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Dag

PEDRO LOUREIRO
Solstad
Noruega
Um dos escritores escandinavos mais
premiados. Com uma escrita precisa
e clara e um imaginário singular, as
suas histórias, bem arquitectadas,
exigem tempo para a leitura. As
personagens são solitários em busca
de um sentido para a vida, vida a que,
aparentemente, nada falta. “Pudor
e Dignidade” (Ahab, 2010) é o seu
romance por cá publicado.

A solidão, a ironia, a
sensação de mal-estar
por trás da imagem de
aparente normalidade: é
isto a “literatura nórdica”?
Per Olov

ULLA MONTAN
Nos últimos dois anos
publicaram-se mais Enquist Suécia
autores do que no último Vem da geração de romancistas que
procuravam uma nova forma de
meio século. Só a “rentrée” expressão literária e que assimilaram
as influências do “nouveau roman”;
deste Outono trouxe mas, passado pouco tempo, adoptou
um estilo próprio, chegado ao
seis. Depois da vaga de do documentário jornalístico,
reconstruindo acontecimentos em
romances policiais em que a verdade estava muitas vezes
inacessível. “A Visita do Médico Real”
que o gelo e a neve estão acaba de ser traduzido pela Ahab.

sempre presentes no local


do crime, chegou a outra
onda da literatura nórdica.
José Riço Direitinho

A outra onda
da literatura nórdica
Quando há meia dúzia de anos a edi- influenciaram gerações de escritores Gaarder – terem tido várias obras tra- efeitos colaterais “os leitores desco- caso de João Reis, da Eucleia, que dos
tora Cavalo de Ferro se aventurou a e de leitores por todo o mundo, fi- duzidas ainda antes do “fenómeno briram que a literatura dos países títulos publicados este ano metade é
publicar regularmente autores nór- caram por traduzir. Romances como Stieg Larsson”, foi só depois da che- escandinavos não se resume apenas de nórdicos – dois autores clássicos
dicos, poucos eram, até então, os “Fome”, do norueguês Knut Hamsun gada da “onda de policiais nórdicos”, ao género policial, e a verdade é que (o norueguês Alexander Kielland e o
que tinham sido traduzidos para por- – reconhecido como “o pai da litera- coincidência ou não, que começou se têm mostrado mais abertos a co- sueco Hjalmar Bergman) e dois con-
tuguês desde os anos 50. De entre tura moderna” e que influenciou as esta espécie de “mini-boom” de lite- nhecer outros escritores, clássicos e temporâneos (o dinamarquês Jepsen
os autores já considerados clássicos, obras de Kafka, Thomas Mann, Her- ratura escandinava – note-se que só contemporâneos, de maior espessu- e a norueguesa Skomsvold, já nome-
pouco mais restava do que algumas man Hess, entre outros – ou “Gente na “rentrée” deste ano foram publi- ra.” Mas alguns dos motivos que sem- ados atrás). Curiosamente, os quatro
traduções avulsas – espalhadas a es- Independente”, do islandês Halldór cados meia dúzia de livros de autores pre dificultaram uma maior divulga- foram traduzidos pelo editor João
mo por diferentes editoras – dos li- Laxness – tido por alguns como o do Norte da Europa (excluindo os ção das letras nórdicas continuam a Reis. Sobre as razões, óbvias, da do-
vros da sueca Selma Lagerlöf, e de- “avô inocente do realismo mágico “policiais”): “O Centenário que Fugiu existir. O facto de a grande maioria minância de autores nórdicos no ain-
vido ao êxito de “A Viagem Maravi- latino-americano”, por causa da for- pela Janela e Desapareceu”, de Jonas dos editores não ler línguas escandi- da pequeno catálogo da Eucleia, diz:
