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10/11/2020 TEXTOS LONGOS

Vejamos então o que sobreviveu melhor ao curso da história: se Nineteen Eighty-Four aos últimos 60
anos, se 1985 aos últimos trinta e um.
As diferenças entre as duas distopias não surpreendem, sabendo que uma foi escrita por um socialista
libertário, pouco à vontade no seu estatuto social de nascença que o colocava nas franjas do poder, e a
outra escrita por um conservador a quem o facto de pertencer a uma elite social e intelectual não
incomoda minimamente. Na primeira, o opressor é um Estado por assim dizer anti-utilitarista, ou
seja: inteiramente dedicado à prossecução do maior mal do maior número. Burgess faz notar, na sua
crítica a Orwell, que um Estado assim nunca existiu nem pode existir. Mesmo os regimes que mais se
aproximam deste modelo são intrinsecamente instáveis: Calígula acabou assassinado, e o Império
nazi, que era para durar mil anos, durou doze. Reconhece Burgess, contudo, que Orwell tem bons
modelos para a sua terrível invenção: o franquismo contra o qual lutou, o estalinismo que assassinou
na Catalunha os seus camaradas anarco-sindicalistas, ou o nazismo, de cujos horrores se começava a
tomar conhecimento quando o livro foi escrito. Bastou a Orwell absolutizar e levar ao extremo do
concebível estas realidades históricas, et voilà: aí temos o Ingsoc, abreviatura de English Socialism, ou
seja: Socialismo Inglês.
Burgess nota, com a indulgência a que as suas próprias contradições o obrigam, a ironia de um
socialista chamar socialismo ao regime mais monstruoso que consegue imaginar; mas não precisa de
explicar, e não explica, as razões óbvias desta opção. Nós, habitantes do Século XXI, habituados pela
propaganda vigente a equacionar "esquerda" com "estatismo", também podemos ver ironia na escolha
deste nome. As razões de Burgess para notar esta ironia são, contudo, um pouco diferentes das nossas.
Burgess não era um anti-estatista doutrinário, mas sim um conservador na tradição burkeana, a quem
a ideologia anarco-capitalista e revolucionária representada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan
repugnaria tanto como a qualquer militante da esquerda dita radical. Não acredita que o Estado seja a
emanação do Mal, mas exige dele essa coisa fora de moda que é a responsabilidade moral. No
capítulo "Clockwork oranges" de "1985", declara os seus pressupostos ético-políticos:
A chemical substance injected into [Alex's] blood induces nausea while he is watching the films, but
the nausea is also associated with the music. It was not the intention of his State manipulators to
introduce this bonus or malus: it is purely an accident that, from now on, he will automatically react
to Mozart or Beethoven as he will to rape or murder. The State has succedeed in its primary aim: to
deny Alex free moral choice, which, to the State, means choice of evil. But it has added an unforeseen
punishment: the gates of heaven are closed to the boy, since music is a figure of celestial bliss. The
State has commited a double sin: it has destroyed a human being, since humanity is defined by
moral choice; it has also destroyed an angel.

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