Você está na página 1de 4

ESTUDO DOS TEXTOS

MOCINHO

Os garotos estavam indóceis, à espera do grande mocinho norte-americano, de passagem


pelo Rio, que prometera ir pessoalmente à televisão. Na calçada, os brinquedos não
engrenavam, ninguém tinha alma para os jogos de todo dia. A proximidade do herói, num
ponto qualquer da cidade, os punha nervosos e pediam a hora a quem passava, sentindo que o
tempo trabalhava de bandido, em sua lentidão.
À hora anunciada, em casa de Alfredinho, sentaram-se no chão, diante do aparelho, e
toca a suportar anúncio de sabão, de loteamento, de biscoito: sabiam por experiência ser esse
o preço que pagamos pelo prazer das imagens. E sendo maior, aquele prazer devia ser mais
caro.
Afinal o locutor anunciou a chegada do cavaleiro famoso, ídolo das crianças do mundo
inteiro. E o ídolo era simpático, falava inglês mas tinha outro cavaleiro ao lado para traduzir,
só que viera a pé e foi se sentando, cansado talvez de cavalgar por montes e vales do Oeste, e
de tanta luta contra os maus: ladrões de cavalo, ladrões de mala-posta, ladrões de tesouro
enterrado. Sentou-se e deram-lhe sorvete, que o herói ingeriu muito delicadamente,
surpreendendo a todos, cowboys amadores de Copacabana, que lambiam doze gelados por dia,
mas nunca seriam capazes de imaginar que um vaqueiro “legal” gostasse de sorvete de café, e
o tomasse com modos tão distintos.
E o locutor foi conversando com ele. É verdade que possuía quatrocentos revólveres?
Sim, possuía quatrocentos revólveres, para o gasto. A notícia agradou em cheio ao auditório,
e Kleber perguntou como é que ele podia manejá-los todos de uma só vez, mas Gaúcho
mandou-lhe calar a boca.
Alfredinho tinha ares de dono do mocinho e da armaria, e os olhos azuis de Toto
prestavam furiosa atenção.
O locutor pediu licença ao herói para mostrar sua roupa aos telespectadores. E o herói
virou figurino: primeiro o chapéu, com fitinha de prata e incrustações de ouro; a gravata curta
era revestida em parte por uma chapinha de prata, onde se empinava um cavalinho também de
ouro; na ponta do colarinho, mais um bocado de metal de qualidade produzia reflexo; na bota,
flores vermelhas e folhas verdes, em relevo no couro; biqueira de prata, com três tachinhas de
ouro, e tacão alto, de prata.
Maravilha das maravilhas. Trajes iguais, naturalmente empregando metais menos
nobres, seriam expostos à venda na semana seguinte, pois o vaqueiro tem uma fábrica de
roupa, só para fabricar o vestuário de seus amiguinhos que quiserem imitá-lo.
Conversa vai, sorvete vem, o herói tranquilo, de mais de quarenta anos, respondeu à
pergunta sobre o faturamento da matriz de sua fábrica nos States — coisinha de milhões — e
recebeu com benevolência os cumprimentos de um cowboy da praça, este, simples
consumidor.
Mauricinho, estirado no tapete, quis perguntar pelo Gatilho, o famoso cavalo do herói e
parte integrante do mito, porém, os outros, mais velhos, explicaram-lhe que não adianta
perguntar de casa, tem de ser no estúdio.
Por que não aparecia Gatilho? Mocinho sem cavalo é mocinho? Mocinho sentado,
tomando sorvete, mostrando como abotoa e desabotoa camisa, é mocinho?
E os quatrocentos revólveres? Por que ele não dava ao menos um tiro, de farra? O
programa acabou, os garotos foram saindo sem entusiasmo.
Naquele horário, estavam habituados a ver filmes do herói, em que ele desenvolve
bravura, astúcia e generosidade exemplares. Ali encontravam apenas um senhor meio maduro,
folheado a ouro e prata, vendendo roupa e refrescando-se com gelados.
Mauricinho, o mais moço, resumiu a impressão geral:
— Não gosto de mocinho, gosto é de filme de mocinho!
(Carlos Drummond de Andrade. ‘A bolsa e a vida’. In: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:
José Aguilar, 1973. p. 1 044-5.)

indócil: nervoso, ansioso, irrequieto.


os brinquedos não engrenavam: as brincadeiras não davam certo.
ingerir: engolir.
amador: não profissional, iniciante.
gelado: sorvete.
distinto: educado.
manejar: manipular.
incrustação: revestimento, cobertura.
biqueira: peça metálica colocada na ponta da sola do sapato.
tacão: salto do calçado.
matriz: sede.
States: Estados Unidos.
benevolência: boa-vontade, agrado.
astúcia: esperteza, habilidade para enganar.
mito: conjunto de feitos e elementos que se associam à figura do herói.

■ COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO

1. O texto foi escrito numa época em que a televisão ainda não era um meio de comunicação
muito difundido. Pouco se sabia de seu funcionamento e poucas pessoas tinham tevê em
casa.

a) Que comportamentos dos meninos comprovam isso?


