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i 2D ¥fo-0u- UWI | 590 | 9 023 7885! | NEUROCIENCIA E APRENDIZAGEM ELVIRA SOUZA LIMA ‘Copyright © 2007 e 2009 Elvira Souza Lima Projeto Grafico e Capa: Gabriel Lima Revisio: Pilar Fazito Diagramagéo: Rita Motta ISBN: 978-85-909550-2-3 Distribuicéo: Inter Alia Comunicagio e Cultura Caixa Postal 27038, 30 Paulo, SP 0407-970 Tel/fax: (11) 50836043, ivrose@editorainteralia.com wwweditoraint APRESENTACAO, A pedagogia é uma ciéncia de grande complexidade, pois trata do ensino para formagao das novas geracées. Ela utiliza, para tanto, outras reas do conhecimento que estudam 0 ser humano, Para o século Xxl, se anuncia uma contribuicso importante para a educacao formal vinda da neurociéncia, area de conheci- mento, que se estabeleceu na segunda metade do século XX e que, pelo impressionante ntimero de pesquisas e estudos, am- pliou significativamente nosso conhecimento sobre como nés, os seres humanos, nos desenvolvemos e aprendemos. Acredito que o aporte da neurociéncia pode contribuir mui to para a pratica do educador e para ampliar seu conhecimento pedagégico. A neurociéncia valoriza a pessoa do adulto educador ‘20 mesmo tempo que o alerta para a complexidade da ago hu- mana de ensinat, por um lado, e de aprender, por outro. Este texto € uma introdugéo ao campo da neurociéncia re- lacionada a escola. Ele se complementa com Entendendo o cére- bro, texto mais técnico sobre o mesmo assunto. O objetivo é informar e levantar questées de estudo, EWira Souza Lima INTRODUCAO, traz uma contribuicao efetiva e muito im- portante para entender a complexidade da espécie humana. Por termos hoje acesso ao cérebro em funcionamento, temos uma di- mensao nova de observacio e de estudo desse 6rgao que guarda ‘a meméria e organiza o comportamento humano. ‘A tecnologia disponivel para estudar o cérebro em funcio- namento possibilita acompanhar quais dreas do cérebro sio mo- bilizadas a cada tarefa que a pessoa realiza, os processos internos de modificacéo cerebral quando a pessoa aprende e como o céte- bro responde a mudangas no mundo externo ou a mudangas na \teracao entre a pessoa e o contexto de desenvolvimento, Permite, também, acompanhar processos internos, inde- pendentemente de circunstancias externas. Pesquisas e estudos disponibilizam informacées de como se da a formacao do cérebro na vida intra-uterina, de como ele se desenvolve durante os anos da infancia e da juventude e o que ‘corre no longo periodo ~ cerca de 20 anos ~ de maturacéo do cérebro. Essas pesquisas revelam as modificagées sucessivas do cérebro, determinadas pela genética da espécie, o funcionamen- to das diversas areas cerebrais em cada tipo de atividade que o ser humano realiza e as possibilidades de recuperacio e de reorgani- Zagao quando acidentes, lesdes ou outros fatores interferem ou modificam a composigio do cérebro ou seu funcionamento, © estudo do cérebro revela que acontecem processos in- ternos que nao so identificados diretamente no comportamen- to, ou seja, aspectos do desenvolvimento humano que néo eram, antes, diretamente observaveis so hoje disponibilizados a partir das tecnologias que permitem estudar 0 cérebro em funciona- mento em tempo real, Um deles, que interessa muito educacao, é a fungao sim- bélica, sua constituicao e seu desenvolvimento. Como o cérebro processa a linguagem, quais éreas estdo envolvidas em aprender a ler, em aprender a escrever, em aprender a contar e a trabalhar com quantidades séo exemplos de descobertas recentes cujo im- pacto na educacao é considerdvel. O desenvolvimento e a formacao das memérias sao de sin- gular importancia para a educacao escolar, uma vez que todo en- sino objetiva a formagao de memérias dos novos conhecimentos e de metodologias nos educandos. E de interesse do professor saber como transformamos informagées em novas memérias, nos apropriando de sistemas simbélicos e construindo conceitos complexos das varias reas do conhecimento. Um aspecto muito importante para a educacao escolar & que as estruturas formadas pela aprendizagem de conceitos de alguma disciplina podem servir a outros