lhosa de Nils Holgersson”. Referimos te influência em Rulfo e em García Jonasson (Porto Editora), “Uma Vas- navas, nem ter um conselheiro edi- “Para além de existir um rico filão de
a década de 50 porque foi nessa épo- Marquez – tiveram ainda que esperar ta e Deserta Paisagem, de Kjell Askil- torial de confiança que o faça, obriga autores por explorar, tenho facilida-
ca, curiosamente, que a literatura durante muitas décadas para serem dsen, “A Visita do Médico Real”, de a que seja preciso esperar pela tra- de em os descobrir, pois posso, na
escandinava teve maior divulgação traduzidos para português, o que só Per Olov Enquist (ambos na Ahab), dução para outra língua mais comum, maioria dos casos, lê-los na língua
em Portugal, em grande parte graças viria a acontecer há poucos anos. Foi “A Arte de Chorar em Coro”, de Er- normalmente a inglesa, para poder original e traduzi-los eu próprio. No
ao que se ia publicando sobretudo este nicho de mercado – não apenas ling Jepsen, “Quando Mais Depressa avaliar a obra. Depois, persiste ainda futuro, espero aumentar ainda mais
em França. “Na década de 50, os au- o da literatura nórdica, mas também Ando, Mais Pequena Sou”, de Kjersti a dificuldade em encontrar traduto- a proporção de autores nórdicos no
tores nórdicos por cá divulgados o de outras literaturas de línguas pe- Annesdatter Skomsvold (ambos na res, pois, como nota o editor da Ahab, nosso catálogo.”
passavam por ser uma extensão dos riféricas – que a Cavalo de Ferro veio Eucleia), e “A Purga”, da finlandesa é difícil combinar num tradutor uma
autores franceses. As traduções, fei- ocupar. “Os editores são animais me- Sofi Oksanen (Alfaguara). língua como o português com qual- Tristeza ou melancolia
tas na sua maioria a partir do fran- drosos, arriscam sempre com muito Tiago Szabo, editor da Ahab, e um quer uma das faladas nos países nór- É correcto falar de “literatura nórdi-
cês, eram, quase sempre – quando cuidado os poucos passeios dados dos responsáveis pela publicação em dicos. “É uma combinação exótica e ca” como um todo? O que é que a
as comparamos agora com o original fora da jaula”, diz Diogo Madre Deus. Portugal de alguns dos mais impor- rara. Isto leva-nos a outro problema: torna diferente das outras literaturas?
sueco, norueguês, ou outro – de qua- “O mercado em Portugal deu sempre tantes nomes das letras nórdicas ac- como os tradutores se contam pelos Entre outras coisas, há quem aponte
lidade duvidosa”, diz Diogo Madre pouco azo a mártires iconoclas- tuais (Kjell Askildsen, Dag Solstad e dedos de uma mão, a produção dos a tendência para um aprofundamen-
Deus, editor da Cavalo de Ferro. Mas tas.” Per Olov Enquist), é da opinião que livros é vagarosa.” to lúcido dos problemas do indivíduo
a moda parece ter passado depressa, Apesar de alguns autores clássicos o êxito da trilogia “Millennium” aca- Mas também há editores cuja van- (a solidão, vícios como o alcoolismo,
pelo menos por cá, e grandes clássi- – e também contemporâneos, como bou por ser um grande impulso à tagem é o conhecimento dessas lín- ou tão-só a procura de um qualquer
cos da literatura europeia, obras que Lars Saabye Christensen ou Jostein publicação, e que graças aos seus guas, sobretudo as escandinavas: é o sentido para a vida), associada a um