Eles todos assistem à tevê na casa de um deles; além disso, Mauricinho (o mais novo)
queria perguntar diretamente ao mocinho, que aparecia na tevê, onde estava Gatilho.

b) Por que Alfredinho, em certo momento, “tinha ares de dono do mocinho e da armaria”?
Porque era o dono da casa e da televisão.

2. Do início ao fim da entrevista, os meninos passam por vários estágios de emoção.

a) Como eles se sentem antes de começar a entrevista?


Ansiosos, impacientes.

b) E depois da entrevista?
Decepcionados.
3. O “mocinho” estava no Brasil, no Rio de Janeiro, mas não como o herói do seriado de
banguebangue.

a) O que ele veio fazer no Rio? Lançar uma roupa de sua fábrica.
b) Fica claro que, além de ator, o “mocinho” desempenha outras atividades profissionais.
Quais são elas?
A de empresário e a de garoto-propaganda de sua própria empresa.

4. Os garotos, aos poucos, vão ficando decepcionados com o mocinho.

a) Cite, pela ordem em que aparecem, três fatos que decepcionam os garotos.
O mocinho veio a pé (sem o cavalo), tomava sorvete delicadamente e fez propaganda
de roupas.

b) O mito do herói construído pela tevê estava incompleto. Na visão dos garotos, faltavam
pelo menos dois elementos para que o mito ficasse completo. Quais são eles?
O cavalo Gatilho e, ao menos, um tiro de revólver.

c) Que impressão os meninos tinham do mocinho por esta descrição: “um senhor meio
maduro, folheado a ouro e prata, vendendo roupa e refrescando-se com gelados”?
A impressão de um herói cansado e acomodado, que não coincidia com a que tinham
do herói da tevê.

5. Segundo o narrador, “Mauricinho resumiu a impressão geral” do grupo com esta frase: “—
Não gosto de mocinho, gosto é de filme de mocinho!”.

a) Por que, na opinião dos meninos, “filme de mocinho” é melhor do que “mocinho”?
Porque é no filme que o mocinho desempenha o seu verdadeiro papel; na realidade, o
mocinho é apenas um homem comum.

b) Os garotos parecem ter feito confusão entre dois elementos que sempre envolve o
cinema e a arte em geral. Qual dos pares abaixo traduz melhor essa confusão?
• ficção e aventura
• aventura e imaginação
• imaginação e ficção
• ficção e realidade

■ A LINGUAGEM DO TEXTO

1. Há, no texto, um conjunto de expressões que merecem atenção. Qual o significado das
expressões a seguir, no contexto em que foram empregadas?

a) “folheado a ouro” - enfeitado com ouro


b) “vaqueiro ‘legal’ ” - vaqueiro “duro”, corajoso, valente
c) “coisinha de milhões” - “pouco”, “apenas” alguns milhões
2. O autor fez um trocadilho com a expressão “conversa vai, sorvete vem”.

a) Qual é a expressão original? “conversa vai, conversa vem”


b) Que alteração de sentido provocou esse trocadilho?
A expressão original quer dizer “entre uma conversa e outra”; o trocadilho dá a ideia de
“entre um pouco de sorvete e um pouco de conversa”.

■ TROCANDO IDEIAS

1. Releia o 3º parágrafo do texto. Nele há uma mistura entre a fala do narrador e o pensamento
dos meninos. Identifique o trecho em que se inicia o pensamento dos garotos.

2. Leia esta informação:

Affonso Serra, diretor-sócio da ágil e badalada DM9, conta uma história que ilustra a
força de Xuxa nesse mercado: “A Grendene fez uma sandalinha de criança, de plástico,
simplesmente horrorosa. Não vendia. Desesperados, ligaram para nós. A salvação era a Xuxa,
pensamos. Pronto, virou uma sandalinha da Xuxa. Acredite, em um mês a Grendene desovou
2,6 milhões de pares, todo o estoque. A Xuxa embolsou 150000 dólares pelo comercial e mais
uma comissão nas vendas. Deve ter ganho 1 milhão de dólares em poucos meses.”
(Veja, 5/2/97, p. 94.)

Você acha correto os artistas de tevê e cinema participarem de campanhas publicitárias


para promover produtos de consumo? Por quê?
RESPOSTA PESSOAL

3. A confusão que os meninos fizeram entre ficção e realidade não é exclusiva das crianças.
Você já ouviu falar em artistas que foram apedrejados na rua porque desempenhavam, em
novelas, o papel de um vilão cruel? Então discuta sobre até que ponto são verdadeiras as
afirmações a seguir:

– O cinema e a televisão podem confundir as pessoas quanto ao que é fantasia e o que é


realidade.
– Programas de grande audiência, como a novela das 8, na tevê, podem influenciar e até
alterar o comportamento e o modo de pensar de um país.

RESPOSTA PESSOAL

4. Os meninos tinham o “mocinho” como herói, como ídolo.

a) Você também tem ídolos ou heróis? Quais?


b) As pessoas precisam de heróis ou ídolos para viver? Por quê?
RESPOSTA PESSOAL

Você também pode gostar