fins, como, por exemplo, aprender contetidos de outras disciplinas ou mesmo executar ta- refas da vida cotidiana ou de trabalho. Uma pessoa que se apropria da linguagem escrita, modifica seus processos de meméria em outros tipos de atividade. A lin- gua escrita, ao ser incorporada & meméria da pessoa, traz consigo uma organizacao fortemente marcada por padrdes. Aprender a escrever depende de se apropriar de padrées e utilizé-los. NNa lingua escrita, a sintaxe é um elxo forte de construgao de padrdes, de organizacao de simbolos em unidades e palavras em categorias, como as classes graraticais, por exemplo. © processo de aprender conhecimentos organizados em sistemas (como 6 0 caso de todas as dreas das ciéncias, bem como das artes) tem como resultado uma mente acostumada a obser- var, categorizar, analisar. Essas capacidades vao ser utilizadas na vida cotidiana, por exemplo, nos processos de tomada de decisio: a pessoa disporé da possibilidade de considerar um evento sob varios pontos de vista, refletir, estabelecer relacdes entre os fatos, hierarquizé-los, antes de tomar uma deciséo. O avango recente da neurociéncia mostrou que o desenvol- vimento do cérebro é fungao da cultura. Ou seja, a realidade da 6 espécie é sua natureza biolégica e cultural. A partir dessa consta- tagao, passou-se a olhar a dimensdo cultural no desenvolvimento sob outra ética: a cultura é constitutiva do ser humano, Dessa forma, todas as situages na vida apresentam contex- tos de formagao do ser e o universo simbélico faz de uma pessoa um membro de um grupo. A cultura proporciona ao ser huma- no varias formas de comunicacao possiveis pela participagao no mesmo universo simbélico. A sobrevivéncia da espécie depende da formagao de grupos e da socializacao das praticas culturais, dos conhecimentos ¢ dos instrumentos culturais. Para tanto, em um determinado ponto da histéria da humanidade, se inventou a escola. Isto aconteceu hd cerca de 5 mil anos. A escola cumpre, desde entao a funcao de formar pesso- as. Hoje sabemos que o papel desempenhado na escola torna-se constitutivo da pessoa para, ao menos, todos que chegam na es- ola na infancia ou na juventude. © cérebro se forma integrando as experiéncias vividas no contexto escolar. Como funciona o cérebro? Cada um de nés tem um cérebro cujas partes, ntimero de células, componentes quimicos e funcionamento sdo determina- dos pela genética da espécie. Esse ¢ 0 componente fisico, diga- mos assim, do cérebro. A partir dele se da o desenvolvimento do cérebro que se efetua pela formacdo de um mapa neuronal, ou seja, 0 conjunto de redes neuronais criadas pelas sinapses entre os neurénios, As redes neuronais se constituem de possibilidades biol6- gicas da espécie e sao fun¢ao da experiéncia de vida de cada um de nés. Dessa forma, o mapa neuronal (0 conjunto de redes) as- sume um cardter pessoal: cada ser humano é nico, pois as redes neuronais formadas sao proprias e especificas da historia de vida de cada pessoa. Temos cerca de 100 bilhGes de neurénios, cada um deles passivel de fazer centenas e centenas de conexdes com outros neurénios. Temos varias 4reas no cérebro em que os neurénios 880 destinados a processar coisas especificas. Por exemplo, temos dreas diferentes para perceber 0 mundo que nos cerca: érea para a visio, érea para a audigdo, érea para o offato, area para o paladar ¢ dreas para o tato (Lent, 2001). Temos areas para a realizagao de movimentos para cada parte do corpo. Temos areas para os com- ponentes da mtisica — melodia e ritmo sao processados separada- ‘mente ~ ¢ cada uma delas também esta envolvida nos atos de ler e de escrever. Temos dreas especializadas em perceber cor e em nomeé-las, area especializada em perceber o rosto humano. Te- mos areas diferenciadas para classes gramaticais da linguagem. © cétebro, porém, funciona integradamente. E comum a arti culacao de varias éreas para um s6 comportamento. A formacao de uma imagem no cérebro requer a utilizacdo de varias éreas, pois for- ma, cor, posi¢ao no espaco, uso, Movimentaco sao processados se- paradamente. Para falar, usamos varias dreas, incluindo os centros de