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FUNDAÇÃO ARMANDO ÁLVARES PENTEADO | FAAP

CURSO DE PÓS-GRADUAÇAO LATO SENSU

ESCRITA CRIATIVA

Heitor Zem Lopes Ponce

SÍNDROME DO ESPELHO QUEBRADO

São Paulo
2019

1
Heitor Zem Lopes Ponce

SÍNDROME DO ESPELHO QUEBRADO

Monografia apresentada ao Departamento


de Pós-Graduação da Fundação Armando
Alvares penteado, como parte dos requisitos
para aprovação no Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Escrita Criativa e para a
obtenção do título de Especialista em Escrita
Criativa.

Orientadores: Thais Rodegheri Manzano e


Rodrigo Petronio Ribeiro

São Paulo
2019

2
Heitor Zem Lopes Ponce

SÍNDROME DO ESPELHO QUEBRADO

Monografia apresentada ao Departamento


de Pós-Graduação da Fundação Armando
Alvares penteado, como parte dos requisitos
para aprovação no Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Escrita Criativa e para a
obtenção do título de Especialista em Escrita
Criativa.

( ) Recomendamos exposição na Biblioteca

( ) Não recomendamos exposição na Biblioteca

Nota: _______________

São Paulo, ____ de _____________de____/____/_____

_____________________________________
Professor (a)

_____________________________________
Professor (a)

3
Agradecimentos

Ao meu pai, Rui, em primeiro lugar. Ele foi a primeira pessoa a quem falei a respeito
desse curso, em 2017. E também a primeira a me apoiar, sem hesitar, me incentivando desde
aquele dia a perseguir meu antigo sonho de me tornar escritor (se é que alguém se torna
escritor). Eu sei que não era exatamente o que esperavam de mim, e sei como o ajuste de
expectativas é difícil nessa família. Então muito obrigado, por jamais ter questionado minhas
escolhas. Nossa conversa na sala vazia do velho apartamento novo foi muito mais importante
do que você imagina.
À minha mãe, Cida, pelas orações, pelo amor, pelo ouvido. Só você sabe o quanto eu
preciso dessas três coisas, não necessariamente nessa ordem. Então, por favor, nunca fique
surda, nem muda. Mas se ficar, o amor cobre todo o resto.
Ao meu irmão, Otávio, porque também nunca deixou de me incentivar a realizar meus
sonhos, mesmo que seja uma das pessoas mais pragmáticas e materiais que conheço (e escrever
é a verdadeira antítese do pragmatismo e da materialidade, especialmente quando se escreve
como escrevo).
Aos meus amigos Alexandre e Juliana, unidos para a eternidade através do primeiro
autógrafo da minha vida, por estarem sempre comigo, pelas leituras atentas e carinhosas e pelas
tardes de jogos e almoços jurídicos. Tão diferentes e tão complementares, como o Sol e a Lua,
vocês sempre encontram uma forma de me iluminar. Muito obrigado.
Às minhas irmãs de outra existência, Roberta e Raquel, por todo o amor despendido
nesses últimos quinze a trinta anos, porque por mais distante que estejamos geograficamente,
nós sempre estaremos próximos.
Às minhas tias queridas Sissa e Rose, à minha avó Carmem, ao meu padrinho Paulinho
e aos meus primos do coração Sergio, Pedro e Breno, por me aceitarem e amarem
incondicionalmente. Vocês são a melhor família do mundo.
Aos meus colegas maravilhosos desse curso que, cada qual à sua maneira, me guiaram
até aqui, principalmente em momentos de dúvida ou desespero. À Aline e à Tati, por me levar
pra casa todo santo dia, pelos conselhos de vida, por cuidar de mim; ao Vini, por ser o
representante de sala mais fofo que alguém poderia almejar; à Denise, pelos elogios, pelo
carinho e pelo perpétuo bom humor ao longo do curso, as aulas não seriam as mesmas sem
você; à Bárbara, por inventar as melhores interpretações, considere-se minha leitora beta para
o resto da vida; à Lígia, minha querida Helen, por encher meus dias de unicórnios, acarás

