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A = “Sao as imagens mais que as proposigées, as : A if Z i} O NOH 4 metaforas mais que as afirmagies que deter- ee ee ee eo espelho foEmarunthney 7) filosdficas. A imagem que mantém cativa a Ua eee ae ea en er sentacées - algumas acuradas, outras ndo - Freed ere ae ec eee isan 05.731 WN ab 7eesr3" 10024 eee. Ce ew a eee | RICHARD RORTY A filosofia e o espelho da natureza 3* Epicao | | | REVISAO TECNICA Marco Antonio Casa Nova RELUME g@@@ DUMARA Tule do criginal: Philosophy and dhe Mirror of Nature © 1979, Princeton University Press © Copyright da edigio brasileira, 1995 Duman Distasuivona pe Pusuicapaes La “Travexsa Juraci, 37 ~ Penba Circular 21020-220 ~ Rio de Janeiro, RT Tel: @1) $64 6859 Fax: 21) 590 0135 E-mu: relume@ism.com.be Exta obra no pode ser vendida em Portugal Bditoracao Kana ‘Pili Servigos de Esitoresto Lids Capa Gustavo Meyer solve "Natureza Morta™ - Sao de brawn Vin Beyaren CIP -Brasi. Catalogagio na fonte ‘Sindieato Naclonal dos Eaitores de Los. RI. Rony, Richard R693 A Filosofia € o espetho da natureza Richard Rony, ado [AniinioTranste; evistoienica César Ribeiro de Almeida, —Rio ‘de Janeiro: Relume-Dumard, 1994, ‘Tradupto de: Philosophy end the msror of nate ISBN 85-7316-002-0 |. Ment, 2. Teoria doconhecimeno. 3 Filosois, 1, Titulo pp - 1282, ga1s9 cpu =165 ‘Todos 0s direitos reservatios, A reproduc na autrizace cesta publica o, por qualquer melo, see ela tra ov pa 1 wolagdo Ie $.988, PARA, M.V.R Quando pensamos sobre o futuro do mundo, sempre temos er men- te 0 lugar onde ele estard, se continuar se movendo como 0 vemos mover-se agora, ¢ nflo pensamos que ele ndo se move por uma reta, mas por uma curva, e sua diregdo se altera constantemente. A fillosofia no fez nenhum progresso? Se alguém coca onde lhe co- micha, é preciso ser visto algum progresso? Caso contrério, isso nao serd. um cogar auténtico ou uma comichio auténtica? E nao podert essa reagio ao estimulo continuar por longo tempo, até que seja en- contrada uma solugdo para o comichar? ‘Wenn wir an die Zukunft der Welt denken, so meinen wir immer dden Ort, wo sie sein wird, wenn sie so weiter kiuft, wie wir sie jeter laufen sehen, und denken nicht, dass sie nicht gerade liuft, sondem in einer Kurve, und ihre Richtung sich Konstant andert. (Ludwig Wittgenstein, Vermischie Bemerkungen, Frankfurt, 1977, p. 14.) Die Philosophie hat keinen Fortschritt gemacht? Wena Biner kratat, wo es ihn juckt, muss ein Fortschritt zu schen sein? Und kann nicht diese Reaktion auf die Reizung lange Zeit so weitergehen, ehe ein Mittel gegen das Jucken gefunden wird? (Jbid., pp. 163-164.) Preféicio Intradugio PARTE UM — Nossa esséncia especular CAPITULOT— A invengdo da mente 1, Critérios do mental 2. O funcional, o fenoménico ¢ o imaterial 3, A diversidade dos problemas mente-corpo 4, A mente como apreensio de universais 5. Capacidade de existir separadamente do corpo 6. Dualismo e “substincia-mental” capiTuLom — Pessoas sem mentes 1. Os antipodianos 13 wv 2 31 36 45 51 37 B 81 10 RICHARD RORTY 2. Propriedades fenoménicas 3. Incorrigibilidade e sensagSes cruas 4, Behaviorismo 5, Ceticismo sobre outras mentes 6. Materialismo sem identidade mente-corpo 7. Epistemologia ¢ “a filosofia da mente” PARTE DOIS — Espellhamento cavituLo im —A idéia de uma “teoria do conhecimento” 1. A epistemologia e a auto-imagem da filosofia 2. A confuslo de Locke entre explicagio e justifieagio 3. A confusio de Kant entre predicagio e sintese 4, 0 conhecimento como necessidade de “fundamentos” caPiTULO IW —Representagées privilegiadas 1, Verdade apoditica, representagdes privilegiadas ¢ filosofia analitica 2. Behaviorismo epistemolégico 3. Pereepgto pré-lingutstica 4, A “idéia ‘idéia™ 88 98 107 116 123, 133 137 139 147 155 162 171 178 186 196 Aflosofia eo explho da natures 5. Behaviorismo epistemol6gico, behaviorismo psicol6gico linguagem capiruto v — Epistemologia e Psicologia Emptrica 1, Suspeitas sobre a psicologia 2. A inaturalidade da epistemologia 3, Estados négicos como explicagbes genusnas 4, Estados psicolégicos como representagSes cariruvo v1— Epistemologia e filosofta da linguagem 1. Filosofia pura e impura da linguagem 2. De qué falavam nossos ancestrais? 3. Ieatismo 4, Referéneia 5. Verdade sem espelhos 6. Verdade, bondade e relativism PARTE TRES — Filosofia capiruLo vil — Da epistemologia & hermenéutica 1. Comensuragio € conversagio 2. Kuhn ¢ « incomensurabilidade 212 25 222 231 244 287 266 mm 283 293 303 309 3 318 2 RICHARD RORTY 3. A objetividade como correspondéncia ¢ como concordancia 4, Espirito € natureza cariuto vit — Filosofia sem espelhos 1. Hermenéutica e edificaglo 2, Filosofia sistematica ¢ filosofia edificativa 3. Edificagfo, relativismo e verdade objetiva 4, Edificagdo e naturalismo A filosofia na conversagio do ser humano 328 337 Prefacio Quase tio logo comecei a estudar filosofia, fiquei impressionado pelo modo que os problemas filoséficos apareciam, desepareciam ‘ou mudavam de forma, como resultado de novas suposigfes ou vo~ cabulérios. Aprendi de Richard McKeon e de Robert Brumbaugh & encarar a histéria da filosofia como uma série, nao de solugdes al- temativas aos mesmos problemas, mas de conjuntos bem diferentes de problemas. De Rudolph Carnap e de Carl Hempel aprendi que os pseudoproblemas podiam ser revelados como tais ao serem refor- mulados no modo formal de discurso. De Charles Hartshome Paul ‘Weiss aprendi que podiam ser revelados como tais sendo traduzidos em termos whiteheadianos ou hegelianos. Ful muito afortunado por ter esses professores, mas, em todo caso, tratei a todos como dizen- do a mesma coisa: que um “problema filos6fico” era um produto da adogo inconsciente de suposigées embutidas no vocabuliério me- diante o qual o problema era colocado — suposigdes que deviam ser ‘questionadas antes que o problema em si fosse levado a sério. ‘Pouco mais tarde comecei a ler os trabalhos de Wilfrid Sellars. 0 ataque de Sellars ao Mito do Dado pareceu-me tomar duvidosas as suposig&es por tris da maior parte da filosofia moderna. Posterior- ‘mente comecei a levar a sério a abordagem cética de Quine a distin~ 0 linguagem-fato, e a tentar combinar 0 ponto de vista de Quine 1 RICHARD RORTY com o de Sellars. Desle entio, tenho tentado isolar outras suposi- ‘goes por trs da problemstice da filosofia modema, na esperanga de generalizar e estender as criticas de Sellars e Quine 40 empirismo ‘tradicional. Voltar a essas suposigbes € tomar claro que sio opcio- nais, acreditava, seria “terapéutico” da mesma forma como foi “te- rapéutica”’a dissolugdo original aplicada por Camap aos problemas- do dos livros de texto. Eis aqui o resultado dessa tentativa, A elaboragao do livro foi longa. A Princeton University € nota- velmente generosa com tempo para pesquisa e viagens de estudos, de modo que € embaragoso confessar que sein a ulterior assisténcia do American Council of Learned Societies e da John Simon Gug- genheim Memorial Foundation eu provavelmente jamais 0 teria es- crito, Comecei a pensar sua estrutura enquanto detinha uma bolsa de estudos da ACLS, em 1969-1970, e escrevi a maior parte do pri- meiro esbogo durante uma bolsa de estudos da Guggenheim, em 1973-1974. Sou extremamente agradecido as ués instituigoes por sua assisténcia “Muitas pessoas —- alunos de Princeton e de outras partes, audién- clas de trabathos lidos em varias conferéncias, colegas e amigos — Jeram ou ouviram virias verses de varias segGes deste livro. Em resposta as suas objecdes, fiz muitas modificagses, tanto de subs- tincia como de estilo, ¢ fico-Ihes muito agradecido. Lamento que minha meméria néo me ajude a enumerar mesmo as instancias mais importantes de tal ajuda, mas espero que aqui ¢ ali os leitores pos- ‘sam reconhecer os resultados benéficos de seus proprios comenté- rios. Desejo, entretanto, agradecer a duas pessoas — Michael Wil- liams e Richard Bernstein — que teceram comentérios muito iteis & peniiltima versio do texto integral, assim como 0 fez um leitor an6- nnimo para a Princeton University Press. Sou agradecido também a Raymond Geuss, David Hoy ¢ Jeffrey Stout que empenharam seu tempo para ajudar-me a resolver duividas de cltima hora a respeito do capitulo final Finalmente, gostaria de agradecer a Laura Bell, Pearl Cavanaugh, Lee Ritins, Carol Roan, Sanford Thatcher, Jean Toll e David Velie man pelo paciente auxflio para transformar em volume impresso um simples manuscrit. A filosoia eo espelto da nara 1s ‘Trechos do capitulo 1v foram publicados em Newe Hefte fiir Phi- Iosophie 14 (1978). Trechos do capftulo v foram publicados em Body, Mind and Method: Essays in Honor of Virgil C. Aldrich, Do- nald F, Gustafson e Bangs L. Tapscott, eds. (Dordrecht, 1979). Ou- tros trechos desse capitulo foram publicados em Philosophical Stu- dies 31 (1977). Trechos do capitulo vi foram publicados em Acta Philosophica Fennica, 1979. Sou agradecido aos organizadores ¢ ceditores envolvidos pela permissio para reimprimir esse material. A filosofia e o espelho da natureza Introdugdo 3s fil6sofos geralmente pensam em sua disciplina como discutindo problemas perenes, etemos — problemas que surgem assim que al- ‘guém reflete. Alguns referem-se a diferenga entre os seres humanos € outros seres, e estio cristalizados em questées envolvendo a rela- (do entre mente e corpo. Outros referem-se & legitimagio de reivin- dicagées a conhecer, ¢ estio cristalizados em questdes envolvendo ‘08 “fundamentos” do conhecimento. Descobrir esses fundamentos & descobrir algo sobre a mente ¢ vice-versa, Assim, a filosofia como disciplina vé a si mesma como a tentativa de ratificar ou desbancar assergdes de conhecimento feitas por ciéncia, moralidade, arte ou religido. Pretende fazé-lo com base em sua compseensao especial da natureza do conhecimento ¢ da mente. A filosofia pode ser funda- ‘mental com respeito ao resto da cultura porque a cultura € @ reuniio das assergdes de conhecimento € a filosofia adjudica tais assergdes. Ela pode fazer isso porque compreende a fundamentagto do conhe- cimento ¢ encontra esses fundamentos num estudo do homem-en- uanto-conhecedor de “processos mentais” ou da “atividade de re- resentagio”, os quais tornam 0 conhecimento possivel. Conhecer & Tepresentar acuradamente o que esté fora da mente; assim, com preender a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender (© modo pelo qual a mente & capaz de construir tais representagées. 20 RICHARD RORTY A preocupagao central da filosofia € ser uma teoria geral da repre- sentagio, uma teoria que dividird a cultura nas éreas que repre- sestem bem a eaidade, aquclas que nfo a epresenem to tem © fguelas qe no represent de modo algum (apse de preeaso Devemos ao século xvi, ¢ especialmente @ Locke, a nosio de uma “teoria do conhecimento” baseada numa compreensio dos “processos meniais”. Devemos ao mesmo periodo, e especialmente Descartes, a nog de "a mente" como uma entidade separada na ual ocorrem “processos”. Devemos no século xvi, especialimen- tea Kant, a nogio de filosofia como um tribunal da raz pura, sus- tentando ow negando as assergées do resto da cultura; mas essa no- fo kantiana pressuponha aquiescéncia geral a nogdes lockeanas dos processos mentais ¢ as nogSes cartesianas de substincia mental. No século xix, a noo da filosofia como uma disciplina fundacio- nal que “suporta” asseredes-de-conliecimento foi consolidada nos escritos dos neo-kantianos. Os protestos ocasionais contra essa con~ cepsiio de cultura como necessitando de “suportes” e contra as pre- tenses de uma teoria do conhecimento para realizar essa tarefa (em, por exemplo, Nietesche e William James) passaram na maior parte desapercebidos. A “ilosofia” tomou-se, pera os intelectuais, uum substituto para a religido. Era a drea da cultura onde se tocava fundo, onde se podia encontrar 0 vocabulério e as conviegdes que permitiam explicar ¢ justifiear a prépria atividade como atividade intelectual, ¢ dessa forma descobrir 0 significado da propria vida. No inicio de nosso século essa assergao foi reafirmada por filésofos (notadamente Russell e Husser!) preocupados em manter a filosofia ‘igorosa” e “cientfica”. Mas havia uma nota de desalento em suas vores, pois por essa época o triunfo do secular sobre as assergdes da religiio era quase completo, Assim o fil6sofo nfo mais podia ver a si mesmo como na vanguarda intelectual, ou como protegendo as pessoas contra