e até impreciso. Para ela, entretanto,


era uma tentativa de entender a si mesma.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


FIGURA 3 _
Obra Ascensão definitiva de Cristo (1932), de Flávio de Carvalho

375

Fonte:
pintura – mostram que o encontro com a arte cria possibilidades, explora uma
vida possível, trama uma existência potente. Entendemos, a partir dessa dinâmica,
que a arte não pertence ao artista que a criou, não está presa ao contexto em que

antes, um território de sensibilidades estéticas, uma composição que pode nos


afetar.

técnica artística e consiste em colar algum material – recorte de revista, retalhos


de roupas, papel, madeira, objetos, entre outros – numa superfície qualquer.
Nesse sentido, entendemos a colagem como uma forma de ilustração. Na

de criar diante dos incentivos da artista e tivemos um momento muito prazeroso.


376
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

FIGURA 4 _ Foto da oficina de colagens

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.


nenhum momento fez um tutorial ou aplicou um passo a passo de como fazer
tal arte. Apenas se sentou no chão junto com os participantes, falou brevemente
sobre sua trajetória e apresentou algumas possibilidades, logo nos convidando a
mergulhar nas próprias produções.

Alguns participantes, de imediato, sentiram medo de arriscar, repetindo,


continuamente, que não sabiam fazer, que não conseguiriam elaborar algo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


artístico, que não tinham habilidade com a tesoura. Muitas vezes, eles pediram

acontecia, a artista se sentava ao lado deles e apenas apresentava possibilidades.


Ela não assumia o controle e sequer fazia por eles. A dinâmica, ali, era outra. Ela
perguntava qual história eles gostariam de contar com a colagem, abria as revistas,
sugeria alguns caminhos, dava ideias e nos incentivava a procurar, sozinhos,
íssemos a
nossa própria trajetória na composição daquela obra, aproveitando o processo e
sem cobranças sobre o resultado.
377
Essa postura da artista nos lembra que o processo de aprendizado tem uma

ele acontece singularmente com cada um de nós. O processo de aprendizado se


dá a partir de encontros, por isso, muitas vezes nós o vivemos sem nos dar conta
dele. É impossível medir os movimentos de aprendizagem, pois no aprendizado
como
alguém; mas sim fazendo com, fazemos juntos, mas sempre da nossa maneira.

Como, desde o início, apostamos na experiência de compor com arte, uma das

Rocetti. Segundo ele, as zines são uma espécie de livreto ou revista; publicações
necessidade dos artistas de se autopublicarem com liberdade de expressão e de
não dependerem do mercado editorial para divulgação e distribuição do material
artístico. Justamente por isso, geralmente as zines exigem pouca técnica e baixo

seja, a confecção usa técnicas artesanais, lançando mão de recursos acessíveis,


como fotocopiadora, costura manual ou com grampeador, por exemplo. As
zines abarcam, ainda, vários estilos de publicação: divulgação de bandas e de
artistas, notícias sobre quadrinhos, desenhos, poesias, histórias eróticas, diários

publicações em forma de zine têm, inclusive, certo caráter contestatório e


militante, uma “ligação constante com movimentos anarquistas, ambientalista,

Enquanto experiências literárias, as zines costumam ser marcadas pelo uso


não estão
preocupadas em utilizar a norma culta da língua. Distantes das produções
378
consideradas como cânones, elas se apresentam como uma forma de literatura
cotidiana, marginal, que provoca em nós o entendimento de que, assim como
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

nas outras manifestações artísticas, todos estamos autorizados a produzir. A

criar as suas próprias narrativas, de gerar conhecimento, tomando por fonte de

Compreendemos, portanto, que as zines comportam possibilidades para romper


com as lógicas tradicionais de fazer arte. Estamos acostumados com a ideia de
que a obra deve ser um material grandioso, perfeito, bem acabado, elaborado a
partir de muitos recursos e, por vezes, padronizado. A zine é, diferentemente, um
material da ordem da simplicidade e do possível. Sua formatação, seu processo
de produção e as variadas formas em que se apresenta nos ensinam que não
precisamos ter acesso a materiais rebuscados ou recursos. Basta o desejo de
produzir, de se produzir a partir dos materiais disponíveis.
Durante a confecção das zines, Rocetti nos ensinou algumas das técnicas de
fabricação. Depois disso, dispusemos os materiais (folhas brancas e coloridas,
canetas, lápis de cor) no chão e convidamos cada um para criar a sua, com
uma temática livre, que poderia ter ou não relação com aquelas que estávamos
debatendo. O clima naquele dia foi agradável. Todos estávamos, mais uma vez,
juntos, conversando sobre diversos assuntos enquanto criávamos, concentrados

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vimos aparecer zines com diversos temas. Uma delas ensinava como fazer tofu

outra zine fez um registro da paixão pelo futebol; houve uma de ode ao cérebro;
uma falou sobre os limites que a sociedade impõe ao corpo; outra teve o tema

zine ilustrada sobre transplante de mentes. Essa variedade mostra que o processo

subjetivas e pode “ser uma forma de pesquisa intuitiva sobre as travessias ao

379

Além de zines individuais, também utilizamos as produções artísticas


confeccionadas durante os encontros para compor uma zine coletiva. Esse
material é a expressão das vivências que tivemos juntos em nossos encontros.
No primeiro momento, pensamos que ele seria apenas um registro dos processos
criativos em artes, uma espécie de exposição das artes feitas pelos participantes.
Porém, para além disso, ele se transformou também em um pequeno compilado
de lições que aprendemos nesse processo. Resolvemos chamar nossa zine
coletiva de .

mas não no sentido de ser um manual para conduzir os procedimentos, ser


um roteiro ou propor um passo a passo para reproduzir nossa prática. Nossa
zine coletiva segue, antes, as marcas que trouxemos nos corpos por conta dos
encontros, e pode, por isso, inspirar outras práticas educativas. Desse modo,

php/producao-academica
além de incentivar a potência singular, como se vê nas zines individuais, também
nos perguntamos o que podemos enquanto corpo coletivo. Podemos criar outras
formas de agir, sentir, pensar ou de estar no mundo? O que podemos compor
juntos? Essas perguntas rondaram nossos corpos durante o percurso da pesquisa,
e apostamos em colocar os participantes não como objetos de estudos, mas sim
como componentes de sua construção. Optamos, portanto, por lançar Um corpo
com autoria coletiva,

Fazer arte: possíveis do corpo comum


Em tantos momentos nos ocorreu o anseio de qual conteúdo
E não temos dúvidas de que muitos conteúdos foram abordados, sejam eles

outras áreas. Ao mesmo tempo, esses conteúdos foram tratados de forma aberta,

380
constituir uma pedagogia do comum, em que, para além da cognição, o aspecto
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

mais potente foi exercer uma educação que visa à relação dos corpos e como
eles se afetam nessa relação. Ou melhor, buscamos criar, em conjunto, um
espaço onde conhecimento e afeto operassem simultaneamente. Na companhia

qual a construção do conhecimento se dá no plano afetivo de composição dos


corpos. Nessa composição, o conhecimento aumenta a potência de agir e a
capacidade de inteligir, e isso se passa em um plano comum.

Nós aprendemos e ensinamos de maneiras diversas e, muitas vezes, inesperadas:


com a convivência, com a presença ou com as paixões. O aprender é,
simplesmente, da ordem do inteligível. O aprendizado, na verdade, se relaciona
mais com o sensível. Aprender é um movimento com o corpo todo, um movimento
na sensibilidade, um acontecimento encarnado, singular, inventivo e demanda,

coloque por inteiro. E exige relação com o outro. Entrar em contato, em sintonia
com os signos é relacionar-se, deixar-se afetar por eles, na mesma medida em
presente por inteiro no processo de ensinar e aprender, permitindo, assim, que
a sensibilidade nos sirva como guia. Trata-se de trazer a paixão para o processo,
de não o reduzir à transmissão de informações. Isso proporciona “aos alunos
modos de saber que lhes permitam conhecer-se melhor e viver mais plenamente

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A arte coloca em risco a concepção que temos de nós mesmos e nos ajuda a
escapar do corpo disciplinado, moldado e limitado. Ela nos chama à invenção e
à
meio da arte se relaciona com a vida, pois ela pode nos provoca a ultrapassar
os limites que nos constituem, nos inspira a buscar uma visão singular que foge
dos discursos totalizantes. A arte movimenta afetos e sensações que fazem a

a discussões sobre várias temáticas e foi entrelaçada por elas. Acreditamos,


381
portanto, que traçamos um modo de fazer arte como uma experiência de vida,
ética, estética, política e educativa.

Com isso, compreendemos que as criações e inventividades são resistências


corpóreas, que atuam desde os espaços educativos até às ruas da periferia.

experimentar essa potência dos encontros entre arte e educação, aconteceram


para compartilhar vivências, afetos e não para recair numa postura salvacionista,

diversas formas, nas pichações dos muros, na música das casas, nos blocos de
ós não
ensinamos a fazer ou traçamos como objetivo compreender a arte, apenas
montamos um espaço de aprendizado marcado por limites, mas, sobretudo,
pela abertura de outros possíveis para a educação artística.

como uma sacralização pedagógica, quer dizer, alguns educadores, conduzidos


por certezas absolutas e caminhos rígidos, se tornaram “militantes sombrios do
verdades únicas anunciadas pelos arautos que arrogam a si a tarefa de ‘salvar

com arte tiveram a função de descobrir e inventar possibilidades de mundo,


rascunhar modos de existência, aumentar a potência de si e do outro. Foi um
espaço de sensibilidade e de experimentação de vida. Conforme indica Peter

pode surgir e ser gestado. Por isso, escolhemos praticar arte em conjunto, dando
espaço para multiplicar as singularidades. Nosso pequeno guia coletivo, a zine
, pode servir
para que outros espaços, semelhantes e diferentes daquele construído por nós,
possam ser provocados e colocados em prática, realçando as potências políticas
e inventivas dos corpos no contato com a arte e com os espaços educativos que
transbordam a dicotomia do aprender-ensinar.