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bandeira, lobos, sapos e condores eternos; à Lorena, tão poeticamente pragmática, por sempre
solucionar minhas aflições artísticas e por tomar para si o duro encargo de carregar a literatura
brasileira contemporânea nas costas; ao Tatá e à Van, meus coleguinhas de FLIP, pela amizade,
pelo apoio, pelos abraços e pelos sorrisos, eu não teria conseguido sem vocês, mesmo que vocês
não saibam; e à Dindi, por todos os conselhos literários, pelos podcasts via WhatsApp super
instrutivos e nem um pouco redundantes, pela proatividade, pelos e-mails divertidíssimos, por
mil coisas, mas acima de tudo por acreditar tanto em mim.
Agradeço também a todos os professores do curso, por todas as aulas e oficinas
ministradas com tanta dedicação, especialmente aos queridos Nelson de Oliveira, Annita
Malufe, Gisela Bergonzoni, Josélia Aguiar, Juliano Pessanha e Dedé Pacheco.
Por fim, agradeço aos meus queridos orientadores, Thais Rodegheri Manzano e Rodrigo
Petrônio, por toda a enorme paciência (e resiliência) em lerem cada palavra que meus dedos
insistiram em digitar ao longo desse curso, por mais obscura que fosse a frase em que elas se
encaixavam. Obrigado pelos conselhos, por me trazerem até aqui, pelo incentivo, pela
prontidão.
E a todas as outras pessoas que colaboraram de alguma forma para que eu realizasse
esse sonho, mesmo que algumas infelizmente já não estejam mais em minha vida.

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RESUMO

“Síndrome do Espelho Quebrado” é um livro de contos, composto por nove narrativas curtas,
que giram em torno dos temas da inércia (enquanto falta de avanço e de propósito) e da
desconexão do eu em relação ao mundo (enquanto realidade e enquanto outro). Inicialmente
concebido como um livro de “Sintomas”, esse projeto foi inteiramente remodelado quando os
contos acabaram tomando um rumo diferente (quase) por conta própria. A ideia original
(postergada, mas não abandonada) era a de um livro de contos chamado “Sintomas”, em que
cada história teria um nome de um sintoma diferente. A dificuldade em colocar tal ideia em
prática, aliada à necessidade de se trabalhar com as questões que este projeto (praticamente)
escolheu analisar, acabaram me afastando da concepção inicial. O resultado foi a mudança de
eixo dos contos para que todos lidassem com os temas já mencionados (desconexão e inércia),
coincidentemente temas caros também às sessões de psicoterapia frequentadas pelo autor.

Palavras-chave: Ficção especulativa; Literatura LGBT; Identidade; Existencialismo; Sonhos;


Religião; Psicoses; Suicídio.

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ABSTRACT

“Broken Mirror Syndrome” is a short story book composed of nine small narratives that revolve
around the themes of inertia (viewed as a lack of advancement and purpose) and the
disconnection of the self from the world (viewed as reality itself and as other people). Initially
conceived as a "Symptoms" book, this project was entirely revamped when the tales ended up
taking a diferente course (almost) on their own. The original idea (postponed but not
abandoned) was that of a short story book called “Symptoms,” in which each story would have
a name of a different symptom. The difficulty in putting this idea into practice, coupled with
the need to work with the issues that this project (practically) chose to analyze, led me away
from the initial conception. The result was a change in the axis of the tales so that each one
dealt with the themes already mentioned (disconnection and inertia), coincidentally themes that
were also a key topic at the psychotherapy sessions attended by the author.