as forcas da supersticéo, Além disso havia surgido, no curso do século xix, uma nova forma de cultura — a cultura do hhomem de letras, 0 intelectual! que escrevia pocmas, romances, tra- tados politicos e criticas de poemas, romances e tratados de outras 1 Termos como “homem”, “o", "ele proprio” etc, devem, através desi livro, ser tomados como abreviagges de “homens ou mulheres propriota”e assim por diant. “A lesofta €0 expelto da natures 2 pessoas. Descartes, Locke e Kant escreveram num periodo em que Fecularizagdo da cultura estava sendo tomada possivel pelo sucesso dda ciéncia natural. Mas no principio do século xx os cientistas ha vviam se tomado tio remotos da maior parte dos intelectuais quanto ts teblogos. Os poetas e romancistas haviam tomado o lugar tanto dos pregadores como dos fil6sofos, enquanto instrutores morais da juventude. O resultado foi que quanto mais “cientifica” e “rigorosa” se tomava @ filosofia, tanto menos tinha a ver com o resto da cultura te mais absurdas pareciam as suas pretensdes tradicionais. As tenta- fivas tanto de fil6sofos analiticos como de fenomendlogos para “fundamentar” isto e “criticas” aquilo eram desdenhadas por aque- les cujas atividades estavam alegadamente sendo baseadas ou criti cadas. A filosofia como um todo era desdenhada por aqueles que ‘queriam uma ideologia ow uma imagem de si. E neste cendrio que devemos ver a obra dos trés fildsofos mais importantes de nosso século — Wittgenstein, Heidegger e Dewey. Cada um deles tentou, no inicio, encontrar um nove modo de tornar € filosofia “fundamental” — um novo modo de formular um contex- to cltimo para 0 pensamento. Witigenstein tentou construir uma nova teoria da representagio que nada teria a ver com 0 mentalis- ‘mo; Heidegger, construir um novo conjunto de categorins filossfi- teas que nada teriam a ver com a cincia, a epistemologia ou a busea cartesiana por certeza; e Dewey, construir uma versio naturalizada 4a visio hegeliana da histéria. Cada um dos trés terminou por ver seus primeiros esforgos como auto-frustrantes, como tentativas de Teter certa concepeao de filosofia, depois que as mogGes necessirias para dar corpo a essa concepsio (as nogdes de conhecimento e men- te do século xvn) haviam sido descartadas. Cada um dos trés, em seu trabslho ulterior, livrou-se da concepgio Kantiana da filosofia como fundacional, e empregou seu tempo para prevenir-nos contra aquelas mesmas tentagoes as quais ele proprio havia uma vez s cumbido, Assim, 0 seu trabalho ulterior € antes terapéutico que cconstrutivo, antes edificativo que sistematico, antes designado a fi zer o keitor questionar seus préprios motivos para filosofar do que ‘supri-lo de um novo programa filos6fico. Wittgenstein, Heidegger e Dewey mostrumn-se convordantes em ue a nogio de conhecimento como representagio acurada, tornada possfvel por processos mentais especiais ¢ inteligivel através de ‘uma teoria geral da representagio deve ser abandonada, Para todos 2 RICHARD RORTY 0 ts, as nopes de “fundamentos do conhecimento” e da filosofia ‘como girando ao redor da tentativa cartesiana de responder ao cet cismo epistemol6gico so colocadas de lado. E mais, eles coloca. ram de lado a nogdo de "a mente", comum a Descartes, Locke ¢ Kant — um objeto de estudo especial, localizado no espago interior, contendo elementos ou processos que tornam possivel 0 conheci. memto, Tss0 no equivale a dizer que tenham “teorias do conheci- mento” ou “filosofias da mente" alternativas. Eles colocam de lado 4 epistemologia ¢ a metafisica como disciplinas possiveis. Digo ‘colocam de lado” de preferéncia a “argumentam contra” porgee sua atitude em telacéo a problemética tradicional 6 como a atitude dos fil6sofos do século xvit em relagio & problemética escoléstica Eles no se dedicam a descobrir proposigGes falsas ou maus argu mmentos nos trabalhos de seus predecessores (embora ocasionalmen- te também o facam). Antes, vislumbram a possibilidade de uma for. ‘ma de vida intelectual na qual 0 vocabulério da reflexao filosofica hherdado do século xvi pareceria tio despropositado como 0 voca- bulitio filos6fico do século xm havia parecido para o Tluminismo, Afirmar a possibitidade de uma cultura pés-kantiana, na qual néo exista qualquer disciplina oniabrangente que legitime ou sirva como base para as outras, rdo é necessariamente argumentar contra qual. quer doutrina kantiana em particular; assim como vislumbrar a pos. sthilidade de uma cultura na qual ou a religion existria, ou nlo teria conexo com a ciéncia ou a politica, néo era necessariamente argumentar contra a afirmagio de Toms de Aquino de gue a exis. tencia de Deus pode ser provada ple razio natural. Witgensti, leidegger e Dewey nos trouxeram para um periodo de filosofia "re. volucionéria” (no sentido da ciéncia “revolucionéria” de Kuhn) apresentando novos mapas do terrtério (ou seja, do panorama intei= 10 das atividades humanas) que simplesmente nfo inciuem aquelas caracteristicas que previamente pareciam dominar. Este livro € uma pesquisa sobre alguns desenvolvimento: . 3 lesenvolvimentos recent za filosofi, especialmente na flosofia anaitica, do ponto de vine Ga revolucto asticartesiana ¢ antikantana que avabu de descrever. > objetivo do livro é minar a confianca do leitor na “mente” como algo sobre o qual se deveria ter uma visio “filos6fica”, no “conheci- mento” como algo sobre o qual deveria haver uma *teotia” e que tem “fundamentos”, e na “filosofia” como esta foi concebida desde A filosfia 0 expe da ares 2 Kant, © leitor em busca de uma nova teoria sobre qualquer dos te~ mas discutides, portanto, ficaré desapontado. Embora eu discuta solugdes para 0 problema mente-corpo”, isso nio visa propor uma, ‘mas ilustrar por que nio penso que haja ai um problema. Novamen- te, embora eu discuta “teorias da referéncia”, no oferego uma, mas fpenas sugest6es sobre por que a busca de tal teoria ests mal orien- tada. O livro, assim coma os escritos dos filésofos que mais admiro, 6 antes terapéutico que construtivo. A terapia oferecida ¢, niio obs- tante, parasitica em relago aos esforgos construtivos dos préprios {fil6s0fos analiticos cujo quadro de referéncia estou tentando colocar ‘em questo. Assim, a maioria das criticas particulares & tradigao que ofereco é emprestada de fil6sofos sisteméticos como Sellars, Quine, Davidson, Ryle, Malcolm, Kuhn ¢ Putnam. Devo tanto a esses filésofos pelos meios que emprego quanto devo a Wittgenstein, Heidegger ¢ Dewey pelos fins para os quais esses meios sio empregados. Espero convencer 0 leitor de que a dialética dentro da filosofia analitica, que conduziu a filosofia da ‘mente de Broad a Smart, a filosofia da linguagem de Frege a David- ‘son, a epistemologia de Russell a Sellars ¢ a filosofin da ciéncia de Carnap a Kuhn, deve ser conduzida alguns passos mais além. Esses passos adicionais irdo, penso eu, colocar-nos em posigdo de criticar 4 propria nogio de “filosofia analitica” e, com efeito, da “filosofia” em si mesma como tem sido compreendida desde @ época de Kant, ‘A partir da posigio que estou adotando, com efeito, a diferenga entre filosofia “analitica” e outros tipos é relativamemte desimpor- tante — mais uma questio de estilo e tradigao que uma diferenga. de “método” ou de principios primeiros. ‘A razio pela qual o livro estd escrito principalmente no voabu- Lério dos filésofos analiticos contemporineos, ¢ com referéncia a problemas discutides na literatura analitica, € meramente autobio- ‘gtafica, Sio 0 vocabulfrio e a literatura com que estou mais familia- Fizado ¢ aos quais devo a percepgio que possa ter de temas filos6fi- cos. Estivesse eu igualmente familiarizado com outros modos contemporineos de escrever filosofia, este seria um livro melhor € ‘mais dtl, embora ainda mais extenso. Como 0 vejo, 0 tipe de filoso- fia que deriva de Russell e Frege , como a fenomenologia cléssica de Husser!, simplesmente mais uma tentativa de colocar a filosofia nna posigdo que Kant desejava que ocupasse — a de julgar outras freas da cultura com base em seu conhecimento especial dos “fun- u RICHARD RoRTY damentos” dessas éreas. A filosofia “analtica” € mais uma variante 2 filosofia kentiana, uma variante marcada principalmente por per ‘sar em representagio como antes lingdfstica que mental; e antes em is transcendenta!”; ou em psi- 't que exibe os “fundamentos do conheci- mento”. Essa énfase sobre a linguagem, argumentarei nos capitulos IV € Vi, nlio modifica essencialmente a problemitica cartesiana-kan. fia, © portanto ngo confere realmente uma nova auto-imagem fi. losofia. Pois a filosofia analitica ainda estd empenhada na constnn a0 de um quadto permanente e neutro para a inquirigao, e portanto ara toda a cultura, # nogto de que a atividade humana (e a inguirigio, a busca de conhecimento, em particular) tem lugar dentro de um quadro que pode ser isolado previamente a conclusio da inquirigéo — um con, junto de pressuposigdes que podem ser descobertas @ priori que lige a filosofia contemporinea a tradigao Descartes-Locke Kent, Pois a nogio de que existe tal quadro somente faz sentido se pence: mos nele como imposto pela natureza do sujeito conhecedor, pela falureza de suas faculdades ow pela natureza do meio no qual ele trabalha. A propri filosofia” como algo distinto de “‘cién- Gia" feria pouco sentido sem a afirmagao cartesian de que voltan. do-nos para dentro poderiamos encontrar a verdade inelutavel, ¢ a afirmacao kantiana de que essa verdade impée limites aos seatit dos possiveis da inquirigdo empirica. A nogho de que poderia haver uma coisa tal como “fundamentos do conhecimenta” (fodo o conhe. cimento — em todos os campos, passados, presentes e fututos) oa uma “"eoria da representagio” (toda a representagio, em vocabuld. ties familiares © naqueles ainda nem sonhados) depend da supost. So de que ha tal injungio a priori. Se temos uma concepeie de. Weyana de conhecimento, como algo que estamos justificados ena acreditar, ento ndo iremos imaginar que haja injungdes duradouras Sobre o que podemos contar como conhecimento, uma vee que vere. {os & “Justificago” antes como um fendmeno social do que uma transacio entre 0 “sujeito conhecedor” ¢ a “realidade”. Se temos gine nosdo wittgeinsteiniana de linguagem antes como instramento do auc coino espelho, ndo iremos procurar por condigdes nececes, vias de possibilidade de uma representagao lingiistiea, Se temon ma concepeiio heideggeriana de filosofia, iremos ver a tentativa de tomar a natureza do sujeito conhecedor uma fonte de verdades ne. A flosfa 0 exptho da nanereza as ssi substituir uma ‘mais uma tentativa auto-frustrante de sut Giuevile “Genica” o delemaanda por aqnola sbetie'stmaahcan dhe inicilmente empurrou-nos a comega a penser. justa ao padrio car- 1odo de ver como a filosofia analitica se aj sian haan wnciceal § ver x Blot waticionl com una ia — tativa de encontrar condi- tentativa de escapar da hist6ria — uma tent ; Ses ahistéricas de qualquer desenvolvimento hist6rico possivel. A partic dessa perspectiva, a mensagem comum de Wingenstein, Hei degger e Dewey 6 hstoricista, Cada um dos tes nos lembra que as investigagdes dos fundamentos do conhecimento, ou moralidade, ou linguagem, ou sociedade podem ser simplesmente apologéticas, ten- tativas de eterizar certo jogo de linguagem, pric socal ou auto- Jager contemporaneos. A moral deste livro tamt sta, im ids pater em que 668 fe destinam a colocar as nogées de “mente”, de “conhecimento” e de “filosofia”, respectivamente, em perspectivahistrica. A parte 1 ocupiae da losofia da mente © no capitulo tento mostrar que as assim chars inti que Se encontram por tris do dualismo cartesiano sfo das que tém origem histrica, No capitulo 1 tento mostrar como essa instituies se riam modificadas se métodos de predigao e controle fisiolégicos lugar dos métodos psicol6gicos. ‘iw parte ocupa-s da epistemolopne de teativas resents de encontrar “temas sucessores” & epistemologia, O capitulo nt desere- ve a geese da nogto de “epistemologis” no século Xv € sua cone- 3 “mente” discutidas no capitulo |. flo com as nogdes cartesianas de “mente’ ‘Agroicati a "isla da eockcokakats™ como uma nolo baveada tune confust exe usifieagio de ase Ses de conhecien. 