inguagem, que esto no hemisfério esquerdo, e areas que proces- sam a mtisica, que esto do lado direito, Estudos recentes sugerem que para o ato de ler so mobilizadas dezessete dreas no cérebro, Podemos afirmar que o funcionamento do cérebro é muito complexo. De tudo o que ele processa, algumas coisas ficam armaze- nadas na meméria (que chamamos de meméria de longa duracéo) outras sao esquecidas (permanecem brevemente na memoria e de- saparecem, justificando o nome meméria de curta dura¢ao). © cérebro tem uma plasticidade muito grande. Plasticida- de é a possibilidade ampla de formagao de conexées entre neu- rénios a partir das sinapses. Isso significa que o ser humano tem uma grande capacidade de aprender. O cérebro nao s6 aprende como se reorganiza, dependendo das circunstancias de vida de cada um. Por isso, a experiéncia individual é tao importante para compreender os caminhos de aprendizagem dos alunos. Em uma pessoa nascida cega, os neurénios da drea do cor- tex visual assumirdo fungdes do sentido do tato, ampliando a ca- pacidade de percepgiio tatil,instrumento basico de conhecimen- to das pessoas que nao enxergam (1). Quando nao se usa uma rea do cérebro, os neurénios podem assumir tarefas de outras reas préximas. Isso se dé por processos complexos, cuja explica- 20 vai além do objetivo deste texto. No entanto, essa mobilida- de tem implicacées para as aprendizagens escolares. Uma delas é que a nao utilizacao de certas conexdes neuronais jé feitas pode levar a desativacao dessas redes neuronais. Isso é particularmente evidente nas aprendizagens de praticas culturais, como € 0 caso da leitura e da escrita. Quanto menos se lé, menor é a capacidade de compreen- so do texto escrito; quanto menos se escreve, menos facllidade se tem para encontrar as construcdes sintaticas e as palavras exa- tas para comunicar o que temos a dizer. cérebro passa por um processo de maturago biolégica 20 longo de vinte anos. Esse processo é marcado por mudancas importantes, que acontecem em tempos constantes para todas as pessoas, Estas mudancas provocam alteracées significativas no funcionamento da meméria, da percepcio, da emogio e da aten- 640, criando o que chamamos de periodos de desenvolvimento. Cada periodo de desenvolvimento humano é marcado, assim, por mudangas fisicas no cérebro e por aqui especificas e possiveis gragas a configuracao fisico-qi rebro naquele determinado periodo, Para o ensino na escola, levar em consideragio 0 desenvol- vimento do cérebro nao é uma opcao teorica, mas uma necessi- dade, pois a aprendizagem dos conhecimentos escolares ocorre em funcao do desenvolvimento e funcionamento dese 6rgao. A aprendizagem se efetua pela criacdo de novas memérias € pela ampliagao e transformacao de redes neuronais que “guar- dam’ contetidos ja trabalhados anteriormente. Nese processo, en- tram tantoas informacées organizadas em contetidos de meméria (aprendizagem de conceitos), como a apropriacéio de metodologias. que sao 0 recursos para formacao e/ou ampliacdo de memaérias. A prdtica pedagégica que for planejada e executada sem evar em consideracao os processos internos mentais da espécie humana tera grande possibilidade de conduzir o aluno a uma si- tuagéo de nao aprendizagem. Quando © professor tem acesso a conhecimentos sobre © desenvolvimento humane, ele tem a possibilidade"dé ajustar, adaptar ou criar suas formas de ensinar, bem como de propor ati- vidadles que o aluno precisa, de fato, realizar para se apropriar do conhecimento. Os conhecimentos sobre 0 cérebro devem ser au) esclarecedores para 0 professor: eles podem cont boracao de uma didética alinhada com os processos mentais em cada periodo de desenvolvimento, A dimenséo interna do desenvolvimento desenvolvimento da crianga, desde que nasce, é fungao da cultura e da heranca biolégica da espécie, Assim, ao aprender coisas novas, a crianga se vale de disposicées internas do desenvolvimento da espécie humana e do que o meio Ihe oferece como possibilidades para a aprendizagem. Muito do que acontece no proceso de desen- volvimento humano nao , diretamente, passivel de observacdo, ou seja, no se manifesta como um comportamento observavel. Um exemplo interessante & 0 da aprendizagem da fala. Quando a crianca ‘omega’ falar é porque, do ponto de vista do desenvolvimento, ela realizou uma série de aquisig6es que a leva- ram a falar, Esse processo, no entanto, nao pode ser acompanha- do externamente. Do ponto de vista da crianga, ela chega a fala, ao passo que, para nés, ela comega a falar. 