Keywords: Speculative fiction; LGBT literature; Identity; Existentialism; Dreams; Religion;


Psychosis; Suicide.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Ouroboros ................................................................................................................ 18


Figura 2 – Metamorfose ........................................................................................................... 19
Figura 3 – Coraline ................................................................................................................... 20
Figura 4 – Alice no País das Maravilhas .................................................................................. 20
Figura 5 - Love Death Robots .................................................................................................. 21
Figura 6 - Ergo Proxy ............................................................................................................... 22
Figura 7 – O bebê de Rosemary ............................................................................................... 23
Figura 8 - A chegada ................................................................................................................ 24
Figura 9 – Fragmentado ............................................................................................................ 25
Figura 10 – O Labirinto do Fauno ............................................................................................ 26
Figura 11 – Bloodborne ............................................................................................................ 27
Figura 12 – Journey .................................................................................................................. 28
Figura 13 – Nier: Automata ...................................................................................................... 29

8
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
1.1 PERCURSO AUTORAL ........................................................................................... 12
1.1.1 Sintomas ............................................................................................................ 12
1.1.2 Subtemas Sintomáticos .................................................................................... 13
1.1.3 Estrutura e Títulos Sintomáticos .................................................................... 13
1.1.4 Mudança de Paradigma ................................................................................... 14
1.2 GÊNERO, PREMISSA E ESTRUTURA DO PROJETO ATUAL .......................... 14
1.3 JUSTIFICATIVA E IDEIA GOVERNANTE DO PROJETO .................................. 15
1.4 ATLAS DO PROJETO .............................................................................................. 16
1.4.1 Conceitos ........................................................................................................... 17
1.4.2 Livros (e contos etc.) ......................................................................................... 18
1.4.3 Séries (e animes etc.)......................................................................................... 21
1.4.4 Filmes ................................................................................................................. 23
1.4.5 Jogos................................................................................................................... 26
1.4.6 Episódios “pessoais” ......................................................................................... 29
2 LINHAS GERAIS .......................................................................................................... 30
2.1 STORYLINE ............................................................................................................. 30
2.1.1 A coisa do lado de fora da janela .................................................................... 30
2.1.2 Intocável ............................................................................................................ 30
2.1.3 Progressão ......................................................................................................... 30
2.1.4 Km 72 ................................................................................................................. 30
2.1.5 Depois da Comunhão ....................................................................................... 30
2.1.6 Dia de mudança ................................................................................................ 31
2.1.7 O garoto encapuzado ........................................................................................ 31
2.1.8 Lua cadente ....................................................................................................... 31
2.1.9 Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva ......................................... 31
2.2 SINOPSE ................................................................................................................... 31
2.2.1 A coisa do lado de fora da janela .................................................................... 31
2.2.2 Intocável ............................................................................................................ 32
2.2.3 Progressão ......................................................................................................... 33
2.2.4 Km 72 ................................................................................................................. 34
2.2.5 Depois da Comunhão ....................................................................................... 35
2.2.6 Dia de mudança ................................................................................................ 36
2.2.7 O garoto encapuzado ........................................................................................ 36
2.2.8 Lua cadente ....................................................................................................... 37
9
2.2.9 Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva ......................................... 38
2.3 DESCRIÇÃO DE PERSONAGENS ......................................................................... 39
2.3.1 A coisa do lado de fora da janela .................................................................... 39
2.3.2 Intocável ............................................................................................................ 40
2.3.3 Progressão ......................................................................................................... 41
2.3.4 Km 72 ................................................................................................................. 42
2.3.5 Depois da Comunhão ....................................................................................... 43
2.3.6 Dia de mudança ................................................................................................ 44
2.3.7 O Garoto Encapuzado ...................................................................................... 45
2.3.8 Lua cadente ....................................................................................................... 45
2.3.9 Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva ......................................... 47
3 MANUSCRITO DA OBRA ........................................................................................... 48
3.1 A COISA DO LADO DE FORA DA JANELA ........................................................ 49
3.2 INTOCÁVEL ............................................................................................................. 56
3.3 PROGRESSÃO ......................................................................................................... 73
3.4 KM 72 ........................................................................................................................ 78
3.5 DEPOIS DA COMUNHÃO ...................................................................................... 95
3.6 DIA DE MUDANÇA ................................................................................................ 99
3.7 O GAROTO ENCAPUZADO ................................................................................. 102
3.8 LUA CADENTE ...................................................................................................... 110
3.9 VIDA E ESQUECIMENTO DE ALBERTO PEREIRA DA SILVA ..................... 128
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 135
5 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 136
5.1 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 136
5.2 FILMOGRAFIA ...................................................................................................... 137
5.3 LUDOGRAFIA ....................................................................................................... 138

