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Aristóteles e as aporias do tempo

César Schirmer dos Santos


cesar.santos@ufsm.br
Universidade Federal de Santa Maria
Departamento de Filosofia
2017 – rascunho

A metafísica é a disciplina que investiga a realidade nos seus aspectos mais gerais e
abrangentes, com o objetivo de dar sentido às coisas. Um dos aspectos mais gerais da
realidade, um dos mais envolventes, é o ​tempo​. Praticamente não há nada que não possa, com
sentido, ser considerado com respeito ao tempo. Eis alguns dos principais tópicos e questões
da metafísica do tempo:

● Qual a relação entre o tempo e as mudanças que se dão na natureza?


● O tempo existe independentemente da mente que observa, conta e lembra dos
momentos?
● O tempo é contínuo ou divisível? Se for divisível, tem infinitas ou finitas partes?
● Qual a relação entre o agora e o tempo? São idênticos? O tempo é uma coleção
ordenada de agoras?
● Cada novo agora é diferente do agora anterior? Ou a cada momento se repete o
mesmo agora?

Aristóteles sobre tempo e mudança


Aristóteles tem duas coisas a dizer sobre a relação entre o tempo e a mudança. Em primeiro
lugar, a explicação da ordem temporal entre os eventos tem como base as fases ou estágios
que se dão nos processos que se observam na natureza (cf. Coope 2009, p. 39). Assim sendo,
os processos que se dão na natureza são o fundamento da ordem do tempo, o que significa ​a)
que os processos naturais são mais fundamentais do que o tempo ele mesmo, ​b)​ que o tempo
depende, ao menos em parte, dos processos naturais e ​c)​ que o tempo não é idêntico aos
processos naturais, dado que os processos naturais não dependem do tempo, mas o tempo
depende dos processos naturais.

1
A segunda coisa que Aristóteles tem a dizer sobre a relação entre tempo e mudança é
que a existência do tempo depende do fato de que haja ao menos um ser dotado de mente
contando os momentos. Assim sendo, o a existência do tempo depende do ato de contagem
dos processos naturais por alguma mente. A mente é mais fundamental do que o tempo.

Reunindo as duas coisas que Aristóteles tem a dizer sobre o tempo, o tempo tem dois
fundamentos, pois depende de duas coisas. Em primeiro lugar, a ordem temporal depende da
ordem dos processos naturais – ou seja, os processos naturais são mais fundamentais do que o
tempo. Em segundo lugar, a existência do tempo depende do ato de contagem dos processos
naturais por algum ente dotado de espírito – ou seja, a mente é mais fundamental do que o
tempo. Em resumo, o tempo tem dois fundamentos, pois depende da natureza para sua
ordenação, e depende da mente para sua existência. As mudanças naturais são o fundamento
da ordem temporal, e a observação da mudança por algum ente dotado de alma é o
fundamento da existência do tempo.

Tendo o tempo dois fundamentos – os processos naturais e a mente –, qual desses


fundamentos é o mais básico ou fundamental? Levando em conta que, para serem observadas
e contadas, as mudanças naturais tem que ocorrer, as mudanças naturais são mais
fundamentais do que suas observações. Ou seja, os processos naturais são os fundamentos
dos quais dependem a mente e o tempo, e a mente é um fundamento adicional do tempo.

Idealismo temporal
Para Aristóteles, a existência do tempo depende de uma mente que observe e conte processos
naturais. Isto significa que o tempo depende do espírito. Digamos que, para que ​S​ seja um
idealista o​ u ​antirrealista ​sobre ​x​, ​S​ tenha que alegar que a existência de ​x​ dependa, de alguma
maneira ou em alguma medida, de uma mente observar ou fazer algo. Dado esse critério,
Aristóteles é um idealista sobre a existência do tempo, pois o tempo depende da mente.

É importante notar, contudo, que Aristóteles não é um idealista sobre as mudanças


que se observa nos processos naturais. Pelo contrário, Aristóteles é um realista sobre a
observação e contagem desses processos. Assim sendo, o tempo não é fundamental, pois

2
depende da mente, mas a mudança é fundamental, pois é preciso haver processos naturais
para que eles sejam observados.

Sobre a divisibilidade do tempo


Um dos pontos altos das investigações de Aristóteles sobre a natureza e a existência do tempo
é a abordagem de algumas aporias – enigmas insolúveis – sobre o tempo que se seguem de
visões sobre o tempo típicas do senso comum.1 São essas dificuldades relativas à noção
ingênua de tempo que motivam Aristóteles a buscar uma noção refinada e científica sobre a
natureza do tempo.