10 Para chegar & fala, é necessario 0 desenvolvimento do apa- rato fonador para a crianca falante ou dos movimentos para a crianga com impedimento do aparelho fonador, Com a descida da laringe, que acontece no primeiro ano de vida, a crianga comega a produzir os sons das vogais e fazer vocalizes, Progressivamente, apresenta-se a formacao das conso- antes e, assim, vdo se formando as silabas. Ao mesmo tempo, ela desenvolve a melodia propria da sua lingua, integrando, para isso, reas especificas do cérebro que processam duragio, altura e en- cadeamentos de sons . Para produzir palavras, a crianca precisa, anteriormente, for- mar memérias auditivas dos fonemas da lingua materna. Em seu Primeiro ano de vida, 0 ser humano possui a capacidade de formar 0 fonemas de qualquer lingua, aprendendo aqueles que ouve em seu contexto. Em seguida, perde essa possibilidade, firmando os fo- nemas da lingua, ou das linguas, que ouve em seu meio social Amedida que esses varios componentes entram em funcio- namento conjunto, a crianga chega a emissio de palavras, Prim ramente, palavras isoladas e, depois, o conjunto de duas palavras, geralmente sujeito e verbo ou verbo e objeto, ‘Ao mesmo tempo, a crianca vai aprendendo como a fala é utilizada para a comunicacéo. Ela vai, também, constituindo o uso da fala na infancia, em relago ao grupo de adultos. Existem cultu- ras nas quais as criancas verbalizam e participam da conversa dos adultos; em outras, elas precisam esperar seu momento para falar; em outras, ainda, os adultos param para ouvir a crianca falar. Essas J4 sao aprendizagens referentes ao uso da fala em cada cultura, Odominio da linguagem modifica o processo de desenvolvi ‘mento que, de predominantemente biolégico, passa a incorporar 0 desenvolvimento cultural como dimensao igualmente importante. E interessante observar que, da mesma maneira que 0 de- senvolvimento interno leva a formar a fala, ele levard a crianca a formar outros comportamentos de natureza simbélica, como o ato de escrever e 0 ato de ler. n Desenvolvimento da fungdo simbdtica - prelidio para a leitura ea escrita Ha uma série de aspectos da fungdo simbélica desenvolvi dos no perfodo do quarto ao sétimo ano de vida (dos 3 aos 6 anos ) que dara suporte para a apropriagao da escrita. Alguns desses aspectos sao formados e consolidados a partir do exercicio das préticas culturais da infancia, como as brincadeiras, e das festas € rituais que marcam, culturalmente, as comunidades humanas. Ao brincar,a crianga mobiliza éreas do cérebro que fazem parte da aquisicao dos conhecimentos formais. Por exemplo, brincadeiras com cantigas levam ao desenvolvimento da rima, da melodia e do ritmo, que sao areas igualmente mobilizadas pelo ato de ler. Redes neuronais séo formadas no cértex motor quando a crianga realiza brincadeiras com movimentos repetitivos, desenvolvendo a pericia de certos movimentos que sero “utilizados” para escrever. As parlendas, adivinhas e cantigas infantis desenvolvem o Iéxico (vocabulario) e a estrutura sintatica na fala. Com suporte nessas atividades culturais, a crianga tera mais elementos para se apropriar da escrita, quando iniciar seu processo de aprendiza- gem na escola de ensino fundamental Brincadeiras infantis educam a atencdo: a crianga aprende a ouvir, a esperar sua vez e a aguardar o movimento da outra crian- a para iniciar o seu. Certas brincadeiras exigem aten¢ao concen- trada e rapidez na resposta (2). Um dos elementos basicos formadores da fungao simbélica é a capacidade de dar significado a uma forma. Uma forma que € ta com 0 corpo, quando a crianga brinca e faz de conta, por exem- plo, Uma forma que é registrada em suporte como o desenho. Uma forma que é registrada numa estrutura sonora, que é a cantiga. Ao fazer recortes e colagens, a crianca pega materiais que so, em si préprios, "neutros”e os transforma em suportes da fun- ‘640 simbélica. Da-thes um significado como, por exemplo, quan- do faz uma casinha com os recortes ou um sapo a partir de um. reténgulo de papel, utilizando a técnica de origami. 