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1 INTRODUÇÃO
“A escrita sempre me fascinou. Desde meu primeiro contato com um livro “de verdade”,
aos nove anos, soube que através da leitura poderia ter contato com histórias, verdades e
assuntos que jamais alcançaria de outro modo. Literalmente, já que aos nove anos eram poucos
os programas de televisão que me eram permitidos, mas ninguém se preocupou em saber se a
história de uma policial que se apaixonava por um traficante de drogas me seria apropriada.
Não sei ao certo quando surgiu o sonho de ser escritor. Veio aos poucos e veio de
supetão, e outros nove anos depois daquele livro eu tinha certeza de que seria esse o meu
futuro”.
Foi assim que eu comecei minha Carta de Intenção para esse curso. De qualidade
duvidosa, esse texto me impressiona apenas por seu potencial quase premonitório. Naquele
momento, eu não tinha ideia do que os próximos dois anos me reservavam. Dois anos atrás,
como a carta em seguida explica, eu não passava de um funcionário público cuja paixão pela
literatura tinha sido relegada às poucas horas livres do dia, presas entre o juridiquês e o
videogame. Estava desmotivado, desconectado de minha própria vida, inerte.
Dois anos depois, eu mal reconheço o funcionário que redigiu aquela carta. Dois anos
depois, como Kafka entenderia, o juridiquês passou a ser apenas um obstáculo no caminho da
escrita. Mas já não me prende. Ao contrário, é ele quem está preso às horas que sou obrigado a
passar no tribunal. Com sorte, não por muito mais tempo.
A escrita cresceu em mim e eu cresci com a escrita. A cada disciplina, a cada novo
amigo, a cada novo escritor -- professor ou aluno -- a entrar em minha vida, era eu quem entrava
um pouco mais nesse mundo que me era antes tão longínquo. Eu costumava pedir por um
caminho quando rezava sobre esse assunto. Foi exatamente o que encontrei.
De resto, todos os elementos presentes nesse projeto estão elencados acima e serão mais
bem introduzidos nos próximos tópicos. Uma curiosidade: são nove os contos que acabaram
por representar essa jornada. Como o leitor atento pode ter notado, foi aos nove anos de idade
que tive contato com meu primeiro “livro sem ilustrações”.
E foi nove anos mais tarde, aos dezoito, que decidi que, um dia, me “tornaria” um
escritor. Poderia prosseguir e acrescentar que se passariam mais nove anos até eu me matricular
nesse curso.
Só Deus sabe o que me aguarda aos 36.

11
1.1 PERCURSO AUTORAL
Nesta seção, descreverei a trajetória percorrida desde a concepção desse projeto (ou
melhor, do que viria a se tornar esse projeto), até seu planejamento e execução.