382
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
Referências
ANDRÉ, Carminda Mendes. Artes como mediadoras de afetos. Rebento, São

ANDRÉ, Carminda Mendes. Arte, Biopolítica e Resistência. Revista brasileira


de estudos da presença

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Deleuze. Actas. v. 3, 18p., 2015.
. Óleo sobre tela. Acervo

Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da

prática pedagógica).
Viso:
Cadernos de estética aplicada, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio 383

órgãos. In: Mil Platôs: capitalismo e

In

Florianópolis. Anais […] Florianópolis: Secretaria Municipal de Educação,

não-formal. Revista de Ciências da Educação


a pedagogia do comum: conversas com quem gosta de geleia de groselha.
Revista Interinstitucional Artes de Educar

Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade.

MASCARO, Cristiano. [Sem título] Série


analógica em preto e branco. Acervo da Pinacoteca do estado de São Paulo.
In: PINTO, Miriam de Magdala
(org.). : Território do Bem.

Parede da memória. 1994/2015. Instalação: patuás em


manta acrílica e tecido costurados com linha de algodão, fotocópia sobre

384
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:

Como (…) coisas que não existem. São Paulo: Bienal de São Paulo, p. 250-
265, 2014. Disponível em: https://issuu.com/bienal/docs/31_livro_pt/252.
Acesso em: 19 jan. 2020.
RICO, Omar Alejandro Sánchez. Atualização da concepção sobre aquilo
Imaginário!, Paraíba,

a docência em Arte. Revista Diaphonía

Arsenal: um bando de ideias sobre arte na educação.


Deleuze e a arte. Psicologia e Sociedade

da verdade, os técnicos do desejo, o fascismo. In


Para uma vida não fascista

In: Psicologia Pedagógica.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


385
386
TÍTULO

17.
PENSANDO COM

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A PRESENÇA:
CURRÍCULOS COMO
PERFORMANCES
COTIDIANAS
387

Alexandra Garcia
Allan Rodrigues
Leonardo Alburquerque
1

A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais.


Deleuze (1992)

1o Ato
Cenário: Auditório de um CIEP no bairro de São Bento, conhecido como um
388

O momento é o de espera entre duas peças de teatro, estudantes de várias tur-


PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

mas se ajeitam nas cadeiras do auditório aguardando a próxima apresentação,


os performers-estudantes, do terceiro ano do Ensino Médio, estão espalhados

da música. Agora sim! A música termina e a primeira performer-estudante se


levanta lendo o poema de Bertolt Brecht - Perguntas de um trabalhador que lê :

2
allancr@id.uff.br

5
·1ª estudante (tom de voz enfático):

“—

Da Lima dourada moravam os construtores?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio

lendária Atlântida

389

Sozinho?

Quem venceu além dele?

Quem pagava a conta?

Simultaneamente outras moças e rapazes, estudantes da turma, se levantam no


meio da plateia e começam a entregar cartões de visita. Na entrega do primeiro
cartão, o espanto aparece no rosto de quem o recebeu ao ler o anúncio:
“Pedreiro
chamar no zap!”

Outro estudante entrega o cartão onde se lê:

“Manicure e Pedicure

A performance continua com a leitura de um segundo poema, enquanto outros


estudantes da mesma turma continuam a entregar cartões. São vinte integrantes
de uma turma de terceiro ano do Ensino Médio entregando cartões onde se leem
a oferta de advogados, garotas de programa, trabalhos espirituais para trazer a
pessoa amada, mecânico, pintor, dentre outros serviços ofertados cotidianamen-
te nas ruas da cidade. Enquanto isso...

· 2º estudante com voz empostada:

“— As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns

390 ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chu-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo


a vida, fodidos e mal pagos:
Que não aparecem na história universal, aparecem

.)

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


cartões, nos rostos algumas interrogações. A colega agora é também manicure,
o pintor será alguém que está ali? Aquele tempo da espera não é mais o mesmo.
Alguns risos e comentários, aos poucos, rompem o silêncio imediato à surpresa
do movimento que ali se deu até que a próxima apresentação se inicia. Com o
ordenamento de gestos e corpos mais esperado – palco e plateia; espectadores e
atores – o rebuliço arrefece. Segue o baile! Digo, o dia de aula.

391

Puxando a prosa:
Performances cotidianas em inscrições curriculares
O corpo, o som, a voz, os gestos, o inesperado, o olhar, uma imagem, fragmentos
de pensamentos que se inscrevem nos espaçotempo das escolas e inscrevem os

fragmentos de uma pesquisa realizada com estudantes dos três anos do ensino

Steinbruch, localizado no bairro de São Bento, município de Duque De Caxias

também no município de Duque De Caxias – RJ . Essa pesquisa compartilhou do


entendimento dos sujeitos da escola como praticantes dos cotidianos, com base

7 Os dois CIEPS são localizados em bairros que são próximos e com características parecidas, ambos periféricos da cidade do Rio
de janeiro e do próprio município em que estão localizados - Duque de Caxias.
pós-qualitativas em Educação, que tais sujeitos são colaboradores da pesquisa,
posto que sem o envolvimento ativo desses praticantes, o que se teceu como
processo e como compreensões não seria possível.

As compreensões tecidas no texto são, para nós, ensaios no sentido do que pro-

de repetição ou de treino. Sem a intenção de que o texto soe como pensamento


acabado experimentamos o ensaio como pensamento-escrita na busca de senti-
dos menos colonizados pelas lógicas da racionalidade cognitiva instrumental ao
dialogarmos com os currículos produzidos. Busca-se com os praticantes, jovens
do ensino médio de uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro, habitar o
espaçotempo escolar com inscrições de currículo desapegadas do velho para-

obsessor do currículo.

Entendemos que além dos domínios restritos da cognição e da produção de


sentidos os currículos transbordam produções que podem ser percebidas como
392 culturais e como produção de presença. São esboços, gestos, interações pouco
redutíveis ou depuráveis a um sentido posto como intencionalidade interpretá-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

vel. Efêmeras e ocasionais, integram as aprendizagens e processos formativos

outros dispositivos. Com esse texto temos a intenção de perceber essa presen-
ça, sem pretensão de evidenciá-la ou interpretá-la, pensando com ela currícu-
los como performances. Pensamos essa presença na esteira das colocações de

no mundo, de sua interação com o mundo, traz o componente da presença e

e está nas escolas e currículos na medida em que faz parte da invenção coti-
diana dos praticantes. Pensar currículos a partir dessa invenção que tanto é de
si quanto do mundo, para nós é pensar currículo como performance que se faz
com esse componente de presença que a dimensão estética favorece perceber
e que favorece confrontar sentidos previamente postos, sobretudo quando os
sentidos reiteram a hegemonia.
A narrativa inicial é uma passagem do processo de pesquisa e criação em con-
junto com as estudantes e estudantes do terceiro ano do ensino médio para pro-
dução e apresentação da performance no CIEP numa atividade em que outras
turmas apresentariam peças de teatro. Uma estudante preocupada com o que
deveria pesquisar, sobre a proposta feita pelo professor de sociologia e que tinha
como tema as ocupações oferecidas por trabalhadores no trajeto até a escola,
sugeriu copiar textos de anúncios de garotas de programa colados em orelhões

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


como se apropriar desses anúncios e como ela se sentiria em apresentar sua
narrativa sobre tal ocupação na performance. Essa conversa já nos permitiria

exclusões sociais, gênero, moral, sexualidade, arte, ética e talvez algo mais que
não nos ocorre elencar. Isto apenas para levantar o que circula no movimento de
produção curricular envolvido em poucos minutos de prosa entre um professor
e os estudantes de uma turma.

O texto é uma composição que se faz a partir do diálogo com a dimensão po-
393
lítica e artística das inscrições curriculares que os praticantes esboçam através
da invenção de si. Chamaremos essa dimensão de artepolítica, fazendo uso do
neologismo como recurso ao juntar as palavras e seus possíveis sentidos. Propõe
e acompanha intervenções que acionam os corpos, as vozes, o silêncio e o ba-
espaçotempo da escola em

curriculares em performances que expõem e denunciam a invisibilidade das


identidades e de suas presenças na escola e no currículo. Cabe lembrar um tre-

com as narrativas e que nos soa como a presença das criações que se impõem ou

Insistimos que frente à

8
Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos
[...] uma produção racionalizada, expansionista além de centraliza-
-
da de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo
ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não
se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar
-

Escolhemos trabalhar com a ideia de performance para falar de currículo nos

por base o pensamento da autora, não buscamos a escrita de si como representa-


ções, relatos retrospectivos de alguma coisa ou dos sujeitos, que poderiam estar

-
nos da periferia. Cotidianos que ao serem trazidos e reescritos pelos estudantes
nas performances expressam sua dimensão de artepolítica. Embora tratemos de
uma atividade de performance intencional, entendemos que esse movimento é
394 constitutivo dos cotidianos e do que compõe e mobiliza os currículos e as inven-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

esse texto, não se caracteriza por uma disciplina ou um conjunto de sentimen-


tos externos ao que é belo, mas, antes de tudo, um conjunto de afectos que os
praticantes experimentam e com o qual se compõem e compõem sentidos e vi-
vências. “
inventor de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou visão

Aqui cabe explicitar o que pensamos como artepolítica enquanto uma poética
que opera como criação artística, como arte e como política enquanto aspectos
inseparáveis. Assim, a criação de uma narrativa na performance não se pretende
política, mas, inevitavelmente toca em questões políticas, culturais e mesmo
-

e forma de sustento para alguns se refere a uma ocupação que envolve saberes,
ritos e práticas de
curricular esse trabalho é assumido como uma atividade produtiva, um trabalho
nos murros que delimitam a linha do trem, essa produção assume uma posição
política em que aqueles saberes e aquele fazer são compreendidos como exis-
tentes e legítimos.

