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Trabalho e lazer

Ora, por escandalosa que possa parecer tal afirmação é no ócio, no lazer, no descanso
ou na vadiação que o homem atinge, ou pode atingir, a plenitude de sua condição. O
trabalho, em outras palavras, não tem caráter de fim. É um meio. A vida humana está
condicionada para o trabalho. Metafisicamente, é mais importante chegar à casa do
que chegar ao local do emprego; é mais elevado, mais plenamente humano, levar o
filho ao jardim zoológico, ouvir um quarteto de Bocherini, conversar com os amigos, do
que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. Todos os títulos
extrínsecos são inferiores ao título fundamental que todos possuem em casa, quando
encontram o cerne de sua personalidade e recuperam o nome de batismo.

Ao contrário, é o momento em que a vida ganha nova dimensão e recupera a plenitude


da dignidade. E sobretudo é o momento em que a alma humana conquista a liberdade
para o mais alto, para o mais humano tipo de atividade: o convívio afetivo, o exercício
lúdico, a contemplação da beleza e da verdade. Completa-se o quadro, em pauta de
ordem mais elevada, com a vida de contemplação e de oração.

O homem não vive para trabalhar, trabalha para viver e foi isto, em termos
simplíssimos e elevadíssimos, que Jesus ensinou a Marta quando lhe disse que “uma
só coisa é necessária”.

Liberdade

No fundo desse problema há um profundo e instintivo medo da liberdade. E esse


medo, na superfície dos conceitos conscientes, aparece com os postulados de uma
filosofia que é respirada, que é possuída e vivida pelos americanos e pelos russos.
Segundo essa filosofia, o homem é essencialmente produtor. Realiza a plenitude de
sua essência quando está produzindo. É homem, pleno homem, nas horas de
eficiência. E daí se tira o conceito negativo de ócio e lazer.

Sobre o homem

Em compensação, nisto o homem é exímio. É capaz de armar problema sobre o que


não parecia ser problemático.

Em nossa reta doutrina nós sabemos que o homem, de dois modos e em dois níveis,
transcende ao mundo físico e à história. Por sua natureza racional, o homem possui
uma dimensão que ultrapassa todo o universo; por sua elevação à ordem da graça e
por sua ordenação à glória da visão de Deus três vezes santo, o homem ultrapassa o
próprio nível de sua natural humanidade.

Progresso e queda humana


Ninguém negará, evidentemente, a ocorrência de um progresso de que se gloria a
moderna civilização: o homem inventou o telégrafo, a máquina a vapor, os
computadores eletrônicos, o raio laser e finalmente chegou à Lua. Mas dificilmente se
contestará outra evidência: o homem se distancia do humano, do espiritual, do
sagrado. Os imbecis, evidentemente, pensarão que o homem só se reaproximará do
humano na medida em que se afastar do espiritual e do sagrado.

Liberalismo e Socialismo:

No mundo de hoje temos os dois volumosos resultados de tal crise [crise originada no
nominalismo, que estrangula o pensamento, e no empirismo que mutila toda
experiência com o transcendente, jogando-nos em uma lata de lixo tampada e sem
luz]: de um lado o liberalismo dissolvente da dignidade humana, por ceticismo,
tolerância e capitulação; de outro lado o totalitarismo socialista que degrada o homem
por achatamento e escravização.

O fato bruto é este: a Igreja, sobretudo no tumultuoso século XIX, não se cansou de
apontar os erros do liberalismo, do modernismo e do socialismo. Ora, o liberalismo
cobriu a metade do planeta, enquanto a outra metade vestiu-se de socialismo; e o
progressismo católico está aí. Logo... a Igreja falhou. E se falhou é porque errou; é
porque não havia compreendido o mundo.

Educação sexual:

 Sob o eufemismo de educação sexual o que se faz é erotização precoce e


infinitamente perversa. Degradam-se as mulheres, maculam-se as consciências
infantis, e com essas duas pontas de lança da ofensiva dos infernos, não se vê como
será possível a reconquista da dignidade do Homem. Será sempre possível, com a
graça de Deus, mas tememos muito que somente através de sofrimentos inconcebíveis
poderá a humanidade lavar-se em um novo dilúvio. O ponto a que chegamos é
sinistro: eles começam pelas crianças. Os novos pedagogos que nas Américas e na
Europa querem libertar o sexo do universo moral, começam pela dessensibilização dos
inocentes.

Sociedade e Família:

É também postulado nosso que uma sociedade é o que são suas famílias.

Lá dentro entre as quatro paredes bem opacas — contra as idéias arquitetônicas do Sr.
Niemeyer — a família aprende e exercita, entre as alegrias e aflições, as regras dos
atritos humanos.