1.1.1 Sintomas
Este projeto foi inicialmente concebido como um livro de contos chamado “Sintomas”,
em que cada história seria desenvolvida em torno da ideia abstrata de um sintoma de crise de
pânico, que lhe daria nome.
Um SINTOMA é algo que se manifesta, e que tem uma causa comum (aos demais
sintomas): no caso, a causa comum (a doença propriamente dita), imediatamente, seria a crise
de PÂNICO. Mediatamente, seriam as angústias do homem “urbano contemporâneo”. Este
seria o tema central do livro.
Explica-se: a literatura médica entende por crise de pânico aquela ansiedade e medo
incontroláveis sobre eventos antecipados, em outras palavras, sobre o FUTURO. Ou seja, o
trabalho seria desenvolvido em torno da ideia de que a crise de pânico representa a neurose ou
psicose moderna/urbana/contemporânea por excelência, a epítome das doenças mentais que
acometem o homem atual. Se a ansiedade é o Mal genérico de que sofre o mundo, a crise de
pânico, entendida como a ansiedade em seu estado máximo e puro, representaria a
incorporação, concretização e materialização fisiológica das angústias modernas, ainda que
através da mente humana.
Assim, em cada conto, o futuro (e o medo decorrente dele ou de sua falta) poderia vir
materializado ou simbolizado de uma forma diferente. Exemplos: trabalho sem propósito;
gravidez; sonho frustrado; conhecendo pessoas novas; ambição; desejo obsessivo;
relacionamento em crise; etc.
Cada história deveria refletir em maior ou menor grau a falência de um aspecto da
personalidade humana quando confrontada com uma QUESTÃO FUNDAMENTAL
(entendida aqui como SINTOMA), simplesmente porque tem MEDO (ou PÂNICO), da
RESPOSTA (que representa o FUTURO). Exemplos de questões fundamentais: quem sou eu?
Por que existo? Por que o outro existe? O outro existe? O que é o outro? Deus existe? O que é
Deus? O que é a morte? O que é a vida? Existe “vida” após a morte? Etc.
Portanto, o livro seria desenvolvido em torno do seguinte tripé conceitual: sintoma
(questão), pânico (medo) e futuro (resposta).

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1.1.2 Subtemas Sintomáticos
Por fim, se o tema não-declarado do livro se concentraria nas
angústias/neuroses/fobias/psicoses urbanas/modernas, então o foco a ser buscado deveria ser o
das angústias em si, mais genericamente, e menos o das neuroses, em sentido clínico.
Exemplos de subtemas não-declarados dos contos (cada um poderia trabalhar mais
abertamente com um deles, o que não excluiria outros):
Perda, isolamento, memória, saudade, ansiedade “antecipatória”, falta de propósito,
obsessão, medo de ter medo, impulsividade, insônia, ódio/intolerância,
monotonia/marasmo/apatia/indiferença, impotência, desejo/ambição e frustração,
arrependimento, sensação de não-compreensão do mundo/confusão etc.

1.1.3 Estrutura e Títulos Sintomáticos


O livro seria composto de sete ou oito contos que trabalhariam com os temas elencados
de forma mais ou menos abrangente, mas sempre a partir da narração de um evento absurdo ou
extraordinário (ao menos sob o ponto de vista dos que nele estão envolvidos).
O evento central de cada conto só seria narrado indiretamente através deles, de forma
que ele deveria ser a cada momento desvendado e percebido pelo leitor, e não dado ou
explicitado de pronto. Aqui pretendia explorar a imagem da pedra que cai no meio do lago: a
pedra e sua queda seriam o evento principal daquela história, enquanto a narrativa em si se
desenvolveria como as ondas que se espalham pela superfície da água a partir do ponto de
impacto.
Seriam CONTOS-ONDAS, CONTOS-SINTOMAS. A pedra permaneceria oculta (ou
quase), como a doença, mas haveria como se chegar até ela através da investigação atenta dos
sinais revelados.
Seguem, a seguir, alguns exemplos de títulos que seriam utilizados (entre parênteses o
sintoma clinicamente descrito, fora dos parênteses o título em si):
• Perigo iminente (sensação de perigo ou tragédia iminente)
• Perder o controle (medo de)
• Morte (medo da)
• Indiferença (sentimentos de)
• Descolamento da Realidade (sensação de)
• Dormência (ou formigamento nas mãos ou nos pés)
• Taquicardia (ou palpitação)
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• Falta de ar (ou sufocamento)
• Tremores
• Calafrios
• Hiperventilação
• Ondas (de calor)
• Náusea (ou tontura)
• Dores (no peito, na cabeça)
• Desmaio
• Garganta fechando (sensação de estar com a)
• Dificuldade para engolir
• Medo do Medo
• Hipotermia (frio, mãos e pés gelados)