O tempo das intervenções realizadas com os estudantes e de nosso diálogo


com suas ressonâncias é o do acontecimento, um momento oportuno que
move nossas interrogações em torno da temática desse texto. Por isso, um dos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
demos a reconhecer como escola tanto no espaço físico quanto nas práticas
culturais mais comuns que levam a reconhecer um espaço como escolar. O ou-

portanto nas experiências singulares que professores e estudantes produziram


-
rou os corpos do espaço físico da escola, mas que, talvez, não tenha retirado a
escola de nossos corpos.

A performance narrada no início desse texto trouxe para o espaçotempo da 395


escola cartões de visitas contendo a pesquisa dos alunos e alunas sobre os ser-
viços de trabalhadores dos lugares em que eles residem e transitam diariamente.
Alguns desses serviços oferecidos por estudantes daquela escola. A proposta
buscou perceber e pensar com os estudantes as práticas de trabalhadores urba-
nos, como por exemplo, pedreiros, manicures, padeiros atendentes de pequenos
comércios, dentre outras ocupações, que são trazidas por eles para a escola en-
quanto sujeitos que moram, trabalham e estudam numa área periférica da região
metropolitana do Estado. Também para perceber, no transitar ordinário os traba-
lhadores que ali residem e talvez até que estudem naquela escola, comumente
invisibilizados pelo correr da vida. Nesse sentido, as aulas eram encontros em
que se buscava problematizar as relações que perpassam ser estudante, trabalha-
dor, morador daquela região e a (in)visibilidade das vidas de sujeitos da periferia
e de suas trajetórias no currículo. A performance como um ato de marcar com
pequenos pedaços de papel onde se liam nomes, ocupação e contato consistiu
num ato de marcar a presença dessas pessoas ali. Trabalhar, morar na periferia e
estudar não são, em geral, percebidos como resultante de jogos políticos e cultu-
rais históricos que vão deixando para as pessoas os lugares sociais e ocupações
no trabalho que restam e não necessariamente são escolhas. Muitas vezes, as
não escolhas resultando de exclusões perpetuadas. Prestar pequenos serviços
como forma de garantir algum sustento a partir de um certo momento da vida,
principalmente ao término do Ensino Médio é algo comum entre os estudantes
dessa e de outras tantas escolas públicas.

Buscando compartilhar essas presenças, entendemos narrar “currículos desim-


com esses praticantes. Defendemos que os méritos ou
importâncias dessas produções estão nas tessituras singulares, culturais e de cer-

tais narrativas se inscrevem com os saberes e vivências das jovens trajetórias dos

e criações que importam e mobilizam produções nos currículos. Pensamos nas


produções curriculares que tais como as narradas nesse texto se deslocam de ten-
dências de centralização curricular e que podemos imaginar como provocações
ao colonialismo da tradição curricular. Sugerem, assim outros modos de habitar
396
o mundo e narrar o mundo desde as práticaspolíticas9 curriculares cotidianas.
Não falamos de um currículo para a escola pública, mas em currículos inscritos
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

por essa escola pública. Nesse sentido, a ideia de currículo aqui proposta dialoga
com entendimento de currículo menor, inspirado pelo encontro entre o pensa-
mento deleuziano e as pesquisas com os cotidianos para propor que

-
rículo menor, implica olhar para os processos e espaços nos quais
nos fazemos professores como espaços de debate, de democratização
das relações entre os saberes, de viabilização de novas conexões e
entendimentos. Em síntese, espaço do complexo e que só pode ser
compreendido com uma política do cotidiano, repleto das relações
que nele se estabelecem. Esse currículo menor como os processos
e sentidos que alimentam os sentidos de docência é produzido nas

modos diferentes, e criam diversas possibilidades de lidar com a mul-

9 A noção de práticapolitica -
de que todas as práticas são políticas e todas as políticas são práticas.
Conversamos nesse texto com as produções a partir de espaçostempos de per-
formances que apresentam momentos distintos de vivências na escola. As con-
versas são mobilizadas com essas vivências no contexto dos estudos e discus-
sões do grupo Diálogos escolas-universidade.

Os trabalhos podem ser caracterizados como performances que aconteceram


em momentos diferentes. A primeira delas foi uma atividade presencial com uma

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Naquela primeira performance, uma estudante, se apropriou da própria história

tempo que até então poderia ser considerado como momento de espera, visto
ainda estar em treinamento no curso de manicure e pedicure. Torna esse possí-
vel presente e o trabalho como presença encarnada na estudante. Nesse tempo
vislumbrado é viável lidar também com os momentos fugidios, que podem ina-
divertidamente nos parece importar menos enquanto dimensão política, e trazê- 397
-
los, mesmo que incertas. Trata-se, assim de uma aposta na incerteza posto que:

É esta incerteza que, em meu entender, ao mesmo tempo que dilata


o presente, contrai o futuro, tornando-o escasso e objeto de cuidado.
Em cada momento, há um horizonte limitado de possibilidades e por
isso é importante não desperdiçar a oportunidade única de uma trans-
SANTOS,

Uma performance é em síntese um deslocamento de um ato ou objeto ordiná-


rio de sua função cotidiana para um trabalho artístico. Isso, é claro, dentro da
compreensão que permite entender esse deslocamento de função como arte e
em que se abrem esses espaçostempos, como por exemplo, quando Duchamp
desloca um mictório do seu uso funcional . A arte contemporânea quebra a hie-

10
Bloomington.
rarquia de materiais e funções ordinárias e obras de arte. De algum modo expõe
que o que caracteriza essa divisão arbitrária e hierárquica se pauta e sustentan-
do pelo discurso. Dessa forma, pensamos a performance de acordo com o que

A performance surge, portanto, como uma manifestação artística em


que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação e arte
que se apropria de objetos, situações e lugares - quase sempre na-
turalizados e socialmente aceitos - para dar-lhes outros usos e sig-

confundem ao discutirmos as produções curriculares nas práticas produzidas


com os estudantes. Cabe esclarecer que as atividades aconteceram como pro-
posta por um dos autores desse texto que é professor de sociologia nas escolas
do estado do Rio de Janeiro com as quais o trabalho se desenvolveu. Para melhor
compreender esse exercício da performance a que pretendemos chegar, parti-
398
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

Suportes vivos e cujos corpos e falas são, por sua vez, imagens mó-
veis, transitórias e transitantes de uma torrente de narrativas. Poéticas
que explicitam as redes de sentidos por meio das quais seus jovens
autores escrevem e descrevem suas vidas. Redes imagéticas em cujos
movimentos fulguram suas criações, reproduções, irrealizações, fabu-
-

o autor propõe pensar mitos que falam do encerramento nas operações de uma

-
chas e rompimentos escritos. São comédias de desnudamentos e torturas, relatos
-
postos. Essas produções têm um ar fantástico, não pela indecisão de um real que
mostrariam nas fronteiras da linguagem, mas pela relação entre os dispositivos
somente o interminável jogo de suas fabricações.

Transmutar em uma performance a atividade laboral e o ato de divulgação dos


serviços põe em movimento o viver comum com essas ocupações e como arte.
Coloca a atividade e os praticantes num lugar diferente de sua invisibilidade
corriqueira e seu fazer como algo que se distancia do laboral. Foi um ato de
transmutarmos a visão dos serviços e ocupações dessas pessoas como meras for-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mas de sobrevivência individual, trabalhar, morar na periferia e estudar não são
percebidos como resultado de decisões políticas, mas como coisas que todas
as pessoas fazem no dia-a-dia a partir de um certo momento da vida, principal-
mente ao término do ensino médio. Transmutar essas questões é dessinvibilizar e

surge do processo de disputas políticas, questões que são políticas porque en-
volvem as vivências coletivas desses estudantes. Também é entender como arte
o viver miúdo e comum que fervilha nas periferias urbanas sem que se perceba
sua presença no correr que movimenta a vida e os dias.
399
Consideramos que a performance inclui na dinâmica de produção curricular
cotidiana a possibilidade de deslocamento da produção de sentidos naturaliza-

espaçotempo escolar. Pensando a dimensão da presença e o modo


como ela está envolvida na produção da experiência, das subjetividades e do
viver à margem ou a despeito da primazia dos sentidos, a performance se coloca
na direção dessa possibilidade de protagonismo da presença nos currículos. A
-

-
culo, escola e conhecimento são colonizadas pela racionalidade cognitiva-ins-

deslocamento dessa racionalidade caminha na direção da ampliação dos re-

problemas e desigualdades que afetam os invisibilizados da história (SANTOS,


pautada é herdeiro da racionalidade moderna ocidental afetando o modo como
conhecimentos que se distinguem ou se afastam daqueles validados pela ciência
moderna e pela cultura eurocêntrica são vistos (ou ignorados) em relação aos
currículos. Se consideramos as populações atendidas majoritariamente pela es-
cola pública, sobretudo nas periferias urbanas, como é o caso das escolas com
as quais trabalhamos, poderemos perceber que seus saberes e modos de viver
-
plorarmos com os currículos a produção de presença e aquilo que dialoga com a
racionalidade estético-expressiva e com o fazerpensar coletivo característico do
viver em comum (comunidade) – menos colonizadas pela modernidade – nos

quando pensamos a produção de conhecimentos nas escolas com os seus pra-


ticantes tendo como princípio a inseparabilidade da justiça cognitiva e social

“fora do alcance da colonização, manteve-se a irredutível individua-


lidade intersubjetiva do homo ludens, capaz daquilo a que Barthes
400 chamou jouissance, o prazer que resiste ao enclausuramento e difun-
de o jogo entre os seres humanos. Foi no campo da racionalidade es-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

tético-expressiva que o prazer, apesar de semi-enclausurado, se pode

Também nessa direção, o questionamento da primazia do sentido a recuperação


das formas de expressão e produção do viver humano e social que emergem
-
nente por deixar notar como os corpos, gestos e performances inscrevem sabe-
res, possibilidades e desvios nos currículos ainda que nem sempre se traduzam
em sentidos. Essas compreensões nos parecem enredar alternativas pulsantes de
vida, emancipação e de empoderamento quando pensamos a produção curricu-
lar cotidiana das escolas com seus praticantes.