Um dos pressupostos mais comuns da noção de tempo do senso comum é que o


tempo é uma quantidade divisível, e, portanto, composto de partes. De acordo com a visão
ingênua sobre a natureza do tempo, “[…] o tempo é uma coisa divisível” (Aristóteles, ​Física​,
IV, 10, 218 a 3; ​apud​ Sorabji, 1983, p. 8, minha tradução).2 O argumento em favor da
divisibilidade do tempo seria o seguinte:

Argumento da divisibilidade do tempo

1. Suponha que o tempo não é divisível.


2. Se o tempo não é divisível, então não tem partes.
3. Se o tempo não tem partes, então o início e o fim de um processo estendido no
tempo se dão simultaneamente.
4. Mas o início e o fim de um processo não se dão simultaneamente.
5. Logo, o tempo tem partes.
6. Logo, o tempo é divisível.

Este argumento mostra, por redução ao absurdo, que o tempo tem que ser divisível. Caso o
tempo não fosse divisível, qualquer processo seria tal que seu início e seu fim seriam
simultâneos Mas não é razoável esperar que todo processo esteja de acordo com esse
requisito, pois há processos que envolvem início e fim diferentes. Por exemplo, o crescimento
de uma planta ou de um animal. Assim, o tempo envolve ao menos a diversidade entre o
início e o fim de algum processo, o que prova que o tempo não é algo uno, mas sim algo

1
Pode-se dizer que o ​Tratado do Tempo​ de Aristóteles inclui duas argumentações sobre a natureza do tempo.
Primeiro, Aristóteles nos apresenta uma argumentação exotérica sobre a natureza do tempo (Aristóteles, ​Física​,
217 b 29 – 218 b 20). Depois, Aristóteles desenvolve uma argumentação científica (Aristóteles, ​Física​, 218 b 20
– 221 a 26; 222 a 10–28) (cf. Barreau 1973).
2
Tradução alternativa: “Do tempo, entretanto, sendo ele dividido em partes […]” (Aristóteles 2014, IV, 10, 218
a 3).

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divisível. Como uma parte é um fruto de uma divisão, o tempo é algo que tem partes.

Infinitas partes
O senso comum também parece presumir que o tempo não tem grãos ou partes discretas. Em
vez disso, o​ ​tempo teria infinitas partes. Considere duas partes quaisquer do tempo, por mais
próximas que uma esteja da outra. Não importa o quão próxima uma parte está da outra parte,
ainda assim, há ao menos uma parte do tempo que está entre as duas partes. E assim
sucessivamente. O argumento em favor dessa postura seria o seguinte:

O argumento da infinitude das partes do tempo

1. Suponha que o tempo tem uma quantidade finita de partes.


2. Por exemplo, suponha que o processo estendido no tempo ​P​ tenha apenas duas
partes: o início ​e1​​ e o fim ​e2​​ .
3. Ou ​e1​​ e ​e2​​ são simultâneos, ou um dos dois eventos é anterior ao outro.
4. Em nenhum processo estendido no tempo o início e o fim são simultâneos.
5. Logo, ​e1​​ e ​e2​​ não são simultâneos. (Segue de 2 e 4.)
6. Logo, ​e​1​ é anterior ou posterior a ​e​2​. (Segue de 3 e 5.)
7. A distância temporal entre ​e​1​ e ​e​2​ pode ser dada por uma quantidade de tempo.
8. Qualquer quantidade de tempo pode ser dividida pela metade.
9. O evento ​e​1,5​ está na metade do tempo entre ​e1​​ e ​e2​​ .
10. Uma metade é uma parte.
11. Logo, ​e​1,5​ é uma parte de ​P​. (Segue de 9–10.)
12. A quantidade de tempo entre ​e​1​ e ​e​1,5​ pode ser dividida pela metade.
13. Etc. (Passo indutivo.)
14. Logo, não é o caso que o processo ​P​ tem uma quantidade finita de partes.
(Segue de 10–13.)
15. Logo, não é o caso que o tempo tem uma quantidade finita de partes.
16. Logo, o tempo tem uma quantidade infinita de partes.

Este também é um argumento por redução ao absurdo: a premissa ​1​ será negada na conclusão
final. O passo ​2 ​apresenta um esquema que pode ser preenchido por qualquer processo
estendido no tempo. Para qualquer exemplo que se escolha, chamemos de ​e1​​ seu início, e de
e​2​ seu fim.