4 ‘modo, préticas soc - sua explicagdo causal — entre, grosso modo, prticas cessor psicolégicos pomladoe. © oapitale 1 ¢o:caphulo-cental do livro — aguele em que as idéias que levaram & eS elaboragio sto idéias si ellars © de Quine, € nesse ca- apresentadas. Essas idéias sio as de Sell: pitulointerpeto o atngue de Sellars ae dad nue des ule 8 “necessidade™ eomo os passos crucials para minar a possbilidade de uma “teoria do conhecimento”,O holismo e © pragmattmo co mans a ambos os fil6sofos, © que parttham com o Wittgenstein dt fase posterior, so as linhas de pensamento dentro da filosofia anal 2 Isto 6, Acondigao ou qualidade de dado (givenness). (N- do T) 26 RICHARD RORTY tica que desejo desenvolver. Argumento que quando desenvolvidas de certa maneira elas nos permitem ver a verdade como, na frase de James, “o que € melhor para nés acreditarmos”, antes que a “repre- sentagio acurada da realidade”. Ou, para colocar 0 ponto menos provocativamente, elas nos mostram que a nogao de “representago acurada” 6 simplesmente um cumprimento automitico e vazio que Prestamos aquelas crengas que tém sucesso em ajudar-nos a fazer 0 ‘que desejamos fazer, Nos capitulos v e Vi diseuto e critico 0 que considero como tentativas reacionérias de tratar a psicologia empiri ca ou a filosofia da Jinguagem como “temas sucessores” & epistemo- logia. Argumento que apenas a nogio de conhecimento como “exa- {ido da representagao” nos persuade de que o estudo de processos psicol6gicos ou de linguagem — como meios de representagio — pode fazer o que a epistemologia no logrou fazer. A moral da parte U.como um todo € que a nogao de conhecimento enquanto a reunigo de representagées exatas é opcional — que pode ser substituida por tuma concepeo pragmatista de conhecimento que elimina o contras- te grego entre contemplagio e acho, entre representar 0 mundo € li- dar com ele. Uma época histérica dominada por metéforas oculares ‘gregas pode, sugiro, render-se a uma em que 0 vocabulirio filos6fi- £0, incorporando tais metfforas, parece to estranho quanto 0 voca- bulério animistico dos tempos pré-clissicos. Na parte us retomo a idéia de “filosofia” mais explicitamente. O capitulo vii interpreta a distingdo tradicional entre a busca por “co- nhecimento objetivo” ¢ outras freas, menos privilegiadas, da ativi- dade humana meramente como a distingdo entre “discurso normal” “discurso anormal”. O discurso normal (uma generalizagio da no- so de “cigneia normal”, de Kuhn) € qualquer discurso (cientifico, politica, teolégico ou seja qual for) que incorpora critérios consen- suais para alcangar a concordancia; o discurso anormal & qualquer lum a que faltem tais critérios. Argumento que a tentativa (que defi- niu @ filosofia tradicional) de explicar “racionalidade” e “objetivida de” em termos de representago exata & um esforgo auto-frustrante de eternizar 0 discurso normal da época, e que, desde os gregos, a suto-imagem da filosefix foi dominada por essa tentativa, NO capi- tulo vitl uso algumas idgias extrafdas de Gadamer e Sartre para de- senvolver um contraste entre filosofia ‘sistemitica” e “edificante”, © para mostrar como a filosofia “anormal”, que nio se conforma & matriz cartesiana-kentiana tradicional, esté relacionada a filosofia A filosofia eo epei denature n “normal”. Apresento Wittgenstein, Heiddeger e Dewey como fil6- sofos cujo objetivo é edificar — ajudar seus leitores ou a sociedade ‘como um todo a se livrar de vocabulérios e atitudes gastos antes que proporcionar “sustentagio” para as instituigdes e costumes do pre sente. Espero que 0 que estive dizendo tenha tornado claro por que es- colhi “A Filosofia e o espelho da natureza” como titulo. Sao as ima- ‘gens mais que as proposigdes, as metéforas mais que as afirmagies que determinam a maior parte de nossas conviegdes filoséficas. A imagem que mantém cativa a filosofia tradicional € a da mente ‘como um grande espelho, contendo variadas representagdes — al- _gumas exalas, outras néio — e capaz de ser estudado por meio de miétodos puros, niio-empfticos. Sem a nogio da mente como espe tho, a nogéo de conhecimento como exatiddo de representaco nao se teria sugerido. Sem esta dltima nosao, a estratégia comum a Des- cartes ¢ Kant — obler representagées mais exatas ao inspecionar, reparar e polir 0 espelho, por assim dizer — nfo teria feito sentido. ‘Sem essa estratégia em mente, afirmagdes recentes de que a filoso- fia poderia consistir em “anilise conceitual”, ou “andlise fenomeno- I6gica”, ou “explicago de significados”, ou exame da “I6gica de nossa linguagem” ou da “estrutura da ‘atividade constitutiva da consciéncia” nao teriam feito sentido. Foi de afirmagées como essas que Wittgenstein zombou em Philosophical Investigations ¢ foi se- guindo a condugao de Wittgenstein que a filosofia analitica progre- diu para a postura “p6s-positivista” que ocupa presentemente. Mas © talento de Wittgenstein para desconstruir imagens cativadoras pre- cisa ser suplementado pela percepsao hist6riea — percepgao da fon- te de toda essa imagética especular —¢ que me parece ser a maior contribuigéo de Heidegger. © modo de Heidegger recontar a hist6- ria da filosofia permite que vejamos os principios da imagética car- tesiana nos gregos e as metamorfoses dessa imagética durante os Gl- timos tres séculos. Assim ele permite que nos “distanciemos” da tradigdo. No entanto nem Heidegger nem Wittgenstein nos deixam Yer 0 fenémeno hist6rico da imagética especular, a hist6ria da do- ‘minagiio da mente ocidental por mnetéforas oculares, dentro de uma erspectiva social. Ambos estiio mais ocupados com o individuo ra- Tamente favorecido do que com a sociedade — com as oportunida- des de manter-se & parte da auto-frustragfo banal dos dltimos tem- os de uma tradigdo decadente, Dewey, por outro lado, embora nfo 2 RICHARD RORTY tivesse nem a acuidade dialética de Wittgenstein, nem a erudi¢&o histérica de Heidegger, escreveu suas polémicas contra a imagética ‘especular tradicional a partir de uma viso de um novo tipo de so- ciedade. Em sua sociedade ideal, a cultura nio mais € dominada elo ideal de cognigdo objetiva, mas pelo de aperfeigoamento estéti 0. Naguela cultura, como ele disse, as artes e as ciéncias seriam “as flores espontaneas da vida”, Eu gostaria de esperar que esteja- ‘mos agora na posigio de ver as acusagdes de “relativismo” e “inra- cionalismo” outrora desferidas contra Dewey meramente como re- flexos defensivos impensados da tradigao filoséfica que ele atacou, Tais acusagdes néo tém peso quando se levam a sério as criticas & imagética especular que ele, Wittgenstein e Heidegger tecem, Este livro tem pouco a acrescentar a essas criticas, mas espero que apre- Sente algumas delas de um modo que ajude a perfurar aquela crosta «da convengio filos6fica que em vio Dewey esperou abalar. PARTE UM Nossa esséncia especular eee CAPITULO TI A invengdo da mente 1. Critérios do mental ‘As discussdes sobre a filosofia da mente geralmente comegam com ‘a suposigio de que todos sempre souberam como dividir 0 mundo em mental e fisico — que essa distingao € de senso comum ¢ intuiti- vva, mesmo se entre dois tipos de “substincia”, material e immaterial, isso seja filoséfico e desconcertante. Assim, quando Ryle sagere ‘que falar de entidades mentais € falar de disposigdes de conduta, ox {uando Smart sugere que isso é falar de estados neutros, eles mar- ‘cam dois pontos contra si mesmos. Mas para que, se 0 behaviorismo ‘04 0 materialismo so verdadeiros, deveria haver algo como essa distingdo intuitive? Parecemos nio ter divida de que dores, disposigées de anim, imagens, e sentengas que “relampejam diante da mente”, sonhos, alucinagdes, crengas, atitudes, desejos ¢ inteng6es, tudo isso conta ‘como “mental”, enguanto que as contragdes do est6mago que cau- sam dor, 08 processos nervosos que @ acompanham ¢ tudo mais a que pode ser atribuida uma localizagio concreta dentro do corpo contam como néo-mentais. Nossa classificagio decidida sugere que nido apenas temos clara intuigio do que seja'a “mentalidade”, mas que esta tem algo a ver com nio-espacialidade © com a nogo de ue mesmo se 0 corpo fosse destrufdo as entidades ou estados men= tais poderiam de algom modo permanecer latentes. Mesmo se des- cartamos « nogio de “substincia mental”, mesmo se abandonamos & 2 RICHARD RORTY nogiio de res cogirans como tema de predicagio, parecemos capa- 25, nio obstante, de dstingir mente de corpo, faz6-lo de ton ‘modo mais ou menos cartesiano. Essas pretensas intuigdes servem para manter vivo algo como 0 dualismo cartesiano. Os filésofos pés-wittgensteinianos que se o- poem ao behaviorismo © ao materialismo tendem a admitir com Wittgenstein e Strawson que, em algum sentido, no existe nada ‘além do organismo humano ¢ que devemos desistir da nogio desse ‘organismo como constituido por um bocado de res cogitans no-es- pacialmente associado com um bocado de res extensa. Mas, eles di- Zem, permanece a intuigdo cartesiana de que a distingio mental-fisi- co € intransponivel por meios empiricos, que um estado mental nfo € mais semelhante a uma disposigao do que o é a um neurdnio, ¢ que nenhuma descoberta cientifica pode revelar uma identidade. Essa intuigdo parece-Ihes suficiente para estabelecer uma brecha in- transponivel. Mas esses fil6sofos neodualistas sio confundidos por suas préprias eonclusdes, uma vez que, embora suas intuigdes meta- fisicas pareyam cartesianas, no thes € claro se tém o direito de ser coisas como “intuigdes metafisicas”. Tendem a sentir desagrado pela nogdo de um método de conhecimento sobre 0 mundo anterior A.cigncia empirica ¢ intocével por esta. Nessa situagdo € tentador para o dualista tomar-se lingiistico comegar a falar sobre “vocabulirios diferentes” ou “descrigdes al- temnativas”, Esse jargio sugere que a intuigo dualistica em questio no € mais que uma das diferengas enire modos de falar sobre 0 mesmo fendmeno, ¢ assim parece levar de algo como o dualismo Para algo como a teoria do duplo aspecto de Espinosa. Mas a per- gunta “duas descrig6es de qué?” toma dificil manter essa posigao. Replicar “duas descrigdes de organismos” parece correto até que Perguntamos: “Os organismos sio fisicos?", ou: “HA algo mais em Telagio a organismos, mesmo organismos humanos, do que a descri- sto efetiva € possivel de suas partes?” Geralmente os neo-dualistas concedem com prazer a Ryle toda uma abundancia de estados men- tis, e dizem que crengas, desejos, atitudes © intengies (para nfo mencionar habilidades, virtudes e temperamentos) so apenas mo- dos de falar sobre organismos, suas partes e os movimentos efetivos © possiveis dessas partes. (Mas podem insistir, segundo Brentano ¢ Chisholm, que nenhuma condigdo ryleana necesséria e suficiente A Mlosota eo espetho da natureza 3 pode ser proporcionada). Hesitam, porém, quando chegam a dores, imagens mentais e pensamentos ocorrentes — estados mentais de ‘curta duragdo que, por assim dizer, parecem mais semelhantes a eventos que a disposigdes. E tém razio em hesitar. Pois bastaria, para que a diferenga entre dualismo e materialismo se desvanecesse, {que se dissesse que descrever um organismo como dolorido é s6 um modo de fular sobre um estado de suas partes. Essas partes, lembre- mos, devem ser partes fisicas, pois, uma vez que kantianizamos € strawsonizamos Descartes, a nogdo de “parte mental” jé nem sequer parece fuzer sentido. O que mais poderia pedir um defensor da iden- tidade mente-corpo sendo a admissio de que falar sobre como al- sguém se sente & apenas um modo alternativo de relatar como so as partes respectivas (presumivelmente neurOnios) de sua anatomia? ‘Assim, temos o seguinte dilema: ou os ncodualistas devem cons- truir um relato epistemolégico sobre como sabemos a priori que as entidades se enquadram em duas espécies ontol6gicas irredutivel- mente distintas, ou devem expressar esse dualismo de algum modo que no se apoie nem na nogao de “cisdo ontolégica” nem na de “descricdo alternativa’". Mas, antes de comesar a esbogar modos de resolver esse dilema, devemos othar mais de perto para a nogao de “espécie ontolégica” ou “cist ontolégica”. Que espécie de nogio & essa? Dispomos de quaisquer outros exemplos de cis6es ontolégi as? Algum outro caso no qual saibamos a priori que nenhuma in- quirigio empirica pode identificar duas entidades? Sabemos, talvez, ‘que nenhuma inguirigo empirica pode identificar duas entidades espicio-temporais que tenham localizagées diferentes, mas esse co- nhecimento parece trivial demais para ser relevante. Existe algum ‘outro caso no qual saibamos a priori sobre tipos ontolbgicos natu- ais? Os Gnicos exemplos em que consigo pensar