Cenário:
foi dada a tarefa de manter suas aulas por meio de ensino remoto conversa com
-

Impactado com narrativas de jovens angustiados pelo enclausuramento, propõe


que com seus companheiros diários de vida, os celulares, os estudantes mostrem
em fotos o que veem de suas janelas. As produções de praticantes que exerci-
tam, por meio da invenção de si, os caminhos e aprendizagens compartilhados
no espaçotempo escolar resultam no que ousamos chamar por currículos. Suas
narrativas corporais ou imagéticas trazidas para e pelo o cotidiano escolar, es-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


boçam as criações de si sobre ações do dia a dia. Com essas criações seus cor-
pos, gestos, imagens e narrativas rasuram qualquer intencionalidade à priorística
pensada para os currículos. Em comum elas compartilham da suposta desimpor-
tância dos serviços prestados, do corpo e da presença de um franzino rapaz que
faz bicos como eletricista ou da vista de telhados em desalinho de uma janela
qualquer de uma modesta casa em que a pulsão de viver de um jovem ou uma

Janelas que são narrativas que mostram para fora, e também, para dentro. Espie
pela janela dessa estudante: 401
-

-
culares consistem em artespolíticas quando pensadas a partir da ideia de colocar
em movimento as coisas do mundo, essas coisas vistas como desimportantes
mesmo. São, em nossa compreensão, criações que tentam conversar com a ra-

-
-
tético-expressiva tem sido uma das questões mais debatidas na teoria
-

Em um primeiro momento, as performances que narram o cotidiano em imagens


ou com a presença do corpo e de seus gestos podem não ser encarada como arte
402
e nem mesmo como políticas visto não reivindicarem alguma questão que possa
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

ser considerado como ato política ou entendida como arte. Nesse sentido, o que

que as narrativas do cotidiano proposta em cada performance buscaram tornar


visível e presente. Essas dimensões simplesmente nos cercam e atravessam, com
-
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
403

Com suas janelas abertas as narrativas trazem breves ensaios, despretensiosos


pensamentos sobre o momento, o mundo, situações, hesitações... um pouco dos
modos como se inventam e inventam seus olhares para dentro e para fora de si
tendo uma câmera de celular e uma escola que se faz presente pelo contato com
um professor. Essas janelas que se abrem e mostram o que convém insinuam
sutis pistas de currículos como ensaios que se fazem com os praticantes, os pro-
fessores e estudantes.

Por sua forma de apresentação a foto seduz aquele que a observa como algo
dado ou constatação em uma realidade. Diante da foto, para aquele que vê, isso
não pode ser controlado, mas aqui podemos apresenta-la por meio do exercício
que busca estimular outros sentidos sobre si mesmos. Sendo assim, a perfor-
mance pelas janelas ainda se encontra em criação, vistos serem olhares de um
-
das pelas estudantes e estudantes que tiveram condições técnicas e quiseram
cinco momento: manhã, meio da manhã, tarde, tarde quase noite e noite. Dá-se

-
junto de imagens que fogem ao controle inicial de cada praticante e compõem
outra narrativa por edição.

A dimensão política que a narrativa explora mobiliza com os praticantes a cria-


ção estética de si, seja por narrativas escritas, seja na produção de narrativas
imagéticas, gestuais, sonoras, ou, ainda, pela captação de seus sentidos no mun-

pelo deslocamento do gesto de trazer a dimensão constitutiva da vida pelo traba-


-

404 Pensar a performance na escola, seja a performance da qual tratamos nesse tex-
to, sejam as performances cotidianas de professores e estudantes em seus fazeres
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

comuns, é pensar nessa arte política. A performance como artepolítica cotidiana


consiste em operar e perceber o (em) movimento de nossa racionalidade estéti-
-
lho de arte com as estudantes e estudantes, uma performance, requer produzir
aproximações com o cotidiano de que fazem parte, essa é uma questão política
central aos currículos. Também cabe destacar o óbvio de que essa escrita de si
se dá com um cotidiano que já está em movimento, independente da performan-
ce, da criação de narrativas e do que possa ser proposto. Assim, a artepolítica
da criação curricular que compreende invenções de si nos exige perceber que
entramos nesse movimento já estando nele.

Finalizando esse ensaio que transita pelo cotidiano escolar a partir de perfor-
mances de dois momentos distinto, antes da pandemia e durante a pandemia,
política dessas produções curriculares está na arte
dos praticantes que criam esse cotidiano em movimento. As narrativas dos cor-
espaço de possibilidades que mediam ações e pensamentos por meio da sua
criação. O que nos faz propor que essa escrita de si se refere ao espaçotem-
po presente que os praticantes criam ao se debruçarem sobre seus cotidianos.
Somos enquanto performer esses suportes vivos, nossos corpos e falas são as

cotidiano. Pensar as narrativas dos praticantes em deslocamentos mobilizados


com performances, sons e imagens busca desdobramentos de uma escrita de si

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


permeável e inacabada como a própria arte.

405
Referências

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano Petrópolis,

-
cação. Revista Educação e Realidade
?. Rio de Janeiro: Editora

ão. Rio de

-
venções de si nos processos de formação docente. Revista Currículo sem
Fronteiras
406
Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação.
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

-
mento, na escrita e na vida. Revista Educação & Realidade

Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contrapon-

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: O Social e o Político na


Pós-Modernidade
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________, Boaventura de Sousa. A crítica da Razão indolente: contra o desper-


dício da experiência
________, Boaventura de Sousa.
epistemologias do sul
proezas: pesquisar entre narrativas e imagens In: Inês Barbosa de Oliveira;
Aventuras do conhecimento: utopias vivenciadas
nas pesquisas em educação

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


407
408
TÍTULO

18.
O QUE PODE A ESCOLA?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ATRAVESSAMENTOS
DO CINEMA NOS/
DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E
RESISTÊNCIAS NOS
409

COTIDIANOS ESCOLARES

Terezinha Maria Schuchter


Fábio Luiz Alves de Amorim
Jaconias Dias Rodrigues
Terezinha Maria Schuchter (UFES)

Introdução

da Previdência!

É inútil resistir? O sinal está fechado para


que fazer ecoar? Teve golpe. Michel Temer governou durante o período previsto.
ainda cortou as parcas
verbas previstas para a educação. As relações trabalhistas se diluíram e a preca-
410 rização das condições de trabalho está em curso. Mariele vive por meio de suas
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

-
sas e dor de quem perdeu seus entes amados para a ditadura – que não houve

da libertação nacional. Esse é apenas um exemplo dentre tantas outras coisas

Continuamos – passado tanto tempo – a nos perguntar: É inútil resistir? O sinal


está fechado para ordem teremos que fazer ecoar? O que
-
que, segundo Belchior,

Eles venceram
E o sinal está fechado pra nós
-

da ordem. Tudo está acontecendo conforme o previsto. E chamamos Nando Reis


para lhe responder:

[...] O que está acontecendo?


O mundo está ao contrário e ninguém reparou
O que está acontecendo?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Eu estava em paz quando você chegou [...]
O que você está fazendo?

de adolescentes e jovens sem perspectiva de vida. Milhões de brasileiros na faixa


-
de sendo assassinados. Exterminados. Milhões de brasileiros vivendo da renda

brasileiros vivendo na linha da extrema pobreza. E ao mesmo tempo a concen-


411
tração da renda nas mãos de alguns poucos se acentua. Milhões sem ter o que
comer versus dezenas que vivem da acumulação desenfreada. Essa é a lógica
dominante e que se acentua no tempo presente.

Nesse contexto, pensar o que da escola? Falar o que da escola? E o trabalho


-
briedade diante das circunstâncias em que vive grande parte dos nossos estudan-
tes? Como professores e estudantes são afetados por essas condições? É possível
viver? Outros mundos e outras escolas são possíveis? Os afetos tristes podem dar
lugar aos afetos alegres e potentes? As insurreições e resistências são possíveis?
Como devem se dar? Nossas demandas manifestadas em nossos gritos foram su-

que vem se consolidando. É possível, então, resistir?

quando podemos ver sendo


[...] destruído os primeiros elementos de “ ou de demo-
cracia social que, com acertos e erros, começavam a ser introduzidos
pelos governos progressistas pós-ditadura. Estes tinham em sua pauta
a formação de um Estado de direito o qual, no Brasil assim como na
maioria dos países do continente sul-americano, nunca chegou de
fato a existir. Esta é a razão pela qual são os protagonistas desses go-
vernos os alvos da nova modalidade de golpe, cujo intuito é chegar

O que de antemão podemos dizer é que esse regime não se consolida apenas a

de transformações sociais e culturais. O simples fato de não compreendermos a


-
tico, o social, o cultural estão imbrincados, enredados. Entretanto não é só isso.

Caetano: essa ordem não é tão nova.

Dessa forma, nossa intenção neste trabalho é trazer problematizações sobre essa
412
-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

-
gendrar novos modos de ser e estar no mundo. Recorremos, assim, a uma pes-

compreensão de como chegamos a esse estado de coisas, desnaturalizando os


-
tencional. “Saber como chegamos a ser o que somos é condição absolutamente

Em um segundo momento, buscamos, junto a professores do ensino fundamen-


tal e médio de uma escola estadual do município de Serra, por meio do cinema,

um instrumento utilitário, mas como artefato disparador e problematizador das


questões vivenciadas no tempo presente. Isso porque acreditamos “que o cine-

pois o cinema, “as imagens de uma forma geral emitem signos [...] que afeta[m]
subjetividade – de outras subjetividades.