12 E, também, um exercicio da fungao simbdlica dar signifi- cado para coisas da natureza como sombras ou ‘nuvens, ‘que sao animais, monstros, rostos e assim por diante, Oexercicio basico de nomear um objeto, de criar uma idéia, um significado ou uma meméria é, de modo decisivo, “corporifi- car" esta experiéncia, Isto 6, representé-la em algum suporte é 0 que promove o desenvolvimento da fungao simbdlica do terceiro até, mais ou menos, 0 sétimo ano de vida Esse desenvolvimento interno amplia muito a capacidade da crianga de trabalhar com simbolos - condicao necesséria e fun- damental para que ela aprenda a ler e a escrever. A escrita é um sistema organizado de simbolos que serve para a formulagdo e comunicagao de significados. Para tanto, a escrita tem a ver, primeiramente, com o estabelecimento de re- gras entre esses simbolos. A escrita proporciona 8 ctianca formas ‘organizadas de apropria¢ao conceitual e pratica da realidade, isto 6, de integragao entre a crianca e o seu contexto cultural e soci A atividade do desenho no periodo que antecede a alfabe- tizagéio, na verdade, jé faria parte do proprio processo de alfabe- tizagao, na medida em que a pratica do desenho forma os movi- mentos que vo constituir os simbolos da escrita. O desenho é constitutivo do ponto de vista da execucao gréfica da escrita. Ao mesmo tempo, ele é constitutivo do desenvolvimento da narrati va que a crianga vai precisar, posteriormente, para criar um texto. Muitas das aquisigées e transformacées internas provoca- das pela aprendizagem dos conhecimentos formais nao sero, de imediato, acessiveis ao professor. Esse é um aspecto interessante da profissao de ensinar, pois um educador nunca saberé exata- mente todas as conseqiiéncias que seu trabalho pedagégico trara para a vida de cada um de seus alunos, Podemos avaliar varias consequéncias, mas nao a sua totalidade. O desenvolvimento da neurociéncia nos mostra que, em muitas situag6es, a aprendizagem de conhecimentos formais altera 13 e desenvolve processos internos de maneira a dar, a0 longo da vida da pessoa, possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem que nao aconteceriam se ela no tivesse pasado pela escola. ‘Aapropriacao do conhecimento formal Ao ensinar uma disciplina, 0 professor busca que 0 aluno aprenda ou, em outros termos, que ele se aproprie da conhect- mento sistematizado. Para tal, o aluno depende da compreensdo dos principios e métodos da estruturacao do sistema, isto é,do como e do porqué. A apropriacao se apéia no desenvolvimento cultural do alu- noe vai depender de processos biolégicos do cérebro, Que processos sdo esses? Como mencionados anteriormente, so processos ligados & formacao de redes neuronais. Uma rede neuronal se forma pela conexao entre neurénios, ou seja, por transferéncia de neuro- transmissores entre as ramificages dos neuronios. A reincidéncia dessas trocas, a0 longo do tempo, fortalece os caminhos de co- municagao entre neurénios, formando uma meméria. A aprendizagem 6 uma modificagao bioldgica na comuni- caso entre neurénios, formando uma rede de interligacbes que podem ser evocadas e retomadas com relativa facilidade e rapi- ez. Por exemplo, a tabuada. Embora nao tenhamos a tabuada na consciéncia, podemos evocar o valor de uma multiplicago, rapi- damente. 0 quéo “rapido” sera, dependerd de quao bem aprende- mos a tabuada. Para evocar o produto de 4 x 8, precisamos ativar a meméria contida na estrutura ou rede de neurénios que consti- tuem esse conhecimento. Se conseguirmos evocé-lo, é porque foi construfda uma meméria de longa duracao, meméria esta que é& parte do conhecimento matemético relativo a quantidades e ope- ragdes com quantidades. 