1.1.4 Mudança de Paradigma


Contudo, a escrita costuma debochar daqueles que tentam controlá-la demais. Aos
poucos, ao longo das inúmeras oficinas realizadas durante o curso, percebi que os contos se
afastavam da proposta original, e que alguns dos subtemas do projeto (destacados acima, na
seção 1.1.2) estavam tomando conta das histórias.
Assim, optei por reformular todo o projeto, fazendo-o se adequar melhor às minhas
próprias necessidades enquanto autor, já que essas narrativas precisavam ser escritas nesse
momento e dessa forma. Os Sintomas teriam de esperar outra oportunidade para se manifestar.

1.2 GÊNERO, PREMISSA E ESTRUTURA DO PROJETO ATUAL


O presente trabalho consiste atualmente num livro de contos, de tamanhos e assuntos
variados e sem interligação entre si, mas cuja unidade se alcança através de um tema central e
de um tema periférico comuns a todos eles, decorrendo o tema periférico do central. Além disso,
todas as histórias se enquadram no gênero amplo da Ficção especulativa.
O tema principal do projeto é a desconexão, a perda do contato com a realidade, ou, em
outros termos, como a percepção da realidade é subjetiva e não existe verdade objetiva. Aqui a
realidade é entendida de forma ampla, e abarca desde o mundo até os indivíduos que o
compõem, passando pela própria malha do espaço-tempo em que todas as coisas estão presas.
Assim, o que de fato se pretende narrar nesse projeto é a busca por si mesmo nesse mundo e no

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outro, ou seja, a procura de si mesmo fora de si. Em outras palavras, os protagonistas dessas
histórias querem desesperadamente se identificar com o todo ou com suas partes, desejam acima
de tudo pertencer, identificar-se, achar um correspondente.
No entanto, todos eles estão de tal modo fraturados internamente que essa busca se torna
impossível, pois essa quebra também rompe com o vínculo entre eles e a realidade, que em
alguns casos jamais chegou a se formar. Esse fosso, esse abismo que surge entre os
protagonistas e o mundo é o tema central do projeto e o que dá título ao livro.
O tema periférico é consequência direta dessa desconexão. Como visto, os personagens
dessas histórias, por sua própria natureza, estão presos nessa busca por identificação. E essa
prisão se dá por dois vetores, ou em duas direções: tanto na “entrada”, pois seu isolamento torna
impossível que evitem a procura; quanto na “saída”, ou na falta dela, uma vez que a fratura que
os isolou também impossibilita que sejam bem-sucedidos em sua busca. Em outros termos,
estão condenados a procurar, sem nunca encontrar. Em vários casos, buscam há tanto tempo,
que já não se recordam mais o que pretendiam achar.
Essa impossibilidade cíclica e retroalimentada se traduz no tema periférico do projeto:
a inércia, enquanto falta de avanço, progressão, mudança, propósito, significado. Como os
protagonistas estão presos numa jornada infinita rumo ao fracasso, eles também passam a se
incomodar com a prisão em si, em algumas narrativas chegando mesmo a esquecer do motivo
de seu encarceramento.
Assim, os contos foram todos organizados levando em consideração essas duas linhas
temáticas: há aqueles em que as duas estão claramente presentes (A coisa do lado de fora da
janela; Km 72; O Garoto Encapuzado), aqueles em que o tema central (a desconexão) toma
conta de quase toda a narrativa de maneira tão intensa que a inércia fica apagada (Intocável;
Depois da Comunhão; Lua Cadente) e aqueles em que o efeito inverso acontece, com a prisão
da falta de avanço (tema periférico) crescendo e tomando parte da maioria dos eventos narrados
(Progressão; Dia de Mudança; Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva).
A ordem escolhida foi a de alternar essas três modalidades de histórias, no seguinte
padrão: um conto dividido entre a desconexão e a inércia dela decorrente (DI); o seguinte
majoritariamente sobre desconexão (D); o próximo principalmente sobre a inércia (I); até
chegar à sequência “DI; D; I; DI; D; I; DI; D; I.”