so as distingSes entre finito e infinito, entre humano e divino, e entre particular e universal. Nada, intuimos, poderia cruzar essas divisOes. Mas tais exemplos nfo parecem ajudar muito. Somos inclinados a dizer que ‘no sabemos 0 que seria preciso para que algo infinito existisse. Se tentamos eselarecer a nogio oriodoxa de “divino”, parece que temos ‘ou uma concepgo meramente negativa, ou entio uma explicada em termos das nogdes de “infinitude” e “imaterialidade”, Como a refe- r€ncia a infinitude explica o obscuro pelo mais obscuro, resta-nos & imaterialidade, Sentimo-nos vagamente confiantes em que, 5 pa u RICHARD RORTY desse existir, 0 infinito, como o universal, poderia ser exemplifica- do apenas pelo imaterial. Se faz algum sentido falar da existencia de universais, parcceria que eles devem existir imaterialmente, e € por isso que nunca podem ser identificados com particulares espicio- temporais. Mas 0 que significa “imaterial"? & a mesma coisa que “mental”? Mesmo sendo dificil ver na nogio de ser “fisico” algo mais do que na de ser “material” ou “espacio-temporal”, nfo € claro que “mental” e imaterial sejam sindnimos. Se fossem, entao dispu- tas como aquela entre conceitualistas ¢ realistas sobre 0 status dos universais iriam parecer ainda mais tolas do que jé so. Nao obstan- te, 0 oposto de “mental” é “fisico” ¢ o oposto de “imaterial” é “ma- terial”. “Fisico” e “material” parecem sindnimos. Como dois con- cceitos distintos podem ter sinénimos opostos? Nesse ponto podemos ficar tentados a recorrer a Kant ¢ explicar ‘que 0 mental & temporal mas nio espacial, enquanto que o imaterial — 0 mistério além dos limites do sentido — nao 6 espacial nem temporal, Isso parece dar-nos uma bela ¢ clara distingao tripartida: © fisico € espicio-temporal; 0 psicol6gico € nio-espacial, mas tem- poral; © metafisico ndo € espacial nem temporal. Assim podemos considerar a explicagéo da aparente sinonimia de “fisico” e “mate- rial” como uma confusdo entre “ndo-psicol6gico” e “niio-metafisi- co”. O tinico problema é que Kant ¢ Strawson forneceram argumen- tos convincentes a afinmagio de que sé podemos idemificar estados mentais como estados de pessoas espacialmente localizadas.! Uma ‘vez que renunciamos a “substancia mental”, somos forgados a levar ‘esses argumentos a sério, Isso faz com que quase fechemos um cfr- culo, pois agora queremos saber qual o sentido de dizer que alguns estados de uma entidade espacial sio espaciais e alguns no o sio. Nao adianta que nos seja dito que estes sio seus estados funcionais — pois a beleza, a compleigio, a fama ¢ a satide de uma pessoa sio estados funcionais, e no entanto a intuigio nos diz que também nao so estados mentais. Para esclarecer nossa intuigfo, temos que iden- ificar uma caracteristica partithada por nossas dores e crencas, mas 20 por nossa beleza ov nossa sade, Nao adiantard identificar o 1 Ver “Refutation of Idealism”, de Kant, em KdV, B27498,,€ P. F. Straw son, Individuals (Londres, 1959), cap. 2, © The Bounds of Sense (Londres, 1966), pp. 1623s A filosofie #0 espetho da narareca 38 mental como aguilo que pode sobreviver A morte ou & destruigto do corpo, uma vez que a beleza pode sobreviver morte de uma pes- soa, © a fama, & destruigio de seu corpo. Se dissermos que a fama ou a beleza de uma pessoa existem apenas relacionalmente, mais ‘aos olhos ou na opiniao de outros do que como estacos dela mesma, teremos problemas viscosos no que concemne & isting entre pro- priedades meramente relacionais das pessoas e seus estados intrin- secos. Arranjamos problemas igualmente viscosos no que tange 3s, ‘erengas inconscientes de uma pessoa, que 56 podem ser descobertas aps sua morte, por psicobi6grafos, mas que presumivelmente so estados mentais seus assim como aquelas erengas que tinha percep- go de possuir durante a vida. Pode haver uma maneira de explicar por que a beleza de uma pessoa € uma propriedade relacional ndo- intrinseca enquanto que sua parandia inconsciente € um estado nio- relacional intrinseco, mas isso pareceria estar explicando 0 obscuro pelo mais obscuro, Coneluo que niio pademos fazer da no-espacialidade critério de eestatlos mentais, mesmo que apenas pelo fato da nogio de “estado” ser suficientemente obscura para que nem o termo estado espacial, nem 0 termo estado ndo-espacial paregam titeis. A nogio de entida- des mentais como ndo-espaciais ¢ de entidades fisicas como espa- ciais, se chega a fazer algum sentido, o faz antes para particulares, para sujeitos de predicagio, que para a possessio de propriedades por tais sujeitos. Podemos perceber alguma espécie ténue de sentido pré-kantiano em porgoes de matéria e porgdes de substancia mental, mas no podemos perveber qualquer sentido p6s-kantiano em esta- os espaciais e nio-espaciais de particulares espaciais. Obtemos um vago sentido de poder explicativo quando nos dizem que os corpos ‘humanos se movem como 0 fazem porque sio habitados por espiri- tos, mas absolutamente nenhum quando nos dizem que as pessoas tém estados niio-espaciais. Z Espero ter dito 0 suficiente para mostrar que ni estamos habil tedos, sem antes perguntar 0 que entendemos por “mental”, a come- ar a falar sobre © problema mente-corpo, ou sobre a possivel iden- tidade ou necessfiria nio-identidade de estados mentais ¢ fisicos. Espero, além disso, ter incitado a suspeita de que a nossa assim cha- mada intuigéo sobre o que € mental pode ser apenas nossa dispo' ‘glo de entrar num jogo de linguagem especificamente filos6fico. 36 RICHARD RORTY Esta €, com efeito, a visio que quero defender. Penso que essa as- sim chamada intuigGo nfo € mais que a capacidade de comandar certo vocabulério tecnico — que nao tem utilidade fora dos livros de filosofia, ¢ que ndo se liga a temas da vida cotidiana, da cigneia ‘empirica, da moral ou da religido. Em segdes posteriores deste capi- tulo esbogarei um relato histérico de como emergiu esse vocabulé- rio téenico mas, antes de fazé-lo, sondarei alguns temas circunvizi- hos. Sio as possibilidades de definir “mental” em termos da nogio de “intencionalidade” e em termos da nogio de ser “fenoménico” — de ter uma aparéncia caracteristica, uma aparéncia de algum modo ‘exaustiva de realidade, 2. O funcional, o fenoménico e o imaterial A objesfo Obvia a definir 0 mental como intencional ¢ que as dores niio sio intencionais — nio tepresentam, nfo sio sobre alguma coi- sa. A objegzio Sbvia a definir 0 mental como “fenoménico” € que as ‘erengas nio so sentidas como coisa élguma — nao tém proprieda- des fenoménicas, ¢ as crengas reais de uma pessoa nao sto sempre 0 ue parecem ser. A tentative de acoplar dores e crenges parece ad hoc — elas niio parecem ter nada em comum, exceto nossa recusa em chamé-las “fisicas", Podemos usar de mé fé, sem divida, de modo a transformar a dor na aquisigdo da crenga de que um dos te- cidos de alguém esta danificado, construindo relatos de dor como Pitcher e Armstrong constréem relatos perceptivos.? Mas tal titica ainda nos deixa com algo como uma intuigio dualistica nas maos — a intuigio de que hé em estar consciente de uma dor ou de uma sen- sagio de vermethidao “algo mais” do que em estar tentado a adqui- rir uma erenga de que hé um dano nos tecidos ou um objeto verme- Iho nas proximidades. Altemativamente, podemos usar de mé fé por Outro lado e simplesmente confinar 0 texmo mental Aquilo que de ‘fato tem propriedades fenoménicas, abandonando crengas e desejos para que Armstrong os identifique com o fisico, Mas essa tética vai 2 Ver George Pitcher, A Theory of Perception (Princeton, 1971): D. M. Armstrong. Perception and the Physical World (Londres ¢ Nova York, 1961) €4 Materiaitst Theory of he Mind (Londres ¢ Nova York, 1968) SS A Blosofta€ 0 espetho da natura ” de encontro a intuigo de que seja 0 que for o problema mente-cor- ‘po, nio se trata do problema sensagio-neurénio. Se expelimos da ‘mente representagbes e estados intencionais, seremos deixados an- tes com algo como um problema da relagio entre vida e nio-vida do que um problema mente-corpo. ‘Uma outra titica ainda seria simplesmente definir “mental” dis- juntivamente como “seja fenoménico, seja intencional”. Essa suges- ‘Wo obscurece por completo como uma abreviagao para essa disjun- ‘glo entrincheirou-se na linguagem, ou ao menos no jargio filos6fico. Ainda assim, ela dirige nossa atengio a possibilidade de que os varios itens "mentais” sejam mantidos juntos por semethan- ‘sas de familia, Se consideramos pensamentos — pensamentos ocor- rentes, relampejando diante da mente em palavras particulares — ou imagens mentais, entdo parezemos ter algo que é um pouco como dor, ao ser fenoménico, e um pouco como a crenga, ao ser intencio- nal. As palavsas tomam fenoménicos os pensamentos € as cores € formas toram fenoménicas as imagens; no entanto ambos sio pensamentos e imagens de alguma coisa, no sentido intencional re- querido. Se stibita c silenciosamente digo a mim mesmo: “Meu Deus, deixei minha carteira sobre aquela mesa de café em Viena”, fou se tenho uma imagem da carteira sobre a mesa, enti estou re- presentando Viena, a carteira, a mesa etc. — tenho a tudo isso como objetos intencionais, Assim, talvez devamos pensar em pensamen- tos € imagens mentais como entidades mentais paradigmdticas. En- to poderemos dizer que dores € crengas ficam classificadas como mentais mediante sua semelhanga com esses paradigmas, mesmo que a semelhanga assuma dois aspectos bastante diferentes. O rela cionamento entre os varios eandidatos & mentalidade poderia entio ser ilustrado pelo seguinte diagrama: com propriedades sem propriedades Fenoménicas Fenoménicas inteneional representacional pensamentos ocorrentes, | exengas, desejor Imagens mentais intengoes ‘sentimenios erus—por | “a meramente Fisica" exemple, dores ¢ 0 gue (0 bebés t8m quando. ‘éem objetos coloridos 38 RICHARD RORTY ‘Suponhamos por um momento que nos satisfazemos com essa resposta de “semelhanca de familia” & pergunta “o que toma mental omental?” — ou seja, que € uma ou outra semelhanca de familia a0 paradigmaticamente mental. Voltemos agora & nossa questio origi- nal e perguntemos 0 que colocar no quarto campo do diagrama 10 “o meramente fisico”? Significard “fisico” simplesmente “o ‘que nAo se encaixa nos outros trés campos”? Serd uma nogio total- ‘mente parasitica & de “mental”? Ou se ligara de alguma forma com “miatcrial” © “espacial”, e como 0 faz? Para responder a isso, precisamos formular duas subperguntas: “Por que o intencional € no-material?” e “Por que o fenoménico 6 ndo-material?” A primeira pergunta pode parecer ter uma resposta bastante direta. Se assumimos “o material” como sendo “o neural”, por exemplo, podemos dizer que nenhum volume de inspegdo do cérebro id revelar o caréter intencional das figuras e inscrigdes en- contradas ali. Suponhamos que todas as pessoas atingidas pelo pen- samento “Deixei minha carteira sobre uma mesa de café em Viena”, nessas mesmas palavras ¢ idioma, tenham wma série idéntica de eventos neurais concomitantes ao pensamento. Essa parece uma hi- pétese plausivel embora provavelmente falsa). Mas nao € plausivel que todos os que adquiram a crenca de que deixaram sua carteira sobre uma mesa de café em Viena tenham essa série de eventos, pois podem formular sua crenga em palavras muito diferentes ou em idioma muito diferente, Seria estranho se um pensamento japonés € ‘um inglés tivessem 4 mesma correlago neural. E igualmente plausi- Yel que todos os que subitamente vejam no olho de sua mente a ‘mesma carteira que esté faltando, sobre a mesma mesa distante, de- vam partilhar de uma segunda série de eventos neurais, embora bas- tante diferente daquela correlacionada com o pensamento da senten- ‘ga no idioma original. Mesmo uma concomitancia tio nitida no iria Tentar-nos a “identificar” as propriedades intencionais ¢ as neurol6- gicas do pensamento ou da imagem, mais do que icentificamos as, ropriedades tipogrificas e as intencionais da sentenga “Deixei mi- nha carteira sobre uma mesa de café em Viena” quando a encontra- ‘mos na pagina impressa. Novamente, a concomitincia de imagens de carteiras sobre mesas de café contra um fundo vienense com ecr- tas propriedades das superficies de papel e tela nfo identifica a pro- priedade intencional “ser sobre Viena” com 0 arranjo dos pigmentos A filosfia¢ 0 espetho de matureva » no espago. Assim, podemos ver por que se poderia dizer que pro- priedades