Alike ,
mostra um pai como personagem que reproduz comportamentos esperados no
-
poração, cumprir horários, ter atenção ou ver apenas o que interessa, cultuar a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


desviar o pai desse comportamento padrão e, no trajeto que faziam juntos para
ir à escola, insiste em parar e admirar um músico tocando violino, mas é abrup-

-
zados, mas percebe que ele se tornou uma criança entristecida, acabrunhada,
sem energia. Nesse momento, efetua-se a ruptura. O pai volta ao lugar em que
-
413
mente, assume o lugar do violonista e faz uma performance como quem tocava
um violino.

, as nações são divididas em três grandes potências mundiais:


-
mandada pelo Partido IngSoc (Socialismo Inglês) e a história se passa no mesmo
ano, em um tempo distópico, uma vez que o Estado forjava um sistema de go-
verno extremamente totalitário, por meio da vigilância imposta pelo Partido, na

teletela. Oceania estava dominada pelo medo e pela repressão. O medo reinava
porque quem pensava diferente ou contra o regime era acusado de cometer um

serem reduzidos a peças para servir o Estado, através do controle total da popu-
lação por meio de um processo midiático onipresente e controlado pelo Partido

2
– todos eram observados o tempo inteiro, submetidos às notícias fabricadas para
atender ao regime.

Nosso desejo foi observar como os professores problematizam, veem, sentem e


198
Alike podem gerar ou fazer emergir subjetividades inconformadas. Isso porque,
no contexto da cafetinagem , somos aprisionados por um só modo de fazer e
não nos atentamos para o que o espaço, os estudantes, o coletivo da escola nos
anunciam.

outros possíveis para a formação de professores e a gestão de seu trabalho na


sala de aula, bem como as escolas possíveis no contexto do capitalismo globali-

professor entre a cafetinagem e a potência/pulsão de criação e transformação e


entre a sujeição e a singularização.

414
Problematizações sobre o contexto
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

político, econômico, social e cultural:


o que podemos para além de uma vida cafetinada?
são autores que
têm buscado problematizar os processos de subjetivação na contemporaneidade.
O que estamos chamando de subjetivação?

-
mos com o mundo. A primeira, que é imediata e se baseia na percepção, pos-
sibilita-nos uma apreensão desse mundo, que é inseparável do campo cultural,
pois essa experiência é eivada de códigos, símbolos, representações que nos
permitem atribuir sentidos ao que fazemos, tocamos, escutamos – o que a autora
-

3
que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso cor-
po em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver

mundo vive em nosso corpo. Pulsa. São os perceptos e os afectos que não têm
uma imagem ou palavras que os representa, mas são reais e “[...] dizem respeito
à dimensão viva do mundo, cujos efeitos compõem um modo de apreensão ex-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


não é uma experiência individual.

e perceptos e integra sua/nossa composição, impulsionando o pro-


cesso incessante de recriação de nós mesmos e de nosso entorno. Tais
maneiras de ver e sentir formam uma espécie de germe de mundo que

-
mo tempo e são indissociáveis. Mas a relação entre elas é paradoxal, gera tensão
e acaba por desestabilizar a subjetividade, causando a sensação de mal-estar. 415
Frente ao que vivemos, desenvolve-se uma política do desejo – que é o modo de
resposta do desejo diante da experiência de desestabilização e mal-estar – que
muda em função de uma época, uma forma de cultura. E o mais importante “[...]
é que a subjetividade consegue se sustentar no mal-estar provocado pela tensão
entre ambas, o que lhe dá condições para se manter à escuta dos afectos e per-

Essa política do desejo que se constitui no âmbito da micropolítica pode ser ativa
ou reativa. No primeiro caso, “o mundo larvário que nela habita terá grandes
-
-
minação, da reverberação das ressonâncias nas subjetividades, com o poder de
contaminar todo o seu entorno. É

5 “[...] emoção vital, a qual pode ser contemplada [...] no sentido do verbo afetar – tocar, perturbar, abalar, atingir [...]. Perceptos e
[...] um devir da subjetividade e de seu campo relacional imediato e,
a partir dele, de outros campos relacionais que habitam as subjetivi-
dades que o compõem [...] capilarizando-se rizomaticamente pelo
corpo do mundo e transformando sua paisagem [...] é a potência do
vivo que as ações do desejo buscarão expandir para ampliar nossa
condição de existir. O que a micropolítica ativa visa é, pois, à conser-
vação da potência do vivo que se realiza num incessante processo de

-
nial capitalístico que desativa a potência que o corpo tem para decifrar o mun-
do, e a subjetividade passa a ser orientada apenas por sua experiência de sujeito
– a subjetividade antropo-falo-ego-logocêntrica – ou seja, começa e termina no
próprio sujeito. E “por estar bloqueada em sua experiência fora-do-sujeito, ela
se torna surda aos efeitos das forças que agitam o mundo [...] ignorando aquilo

-
416 fetinístico, pelo poder de sequestro da força vital, da potência do vivo. Negri
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

não mais na relação entre a fábrica e a sociedade, mas no nível social, das for-
mas de exploração da vida, e isso, segundo o autor, já era problematizado na
de trabalho, que mostravam que o
capitalismo passava a exercer não só a função de controle da sociedade, mas
que entrava no corpo da vida. “O mundo do trabalho explora enquanto
ou seja, não explora mais apenas a “força de trabalho e sim como forma viva,

Por que cafetinístico? Porque assim como a base da economia capitalista se


constitui por meio da exploração da força de trabalho para extrair a mais valia,
na sua nova versão, o capital se apropria da própria vida, da sua potência de
criação e transformação em seu nascedouro, da sua essência germinativa, da

6
cooperação da qual tal potência depende para que se efetue em sua singularida-
de. “A força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo regime para
-
-

forma, “a cafetinagem da pulsão vital nos impede de reconhecê-la como nossa,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Aí reside o perigo da micropolítica reativa concernente a esse regime: ao
separar a subjetividade de sua força vital, pulsional de germinação, interrompe
a potência desejante de criação de outros mundos, ou seja, essa potência acaba
por ser cafetinada. E esse processo acaba por contaminar toda a teia relacional,
intoxica e estanca os processos de diferenciação e singularização. Somos todos
tomados pelos efeitos da vida sujeitada a esse poder perverso, que gera “uma

Os professores sentem esse poder cafetinístico, que extrai nossa força vital:
417

Ao que outro
professor completa:

Não se trata mais, como em outros tempos, do disciplinamento dos corpos,

as técnicas biopolíticas desenvolvidas no período de implementação do Estado


Nação foram políticas que supunham “[...] a neutralização e o controle, em

comportamento que se repetia, por meio de dispositivos que buscavam aprisio-

7 As falas dos professores serão introduzidas ao longo do texto destacadas em itálico.


nar a multiplicidade, a potência de transformação, o devir, “[...] neutralizando a
diferença e a repetição e sua potência de variação [...] subordinando-a à repro-

[...] o problema não é mais o de aprisionar o fora e disciplinar as


subjetividades quaisquer [...]. Não se trata, portanto, de discipliná-las
em um espaço fechado, mas de modulá-las em um espaço aberto.
O controle se superpõe, dessa maneira à disciplina [...]. O tempo do
acontecimento, da invenção e da criação de possíveis não pode mais
ser considerado uma exceção, mas aquilo que faz regular e capturar

8
e, principalmente, avaliação em lar-

-
9

418
-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

A forma de poder nessa sociedade – de controle – é diferente e se sustenta nos


aparatos da informação, da tecnologia, das redes de comunicação, dos meca-

distância e que produzem os processos de subjetivação e sujeição correspon-


dentes com capacidade de afetar e ser afetado dos cérebros, midiatizada pela
tecnologia. Isso é “[...] estratégico para o controle do processo de constituição

em um neocapitalismo que “[...] atinge as raízes da existência. Ele faz mais que
exigir submissão e obediência; ele molda e modula a subjetividade e a vida dos

8 Base Nacional Comum Curricular.

9 Exame Nacional do Ensino Médio.


-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Esse controle da vida, da subjetividade, é um dos aspectos fundamentais do regi-
-
zação referido anteriormente – e, para levar isso a cabo, supera todas as artima-

mas acelerar ao mesmo tempo sua capacidade de produção do que interessa ao


regime e o alto consumo desses mesmos produtos, desviando-o de seu destino
ético, que é a capacidade de criação associada à vida. Nessa armadilha, nossos
corpos passam a reproduzir também o Assim, “[...] apenas muda-se,
419

:
. Então,
-
teis, criativos, conectados, maleáveis, que circulam por vários lugares, enredam-
-se com outros corpos pelas redes virtuais. Transitam, ou pelo menos pensam
que transitam, velozmente, sem barreiras. A única certeza é que o fazem com a
mesma velocidade de circulação do capital mundial. Esse, sim, sem barreiras,
sem fronteiras. Então não é necessária a força bruta para impor suas condições,
mas a mudança da força dos desejos. Corrompe-se a política do desejo, como

infância, suas energias sendo corrompidos para atender um jeito de ser e estar

E, para aumentar ainda mais nossa perplexidade, o que vemos hoje é algo que,
num primeiro momento, parece paradoxal, contraditório, que é a aliança entre
neoliberalismo e neoconservadorismo extremo, porque o alto grau de comple-

rigidez das forças conservadoras. Entretanto é possível compreender os motivos


que levam a essa aliança: nesse momento se fazem necessárias forças bem rudes
-
tadas e fazer ruir todos os protagonistas dessas conquistas e todas as suas in-

aponta como a mídia exercia poder so-


bre o comportamento dos cidadãos individualmente e em coletividade. A guerra
entre Oceania e Eurásia é mostrada em um grande telão diante de todos os fun-

o grande traidor do regime. Os cidadãos neste momento passam a caluniá-lo,


mostrando ódio e aversão às suas atitudes e ao que dizia contra o Partido. E, para
nutrir ainda mais o processo de manipulação, o governo possuía departamen-
tos que inviabilizavam qualquer tipo de contato vindo de fora da Oceania. Um
420
professor relata:
-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

um dos presidentes mais bem avaliados da história do Brasil, que hoje é pro-
clamado por parte da população que aprovava seu governo como um bandido
de alta periculosidade e, junto com todo o Partido dos Trabalhadores, fonte de
toda corrupção no Brasil. Isso nos faz compreender por que Dilma sofreu o im-
peachment por um crime não cometido, ou pelos menos que outros já haviam
cometido e que não foram afastados de seus postos de comando. E isso tudo em
meio aos nossos gritos: Não vai ter golpe! Como agravamento da situação, temos

10 neo só faz sentido em referência à


que considerar que essa não é apenas uma experiência brasileira, mas de todos

democrática e popular. E nossa sensação é de impotência, angústia, mal-estar,


adoecimento, perplexidade, assombramento.