Com respeito a um processo estendido no tempo, ou ​e​1​ e ​e​2​ são simultâneos, ou um é


anterior ao outro. Este ponto é estabelecido no passo ​3​. O passo ​4​ extrai uma consequência do
fato de um processo ​P ​ser estendido no tempo: o início ​e​1​ e o fim ​e2​​ não podem ser
simultâneos. Assim sendo, no passo ​5​ é destacada a conclusão de que ​e​1​ e ​e​2​ não são

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simultâneos. Essa conclusão, em conjunto com o passo ​3​, permite estabelecer que há uma
relação de anterioridade de um evento (o início ​e​1​) com respeito a outro evento (o fim ​e2​​ ), o
que é estabelecido no passo ​6​.

O argumento continua, agora buscando mostrar que há infinitos momentos entre


quaisquer dois momentos dados. O passo ​7​ estabelece que a distância entre dois eventos é
mensurável. O passo ​8​ estabelece que, para qualquer medida que seja, pode-se encontrar a
metade. O passo ​9​ batiza de ​e​1,5​ o evento que está entre o início ​e​1​ e o fim ​e2​​ de um processo
P​ estendido no tempo. Os passos ​10–11​ estabelecem que o evento que está no meio de um
processo ​P​ é uma parte temporal de ​P​.

Os passos ​12–13​ apresentam um elemento indutivo, pois o procedimento que levou da


consideração da distância temporal entre ​e​1​ e ​e​2​ para a consideração da distância temporal
entre ​e1​​ e ​e1,5​
​ poderia ser repetido infinitamente. O que permite concluir, no passo ​14,​ que a
quantidade de partes de ​P​ não é finita. No passo ​15​, a conclusão que valia para o processo ​P​ é
ligada ao próprio tempo, o que permite, no passo ​16​, reduzir ao absurdo a suposição inicial,
concluindo-se que o tempo tem infinitas partes.

A fórmula fundamental, com importantes consequências relacionadas à noção de instante,


como veremos adiante, é a seguinte:

1. Existe um x tal que x é uma parte do tempo → x é uma quantidade maior do que zero.

Assim sendo, o tempo é composto de partes, e um ​instante,​ entendido como um tempo com
dimensão temporal igual a zero, é apenas uma abstração.

2. O que é divisível é composto de partes.


3. O tempo é divisível.
4. Logo, o tempo é composto de partes.

O fato do tempo ser essencialmente algo divisível coloca requisitos com respeito à sua
existência. “[…] quando uma coisa divisível existe, […] ou todas ou algumas das suas partes
devem existir” (Aristóteles, ​Física​, 218a3; ​apud​ Sorabji, 1983, p. 8, tradução nossa). Não é
requerido que todas as partes de uma coisa divisível existam, mas alguma – ou melhor, ao
menos uma – deve existir. Assim, o tempo precisa estar de acordo com o seguinte princípio
geral sobre a existência das coisas divisíveis:

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4. Se x é divisível, então ao menos uma parte de x existe.

No entanto, o tempo não satisfaz esse princípio. “Algo dele [do tempo] ocorreu e não é,
enquanto algo está vindo a ser e ainda não é, e o tempo é composto destes dois” (Aristóteles,
Física,​ 217b33; ​apud​ Sorabji, 1983, p. 8, tradução nossa). O tempo é composto do passado e
do futuro, mas nenhum dos dois existe. Logo, o tempo não existe.

5. O que é composto de partes inexistentes não existe.


6. O tempo é composto de partes que existiram e não existem mais e de partes que ainda
não existem mas existirão.
7. Logo, o tempo não existe.

A resposta imediata a este argumento é que ele é incompleto, pois o tempo seria composto do
passado, do futuro ​e do presente​. No entanto, esta resposta se apoia em um equívoco sobre a
natureza do agora: “[…] ​agora​ não é uma parte do tempo, visto que uma parte pode servir
como uma medida do todo, […] mas não se pensa que o tempo é composto de agoras”
(Aristóteles, ​Física​, 218a3; ​apud​ Sorabji, 1983, p. 8, tradução nossa). O princípio
mereológico geral que permite excluir a hipótese de que o agora é parte do tempo é o
seguinte:

8. Se x é uma parte de y, então x tem alguma quantidade de y.

Aplicando este princípio ao agora e ao tempo:

9. Se o agora é uma parte do tempo, então o agora tem alguma quantidade de tempo.

O problema é que o agora não pode ter nenhuma quantidade de tempo. Logo, por esse
princípio mereológico, o agora não pode ser uma parte do tempo.

10. Se o agora é uma parte do tempo, então o agora tem alguma quantidade de tempo.
11. Mas o agora não tem nenhuma quantidade de tempo.

6
12. Logo, o agora não é uma parte do tempo.