intencionais ndo so propriedades fisicas. Mas, por outro lado, essa comparacio entre propriedades neurol6gicas ¢ tipografi- cas sugere que ndo ha nenhum problema interessante acerca da in- tencionalidade. Ninguém deseja fazer uma tempestade filoséfica do fato de que no se pode dizer o que uma sentenga significa simples- mente pelo aspecto que apresenta, ou de que niio se pode reconhecer uma figura de um X como figura de um X sem estar familiarizado com as convengdes figurativas relevantes. Parece perfeitamente cla- ro, 20 menos desde Wittgenstein ¢ Sellars, que o “significado” de inscrigdes tipograficas nfo € uma propriedade “imaterial” extra que possuiem, mas apenas seu lugar num contexto de eventos circunstan- tes num jogo de linguagem, numa forma de vida. Isso vale também para inscrigbes cerebrais. Dizer que no podemos observar proprie~ dades intencionais olhando para o e&rebro como dizer que nio po- demos ver uma proposicae quando olhamos para um e6digo mais — simplesmente no sahemas 0 que procurar, porque no sabeinos ainda como relacionar 0 que vemos a um sistema de simbolos. A re- lagio entre uma inscrigao — sobre papel ou, dada a concomitancia hipotética, no cérebro — ¢ o que significe iZo & mais misteriosa que a relagio entre um estado funcional de uma pessoa, tal como sua be- Jeza ou sua satide, ¢ as partes de seu corpo. Sio apenas aquelas par- tes vistas num dado contexto. Assim, a resposta & pergunta “Por que o intencional € néo-mate- rial?” é “Porque qualquer estado funcional — qualquer estado que 86 pode ser apreendido ao relacionar-se 0 que € observaco a um contexto mais amplo — é, num sentido trivial, nao-material.” O problema est em tentar relacionar essa nogio trivial de ser “nio- material” — que significa apenas algo como “ndo imediatamente evidente a todos que olliam” — com 0 sentido filosoficamente ple- no de “imaterialidade”. Em outras palavras, por que deveriamos fi- car perturbados com a colocagio de Leibniz de que se 0 céxebro fos- se inflado até o tamanho de uma fabrica, de modo que pudéssemos passear através dele, nio poderiamos ver pensamentos? Se conhe- cemmos correlagies neurais suficientes, veremos efetivamente os pensamentos — ao sentido de que nosse visio int revelar-nos que Pensamentos © possuidor do oérebro esta tenulo. Se niio conhecer~ mos, nfo veremos, mas entio se passearmos através de qualquer fi 0 RICHARD RORTY bbrica sem ter primeiro aprendido sobre suas partes e as relagdes en- tre elas, nio iremos ver 0 que est acontecendo. E mais, mesmo se nao pudéssemos encontrar nenhuma de tais correlagées neurais, mesmo se i localizagio cerebral de pensamentos fosse um fracasso completo, por que irfamos querer dizer que o$ pensamentos ou ima- gens mentais de uma pessoa seriam ndo-fisicos simplesmente por io conseguirmos fazer um relato a seu respeito em termos das suas partes? Para usar un exemplo de Hilary Putnam, nio se pode fazer ‘um relato de por que pinos quadrados nio se encaixam em buracos redondos, em termos das perticulas elementares que constituem pi- ‘nos € buracos, mas ninguém encontra uma cisio ontolégica descon- certante entre macroestrutura e microestrutura. Penso que s6 podemos ligar 0 sentido trivial de “nio-material” (que se aplica, como oposto a observavel, a qualquer estado funcio- nal) com 0 sentido pleno de “material” ressuscitando a visiio de Locke de como 0 significado se liga a inscrigdes — a visio que Wittgenstein ¢ Sellars atacam. Para Locke a significagio — o caré- ter intencional — de uma inscrigZo era o resultado de sua produgio, ou codificagio, por uma idéia. Uma idéia, por sua vez, era “o que esté diante da mente de um homem quando ele pensa”. Assim, 0 modo de ver 0 intencional como o imaterial é dizer que nem uma seqiiéncia de processos no cérebro, nem alguma tinta sobre papel podem representar qualquer coisa a no ser que uma idéia, algo do ue temos percepgtio daquele modo “imediato” pelo qual temos a Percepcdo de dores, as tenha impregnado. Numa visio lockeana, quando caminhamos através da fabrica de Leibniz no podemos ver Pensamentos no porque, conforme Wittgenstein, no possamos ‘ainda traduzir a escrita cerebral, mas porque nao podemos ver aque- las entidades invisiveis (porque néo-espaciais) que infundem inten- Cionalidade go visivel. Para Wittgenstein, 0 que toma as coisas re- Presentacionais ow intencionais € o papel que desempenham num contexto maior — ema interago com grandes quantidades de outras coisas visiveis. Para Locke, 0 que torna as coisas representacionais & um impulse causal especial — que Chisholm desereve como 0 fe- nOmeno de sentengas derivando intencionalidade de pensanentos como a Tua deriva sua luz do sol.3 3. Roderick Chishotm, ftentionality and the Mental”, em Minnesota Studies A filoroftae espetho da natureza a Assim, nossa resposta pergunta "Como podemos convencer- ‘nos de que o intencional deve ser imaterial?” €; “Primeiro devemos convencer-nos, segundo Locke e Chisholm, e pace Wittgenstein ¢ Sellars, de que @ intencionalidade € intrinseca apenas em itens feno- ‘ménicos — itens diretamente presentes mente.” Se aceitamos essa resposta, entretanto, estamos ainda apenas a meio caminho de resol- ver 0 assunto, Pois, uma vez que o problema com o qual estivemos Jidando foi causado precisamente pelo fato de que as crengas nko tém propriedades fenoménicas, temos agora que perguntar como Locke, seguindo Descartes, péde misturar dores ¢ crengas sob o ter- mmo comum idéia —~ como péde convencer-se de que uma crenga € algo que esta “diante da mente” do modo como esté uma imagem, como pode usar a mesma imagética ocular para imagens mentais ¢ julgamentos. Discutirei mais adiante a origem desse uso cartesiano- ockeano do termo idéia. No momento passarei por sobre © assunto indo para a segunda subdivisio da pergunta “Por que se deveria pensar sobre o mental como imaterial?” — ou seja, por que se deve ria pensar sobre 0 fenoniénico como imaterial? O que faz com que alguns fil6sofos neodualistas digam que a maneira como se sente algo, 0 que esse algo € como sendo alguma coisa, nio pode ser idéntica a qualquer propriedade fisica, ou ao menos qualquer pro- ‘edade fisica sobre & qual sabemos algo? tudo sobre as propriedades fisicas de alguma coise e no saber como ela sente — especialmente se niio podemos falar com ela. Consideremos a afirmativa de que os bebés, os morcegos, 08 mar- cianos, Deus e as rochas vistas panpsiquicamente podem todos ha- bitar “espagos de qualidade” fenoménica diferentes dos que habita- most Pode ser assim. Mas 0 que tudo isso tem a ver com inthe Piosophy of sence 2 (1958) p53. 4 Euatatmaten fo apresontada com sits fog em “Whats 1 Lik 0 Be E'Sal™, Philosophie! Rewiew #3 (1978), pp 435-830, de Thomas Nal Seal alte cl de webthe As Ngee filncfa da ment. embar ‘’kconde Complement dele em quas todos os pone, Ponto que a de- rca enre moors pons de vita retora veto (Colocadh cals a= rear or Wego) de anges Hosea” sto mas do qb rag Pras Hagusiens nas nao eon tego de como one tne nes erabsaan A lige de nape € quests Sobre como € ser WO 2 RICHARD RoRTY slo-fisicalidade? insincere aa eo fen sce sum eto dspstr os ietos doses do merge ots isan he, foe creme {ggg dr no evita qu sntamos dor, tambén ms porque dev ‘are Pear qu ast fosse, ecompreener«acodininca no 20s aluda a voar? Como podemos, a pair do fata indubitel de oe ibe como sa un emo fisiligc oar exemplo,“esimul tno feet (pr cap ana ne A inert os referents dos dis emond Cer penne og of ft de que conhece fisiologa mariana no os jus « ida. To. © matclan dz qoandodanfcamos Ses tecdos,chegr fumasio de que ele tm algo de inter ques nos tas Gorn Para hese do pono, sabemos quando teres duns manele fll sot # mes coisa (ume pessoa, ose cero) na {Noes de as cosas items? & por que ox neodalinas ex Hie to seguros de que os seatientos eos neronios sto ums in cn : ape” gue ica resposta que tis sof tim a oferecer 6 Sonia que no tso de propeedades feoménicas mio hi distarse ‘tates reads bso elt «defi un popedde ea Siete gue guauerpesson padera arbi equivocadanent sig guna propiedad fenoménicn como una sobre gu eter miada pessoa nfo pode estar equivocada, (Por explo. a peston ges tm ma dor nfo ode se enga sobre como essa dor ésentic a : ralmente, trata-se wma propriedade fenoménica pode ser Fisica Mie pov one vers, sae es erence ee jen car mete enso que parecem peculiazes Billo do espaco-ten sstruido como predizendo todo — ‘constiutdh mpo sob uma deserigdio ov outra, mas bsiomeeks ees A filosefta 0 expetho ds norareza 2 ‘émica refletit uma distingio ontoldgica? Por que essa distingdo epist corrigiveis| everia o privilégio episiémice que todos temos de ser Sobre como as coisas nos parccem refletir uma distingiio entre dois reinos do ser? Presumivelmente @ resposta deve ser algo como isto: Sentimen- tos sao pura e simplesmente aparéncias. Sua realidade € exaurida no coma elas perecem, Eles si paras aparigdes. Tudo 0 que nfo é uma aparigao (colocando o intencional de lado por um momento) € me= ramente fisico — ou seja, € algo que pode parecer diferente do que €. 0 mundo vem dividido em coisas cuja natureza & exaurida em ‘como aparecem ¢ coisas Cuja natureza no é. Mas se um fil6sofo di tessa resposta, corre o risco de deixar de set neodualista para se tor- nar um simples e antiquado dualista cartesiano, “substincia mental” e tudo. Pois agora parou de falar a respeito de dores como estados das pessoas ou propriedades predicadas de pessoas ¢ comogou! a fe Jar a respeito de dores como particulares, um tipo especial de parti- cular cuja natureza é exaurida por uma Unica propriedade. De que poderia ser feito tal particular, exceto substincia mental? Ou, em putas palavras, 0 que poderia ser a substincia mental senio aquilo de que podem ser feitas tais coisas tEnues, elgreas ¢ transiicidas? Enguanto o tet uma sensago dolorosa ¢ uma propriedade de uma pessoa ou de fibras cerebrais, parece no haver razdo para que & di Ferenga opistémica entre relatos sobre como as coisas sentem ¢ rela- tos sobre qualquer outra coisa produza uma cistio ontolégica. Mas to Togo haja uma cisto ontolégica, nio estaremos mais falando so- bre estados ov propriedades, mas sobre particulares distintos, temas de predicagto distintos, O neodualista que identifica wma dor com 0 modo como ela é sentida esti hipostasiando uma propriedade — sensagio dolorosa — em um tipo especial de particular, um particu: Tar cujo esse & percipi e cuja realidade € exaurida em nosso relacio- hnamento inicial com ele. O neodualista nio est mais falando sobre ‘como as pessoas sentem, mas sobre sentimentos como pequenas en tidades auto-subsisientes, flutuando livres das pessoas da mencira ‘como os universais flutuam livres das instanciagbes. Cum efeito. cle moldau dores em universais. Nao é de estranhar, entio, que consiga “Gntuit” que dores podem existir separadamente do corpo, pois ess intuigto 6 simplesmente a intuigdo de que universais podem existir jndependentemente de particulares. Esse tipo especial de sujeito de tl RICHARD RORTY predicago cuja aparéncia € sua realidade — dor fenoménica —, ter. tmina sendo apenas a sensago de dor abstrafds da pessoa que tem a dor. E, resumindo, a propria sensagdo dolorosa universal. Pats oo, loci-lo oximoronicamente, os particulares mentais, a diferenga de estados mentais de pessoas, resultam ser universais Essa, entdo, é a resposta que desejo dar & pengunta “Por que pen Samos sobre o fenoménico como imaterial?” Assim fazemos por- Que, como o colocou Ryle, insistimos em pensar em metaforas dares sobre ter uma dor — como ter um tipo engragado de particular Giante do ofho da mente. Esse particular resulta ser um Universal, uma qualidade hipostasiada em sujeito da predicagio, Portanto, quando os neodualistas dizem que © modo como as dores sie sent das € essencial para o que as dores sf, e-entéo ctticam Smatt por pensar no papel causal de certos ncurénios como o que é essencinl a dor estio mudando de assunto, Smartest falando sobre © que é es- Sencial para que as pessoas estejam na dor, enquanio os neodualis, {2s como Kripke estio falundo sobre o que ¢ essencial para que algo scia ume der. Os neodualstas sentem-sc destemidos diante da per, Bunta “Qual é a base epistemolégica paca sua afirmagto de saber o que € uma propriedade essencial da dor?” pois arranjaram as coisas de modo que as dores tenham apenas uma propriedade inttinsece a saber, a sensagio dotorosa. Assim, para