Mas, quando somos tomados por esses sentimentos, aloja em nós a política
de subjetivação guiada pelo inconsciente colonial cafetinístico. Perdemos a po-
tência do combate da micropolítica ativa e tendemos a nos deixar levar pela

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


micropolítica reativa ou a reduzir nossas análises à esfera macropolítica, com
foco nas questões sobre a crise da democracia e do Estado de direito, ou sobre
como recuperar as condições de vida democrática e resgatar esse Estado. Nesse

e conservadoras do mal germinem.

Nesse contexto, no reino do capital e da mercadoria, o consumo passa a ser


visto como uma das poucas possibilidades para a felicidade, mas o consumo 421
endivida. Assim, o consumo também acaba por alimentar paixões tristes, e a res-
ponsabilização pelas dívidas e tristezas recai sobre cada um de nós individual-

Como alternativa, o regime conclama as pessoas a se tornarem “empresárias de


-
-
ralismo, as práticas de governo passam pelo indivíduo, pela sua subjetividade,

e antropológicas. E, junto com os outros autores aqui referenciados, problemati-


-
tividade. Para eles, além da subjetividade endividada criada pela hegemonia das
[...] controle das informações e das redes de comunicação criaram o
mediatizado. O regime de segurança e o estado generalizado de exce-

o -
nha, despolitizada: o representado

é ilustrativo dessa subjetividade mediatizada. É a Teletela, a mídia


-
nando as que não são geradas pelo alto comando do Partido, a pregação de que

essa conjuntura:

é permitido

(os temas)

422 Outro professor prossegue:


O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Alike nos traz outro tipo de subjetividade – a subjetividade securiti-


zada –, ou seja, aquela que se comporta de acordo com os padrões de com-

e a comodidade geradas por esse sistema, que é continuar tendo um emprego,


salário, casa. Entretanto essa conjuntura nos impede de perceber o quanto esta-
mos aprisionados. Um professor relata:
potência do vivo, do poder de criação, pulsação e singularização. Tornamo-nos

culpa, inferioridade, autodepreciação, vergonha ou ódio, ressentimento. Então,


além do consumo, o desejo conectará a subjetividade a produtos de tarja preta
da indústria farmacológica, a igrejas ou terapias de treinamento da autoestima

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ou aos complexos discursos intelectuais. Segundo o autor, “[...] tais mercadorias

Os autores referenciados discutem possíveis nesse contexto. Tamanho o estrago


produzido nos processos de subjetivação, é necessária uma descolonização dos
inconscientes. E a descolonização dos inconscientes passa pelo terreno das rela-
ções mais íntimas e, ao mesmo tempo, das relações coletivas, comuns da multi-

um processo necessário. A resistência é um dos possíveis. “Esta resistência deve-


423
-se abrir a um processo de criação, de transformação da situação, de participa-

Os possíveis – é o que buscaremos discutir a partir da experiência vivenciada


com professores de uma escola de ensino fundamental e médio no município de
Serra, no Espírito Santo.

O cinema como disparador


de insurgências e resistências na escola
E a escola neste contexto? E os professores? E o trabalho desenvolvido nas esco-
-
mico, social e cultural interferem nos processos de subjetivação dos professores
e, por consequência, no trabalho desenvolvido nas escolas? Como podemos na
escola insurgir? Como fortalecer a potência do vivo, o impulso vital? Como co-
brir de cores não só as paredes e muros cinzentos da escola, mas a vida vivida
Muitos grupos de pesquisa, entidades e diversos autores se dedicam a pesquisar
as condições de trabalho e o adoecimento docente apontam altos índices de
afastamento do trabalho por questões físicas, como problemas na coluna, cordas
vocais, rouquidão, gastrites, pressão arterial alta, alergias; ou por questões psí-

ainda, situações de professores que são readaptados em outras funções por não

condição como mal-estar docente, por sabermos “[...] que algo não vai bem,

mal-estar leva o professor à fragilização, despotencialização e questionamento


sobre sua experiência e o sentido de seu trabalho, e o pior, à perda na crença
no poder de sua intervenção como professor. Mas, como discutimos na primeira
parte deste artigo, isso é uma construção discursiva que vai se efetivando nas e

424 [...] o capitalismo atual, com suas empresas e instituições, prescreve


um cuidado de si e um trabalhar sobre si, ao mesmo tempo físicos e
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

desenhar as novas fronteiras da sujeição capitalista e da valorização

subjetividade.

O mesmo autor retoma Foucault, que discute os processos de subjetivação inter-


-relacionados às práticas discursivas e aos mecanismos destinados a conduzir a
conduta dos homens, ou seja, a tríade sujeito-poder-saber. E é também Foucault
que “[...] descreve a subjetivação como um processo imanente de ruptura e
Aí residem os possíveis...

Alike sinaliza a busca de ruptura. O gesto do pai – de vol-


tar ao lugar em que o violinista tocava – de simbolicamente tocar violino para

sugado. É a força do cinema de problematizar nossa condição e propor o rom-


pimento com todas as formas de amarras em oito minutos.
Esse foi o sentimento vivenciado entre os professores ao assistirmos juntos ao

aprisionam e criar outras imagens que libertam dos modos únicos de pensar e
agir, provocando movimentos inventivos que emergem na coletividade. Como

aprisionamentos agenciados pelo capitalismo em tempos de cafetinagem. Um


professor destaca: eu sempre tento fazer algo diferente, mas são muitas coisas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Assim, ao trabalhar com o cinema, desejávamos problematizar essas questões,

-
tra nas camadas mais obscuras do fascismo e consegue tirar dali algo para cons-
truir um horizonte de vida coletiva. Desse modo, os diálogos com os professores
objetivaram pensar movimentos de resistência possíveis na criação de correntes
de ar vital por entre a lama tóxica gerada pelo capitalismo globalitário na socie-

425
Eu tenho esperança, apesar

de esperança;
vão acontecendo aos poucos, nos projetos da escola, nas atitudes dos professo-

violino, pelo menos paramos para ouvi-lo. Outro professor relata: apesar desse

incessante no tempo presente, e de como as ideias vão sendo disseminadas e se

a situação estava, realmente, muito boa, uma forma de alucinação coletiva seria
que tende a fazer crer que o que se consuma é o inevitável. E ainda as formas
de controle e vigilância. Passamos do panóptico – controle físico e material –,
constituído das técnicas disciplinares, às tecnologias biopolíticas. No primeiro,
produz-se o conhecimento apenas do corpo, do indivíduo; no biopoder, visa-se
-

que outras técnicas de poder já estavam sendo gestadas – técnicas que não se

espaços da vida pública. Esta sociedade nascente – a sociedade de controle ou


de seguridade – fundamenta-se em outro tipo de poder. É um poder que se sus-
tenta nos aparatos da informação, da tecnologia, das redes de comunicação e
de mecanismos virtuais.
426
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

literatura a ser lida pelo povo. Nessa empreitada, produz, com o auxílio das
-
nhecimento. Desse modo, o Partido totalitário impede que a população tenha
contato com a produção discursiva que possa emergir com a leitura de livros
considerados como ameaças ao poder. Entretanto essa personagem apaixona-se
por Winston, com quem passa a se encontrar às escondidas, porque o Partido

era distribuído para todos, e passam a ocupar, clandestinamente, os espaços fora


da cidade para viverem o romance.

Os professores comparam essa situação ao que vivenciam na escola: Como os


-
-
com o tema, mas com os métodos utilizados, os alunos fazem paródias, pintam,
Outro professor
complementa:
ê

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


conse-
guem burlar o sistema e, nesse sentido, provocam-nos a pensar nas possibi-
lidades de fuga, de dobras, de fabulações, invencionices que são produzidas
427
nos currículos das escolas, e nos mostram que, mesmo neste sistema de formas
preestabelecidas, tão presentes na Educação, dá para forjar, insurgir, resistir fugir
do automatismo, da repetição, dos clichês.

Os professores, o tempo todo, pareceram querer mostrar uma relação muito pró-

nas escolas, mas também trouxeram em suas falas indícios sobre a possibilidade
de insurgir, de resistir: Vivemos, na política atual, uma cultura de vigilância do

Outro professor destaca: -

nos munimos pela inconformidade de sermos vistos de forma distorcida pelo


-

-
sores problematizando, explicitando suas angú
tempo, propondo, buscando, re-existindo no seu fazer pedagógico. Isso porque,

-
, ou seja,
existências, nossas experiências deslocam, movimentam os cotidianos escolares

Nesse sentido, nas produções conversacionais dos encontros, observamos o


quanto os professores apostam nas experiências de vida dos/com os estudantes
-

428 íveis
formas de re-existir, mover o pensamento para os modos de insurgir e resistir na
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

-
ral. E pudemos sentir o quanto o cinema pode contribuir, no sentido de nos levar
a criar, inventar, discutir acerca de novos/outros modos de existir insurgindo,
engendrando resistências no contexto atual.