Através desse argumento mereológico, Aristóteles chega à primeira aporia sobre o tempo. O
tempo não existe, pois nenhuma das suas partes existe.

O agora não é temporal


Como vimos, o agora não é parte do tempo, pois não tem tamanho algum, isto é, não é
constituído por nenhuma quantidade de tempo. Além disso, o agora não é passado nem
futuro, é presente. Essas são as duas principais marcas do agora: ser presente e ser um
instante. “Na palavra ‘agora’, frequentemente Aristóteles combina duas ideias, embora às
vezes uma ideia ocorra sem a outra. A primeira ideia é que agora é ​presente,​ a segunda ideia
é que é um ​instante”​ (Sorabji, 1983, p. 8, grifos do autor, tradução nossa).

13. Se x é um momento tal que se dá agora, então x é um momento presente, e é um


momento sem duração alguma.

Sendo um instante, o agora é um nada de quantidade. Como a essência do tempo é ser uma
quantidade, isso significa que o agora é um nada de tempo. Isto significa que o agora é um
não-ser? Esta é a visão de Descartes, na Regra XII: “Mas entre essas naturezas simples
convém também incluir suas privações e negações, já que as compreendemos; pois o
conhecimento pelo qual tenho a intuição do que é o nada, o instante ou o repouso não é
menos verdadeiro do que aquele que me faz compreender o que é a existência, a duração ou o
movimento” (Descartes, 2010, p. 450, AT X, 420). Mas será a visão de Aristóteles? “Um
instante não é um período muito curto, mas antes o início ou fim (a fronteira, o limite) de um
período. Logo, ele não tem tamanho, pois não é uma linha muito curta, é a fronteira ou limite
de uma linha” (Sorabji, 1983, p. 8, tradução nossa). Podemos dizer

14. O tempo é composto de partes.

Mas não podemos dizer

15. O agora é composto de partes.

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Assim sendo, o tempo e o agora têm naturezas distintas. Logo, um argumento que negue a
existência do tempo a partir da sua natureza composta não têm análogo para negar a
existência do agora, pois o agora não tem natureza composta. Sendo um limite, o agora não é
algo cuja natureza é a de ser composto por alguma quantidade maior do que zero – antes ao
contrário. Mas, sendo assim, o argumento precedente contra a existência do tempo não se
aplica à existência do agora, pois o agora e o tempo têm naturezas distintas. Assim, pode bem
ser que o agora tenha alguma realidade, embora o tempo não tenha realidade alguma, pelo
argumento precedente, pois a natureza do agora não é ser temporal.

O presente é um instante?
O presente é um instante sem duração? Ou o presente tem duração? Segundo Sorabji (1983,
p. 9), Aristóteles apresenta o seguinte argumento, na ​Física​, 234a9-19, para provar que o
presente é um instante.

1. Ou o presente tem duração, ou não tem duração (é um instante).


2. Suponha que o presente tem duração.
3. Se o presente tem duração, então se sobrepõe ao passado e ao futuro.
4. Mas o presente não se sobrepõe ao passado e ao futuro.
5. Logo, o presente não tem duração (é um instante).

Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que nada poderia satisfazer a conclusão. Isto é,
alguém poderia concordar que o argumento está formalmente em ordem, mas discordando da
adequação material do argumento. Alguém que seguisse esta linha de objeção diria que não
pode haver uma porção de tempo que não dure tempo algum, de modo que não poderia haver
um instante, e, assim, não poderia haver o presente enquanto instante.

Esta objeção não é efetiva, pois supõe, contra a posição de Aristóteles, e também
contra a posição de Descartes (Regras, AT X, 420) que um instante envolve uma quantidade
de tempo. Um instante não envolve uma quantidade de tempo. Assim sendo, o argumento
contra a existência dos instantes que toma como ponto de partida a premissa de que não há
tempo sem duração é, na melhor das hipóteses, circular, pois pressupõe o que precisa provar.

1. Não pode haver uma porção de tempo que não dure nada.
2. Um instante é uma porção de tempo que não dura nada.
3. Logo, não pode haver um instante.

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O problema está na segunda premissa deste argumento, na qual se supõe, equivocadamente,
que um instante tem duração.

Um agora diferente a cada novo instante?


A noção de agora tem suas próprias aporias, independentes das aporias sobre o tempo. Pode
ser que haja um novo agora a cada momento, ou que o agora seja sempre o mesmo. Em
qualquer dos casos, chegamos a uma aporia. Aristóteles (​Física,​ 218a8; ​apud​ Sorabji, 1983,
p. 9) apresenta o seguinte argumento contra a tese de que cada novo agora é diferente de
outro agora.