eles, é ébvia a escolha de ‘Que propricciades devem ser levadas em comta como essenciais. Permitam-me agora resumir os resultados desta se¢a0, Eu disse ue 0 tinico modo de associar 0 intencional com o imaterial € iden. lilied-lo com o fenoménico, e que o tinico modo de identificar 6 fo. noménico com o imaterial € bipostasiar os universaise pens antes como particulares do que como abstragGes de patticulares — dando-thes assim uma habitasio nao espacio-temporal, Results, em outs palavras, que a distingio universal-particular é a iniea distin, So metafisica que obtivemos, a dnica que chega a mover alguma coisa fora do espago, ¢ que move muito menos fora do espago-term, po. A distingio mental-fisico, entéo, € muito mais parasites em re. lasio A distingdo universal-pazticular do que vice-versa, Alem dewa seaoeao de substancia mental como aquilo de que as dores e exengas de oats faz exatamente tanto on tio pouco sentido quanto a nogio de Naquilo de que sio feitos os universais”. A batalhacnire realinne © sonceitualistas sobre © status dos universais é, portanto, vazin, Apiloteia eo epelho da natures é rente, exceto de que € feita smos idéia do que € uma mente, excel sora 0 que for que slo fetes os universsis AD const tats tna ida ockeans quabto una forma Doi ans men plesmente cle a elo mesmo proceso — nés simp at ek tis pile iy oo rode. ems, dio a tratamos como se dolorido, ou bom) e entio a trat it. pops fosse tm sueito de predicago etalvez ai vn a wekinee f as uma propris al, Uma Forma Platénica € apen de toed Roladamente © considerada como capaz de sustents oa sais. Uma entidade fenoménica é exatamente isso també 3. A diversidade dos problemas mente-corpo Neste ponto poderiamos querer dizer que disslveios o probleme . reciso para conside- imene-corpo, Pos, de modo gral, tudo que € preciso para consi ta ese pyobleineininteligivel € que seemos nominaisas, nos te cusemos firemen a hipostaiarpropiedadesindvidusis, Entio fo seremos enganaos pela nogdo de que i eniadeschamas dores qu, por sere fenomenins, no poem se fi = Sezundn itigenstein, deveriamos tratar do fato de que p como “ns go aerate dn romo um feta re oi net eto experi cana o mil ma pends como ma obsorvaeia sobre tm jogo de lngoagemt — : bier ie 1 palavra das pessoas pelo qu }¢ convencionamos tomar a pal see i senind. pido pn ws ene og nse o fto de que um homem est sentido sea 0a i oe jiengtio ontol6gica do que a Cons- tar sentindo nao tem mais significa Cont Uo sro que a Suprema Cove ata qu sj ode en frbitro assim © pensa, Mais uma vez s Mitgenstin, dover encional como apenas uma subes- Vitigenstein, devernos tratar 0 intenciot 0 Ms se do funcional, eo funcional como apenas tp degra cae iy fo dep is ecimento do cont 1 Se ne earente deinen Depesrer ero tiencaa tomo nio tendo quniguerconexdo cam 0 Femmene © enone nico como uma questio de como conversamos,O problema ment compo, podemos dizer agora, oi apenseo rela do ines eng no de Locke sobre como as palavras assu 46 RICHARD noRTy combinado com a confusa ten mfusa tentativa, sua ¢ de P Jats come s fost substantvos See eee ea eee 8 soles pds Us problems oxicos, e s - Mas seria tolice pensar que terfamos re, Solid algun cuba ceeando a exe diagnéstico.H como se un Dsiqiara oss exlcr a seu pciente qu ss inficidade ¢ rest tado da erenga equivocada de que sua mie desejavacastrélo junta, ‘mente com sua confusarentativa de pensar em si mesmo como iden, eo seu ps. gue opacinte pressa nto € de una list de seuy nganos e confusdes, mas antes da compreensio de coma che coneteretesenganeseenvalverve nies consis Ss press 19s livrar do problema mente-corpo, pr pines de ar 6 0, precisamos ser capazes de responder a questdes como as segues) nS ST S#PHES Como fi gu Como foi que esas psauenas quests wm ano empoviralae so bre posivelienidade de dor eam os metas ns ee in 4 misturarse com a queso deseo homer “ifens ok nero” dos brutos — se ele ti Seo dor bet = ele tinha antes dignidade do que Dado que nt ae eae Pensavam que sobreviviam & destruicao de ot muil ues que Locke ¢ Platéo comegasse eros mt rmegasem tar cana iecfcanen sis, no wemis eda tagem de stad fenoméniosentenconas? Nt MO™ Nie haver i havrdalguma cone ere nose capacidade de te on cimento © 0 fato de termos mentes, e estard to 3, © estar s80 consid cian iderado 00 ferirse simplesmente ao fato de que as pessoas, como a4 ye crrigdes, 18m propriedades intencionais? 7 ee Pus ‘so todas boas perguntas. e nada do la & respondé-las, Para respondé-las, ae das idéias. Exatamente como ry Paci pr ‘ Pa mt a ee que eu disse até aqui aju- nso, nada servird. salvo a A focofa eo espetho do narureza a “{uncional”, “intencional”, “espacial” € outros semelhantes, como se estes formassem 0 vocabulério Sbvio com 0 qual discutir 0 t6pi- co. Mas, naturalmente, os fildsofos que criaram a linguagem que os den o problema mente-corpo no usavam esse vacabulério ou ‘qualquer coisa préxima ao mesmo. Se protendemos compreender como obtivemos as incuigdes que nos fezem pensar que deve haver tum problema real, indissokivel, filos6fico em alguma parte 20 nosso redor, temos que colocar de Indo nosso jargio atualizado pensar no vocabulirio dos filésofos cujos livros nos deram essas intuicdes, Em minha visio witigensteiniana, uma intwigio nunca é mais nem menos que a familiaridade com um jogo de linguagem; assim, des- cobrir a fonte de nossas intuigbes € reviver a histéria do jogo de lin- guagem filos6fico que nos encontramos jogando. “problema mente-corpo” que acabo de “dissolver” refere-se apenas a poucas das nogSes que, emergindo cm diferentes pontos da histéria do pensamento, entreteccram-se para produzir um emara- nnhado de problemas inter-relacionados, Perguntas como “Como os estados inteneionais da consciéncia estdo relacionados com os esta- dos neurais?" e “Como as propriedades fenoménicas como sensago © tendem a atribuir essa percepgdo a Descartes. Mas, ‘como argumentei na segéo 2 acima, dificilmente pensarfamos em ‘um pensamento ou uma dor como uma coisa (antes um particular, istinto de uma pessoa, que um estado de uma pessoa) que nao seria localizavel a no ser que jj tivéssemos a nogio de uma substancia no-extensa da qual poderia ser uma porgaio. Nao hé nenhura intui- ‘go de que dores ¢ pensamentos sejam antecipagdes nio-espaciais da, ou possam fundamentar um argumento para a nogdo cartesiana ‘da mente como uma substncia distinta (nfo-espacial). HA mais, en- tretanto, a ser dito sobre como a nogio de “substincia nio-espa- cial”, e portanto de “substincia mental”, entrou para a filosofia; e, ‘da mesma forma, sobre por que a filosofia contemporfinea da mente acha-se falando a respeito de dores ¢ crengas em vez de pessous tendo dores e crengas. Examinar esse material adicional ir, espero, tornar mais claro quio diferente € o dualismo cartesiano do “dualis- mo” das discusses contemporaneas. Precisamos manter em mente que a substdncia ndo-espacial que Kant e Strawson rejeitam como uma nogio incoerente era uma no- ho do século xv1l, e que & um lugar-comum da histéria intelectual que coisas estranhas aconteceram & nogdo de “substincia” naquele século, Para Arisiételes, e ainda para Santo Tomés, o paradigma de luma substineia era um homem ou r& individual. Partes destacadas de homens ou ris eram, como punhados de trufas ou baldadas de Agua, dibios casos limitrofes — eram “capazes de existir separada- mente” em um sentido (separacdo espacial), mas nio tinham a uni- dace funcional ou “natureza” que as substincias apropriadas devem ter. Aristételes, quando preacupado com tais casos, era inclinado a colocé-los de lado como “meras poténcias” — nio como acidentes, como a cor da Fi, nem como efetividades apropriadas, como a pré- pria ra viva ¢ saltando.* Descartes pretende estar usando a “subs- 435 Jerome Shaffer. Philosophy of Mind (Englewood Cliffs, N.l4, 1968), p. 48; cf. Norman Malcolm, “Seiestifie Materialism and the Identity Theory”. Dialogue 3 (3964), pp. 115-12: 30 CE. Metafisica 10800, pp. 5-10, sobre "porsbes”, Discuto a tensto enue os crltérios de Avistoteles para algo see una subs:ancis — “existéncia separa- a” e "anidade” — em “Genus a¢ Matter", em Exesesis and Argumont: Sir A flosofiae 0 espetho de netwrexa 7 ‘tancia distinta”” no sentido padrio de “capaz de existéncia separa- 4a, mas ele nfo quer dizer ow separago espacial ow unidade fun- ional.” Ele quer dizer algo como “capaz de fazer todo o resto desapare- cer [ou ‘afasté-lo com o pensamento’] ¢ ainda estar ali" * Essa defi igho de “capacidade de existéncia separada” cabe para 0 Uno, part as Idéias platGnicas € para 0s Motores Iméveis de Aristételes, mas para quase nada mais. Dada tal definigdo, dificilmente € razdo de surpresa que resultasse haver, no maximo, apenas trés substéncias — Deus, mente e matéria. E nem é surpreendente que Malebranche e Berkeley comegassem a ter davidas sobre o terceiro candidato, & Espinosa tanto sobre o segundo como sobre o terveiro. Nao teria ocorrido a Arist6teles pensar que ris, estrelas e homens eram sim- plesmente um nimero igual de acidentes de uma grande substincia apenas com base em que, se imaginarmos todos os outros corpos no mundo (por exemplo, terra € ar) aniquilados, a ra © 0 humano difi- cilmente poderium ser imaginados sobrevivendo. Mas era precisa- mente essa nogio de uma grande substincia 0 necessério para pro- porcionar um’ “fundamento filoséfico” da mecénica galileana, dies in Greek Philosophy in Honor of Gregory Viastos, ed. Edward N, Lee eral. (Dordrecht, 1973) 37 Descares penst que uma mfo humana, esteja ou nfo destacada, € um cexemplo perfeitamente bom de substincia. Cf. Quartas Respostas (Alguit, U, p. 663; Haldane e Ross, H, p. 99), onde cle diz que o sentido em que ‘uma mao € uma “substincia ineompieta” € desimporiante € apenas uma {questo de “nto formar um texo distinto de qualquer outra coisa” (en un autre sens on les peut appeler incomplétes, non qu'elies aiem rien incom pilet en tant qu’elles sont des substances, mais seulentent en tant qu’elles se rapportent d quelqu'autre substance avec laguele elles composent wn tout ppar soi et distinc: de tout autre). 1 entretanto, uma tensdo em Descartes fenire a vis8o de que qualquer coisa material (una mao, uma pancula de 16) 6 uma substincia e a nocto (clara em Espinosa) de que essas coisas sto fapenas modos de uma substéncia maior (por exemplo, matéria-como-um- todo). 38 Essa defioigfo causa problemas @ Descartes uma vez que sugers a visio es- pinosista de que Deus, de quem s¢ deve pensar que todo 0 resto &cpende, & 4 nica substancia, O ponto é discutide por L. 1. Beck, The Metaphysics of Descartes (Oxford, 1965), p. 110, que diz: “A aparemte inconsisténcia de ‘usar & palavra substantia ou mesrio res, para conotar o eu do Cogito ¢ de- vida, em lo pequena medida, a tentar colocar visho novo em odres velhos, para expressa? adouirina eartesiana aa linguagem técnica das escolas.” 15 RICHARD RORTY enquanto se acumulava desprezo pelas tradicionais explicag6es hi- lomérficas.?® Quando a matéria.como-todos-os-étomos-(ox vértices)co- Jocados-juntos substituiu « matéria-como-potencialidade, ela foi pro- movida & categoria de substincia (absorvendo para dentro de si todas as velhas substincias nio-humanas aristotélicas) e deixou apenas a “pura atualidade” de Aristoteles (0 vous que é os Motores Iméveis e pode nio ser distinto do vous “separdvel” nos homens in- dividuais) como uma possivel rival na categoria.