14 A evocacao estar sujeita, também, as condigbes do mo- mento em que ela se realiza: cansaco e stress podem retardar uma evocagao, mesmo que ela tenha sido “bem aprendida’ que © contetido a ser evocado seja, em realidade, uma memoria cons- tituida. A formagao e evocacdo de memeérias estado intimamente relacionadas as emocées, Assim, hé uma rede neuronal que existe como substrato da formacao de conceito. Como fazer para que 0 aluno forme essas redes? Essas redes sao constituidas a partir de formas de agdo que envolvem atencao, percepgao e meméria. S50 as atividades de es- tudo. Estudo se define, entéo, como 0 trabalho organizado com informagées de um determinado objeto de conhecimento. O es- tudo se realiza pela utilizacao de instrumentos mentais ou ferra- mentas que apdiam e possibilitam operagées do pensamento, Aprender os conhecimentos formais implica a formacao in- terna de estruturas que permitam replicar 0 proceso envolvido no aprender. Assim, o método passa a ter uma importancia equi valente & informagao: aprender os conhecimentos formais envolve a informacdo e © “trabalho necessério" para que se formem novas memérias com 0 contetido dessa informacdo. Cada area de conhecimento formal tem seu contetido e sua metodologia proprios. Para aprender, o aluno precisa ser ensina- do tanto sobre 0 contetido da matéria (area de conhecimento) quanto sobre as formas de atividade que levam a apropriacéo do contetido em questao, Aprendizagem e plasticidade cerebral Quanto mais novo o ser humano, maior plasticidade seu cérebro apresenta. Certas conexdes se fazem com uma rapidez 15 muito grande na crianga pequena. £ isso que possibilita 0 desen- volvimento da linguagem oral, a aprendizagem de uma ou mais, inguas maternas simultaneamente, o dominio de um instrumen- to musical, 0 desenvolvimento de movimentos complexos e a pe- ia de alguns deles, como aqueles envolvidos no ato de dese- har, de correr, de nadar. Conforme explicitado anterlormente, 0 cérebro humano dispoe de cerca de 100 bilhdes de neurdnios, sendoque cada um Pode chegar a estabelecer cerca de alguns milhares de sinapses, Dessa forma, a capacidade de aprender é muito ampla. Aplasticidade cerebral, também, permite que areas do cére- bro destinadas a uma fungao especffica possam assumir outras fun- ‘s6es, como no exemplo dado anteriormente da crianca que nasce cega. Como essa parte do cérebro nao seré “chamada a funcionar” Por impedimento do aparelho da visio (que nao envia informago visual para 0 cérebro), ela poderd assumir outras funcées. A plasticidade cerebral esta envolvida, também, na poss lidade de realizar a “interdisciplinaridade" propria do cérebro: areas cerebrais desenvolvidas por meio de um tipo de atividade podem ser “aproveitadas" para aprender outros conhecimentos ou desenvolver reas relativas a outro tipo de atividade. Por exemplo, éreas desen- volvidas pela miisica, como a de ritmo, s80aproveitadas’ no ato da leitura, da escrita e da aprendizagem de conceitos da matematica. s conhecimentos disponiveis sobre plasticidade cerebral nos revelam a importancia de incluir no curriculo, a partir da edu- aco infantil, tempos destinados a desenvolver a metodologia que permite a apropriagao dos conhecimentos formais. Observar, fazer registros (utilizando as estratégias préprias de cada periodo de desenvolvimento), organizar os dados coletados e comunicar © conhecimento formado fazem parte desses aprendizados. Sea crianca praticar esses comportamentos, ela estaré mais preparada para realizar pesquisas. Pesquisar deve ser um dos ob- Jetivos do curriculo, pois ele possibilita ao ser humano a autono- 16 mia na aprendizagem dos conhecimentos formais e possibilita, igualmente, estabelecer relagbes entre dreas do conhecimento. Sob a perspectiva do desenvolvimento, aprender os conhe- cimentos formais implica a educacao da percepcio e da aten¢do ara que as metodologias possam ser apropriadas e aplicadas ao lar com as informacées, criar novas memérias e/ou ampliar as existentes. Educacao dos Sentidos A percepcao humana se desenvolve, isto é, 0s érgéos do sentido so aparatos biolégicos que se modificam e se especia- lizam a partir do uso que deles se faz e do exercicio constante. O desenvolvimento dos sentidos é de ordem biolégica e