14 • Sexta-feira 9 Dezembro 2011 • Ípsilon


PEDRO LOUREIRO

DAG SOLSTAD
Erling
Jepsen Dinamarca
É um dos grandes nomes da literatura
dinamarquesa, também dramaturgo,
é o autor do brilhante “A Arte de
Chorar em Coro” (Eucleia, 2011),
história terna e cruel em que o amor
de uma criança pelo pai pretende
encobrir a dureza de uma realidade
que já toda a aldeia conhece. Uma
crítica feroz à hipocrisia.

Kjell
Askildsen
Noruega
É um mestre na arte de
escrever contos. Com um estilo
enganadoramente asséptico, de
frases concisas, criou um universo
dolorosamente eficaz, onde não
há lugar para retratos bucólicos.
Por perto, há sempre um abismo
silencioso e ameaçador. “Um
Repentino Pensamento Libertador”
(Ahab, 2010) e “Uma Vasta e Deserta
Paisagem” (Ahab, 2011) são os seus
livros cá traduzidos.
A escrita nórdica
explora a “sensação
de mal-estar por trás
da imagem de
estilo feito de frases incisivas, secas racterísticas comuns, como sejam “a entendem que esse sentimento seja, rigoroso desses países.” O que de cer-
perfeição e aparente e curtas – que segundo o tradutor importância da natureza e do clima de facto, o que emerge das narrativas ta maneira corrobora as palavras do
João Reis, deriva da gramática e da sobre a vida humana e os sentimen- nórdicas, mas ressalvam que não se escritor Edvard Hoem. Mas o editor
normalidade, sintaxe das línguas escandinavas –, tos, um humor típico – bem diferente trata de uma “tristeza apática” (Ho- da Eucleia, João Reis, discorda, pois
neste sentido, é uma uma escrita transparente raramente
isenta de ironia e que se inscreve nu-
do português – em que não há censu-
ra inconsciente, e que por vezes é
em), antes de uma ambiência (onde
as histórias têm lugar) que contribui
não acha que os autores nórdicos te-
nham uma escrita mais triste. Diz que
literatura única, ma tradição de narrativa urbana em bastante negro, e ainda a crítica reli- para que esse sentimento se instale essa ideia pode vir da importância
que a natureza está sempre presente. giosa, que é quase constante.” como uma marca na vida das perso- dada na literatura à natureza, ao cli-
singular”, diz Tiago A escrita nórdica explora a “sensação Quando em Maio de 2010, em Oslo, nagens. Quando lemos romances co- ma, e a certos vícios, e “em parte isso
de mal-estar por trás da imagem de o norueguês Kjell Askildsen falou ao mo “Pudor e Dignidade” (Ahab, também resulta do facto de existir um
Szabo, da Ahab. perfeição e aparente normalidade, Ípsilon (a propósito da publicação em 2010), de Dag Solstad, ou “A Arte de acesso relativamente limitado à lite-
neste sentido, é uma literatura única, Portugal de “Um Repentino Pensa- Chorar em Coro” (Eucleia, 2011), de ratura desses países, o que não per-
“É apegada singular”, diz Tiago Szabo, da Ahab. mento Libertador”), indignou-se bas- Erling Jepsen, é difícil não se ficar mite ler uma grande parte do que por
à realidade, aos “É apegada à realidade, aos proble-
mas da vida quotidiana e, ao mesmo
tante – aqui há que descontar a parte
histriónica que usa para compor a
com a sensação de uma estranha e
singular espécie de tristeza. Ou talvez
lá se publica.”
Esta nova “onda” parece ter che-
problemas tempo, muito íntima e melancólica, imagem que cultiva, de um soturno aquilo seja apenas melancolia. gado para ficar, pelo menos durante
tendo as relações familiares um gran- e ferido “lobo solitário” – quando lhe “A felicidade é um obstáculo quase mais algum tempo, quem o garan-
do quotidiano e, ao de peso, sobretudo os conflitos laten- perguntámos se achava que a litera- insuperável, não é particularmente tem são os três editores com quem
tes que as ensombram.” tura nórdica era triste. E respondeu fértil como matéria-prima literária, falámos, que já têm um número sig-
mesmo tempo, muito João Reis, da Eucleia, contesta um que não, que de modo algum. Ainda o drama e o conflito oferecem muito nificativo de obras contratadas, ou
pouco a opinião de que exista uma contrapusemos com a tristeza e a de- mais para dizer. Creio que isto é co- em vias disso, para 2012. Tiago Sza-
íntima e melancólica, “literatura nórdica”, com caracterís- silusão que habita nas personagens mum à maior parte dos escritores, e bo resume as razões: “é uma litera-
tendo as relações ticas comuns, produzida nos diferen-
tes países: “A literatura nórdica pode
que ele cria, ao que, ainda agastado,
respondeu: “Mas isso são as minhas
não apenas uma característica dos
nórdicos”, diz Tiago Szabo, da Ahab.
tura de muita qualidade e pouco
explorada, e uma prova disso é o
familiares um grande ser tomada como um todo em certos personagens…”. “Assim sendo, não diria que a litera- Nobel ter ido este ano para um sue-
aspectos, mas existem particularida- Mais tarde, tivemos a possibilidade tura nórdica seja mais triste. O que co ainda não publicado em Portugal.
peso, sobretudo des. Por exemplo, considero a litera- de falar com o norueguês Dag Solstad poderá ter alguma influência nessa Depois, o facto de as traduções se-
tura finlandesa bastante diferente da e com o dinamarquês Erling Jepsen, percepção é o facto de se tratar, em rem generosamente subvenciona-
os conflitos latentes escandinava, tanto por questões cul- que tiveram a mesma opinião. No en- termos gerais, de uma escrita seca, das, o que permite reduzir os riscos
turais, como por questões linguísti- tanto, autores como Kjersti Annes- com laivos de ironia, por vezes gélida, comerciais.” O que em tempos ne-
que as ensombram” cas.” No entanto, aponta várias ca- datter Skomsvold ou Edvard Hoem como se estivesse imbuída do clima gros conta muito.

Ípsilon • Sexta-feira 9 Dezembro 2011 • 15

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