“ Nés, herdeiros contempordineos da distingio cartesiana entre mente © matéria, perdemos contato com a nogio de “substéncia” em sua definigo do século xvit. A nogao de existéncia a se nunca foi inteligivel ao vulgo, € Kant conseguiu torné-la ininteligivel até para 05 fil6sofos profissionais, Assim, quando nés assentimos a afirma- do de que hi uma distingio Sbvia entre uma categoria de coisas que podem existir no espago e outra categoria de coisas que nao po- ‘dem, n6s nfo estamos assentindo a afirmagio de Descartes de que a mente € a matéria sio entidades distintas “que nao dependem de nada mais para sua existéncia”. Muitos filésofos contempordneos que concordam que ¢ bobagem falar da localizagio de uma dor ou de um pensamento, insistem, ndo obstante, pace Descartes, que um fluxo de consciéneia sem um compo ¢ inimagindvel. Tais filésofos contentam-se em pensar em entidades mentais antes como estadlos de pessoas que como “porgées de substancia espiritual”, e deixar que a nio-localizabilidade seja antes um sinal do status adjetivo de estados que do arranjo peculiar de certos particulares. Uma vez que 39CF. B. A. Burm, Metaphysical Foundations of Modern Physical Science (Garden City, N.Y., 1953), cap. wv. Na p. 117 Burt diz: "O fato € que, € isso € de importincia central para todo 0 nosso estudo, © eriterio real de Descartes ndo é a permanéncia mus a possibilidade de manipula mate matics; em seu caso, como no de Galileu, todo o curso de seu pensemento, este seus estudos de adolescente em diante, habituou-o a nogio de que co ‘hecemos os objelos somente em termes matemélicos." A distingso resu tante entre quelidades primSrias ¢ secundirlas proporciona o motivo para encarar as substincias paradigméticss aristotélicas coma meramente mados da res exsensa, 40 CI. Quartas Respostas (Alguié, I p. 652; Haldane ¢ Ross. H, p. 98), onde Descanes diz que “concevoir pleinement” © “concevoir que c'est une chose ‘compléte” $80 sindnimot, um ponto que le pensa ajudar ® explicar como fapeeendemos que alme e carpo so duas substéncias A flosofia¢ 0 espetho da navureza n compleigio, personalidade, peso, alegria ou encanto de um homem iio podem ser isolados num ponto do espaco, por que o seriam suas cerengas ¢ desejos? Assim, parece plausivel dizer que a percepgio de Descartes era apenas um reconhecimento da diferenga entre partes de pessoas ou estados dle tais partes (como c6licas em seus est6ma- £208), por um lado, e certos estados da pessoa como um todo, por ou- tro; um reconhecimento enganosamente estabelecido num vocabulé- rio escoldstico corrompido enquanto uma distingao de “substancia’ Essa descrigao do que significa dizer que a mente & nio-espacial proporciona um modo conveniente de colocar e dissolver simulta~ neamente um problema mente-corpo. Pois poucas pessoas estio preocupadas com uma cisio ontoKigica entre o que é significado por substantivos € 0 que & significado por adjetivos. Entretanto, como a maioria das solugdes de estilo behaviorista para o problema mente- corpo, esta tem dificuldades com pensamentos e sensagdes cruas — eventos enquanto opostos a disposigges. E ffeil encarar crengas, de- scjos ¢ disposigdes como (na frase de Ryle) “tragos de intelecto e de cardter” que no requerem nenhum meio nfo-material como subs- trato, mas apenas 0 préprio homem. E mais dificil pensar desse modo em sensagSes cruas, imagens mentais e pensamentos.'! Eles ‘sugerem um fluxo imaterial de conscincia precipitando-se invisivel ¢ intangivelmente através dos intersticios do eérebro, talvez — por- que parece tio natural encaré-los antes como coisas do que como estados de coisas. Assim, os filésofos contemporéncos, retomnando a ‘uma nogao aristotélica e vulgar de “coisa” em vez da nogio carte- siana sofisticada e extravagante de “substincia”, sio inclinados a indir a diferenga entre Aristételes e Descartes. Isto €, eles pensam ‘que Aristételes negligenciou certos particulares — por exemplo, do- Fes € sensagdes cruas — enquanto que Descartes tomou-os inocua- 41 0 pono é colocado de varios modos por Hampshire, Austin e Ayer em suas respectivas tesenhas de The Concept of Mind, republicadas em Ryle: A Col- lection of Critical Essays, ed. O. P, Wood e George Pitcher (Gerden City, N.¥., 1970), Sobre meios de estender 0s métodos de Ryle @ percepeaes e AS sensagBes cruas associadas, ver Pitcher, A Theory af Perception, Sobre per- cepgies como cisposigces & erenga, @ a discussio do “matericlismo sdver- bial”, ver James Coroaran, Materialism and Sensations (New Haven, 1971) Ver também Richard Rony, “Incorrgibility as the Mark of the Mental Journal of Philosephy 67 (1970), 406-409, % RICHARD RORTY Gentais de uma grande substincia chamada Matéria. Isso permite gue os filésofos contemporineos tenham entidades mentais sem a alma, e, portanto, sem parecerem ser assombradas pelo Homem In- visivel ¢ Intangivel das crengas religiosas (uma nogdo que extraem de Descartes — no sem algum encorajamento do préprio). Esse dualismo baseado na “existéncia separada do corpo” — um quarto tipo — & bastante diferente do dualismo entre uma pessoa ¢ seu espfrito, ou entre uma pessoa e seu intelecto passivo aristotéli- co, ou entre res cogitans e res extensa. Mas & também um dualismo parcial — tao parcial, de modos iguais e opostos, como 0 dos anti. 0s. Enguanto os antigos tomavam da substincia nio-extensa de Descartes apenas a parte que apreende o universal como “existindo separadamente", os dualistas contemporaneos (concedendo a Ryle as erencas, 05 desejos similares como modos de falar de disposi- ‘s6es) tomam apenas candidatos mentalidade que se mostram como-eventos, como “existindo separadamente”, Enquanto 0s to- mistas, por exemplo, acusam Descartes por ter desnecessariamente dotado os sentidos com a imaterialidade que é prerrogativa da ra- 240, os dualistas contemporineos acusam-no de haver desnecessa- riamente dotado 0 conhecimento matematico e as decisses sobre conduta com a “eoisidade” imaterial que pertence a dores, laténcias de imagens e pensamentos ocorrentes. Para 05 antigos, a mente era mais obviamente capaz de existéncia separada, quando contemplava © imutével ¢ era ela propria imutavel, Para os modernos, ela é mais Obviamente capaz disso quando é uma colegio florescente e alvoro- Fada de sensagdes ervas.* Esteja certo quem estiver, est claro que ‘hem os antigos, nem os modemos partilham da “percepgio clara e dlistinta” de Descartes da separabilidade de todos os itens que ele amontoou juntos sob o “pensar”, © Ginico aperteigoamento de Descartes & nogo homérica de um Homem Invisivel e Intangfvel foi despir o intruso da forma huma- 42 “Enavanto para Plo pensamestosracionals ern a aividades pero iaméticas da ata, os eventos to desprecives como cometoes, dors de lence fgues enconramse agora ene aueles tpleamente mescionades a discusoo fitrotica como eventos mena" Uaegwon Kite Macee, "so and he Crria of the Menta” Syitese 22 [1971] > 396, A iilosoia eo expetio da waste ” néide. Ao Cornar assim os possfveis intrusos entre os corpos menos facilmente idemtificéveis, ele os tornou mais filosoficos. Eles eram mais filosicos, como 0 vovs de Ariststeles ¢ a Esséncia Especular de Isabella, pelo fato de ndo serem hominculos sombrios, mas antes entidades essencialmente nio-retrataveis, Como estar preocupada com assuntes filos6ficos era estar preocupado com 0 que as olhos ‘nfo podem ver, nem os ouvidos ouvir, tanto a substéncia ndo-exten- sa do sSculo XVit como os pensamentos € sensagdes no-localizd- veis atuais eram considerados mais filosoficamente respeitéveis que os espinitos por cu zaz os crete relginosoram, Mas os dso- fos contemparaneos, tendo atuatizado Descartes, podem ser dualis- las sem que scu dualismo sequer fuga diferencn para qualquer inte- resse ou preocupayio humanos. sem interest com a ciéncia ou emprestar qualquer apoio & religido, Pois ? medida que o dualismo se reduz & simples insisténcia de que dores € pensamentos niZo tém lugares, nada absolutamente paira sobre a distingio entre mente © compo. Permitam-me agora celembrar 0 leiior do curso que segui neste da nogao de “entidades mentais” como vin genero ontol6gico distin- ta sem invocar a nogio de “entidades fenoménicas” tais com as do res. entidades cujo ser era exaurido pela Gnica propriedade da sensa- io dolorasa, por excmplo. Afirmei que o problema real ita0 era abjurar tais universais hipostasiados, mas explicar por que todos os Linham Jevado # sério, e como vieram a parecer relevantes para dis- cusses da naturezn da pessoalidade e da r&zdo. Tenho esperanga de que as segics 3-6 tenham dado uma idéia de como penso que essas questdes histéricas podem ser respondidas (embora esteja dolorosa. ‘mente conscience das lacunas na hist6ria que contei). Minha respos- ta. pergunta “Porque tendemos a onto o jntencional eo fen rménico junto como ‘0 mental’?” € que Descartes usou a nogo do “incorrigivelmente conhecido” para trunspor a cisio entre eles. As sim, devo agora demonstrae mais Pinamente minha propria hr anticartesiana, wittgensteiniana da natureza dé “nosso acesso privi- Teiado omental” No prin eaptl, poral oho de a pessoaldade ea rao, e listo. quase exclusivamente a eonseiéne cin. Temarei mostrar que o “problema du consciéneia” pretensame %0 RICHARD RORTY i te metafisico nfo é nem mais nem menos que o “problema” episte- molégico “do acesso privilegiado”, © que uma vez visto isso, as questées sobre dualismo versus materialismo perdem seu interesse. CAP{TULO II Pessoas sem mentes Os antipodianos Muito distante dagui, do outro lado de nossa galaxia, havia um plax neta sobre 0 qual viviam seres como nés — bipedes implumes que consirufam casas e bombas, e escreviam poemas © programas de computador. Esses seres nao sabiam que tinkam mentes. Tinkam nogdes como “estar querendo”, “estar pretendendo”, “sentir-se pes- simamente” © “sentir-se maravilhosamente”, Mas nao tinham ne- nhuma nogio de que estas significavam estados mentais — estados de um tipo peculiar e distinto — totalmente diferentes de “sentar- se", “estar resfriado” e “estar sexualmente excitado”. Embora usas- sem as nogdes de acteditar, conhecer, querer e estar mal-humorado aplicando-as a seus animais de estimagio ¢ scus robbs assim coma a St prOprios, nfo encaravam animais de estimagao ow robds como in- clufdos no que pretendiam significar quando diziam: “Nés todos acreditamos...” ou “Nunca fazemos coisas como..." Isso quer dizer {gue tratavam apenas a membros de sua propria espécie como pes- soas. Mas nao explicavam a diferenca entre pessoas e nio-pessoas Por nogdes tais como “mente”, “consciéneia”. “espitito” ou qual- quer coisa desse tipo. Eles ndo a explicavam em absoluto; simples- ‘mente a tratavam como a diferenga entre “nds” e tudo 0 mais. Acre- am na_imortalidade para’ si proiprios, € alguns poucos screditavam que isso seria partithado pelos aaimais de estimagao ou pelos rob8s, ov por ambos. Mas essa imortalidade nao envelvia a cn th a ae 2 RICHARD RORTY ogdo de uma “alma” que se separava do corpo. Era uma questo direta de ressurreigtio corporal seguida de misterioso ¢ instantaneo ‘movimento para o que referiam como “um lugar acima dos céus” ara as pessoas boas, ¢ para uma espécie de cavemna, sob a superfi- ie do planeta, para as mas, Seus fildsofos ocupavam-se primaria- mente com quatro tépicos: a natureza do Ser, provas da existéncia de um Ser Benevolente ¢ Onipotente que se encarregaria dos arran- Jos para a ressumreicio, problemas origindrios de discurso sobre ob- ‘etos inexistentes, e a reconciliagao de intuigdes morais conflitantes. Mas esses fil6sofos niio haviam formulado 0 problema do sujeito ¢ do objeto, nem aquele da mente ¢ da matéria. Havia uma tradiga0 de Ceticismo pirrOnico, mas 0 “véu de idéias” de Locke era desconheci- €o, uma vez que « nogao de uma “idéia", ou “pervepgao”, ou “repre- Scntagtio mental” era também desconhecida. Alguns de seus fildso- fos prediziam que as crengas sobre a imortalidade que haviam sido Centrais em periodos anteriores da hist6ria, e que ainda eram manti- das por todos menos a intelligentsia, seriam um dia substitufdas por luma cultura “positivista” purgada de todas as superstigdes (mas es- s€s fl6sofos nfo faziam nenhuma mengio a um estégio metafisico interveniente) Na maioria dos aspectos, entio, a linguagem, a vida, a tecnologia © a filosofia dessa raga eram muito semelhantes &s nossas. Mas hi Yia uma diferenga importante. A neurologia ¢ a bioqufmica haviam Sido as primeiras disciplinas nas quais haviam sido alcangados avangos tecnolégicos, © uma grande parte da conversacao dessas Pessoas referia-se ao estado de seus nervos. Quando suas criangas Se encaminhavam na diregao de fogdes quentes, as mies gritavam: Ele vai estimular suas fibras-C.” Quando as pessoes recebiam en Senhosas ilusdes visuais para olhar, diziam: “Que estranho! Isso faz © feixe neurdnico G-14 estremecer, mas quando 0 olho de lado pos- 50 ver que n3o é absolutamente um reténgulo vermelho,” Seu co- hecimento de fisiologia era tal que eada sentenga hem-formada na linguagem, que todos procuravam formar, podia facilmente ser cor relacionada com um estado neural prontamente identiticavel. Esse estado ocorria serapre que alguém pronunciava, ou ficava tentado a Pronunciar, ou ouvia a sentenga, Esse estado também ocortia as ve- 2es em solidio e as pessoas relatavam tais ocasides com comenté "ios como: “Subitamente eu me encontrei em estado 8-296. de A