1. Suponha que cada agora é diferente.


2. Se cada agora é diferente, então cada agora que existia e não existe deixou de existir
em algum momento igual a si ou diferente de si.
3. Um agora que existia e não existe não pode ter deixado de existir durante sua
existência.
4. Um agora que existia e não existe não pode ter deixado de existir durante a existência
de outro agora, pois nesse caso seria simultâneo a este outro agora.
5. Logo, cada agora que existia e não existe não deixou de existir nem em um momento
igual a si, nem em um momento diferente de si.
6. Logo, não é o caso que cada agora é diferente.

Agora​1​ são 20h20min, mas ​agora​2​ já não é mais, pois o tempo passou. Quando foi que agora
deixou de ser 20h20min? Não pode ter sido quando era 20h20min, pois nesse momento
20h20min ainda era 20h20min. Seria contraditório que 20h20min deixasse de ser quando
fosse 20h20min. Também não pode ter sido quando já não era 20h20min, por exemplo,
quando já era 20h21min, pois nesse caso 20h20min seria simultâneo a 20h21min.

Outra opção, mais precisa, seria levar a sério a ideia de que o tempo é uma quantidade
contínua, em vez de uma quantidade discreta. A série dos números naturais (1, 2, 3, 4 etc.)
representa uma quantidade discreta, na qual há um intervalo “vazio” entre dois itens que
compõem a série, pois não há nenhum número natural entre 1 e 2, 2 e 3, 3 e 4 etc. A série dos
números reais representa uma quantidade contínua, pois inclui os números naturais, os
números racionais (aqueles que são o resultado da divisão entre dois números naturais) e
também os números irracionais (aqueles que não são o resultado da divisão entre dois
números naturais), e sempre há um número real entre dois números reais: entre 1 e 2 há 1,5,
entre 1 e 1,5 há 1,25, entre 1 e 1,25 há 1,125 etc. Ora, a série dos instantes é como a série dos
números reais, pois sempre há um instante entre dois instantes dados. Entre 20h20min e

9
20h21min há 20h21min30s, entre 20h20min e 20h21min30s há 20h21min15s etc. Levando a
sério a ideia de que o tempo é uma quantidade contínua, em vez de discreta, alguém poderia
argumentar que há um novo agora a cada instante porque é da natureza dos instantes serem
sucessivamente distintos uns dos outros, dada a continuidade do tempo.

No entanto, ou esse argumento é circular, ou envolve o mesmo problema de antes. O


argumento é circular se tem a seguinte forma.

1. Um instante é distinto do outro.


2. Um agora é um instante.
3. Logo, um agora é distinto do outro.

Se o argumento não tem esta estrutura, então podemos perguntar, novamente, em que instante
um agora deixou de existir. E novamente concluímos que uma agora não pode ter deixado de
existir enquanto existia, pois isso seria contraditório, nem pode deixar de existir em outro
agora, pois isso tornaria os dois agoras simultâneos.

O mesmo agora a cada novo instante?

1. Suponha que o agora é sempre o mesmo.


2. O processo P começou com o e1 (em t1) e terminou com o e2 (em t2).
3. e1 ≠ e2, t1 < t2.
4. O agora de e1/t1 é o mesmo de e2/t2.
5. Mas, se é assim, então não se passou tempo algum entre e1/t1 e e2/t2. O que é
absurdo.
6. Logo, não é verdade que o agora é sempre o mesmo.

Cf. Sorabji, 1983, p. 10

Referências
Aristóteles. 2014. “Tratado do Tempo: Física IV 10–14.” In ​Tratados sobre o Tempo:
Aristóteles, Plotino e Agostinho,​ editado por Fernando Rey Puente e José Baracat Júnior,
traduzido por Fernando Rey Puente, p. 23–52. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Barreau, Hervé. 1973. “Le Traité Aristotélicien du Temps.” ​Revue Philosophique de la
France et de l’Étranger​ 163: 401–37.

10
Coope, Ursula. 2009. “Aristotle: Time and Change.” In ​The Routledge Companion to
Metaphysics,​ edited by Robin Le Poidevin, Peter Simons, Andrew McGonical, and Ross P.
Cameron, 39–47. London: Routledge.
Descartes, René. 2010. “Regras para a Direção do Espírito.” In Descartes: ​Obras Escolhidas,​
editado por Jacó Guinsburg, Roberto Romano, e Newton Cunha, traduzido por Newton
Cunha, p. 403–88. São Paulo: Perspectiva.
Sorabji, Richard. 1983. ​Time, Creation and the Continuum: Theories in Antiquity and the
Early Middle Ages.​ London: Duckworth.

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