cultural se relaciona de maneira muito préxima a experiéncia emocional. O desenvolvimento perceptive é condicao para a atencao @ formacao de memérias. Mas a percepgao também é cultural, ou seja, a cultura define objetos de percepcao e pode privilegiar cer- tos aspectos da performance perceptiva para cada um dos rgaos do sentido, A percepsao esté na base de toda aprendizagem humana, Portanto, ela tem um papel importante no processo de desenvol- vimento. A percepcao envolve os cinco sentidos externos: visio, audicao, olfato, tato e paladar. Envolve, também, o que se identi- ficou como dois subsentidos: a vibracao e o calor. Os sentidos se combinam, interagem, efetivando possibili- dades de comportamentos que so essenciais a espécie. Os sentidos se relacionam entre si: quando ha uma defi- ciéncia ou falta de um sentido, outro pode se desenvolver mais, dando possibilidades a pessoa de compensar o sentido faltante, construindo uma outra dindmica do comportamento. Assim, a pessoa cega desenvolve a audigao € 0 tato de maneira a poder se 7 localizar e mover no espaco, ¢ interagir com outras pessoas € com objetos existentes em seu meio. O campo auditivo do cego torna- se amplo e preciso em localizar fonte, duracao e proximidade dos sons. A pessoa surda desenvolve a possibilidade de perceber as vibracées das ondas sohoras que nao sao recebidas pelo seu apa- relho auditivo ou que néo séo processadas pelo cértex auditivo por algum tipo de impediment. A realizacdo da percepgao se dé no cérebro, yue process as informacées recebidas através dos 6rgios de sentido, de forma integrada com outras fungdes como a atencio, a imaginacdo, 0 Pensamento ea meméria. A aprendizagem se realiza como um proceso em que ele- ‘mentos novos chegam ao ser humano, se consolidam através da recorréncia de contato ¢ experimentagao e se constituem como Fecursos para aprendizagens futuras. As experiéncias dos érgaos do sentido levam a formagao de memérias. Nas aprendizagens escolares, a professora depende dessa capacidade de formar novas memérias para garantir que o conte- ido escolhido no curticulo se efetive em conhecimento. Ao entrar em contato com um novo objeto de percepcao, a Pessoa integra a experiéncia anterior a esse novo ato perceptivo, Acontinuidade entre os modelos perceptivos construidos e as no- vas percepsées realizadas é muito importante nos processos de aprendizagem.Vejamos um exemplo: Aleitura No caso da leitura, o conhecimento anterior do individuo fundamental, pois a significag3o do que esté escrito é resultado da articulagao e integragao dos segmentos que o individuo “le” e completa, utilizando seu referencial de conhecimentos que estd na meméria, Desta forma ele compreende (3). 18 Por isso é que muitas vezes acontece o erro: como a forma- {980 do significado da palavra se faz por varias vias, a crianga se de- xa induzir por uma pista (que pode ser sonora, sintética e/ou se- ‘mantica) e acaba “lendo erradamente’, Por trés desse erro, hd um proceso coerente de pensamento. Dessa forma, 0 erro ndo pode ser interpretado, simplesmente, como falta de conhecimento, mas sim, como, talvez, uma opgao equivocada do sujeito que Ié. 0 erro, ‘muitas vezes, revela as formas de pensamento da crianga. Aleitura envolve a percepcao visual e auditiva ea meméria em seus componentes visual e auditivo, Na escola, a leitura é tra tada, principalmente, como uma questao da ordem da percepcao ual. O proceso, no entanto, é mais complexo, porque a palavra € sonora, tanto na oralidade quanto no pensamento. £ envolve, também, a meméria visual e 2 meméria auditiva. A integracio destes componentes (da percepcao visual ¢ auditiva e memérias correspondentes) ha, ainda, que se considerar a semantica, ou seja, a formulagio do significado que a palavra tem, que, também, deve constituir uma meméria. Muitos problemas que acontecem na aprendizagem da lei- ‘tura tém sua origem na omissao de um ou mais componentes da meméria Emogio As emocées tém funcéo adaptativa e de sobrevivéncia da espécie. A emocio é responsdvel pelos comportamentos apre- sentados para preservar 0 ser humano, quando a deliberagio (ra- ciocinio