Personalidade:
Nas lutas morais, ao contrário das físicas, quem vai resistindo e vencendo, vai se
tornando cada vez mais forte, mais armado, mais ágil, mais pronto.

Matrimônio:

A fragilidade do matrimônio decorre de uma desmedida exigência de felicidade, ou


melhor, da aplicação dessa exigência a uma coisa que não suporta tal pressão. Há um
insolência nossa nessa impaciente cobrança de ventura, e há sobretudo um equívoco,
porque pretendemos tirar da casa, do matrimônio, do amor humano, um infinito
rendimento, quando é finita e sempre muito exígua a nossa própria contribuição.
Depositamos com mesquinharia e queremos juros generosos, infinitamente generosos.
E no desejo desse absurdo balanço nós somos injustos com o próximo, e injustos com
Deus. Realmente, por mais esquisito que isto pareça, se alguém imagina que a sua
noiva, e mais tarde a esposa, lhe possa dar plena felicidade, não terá direito de
queixar-se nos dias de decepções, porque foi ele, inicialmente, o primeiro culpado de
injustiça.

Esta é a causa principal dos muitos casamentos infelizes: a falta de


preparação, a leviandade com que se casam, a atmosfera de frivolidade, de
imprudência e de imaturidade que cerca o mais grave dos atos humanos.

A vida conjugal sempre foi difícil; e sempre o será. Mas o que se pode dizer sem erro,
e sem ridículo otimismo, na atual conjuntura em que vivemos, é que o desvario
ultrapassou seus razoáveis limites, e que alguma coisa pode e deve ser tentada no
sentido de uma recuperação. E para isto cumpre isolar, no emaranhado de causas,
aquela que mais influi na aceleração do mal. (parágrafo)Torno a dizer que é a
imaturidade, o despreparo. As outras causas são todas tributárias dessa imensa bacia
hidrográfica da frivolidade. As pessoas se casam por motivos oblíquos; se casam sem
saber o que é o casamento; fundam família sem conhecer o que é a família; mudam
de estado com ponderações menores do que os motivos de escolha de uma carreira, e
às vezes tão leves como as que determinam a escolha de uma gravata. Ignoram a
natureza do novo estado; desconhecem-se mutuamente os que se propõem viver
unidos; e se ignoram a si mesmos, seus próprios recursos, seus novos deveres, suas
responsabilidades novas.

Saber o que é o casamento, o que é uma família, é a meu ver o primeiro e


imprescindível fator da felicidade conjugal. Faltando essa clara consciência do ato e do
estado, ainda que haja amor, igualdade de fortuna, paridade de gosto, de educação e
de temperamento, o casal dificilmente se equilibrará nos dias de tormenta. A firmeza
da casa está na tomada de consciência do casal, na exata compreensão da natureza da
instituição e do novo estado.

Casa:

A cidade que não tenha casas para todos os seus habitantes ou não tenha meios de
transportes para facilitar a volta; ou cujos habitantes se espalham pelas ruas porque
não amam suas casas, ou não voltam porque não querem voltar; ou não se revoltam
somente porque não sabem, ou não querem saber, que estão diminuídos, frustrados,
ofendidos; ou ainda por cima se alegram por não poderem voltar para casa, e logo que
voltam e engolem um sanduíche reviravoltam para a rua, porque não têm como ficar
em casa, não sabem ficar em casa, não sabem o que é casa, não sabem mais o que
são eles mesmos — essa cidade não é uma cidade de homens livres; é um
ajuntamento de escravos.

Basta-me observar a rua, os bondes, os cafés, para poder concluir que as casas já não
retêm as pessoas. A febre nas ruas prova a agonia das casas. E como a felicidade
conjugal está vinculada à casa, ao equilíbrio, ao poder de retenção da casa, posso
deduzir do aspecto publicado nas ruas as infelicidades escondidas nas casas.

Quem espera não casa:

Dizem por exemplo que o amor é cego, e que é impossível, em meses de noivado, conhecer perfeitamente a
pessoa com quem se delibera fundar uma família.
Concedo que é impossível, em meses, conhecer perfeitamente o outro. Vou até mais longe. Se é preciso
conhecer perfeitamente o outro em todos os seus recantos psicológicos, a vida inteira não basta, e deveríamos
adiar todos os casamentos par o dia do juízo final. Ou então, para atender às flamas do mais impaciente amor,
deveríamos estipular que os noivos esperassem a provecta idade dos senadores.