Considerações finais
Os autores referenciados neste artigo têm apontado algumas formas de insur-
gir, resistir e produzir novos/outros processos de subjetivação que tendem a su-
perar ou minimizar os efeitos perversos e destrutivos do inconsciente colonial
cafetinístico. Não basta resistir macropoliticamente, “é preciso o combate pela

da potência de vida, do poder vital de pulsação – para poder encontrar os pontos


em que o desejo poderá perfurar as condições impostas por esse inconsciente,

A autora nos indica, ainda, a necessidade de pensar e resistir. A ideia do pensar


supõe escutar, sentir os efeitos das forças da atmosfera ambiente no nosso corpo,
mas ao mesmo tempo sentir a pulsação de mundos larvares que são também
gerados e fecundados em nosso corpo e anunciam o saber-do-vivo e implicar-se
com esse saber, em um movimento de desterritorialização que tais gérmens de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


-
zador das subjetividades e pode nos levar a substituir a perspectiva antro-falo-e-
go-logocêntrica por uma perspectiva ético-estético-clínico-política.

do comum, “para isso é preciso tomar para si a responsabilidade como ser vivo
e lutar pela reapropriação das potências de criação e cooperação e pela cons-

capacidade de formar relações com os outros, de gerar encontros prazerosos 429

relações destrutivas e dos corpos perniciosos que essas relações produzem. Os


autores apostam, assim, em um acontecimento biopolítico e retomam Deleuze,
que já nos dizia que esse acontecimento é uma prática daqueles que acreditam
no mundo, é o poder de não só escapar ao controle do inconsciente colonial
capitalístico, como também criar um novo mundo. O acontecimento biopolítico
é, assim, uma subversão ao processo de subjetivação que abala identidades e
normas dominantes, remete-nos à ideia de poder e liberdade e inaugura uma
produção alternativa de subjetividades.

diferenças e a composição de um mundo não totalizável, ou seja, não desejam


a ideia de um só mundo. A política agora não deve se apoiar apenas na ideia
do estou contra, mas no estamos juntos. Entretanto é um estar juntos que supõe
a perspectiva da multiplicidade e diferenciação, o que possibilita a proliferação
de outros mundos possíveis.
Como pensar, então, em outros mundos e outras escolas? Ou como pensar em
outras formas de viver? Acreditamos que precisamos pensar e viver a política
como modo de criação de vida, não como algo transcendente, abstrato, mas
imanente. Política como produção do comum. O que estamos vivendo precisa
nos tensionar a criar outros mundos, outras formas de viver, outras escolas, ou-
tras formas de política.

apontam ou corroboram as questões levantadas pelos autores. Desde o início


deste trabalho, discutimos os processos de subjetivação na contemporaneidade,
-
cesso de abandono de si, do mundo, da vida, da luta. E o que acomete os pro-
fessores, perpassa, invade a escola, produzindo a patologização dos processos
vividos, a melancolia e a desesperança, a desterritorialização que faz com que
todos se sintam desambientados, sem lugar. Entretanto essa desterritorialização
pode ser positiva, no sentido de nos encaminhar para outras direções, de nos sa-
cudir. Isso também foi evidenciado nas falas, nas emoções. E o cinema foi capaz
430
de disparar sentimentos que mostram a insatisfação com todas essas formas de
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

com os personagens, viram-se no lugar dos personagens. Discutiram que é preci-


so insurgir, resistir, burlar o sistema e todas suas formas de opressão e vigilância.
Criar táticas de não só sobreviver, mas de produzir novas formas de viver. Se não
for possível tocar violino, pelo menos parar para ouvir e sentir o som do violino.

Apostamos, assim, que, apesar de vivermos um momento de mais alta pericu-

da ordem cultural e social ligadas diretamente às nossas vidas, individuais e


coletivas, aos processos de subjetivação, não podemos sucumbir. Isso é o que o

-
siva. Se é uma construção histórica, é uma construção humana. Se é uma cons-
trução humana, podemos intervir. Se podemos intervir, podemos crer que outras
formas de viver, que produzem outros mundos, outras escolas, são possíveis. Um
mundo sem tristeza. Porque nossa aposta são mundos e escolas sem tristeza – a
aposta deles é o contrário. Apostam na tristeza. Porque nada alimenta mais este
sistema que a nossa tristeza, porque a tristeza nos fragiliza e imobiliza. Assim,
nada alimenta mais o capitalismo que a nossa tristeza. A tristeza nos impede de
lutar pelo que acreditamos.

esses espaços em lugares de bons e potentes encontros, de transbordamento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


de afetos alegres. Nesse sentido, é fundamental que utilizemos em nosso tra-
balho mecanismos disparadores de outras subjetividades, ou que pelo menos
possibilitem aos nossos alunos problematizar as subjetividades que estão sendo
produzidas pelo regime atual e que, no mínimo, questionem e duvidem das
práticas discursivas que querem nos fazer acreditar que tudo decorre de uma

educação e cinema!

431
Referências

CNTE. Revista Retratos da Escola

O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores.

Multidão
______. Bem estar comum.
______. Declaração

As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização

______. O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. São

______. Signos, máquinas, subjetividades


432
______. O governo do homem endividado
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Resumos...

(org.). Biocapitalismo: entre Spinoza e a constituição política do presente.

1984
Ensaios do assombro
-

S. (org.) Educação e audiovisualidades


Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São

______. A hora da micropolítica


Revista Brasileira de Educação.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


433
19.
434
TÍTULO
SIGNOS ARTÍSTICOS

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


E CONHECIMENTO:
UM ENSAIO
CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

435

Patrick Stefenoni Kuster


Patrick Stefenoni Kuster (UFES)

Algumas palavras iniciais


Em ocasiões cotidianas, como em centelhas misteriosas, via em escolas coisas e
gentes se subtraírem de suas supostas ordens pré-estabelecidas ganhando textu-
ras impensadas. Exercendo um progressivo fascínio, esses fulgurantes mistérios
me cativavam. Ficava intrigado em ver em ocasiões propícias gentes e coisas

acontecendo? Será que estava sendo fustigado por um devaneio exacerbado em


imagens oníricas?

Certamente eram o faiscar de digressões em situações tão comuns e próximas


quanto corriqueiramente desprezadas. Elas abriam, na aparente litania ordinária
436 de uma escola, brechas por onde podia ver obtusamente, em lampejos ofuscan-
tes, coisas e gentes mostrarem-se em suas verdades heteróclitas.
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

Todavia, não eram espécies de objetos de curiosidades a serem vistos como


excentricidades folclóricas na distância desdenhosa de vitrines. Elas formavam
um conjunto demasiado ignóbil para que não pudessem pelo menos ofender as
sensibilidades mais habituais.

De todo modo, era inequívoco que elas agiam me atraindo em secretas cumpli-
cidades. Eclipsando categorias conhecidas, causavam uma deserção terrível e
intrigante. Como num ímpeto imprevisível, adentrava-me nos labirintos de seus
signos insólitos numa experiência irreversível.

Nessa incursão sem volta, suas verdades se revelavam senão pelas próprias mu-
danças que em mim causavam. De sorte, não eram verdades que pré-existissem
indiferenciadamente a quem se revelam, bem como não se revelam a qualquer
um em qualquer tempo bastando ter os melhores instrumentos e os métodos
mais adequados.
aqueles que em seus segredos distintamente se iniciam. E, apreendê-las era uma
peripécia que não podíamos antecipar, muito menos repetir. Ainda assim, ini-
ciar-se em seus segredos não era um exercício cinicamente aleatório.

Na descentralidade conceptual de um gesto em sua miudeza ordinária, o desper-


tar inquietante de um estranhamento, fazendo mudar a escala de nossa atenção
que se desenvolve senão com os próprios signos suscitados no acontecimento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


inesperado que, como pistas de um caminho sinuoso e desconhecido, marcam
a cadência da própria marcha. Assim, permeado por acidentes decisivos, neles
o percurso não contrastava com todo um encadear que se fazia necessário na
própria caminhada.

Apenas as ocasiões difusas do dia-a-dia de uma escola, vividas e feitas por gen-
tes ordinárias, podiam dizer, e em ardis oportunos, dos sentidos obscuros que
nelas se forjavam. À medida que me adentrava em seus segredos instigantes,
entretanto, suas verdades comunicavam acima de tudo um horizonte clandesti-
no de forças em cujas relações faziam esgueirar as próprias gentes e coisas dos 437
limites apertados do hábito e de tal maneira que eu mesmo não podia deixar de
sofrer seus traiçoeiros efeitos.

Decerto, na relação com essas situações arredias, algo inexplicavelmente exci-


tante acontecia. Eu mesmo já não repisava monótona e tediosamente as mesmas
coisas, como se suas verdades fossem rasgando a tênue teia que me encerrava

lancinante vastidão, mais sentida do que vista, dessas relações desiguais de for-
ças difusas do cotidiano nas quais parecia que tudo fugia de si.

-
masiado vertiginoso. Eram meninos que molhavam formiguinhas e meninos de
cabeças chatas, o subversivo ordinário elevado a seu expoente. Estudantes nes-
sas escolas, seus gestos formavam expressões dessa terrível experiência cotidia-
-
neamente conhecidas. Essa dimensão terrível assumia nos gestos desses meninos
um intolerável que já não podia ser escamoteado.
-
tidiano já nada fastidioso e a própria brecha por onde era possível ver tudo
escapar. Formavam, assim, uma condicionalidade pujante na qual era possível
vislumbrar o dia-a-dia de uma escola numa abertura para matizes de realidades
se fazendo.

Funcionando como signos de processualidade -


sígnios voluptuosos de forças arredias em cujas intensidades, todavia, sendo ul-
trapassado certo limiar, faziam com que eles deixassem de ser corriqueiramente
desprezados. Eles causavam um íntimo mal-estar do qual não se podia desfazer-
-se facilmente.