consciente) nao é possivel (apud Wallon, 1938). Assim, uma das fungées principais das emocées na espécie humana é a avaliacéo da situacao para chegar a deciséo de qual comportamento sera adotado, qual caminho sera escolhido ou qual informagio seré utilizada. O sistema limbico, parte do cére- bro onde se originam as nossas emogoes, participa dos processos 19 de aprendizagem do ser humane, inclusive das aprendizagens dos conhecimentos escolares, uma vez que os processos de aprendi- zagem envolvem sempre tomadas de decisio. . Estudos da neurociéncia revelam que as emogées estao Presentes nos diversos tipos dé aprendizagem, pois sé se aprende com a formacao de novas memérias e os processos da memoria, Por sua vez, s40 modulados pela emocao. Isso quer dizer que as informagdes, imagens e experiéncias sdo constituidas e modifica: das pelas emogdes que acompanham os processos de percepcao, atencao e meméria. Assim, toda acao de ensino deve considerar as emogdes, tanto de quem ensina quanto de quem aprende: elas so cons- titutivas da interacdo humana que se estabelece na vida escolar, bem como sao constitutivas dos processos cerebrais envolvidos ho ensino ena aprendizagem. Essa concepeao de emogao, j4 discutida por Wallon (op.cit) supera a contraposicao (bastante difundida no século XX) de cog- nigéo e emogdo, contraposigéo esta que traz muitos problemas ara 0 professor, porque ele planeja, ensina e avalia em bases que ao constituem a realidade da espécie humana. Vejamos um exemplo de participacao da emogio no com- portamento humano: Uma pessoa, ao ver uma sombra em uma rua escura, pode sentir medo e se preparar para fugir, imediatamente. A fuga é uma forma de se proteger de um perigo pressentido. Através dela, hd o ‘afastamento da situacao de ameaga que causa medo. O medo, em ma situago dessas, é algo positivo, pois auxiia na preservacao do individuo. Na escola, entretanto, sentir medo ndo € uma coisa boa, Sentit-se ameacado de alguma forma e nao poder se afastar da situagdo que causa medo (0 aluno no pode sair da sala de aula e/ou da escola) gera ansiedade, inquietude e pode mesmo, em alguns casos, gerar panico. 20 Os processos quimicos que acontecem no cérebro nesses estados interferem no funcionamento da meméria, tanto para criar novas memérias quanto para evocar as armazenadas. Eles afetam, também, os processos da atencao e da percepcao, inter- ferindo, diretamente, na capacidade do aluno de se concentrar na atividade proposta. problema mais sério que pode ocorrer, no entanto, é 0 desenvolvimento de uma experiéncia emocional negativa em re- lagéo.a uma matéria, o que leva o aluno a querer evitar estar em si- tuacao de ensino dessa matéria especifica. Ou, ainda, generalizar para toda e qualquer situaco de ensino: nesse caso 0 aluno pas- sa a, simplesmente, evitar a situagao de “estar em sala de aula’, Essas situagdes geram indisciplina, conflito com o professor, animosidade com os colegas. Basicamente, o aluno faz qualquer coisa para ndo permanecer em um contexto que é experimenta- do por ele de uma forma emocionalmente negativa. Situagées externas do tipo podem levar a evasao escolar ou a comportamentos de violéncia. Emogiio e tomada de decisio A emogio esté no inicio do processo de decisio e é determi- ante na percepcao e na atencao. Alguns estudos recentes sobre 0 funcionamento do cérebto mostram que, muitas vezes, s4o as emo- (Bes sentidas em experiéncias passadas que levam & tomada de de- 10 @ Ndo oraciocinio sobre a situacdo presente. Segundo esses es- tudos,a consciéncla da agdo sucede a experimentagao da emocao. Toda situacao de ensino e aprendizagem é pautada por int meras tomadas de decisdo, tanto por parte do aluno quanto do professor, Na escola, o processo de tomar decisdes esta evider do no planejamento, que ¢ realizado do ponto de vista, principal- mente, do conhecimento a ser ensinado. Ele também se evidencia nna concepgio de avaliago. Tanto no planejamento como na ava- liago devem ser considerados os fatores emocionais e como eles ocorrem segundo o perfodo de desenvolvimento da turma. 2

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