A preparação para o casamento pode ser considerada em três partes:


1o. — Conhecimento da natureza do ato, e do novo estado. O que é o matrimônio? O que é
a família? Qual é o fim principal do casamento?
2o. — Conhecimento mútuo no amor.
3o. — Conhecimento de si mesmo, preparação material e moral de cada um, tendo em vista
as exigências do novo estado.

Sobre o Amor
O amor humano, configurado à vida física do homem, tem esse estranho itinerário:
parte do paraíso para o mundo; começa na claridade de uma visão e aceita a inflexão
com que se torna aparentemente menos fulgurante, e menos belo. Troca o brilho pela
obscuridade, a delícia pela dedicação; e deixando guardada a beleza com que se
compõem as óperas e as baladas, reveste-se da obscura, da paciente, da humilde
bondade — da pura bondade que é apropria essência do amor. E é neste ponto que
começa a verdadeira e inenarrável história do verdadeiro amor. E é neste ponto de
inflexão que inicia uma nova e invisível ascenção em que o amor rastejante espera o
dia em que a crisálida se liberte, e as asas vivas da alma tornem a encontrar a grande
luz, o grande fogo, que é a fonte viva de todos os genuínos amores.

Ao contrário, o amor é lúcido. O amor, o verdadeiro amor é ardentemente


compreensivo. Só quem ama verdadeiramente, conhece verdadeiramente. Se é
verdade que o conhecimento precede o amor, é verdade também que o amor precede
a dilatação do conhecimento.

O amor, o verdadeiro amor tem um conhecimento penetrante, candente, fino, lúcido;


tem um conhecimento de ressonância profunda, de identificação, de conaturalidade.

Amor poético:

Ora, é com todas essas características de isolamento, de retraimento, de recusa


heróica que se reveste o amor-poético. E é nesse ponto, nessa especial atitude, que
um par de namorados mais se diferencia de um casal cercado de filhos. Ou melhor, é
neste ponto que família e namoro se opõem, e que não parece aplicado aos namorados
o que os doutores dizem do fim primário do casamento. Realmente, a nota dominante,
o fim desse par em idílico enlevo é a mútua completação, a harmoniosa, diria até
poética completação. O par se fecha, se basta, se define por si mesmo, se completa
como as partes de uma obra de arte de completam.

Nesse ponto de seu itinerário, efetivamente, o par de namorados nada tem de


matrimonial. Diria até que há no idílio poético alguma coisa de anti-matrimonial que
resiste, que se arma em tensão contra as conseqüências fecundas do amor, que
defende o especial caráter dessa união, querendo perpetuá-lo, sentindo talvez um
certo horror de se reintegrar na vida comum, preferindo às vezes a morte harmoniosa,
lírica, exaltada, às humildes conseqüências do amor fecundo. O poeta, ao contrário do
que pretendem certos insensatos que pretendem viver a poesia, é alguém que morre
abraçado à obra que termina. Cada obra de arte tem arestas que recusam à
promiscuidade e ao destino comum; cada obra de arte contém em tensão uma
condenação de vida, e por conseguinte um princípio de morte.
“Quereis ouvir uma bela lenda de amor e de morte?” pergunta-nos o trovador
medieval. Tristão e Isolda serão para sempre os enamorados perfeitos desse perfeito
amor-poético, que procura eternizar a flor e recusar o fruto. O amor-cortês proíbe a
fecundidade, a conseqüência, a reintegração na vida comum. Prefere a morte. E nós,
que nos gabamos de reagir contra essa estranha concepção do amor, facilmente nos
deixamos levar por seu encantamento. Todos nós, realmente, custamos a admitir o
desenlace ordinário da extraordinária lenda do amor fulgurante. Parece-nos uma
concessão à mediocridade, uma capitulação. 

Anti-amor:

Mas há um amor que é efetivamente cego; um amor que não é verídico; um amor que não é compreensivo;
um amor que não é transformante, e que não ressoa, que não simpatiza, que não advinha, que é inimigo da
verdade. É o amor-próprio. Cegueira voluntária, o amor-próprio se compraz nas mentiras que agradam as
paixões. Princípio de divisão interna, o amor-próprio divide o homem de si mesmo.
A maioria dos dramas consiste no equívoco com que se rotula de amor a triste pantomima do amor-próprio.
Esses romances de amor são comédias de erros em que cada um engana o outro, e a si mesmo se engana, com
o jogo gracioso que se convencionou ser próprio da juventude e da esgrimagem dos sexos. O centro de todos
os disparates é o amor-próprio, a divisão do eu, o divórcio interno entre a vontade e a inteligência, em torno
do qual se forma a constelação de tendências que Karen Horney chamou de pride system.

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