-
tivação vigente por onde mostravam, ainda que não se quisesse ver, que tudo
fugia. E não só mostravam, como contagiosamente instigavam, a contrapelo, a
tudo fugir. Por certo, outros testemunhavam o mal estar causado nessas expe-
riências um tanto desatinadas, o que depunha de certa maneira a meu favor.
438

Assim, nos perguntamos: como fazer pesquisa em Educação, colocando-se a al-


SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

tura desse cotidiano escolar permeado por terríveis elementos que o transversa-
lizam? Como produzir conhecimento em Educação desde esses acontecimentos
erráticos que, suscitando crises, nos coloca nesses focos de criação num coti-
diano escolar? Como suportar o mal estar que nos causam e o fremido que agita
os anelos que (nos) encerram e (nos) dominam, assumindo todas as suas conse-
quências? Como pensar as coordenadas de pesquisa desde uma transversalidade
que não se subjuga a unidades de categorias e formas homogêneas?

Buscando responder essas perguntas, mostraremos que fazer pesquisa em Edu-


cação colocando-se a altura de um cotidiano escolar permeado por esses terrí-
veis elementos que o transversalizam só é possível quando a própria pesquisa
torna-se ocasião crítica suscitadora de crises. Assim, em coordenadas contra-e-
pistemológicas, mostraremos uma possibilidade de pesquisa que se realiza em
valores estéticos, imitando uma vida em seu vetor de criação.
Nesse sentido, esse trabalho objetiva explorar as possíveis relações entre signos
de estatuto estético e a atividade do conhecer. Trabalhando, por meio de signos
artísticos, dentre outros aspectos, a dimensão clínica-ética-estética-política do
sentir, que é sempre sentir algo, queremos com isso evidenciar a possibilidade
da produção de um pensamento insurgente.

Tomando signos artísticos e, com eles, a possibilidade de produção de conhe-


-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Racionalidade, vale dizer, onde a experiência sensível, subsumida no que se
-

Problematizando, inicialmente, as condições que faz da experiência sensível uma


só pode se
realizar enquanto invenção, ainda que as ciências não o digam abertamente.
Alcançando essa inteligibilidade, vamos desnaturalizando alguns pressupostos
439
do conhecimento.

Sem desprezar a força da modalidade epistêmica das ciências e seus efeitos (mo-
nocórdios) sobre a experiência do conhecer, queremos judiciosamente indicar
a possibilidade de maneiras heurísticas irredutíveis às ciências consagradas sem
deixar, num mesmo movimento, de questionar a univocidade das ciências como
linguagem legitimadora da experiência do conhecer.

Assim, a contrapelo do que postula as ciências de matriz baconiana que acre-


dita conhecer quando expurga os idolas
ensaio indica a possibilidade do conhecimento pelos signos artísticos (assumin-
do despudoradamente o sentir enquanto invenção) quando acessa e agita todo
idola da percepção comungado entre os homens.

À medida que tomamos a ocasião criadora do conhecimento por meio de ativi-


dade de natureza artística, efetivamente apontamos a possibilidade de um pen-
-
pirista, sem com isso atribuir um sentido negativo às ciências, instaurando uma
espécie de julgamento contra Galileu
-
-
põe um sujeito epistêmico que corresponderia a uma tabula rasa, desprezando a
subjetivação implicada no processo do conhecer. Por outro lado, explorando as
relações possíveis entre signos artísticos e a produção de conhecimento, indica-
mos uma maneira de pesquisar que não apenas se reconhece, em sua tessitura,
nos processos de subjetivação em curso, como tem na subjetivação seu escopo.

Com isso, por meio dos signos artísticos, queremos evidenciar uma modalidade
de produção de conhecimento que assume o processo de subjetivação no qual
está imerso, e ao fazê-lo não deixa de mostrar-se como uma atividade que se
realiza coletivamente, ativando a sensibilidade daqueles que o vivem, como

Portanto, a condição do conhecimento pelos signos artísticos, reportando a uma


relação calcinada da existência com uma peculiar e potente inexatidão do sen-
440 tir, faz dessa situação cognoscitiva uma experiência, tomando essa expressão
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

Uma experiência coletiva em que, por um golpe sub-reptício, no sensível pode-


-se encontrar fraturados os idolas comungados da percepção, condicionando um
pensamento insurgente.

A experiência sensível na observação científica


Demorando-se sobre a experiência sensível implicada no processo de formação
do pensamento, não podemos desprezar a importância que assume na observa-

Com o

aceita da atividade do conhecer, dominando o que se tem proclamado sobre a


ciência moderna, é inegável a assunção decisiva da observação como elemento
genuíno do conhecer ou, o que neste caso dá no mesmo, da formulação do dis-
curso de conhecimento.
também com pretensões de dizer algo sobre o homem e sobre o mundo.

sobre o que lhe acontece (os mitos, as histórias orais, os discursos religiosos...),
-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


tidos na medida em que apelam para seres não observáveis.

Essa perspectiva de uma racionalidade segregacionista que atribui à observação

válido e o que é linguagem sem sentido, forma uma matriz da experiência cien-

dos tempos .

decisivo na formulação desse tipo de pensamento? Sob esta interrogação, eluci-


441

para colocar em discussão o que seria, por outro lado, o sensível implicado nas
artes como dispositivo também de formação de pensamento, embora de um tipo
de pensamento diferente das ciências.

por uma suposta correspondência biunívoca, estável e invariante entre o que é

1 -

epistêmicas e ontológicas. Incorremos, com o limite posto por esse texto, em deixar de ver algumas nuances distintas, dando a
impressão ilegítima de continuidade a um rebento histórico que atravessa os séculos. Contudo, vale destacar que no século XX,

positivistas lógicos ou neoposi-

debatiam o valor epistemológico da


maneira, antes ele só é possível como resultado de uma espécie de assepsia do
olhar, isto é, o olhar nas ciências só tem valor epistêmico quando dele é subtraí-
do tudo o que se interponha entre o olho e o estímulo sensível.

o que constitui a subjetivação é um empecilho para que o ver venha tornar-se

espectro de um combate aos idolas da percepção, segundo ele, fontes de todas


as ilusões, isto é, um combate às condicionalidades da subjetivação humana
(educação, tradição, comunicação, etc.).

Assim, atribuindo aos idolas a ação de opacizar o ver, prejudicando a acepção


exata do que é visto, nesse horizonte baconiano, o ver implicado na observação

constitui a subjetivação. O sujeito epistêmico é uma espécie de tabula rasa, fun-


cionando apenas como uma máquina registradora inerte.

442 sujeito epistêmico é um estorvo relegado a um plano residual. Para observar, o


homem precisa aniquilar-se. Com isso, com a pretensão de eliminar os idolas
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

reverberação surda, o cientista no subterfúgio de sua técnica, simultaneamente


e num mesmo movimento, ignora (no sentido de que não vê) os aspectos éticos-
-estéticos-políticos, demasiado humanos, que inevitavelmente estão imbricados
em sua atividade legitimadora de um discurso de conhecimento .

ciências se orientam não é o homem e seu processo de subjetivação, mas o pró-

Genealogia da Moral: “Nós, homens do conhe-

paradigma
do próprio paradigma.
Mas que conhecimento é esse das ciências? O que se quer alcançar com o ver

linguagem rigorosamente desvencilhada de toda palavra metafísica, expressa

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


um conhecimento de vocação praxiológica.

meio do qual se vê habilitado a controlar, dominar e transformar a natureza. No


horizonte baconiano, o entendimento tem voz de comando sobre a natureza.
Em virtude de seu valor praxiológico, o que importa é o conhecimento que serve
de instrumento de domínio sobre a natureza.

Acirrando essa vocação praxiológica da ciência inaugurada por Bacon, chega-se


443

inevitavelmente se interpõe entre o olho e o estímulo visível as “lógicas inferen-


-
sunção de uma linguagem matemática hipostasia uma realidade que se interpõe
no ato do ver .

A ciência moderna, de todo modo, suscitou uma linguagem distinta. Derivada


do que se convencionou chamar por observação, essa linguagem se dimensiona,
por marcadores matemáticos, em categorias de identidade que tornam iguais os
que são diferentes, em lógicas inferenciais que enredam o acontecer em fórmu-
las de probabilidade cujo conhecimento torna-se ferramenta de manipulação,
controle e domínio.

3 Enfatizando a racionalidade empírico-formal de matriz baconiana, não podemos deixar de mencionar a racionalidade lógico-
-formal de matriz galileneana com seus intercessores matemáticos por meio dos quais cria a linguagem de conhecimento sobre
a natureza. Sobre essa matriz galileneana há
se ele não seria uma modalidade de idola, a contragosto do postulado baco-
niano. Colocando dessa maneira, entendemos que os idolas que o projeto de
racionalidade baconiano tanto se esforçou para se desvencilhar, pelo mesmo
esforço não pode deixar de produzir seus próprios idolas. Mais do que uma

pertinência necessária dos idolas na composição da ação do ver. Eles funciona-


riam, sobretudo, como códigos que coordenam o ver, e a ciência, ainda que não
o diga, soube criar os seus.

Por meio da arte,


uma possibilidade contra-epistemológica do conhecer
-
444 mos desnaturalizando pressupostos pretensamente atemporais das ciências mo-
dernas. Não queremos com isso, como já é sabido, apequenar o valor das ciên-
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

cias, mas problematizar sua univocidade na atividade do conhecer, realçando o


valor dos signos artísticos como possível cognoscitivo e numa perspectiva con-
tra-epistemológica.

dizemos inicialmente de uma arte que, diferentemente das ciências, assume em


sua atividade que um sensível só é possível porque criado. No rastro de Pasolini
como ex-
pressão correspondente ao real, uma espécie de decalque do real, mas como o
que realiza o real.

4
não deixa de
Destacando o limite desse texto, contudo, reiteramos que não é
-