flosefia eo espeho da naturece 8 ‘modo que coloquei as garrafas de leite para fora.” As vezes diriam coisas como: “Parecia um elefante, mas entio me dei conta de que ‘0s elefantes no ocorrem neste continente e assim percebi que devia ‘Ser um mastodonte.” Mas também diriam, exatamente nas mesmas circunstancias, coisas como: “Eu tinha G-412 juntamente com F-11, ‘mas entdo eu tinha S-147, ¢ assim percebi que devia ser um masto- donte.” Eles pensavam em mastodontes e garrafas de leite como ob- Jetos de crengas desejos, e como causando certos processos neu- tais. Viam esses processos neurais como interagindo causalmente ‘com crengas ¢ desejos — exatamente como o faziam os mastodan- tes e as garrafas de leite, Certos processos neurais podiam ser deli beradamente auto-induzidos, e algumas pessoas eram mais hdbeis que outras em induzir certos estados neurais em si mesmas. Outras eram hébeis cm detectar certos estados especiais que a maioria das essoas niio conseguia reconhecer em si mesmas. Na metade do século xxi, uma expedi¢ao da Terra pousou nesse planeta. A expedicao incluia fildsofos, assim como representantes de cada uma das outras disciplinas estudadas. Os fil6sofos pensa- Tam que a coisa mais interessante sobre os nativos era 4 sua carén- cia do conceito de mente. Brincaram entre si dizendo que haviam Pousado no meio de um bando de materialistas, ¢ sugeriram 0 nome de Antipodéia para o planets — em referéncia a uma escola de filé- sofos quase esquecida, centrada na Austrélia ¢ na Nova Zelindia, Que no século anterior havia tentado uma das muitas fiitcis revoltas contra o dualismo cartesiano na histéria da filosofia terrena. O nome pegou, ¢ assim a nova raga de seres inteligentes ficou sendo conhecida como os antipodianos. Os neurologistas ¢ bioquimicos terrenos ficaram fascinados pela riqueza de conhecimento em seu campo, que os antipodianos exibiam. Uma vez que a conversaco técnica sobre esses assuntos era conduzida quase inteiramente em referéncias improvisadas a estados neurais, os especialistas terrenos Finalmente adquiriram a habilidade de relatar seus peéptios estados neurais (sem inferéncia consciente), em vez de relatar seus pensa- Mentos, percepgdes e sensagdes cruas. (As fisiologias das duas es- Pécies, afortunadamente, eram quase ‘idénticas.) Tudo corria facil- mente, exceto pelas dificuldades encontradas pelos fildsofos. Os fil6sofos que haviam vindo na expedicao estavam, como de costume, divididos em dois campos em guerra: aqueles de inclina- ' ' a RICHARD RORTY ‘go compassiva, que pensavam que a filosofia devia almejar a Sig- nificagio, e aqueles de inclinagio rigida, que pensavam que ela de- almejar a Verdade. Os filésofos do primeiro tipo sentiam que no havia nenhum problema real sobre se os antipodianos tinham mentes. Afirmavam que 0 que era importante na compreensiio de outros seres era a apreensio de seu modo de estar-no-mundo, Tor- nou-se evidente que, fosse qual fosse a Eristentiale que os antipo- dianos estivessem usando, eles certamente ndo inclu‘am qualquer uma das gue, um século antes, Heidegger havia criticado como “subjetivistas”. A nocio toda de “o sujeito epistemolégico”, ou a pessoa como espirito, nfo tinha lugar em suas autodescrigSes, nem ‘em suas filosofias. Alguns dos fildsofos de inclinagio compassiva sentiam que isso mostrava que os antipodianos ainda nao haviam ir- rompido da Natureza para o Espirito ou, mais caridosamente, ainda nio haviam progredido da Consciéncia para a Autoconseigneia. Es- ses fil6sofos se tomaram pregoeiros da natureza intema, tentando seduzir os antipodianos através de uma linha invisivel para o Reino do Espirito. Outros, entretanto, sentiam que os antipc iam a louvavel apreensio da unidio de no2eH0s € Royo que havia sido perdida para a consciéncia ocidental terrena através da assimi lagio de ovoia a s8ca. por Platio. O fracasso dos antipodianos em apreender 2 noco de mente, na visio desse grupo de filésofos, mostrava sua proximidade ao Ser ¢ sua liberdade frente as tenta- .g8es, As quais © pensamento terreno havia hi muito sucumbido, Na disputa entre essas duas visdes, ambas de inclinacio compassiva, a discussio tendia a ser inconclusiva. Os proprios antipodianos no cram grande ajuda, porque tinham muita dificuldade para traduzir a Jeitura basica necesséria para apreciar 0 problema — Teeteto de Pla- tio, Meditagdes de Descartes, Tratado de Hume, Critica da Razio Pura de Kant, Fenomenologia de Hegel, Individuals de Strawson, atc Os filésofos de inclinagio rigida, como de habito, encontraram ‘uma questo muito mais direta e definida para discutir. Ndo Ihes im- Portava 0 que os antipodianos pensavam sobre si mesmos, mas an- tes enfocaram-se sobre a pergunta: “Tero eles mentes, de fato?” A seu modo preciso, reduziram essa pergunta a: “Tero eles sensa- ges, de fato?” Pensava-se que se ficasse claro que eles tinham, di- ‘gamos, scnsagdies de dor, assim como fibras-C estimutadas, ao tocs- A filorois #0 espetho da natareza 8s rem fogdes quentes, todo o resto correria sem dificuldades. Estava claro que 0s antipodianos tinham as mesmas disposigées de com- portamento que os humanos em relagdo # fogdes quentes, caimbras ‘musculares, tortura e coisas semelhantes. Odiavam ter suas fibras-C estimuladas, Mas os fildsofos de inclinagio rigida perguntavam a si mesmos: “Conterd a experiéncia deles as mesmas propriedades fe- noménicas que a nossa?” "Seré dolorosa a estimulagéo de fibras- C2" "Ou seré a mesma sentida de um outro modo, igualmente hort: vel?” “Ou as sensagées no entram nisso em absoluto?” Esses fil6sofos nio fiearam surpresos pelo fato de que 0s antipodianos po- diam fomecer relatos nilo-inferenciais sobre seus préprios estados neurais, uma vez que hé muito havia side aprendido que os psicofi- siologistas podiam treinar sujeitos humanos a relatarem ritmos-alfa, assim como varios outros estados corticais fisiologicamente descri- tiveis. Mas sentiam-se perplexos pela pergunta: “Estario algumas propriedades fenoménicas sendo detectadas por um antipodiano que diz: ‘Sto minhas fibras-C outra vez — vocé sabe, aquelas que se desligam a cada vez que yocé se queima, ou leva uma pancada, ou ‘tem um dente arrencado. E simplesmente horrivel’...2” ‘Sugeriu-se que a pergunta apenas poderie ser respondida experi- mentalmente, € assim eles combinaram com 0s neurologisias que uum deles deveria ser conectado a um voluntério antipodiano de modo a permutarem correntes para tris e para diante entre varias te- ides dos dois cérebros. Isso, pensava-se, também capacitaria OS fi- Tsofos a assegurat-se de que 0s antipodianos nio tinham um espee- tro invertido, ov qualquer outra coisa que pudesse confundir 0 assunto. Como se revelou, entretanto, o experimento néo produziu ‘quaisquer resultados interessantes, A dificuldade foi que, quando o centro da fala do antipodiano recebia uma informagiio das fibras-C do eérebro do terriqueo, este sempre falava sobre suas fibras-C, en- quanto que quando o centro da fala do terréqueo estava no controle, sempre falava sobre dor. Quando 0 centro da fala antipodiano foi perguntado como as fibras.C eram sentidas, ele disse que nfo perce- bia realmente a nogio de “sentir”, mas que fibras-C estimuladas cram, sem dtivida, coisas terrveis de se ter. O mesmo tipo de coisa aconteceu para as perguntes sobre espectros invertidos e outras qua- lidades perceptivas. Quando solicitados a identificar as cores de um diagrama, ambos 08 centros de fala identificaram 0s nomes costu- 86 RICHARD RORTY meiros das cores, na mesma ordem. Mas 0 centro da fala antipodia- no podia também nomear os varios feixes neurdnicos ativados por cada faixa do diagrama (no importando a qual cértex visual ocor- resse estar conectado), Quando 0 centro da fala terréqueo foi per- guntado como pareciam as cores transmitidas ao c6rtex visual anti- podiano, disse que pareciam exatamente como de costume Essa experiencia pareceu nao ter ajudado. Pois ainda era obscuro se os antipodianos tinham dores. Era igualmente obscuro se eles ti- nham uma ou duas sensagées cruas quando luz indigo atingia suas retinas (uma de indigo e uma de estado neural C-692) — ou se no tinham sensagGes cruas em absoluto. Os antipodianos foram repeti- damente questionados sobre como sabiam que era indigo, Eles re- plicavam que podiam ver que era. Quando perguntados como sa- biam que estavam em C-692, diziam que “simplesmente sabiam”. Quando hes foi sugerido que poderiam ter inferido inconsciente- mente que era o indigo na base da sensagio C-692, eles pareceram incapazes de compreender 0 que era inferéncia inconsciente, ou 0 que eram “sensagdes”. Quando thes foi sugerido que poderiam ter feito a mesma inferéncia ao fato de que estavam em estado C-692 nna base da sensacdo crua do indigo, eles ficaram, certamente, per plexos do mesmo modo. Quando Ihes foi perguntado se 0 estado neural parecia indigo, replicaram que nio — a luz era indigo — ¢ que o interrogador deveria estar cometendo algum tipo de equivoco de categoria. Quando Ihes foi perguntado se podiam imaginar ter C- 692 e nao ver indigo, disscram que néo podidim. Quando lhes per guntaram se era uma verdade conceitual ou uma generalizagio em- Pirica que essas duas experiéncias ocorressem juntas, replicaram que nfo estavam certos de como determinar a diferenga. Quando Ihes foi perguntado se poderiam estar errados sobre se estavam ven- do indigo, responderam que naturalmente poderiam, mas nfo po- diam estar errados sobre se pareciam estar vendo indigo. Quando Ihes perguntaram se poderiam estar errados sobre se estavam em es- tudo C-692, replicaram exatamente da mesma forma. Finalmente ‘uma habilidosa dielética filos6fica levou-os a perceber que o que eles nfo podiam imaginar era parecer estar vendo indigo e falhando ‘em parecer estar em estado C-692. Mas esse resultado nao parece ajudar com as pergunias: “SensagGes cruas?” “Duas sensagdes cruas ‘ow uma?” “Dois referentes ou umn referente sob duas descrigdes?” E A flosofta eo espelho da natureza " nem qualquer coisa ajudou com a pergunta sobre o modo pelo qual as fibras-C estimuladas thes apareciam. Quando Ihes perguntaram se poderiam estar enganados ao pensar que suas fibras-C estavam cstimulades, replicaram que naturalmente podiam — mas que nfo podiam imaginar estarem enganados sobre se suas fibras-C pare- ciam estar estimaladas. Nese ponto ocorreu a alguém perguntar-Ihes se conseguiam de- tectar o estado neural que era o concomitante de “parecer terem suas fibras-C estimuladas”. Os antipodianos responderam que ha- via, naturalmente, o estado T-435, que era 0 concomitante constante da enunciagio da sentenga "Minhas fibras-C parecem estar estimu- Iadas”, 0 estado T-497, que vinha com "E exatamente como se mi- has fibras-C estivessem sendo estimuladas”, o estado 7-293, que vvinha com “Fibras-C estimuladas!” e varios outros estados neurais que eram concomitantes a vérias outras sentensas aproximadamente sindnimas — mas que ndo havia nenhum outro estado neural adicio- ral do qual tivessem percepgao além desses. Os casos em que os an- tipodianos tinbam o T-435, mas nenhuma estimulagfo, inclufam aqueles em que, por exemplo, estavam presos aquilo que falsamente Ihes era informado ser uma méquina de tortura, uma chave teatral- mente acionada sem que nada mais fosse feito, ‘A discussio entre os fil6sofos transferiu-se agora para o t6pico: Poderiam os antipodianos estar enganados sobre a séric-T de esta dos neurais (agueles que eram concomitantes & compreenséo ou enunciagao de sentencas)? Poderiam parecer estar em T-435 mas rio estar realmente? Sim, disseram os antipodianos. Os cerebrosc6- pios indicavam que esse tipo de coisa acontecia ocasionalmente, Haveria alguma explicagio dos casos em que acontecia — algum padrio relacionado? Nao, nao parecta haver. Era simplesmente uma daquelas coisas estranhas que ocorria ocasionalmente. A neurofisio- Jogia ainda nfo havie sido capaz de encontrar outro tipo de estado neural, afora a série-T, que fosse concomitante de tais ilusdes miste- iosas, mais do que para certas ilusSes perceptivas, mas talvez © conseguisse algum dia Essa resposta ainda deixou os filsofos em dificuldades em rela- do A questo de se 0s antipodianos tinham sensagdes de dor, ot qualquer outra coisa, Pois agora parecia nfo haver nada em relagdo 440 que 0s antipodianos fossem incorrigiveis, exceto como as coisas

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