1.3 JUSTIFICATIVA E IDEIA GOVERNANTE DO PROJETO


A mentira e o engano existem desde que foi possível ao homem expressar uma ideia de

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forma autônoma, isto é, sem que ela necessariamente correspondesse à realidade. Tão logo o
bicho gente pôde desenhar um bicho lobo na parede da caverna e uivar, estava rompida a prisão
do referencial, que nos obrigava a mencionar apenas aquilo que estava ao alcance da visão.
Milênios depois, a ordem se inverteu: a realidade, descolada de si mesma, passou a
pertencer aos símbolos que a representam. O direito possui um brocardo famoso sobre o
assunto: o que não está nos autos não está no mundo. Por extensão, a máxima se aplica
atualmente a todos os mais diversos ramos do saber (e do não-saber) humano. Isto é, se a
informação existe, ela deve corresponder a um fato real. Ou, ao contrário, um fato não pode ser
real se a informação (enquanto representação) correspondente não foi compartilhada.
Neste livro de contos, pretende-se explorar estas ideias. Em cada uma das histórias, tal
como nos dias de hoje, a linha entre a verdade e a mentira (ou a deturpação da verdade) é tênue
e apagada. Todos os protagonistas – do padre de “Depois da Comunhão” ao psicopata de
“Intocável” – estão de alguma forma presos dentro de si mesmos (temática da inércia enquanto
prisão), de tal modo que só conseguem perceber o real através de um filtro diáfano tecido mais
ou menos (a depender do personagem) inconscientemente por eles próprios. Portanto, acabam
por interpretar a realidade de um jeito aparentemente equivocado, exagerado ou corrompido.
Realidade, aparência, interpretação, engano, exagero, mentira, verdade, ficção. Estes os
conceitos centrais de que tratarão as narrativas curtas deste livro e em torno dos quais elas
circulam. Os próprios círculos derivados de tais conceitos (e da impossibilidade dos
protagonistas de capturá-los ou alcançá-los) se constituem no tema secundário da obra: a
inércia, a imutabilidade, a falta de avanço, a ausência de descobertas, a resignação, a
perpetuação sem propósito.
No fim, pretende-se chegar às seguintes questões (às questões em si, e não às suas
respostas): existe mesmo a verdade? É dizer: a realidade é mesmo um conceito unívoco,
inquestionável, que pode ser capturada de forma absoluta e indubitável? E mesmo se o for,
somos dotados, enquanto espécie, dos meios necessários para compreendê-la enquanto tal? O
que equivale a dizer: para o homem, não seria a realidade inerentemente subjetiva? Qual o
maior mito: o mito propriamente dito ou a verdade?

1.4 ATLAS DO PROJETO


O Atlas “Mnemosyne” de Warburg, como inicialmente concebido, consistia (definido
simploriamente) numa série de imagens agrupadas, em torno das quais o artista pudesse tecer
ou criar sua própria obra.

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Infelizmente, não sou uma pessoa muito visual. É dizer, os símbolos visuais me
fascinam e através deles compreendo as coisas de modo muito mais fácil do que por outros
meios (como, por exemplo, pela fala) mas as figuras e as imagens em si encontram certa
resistência em minha mente. Até hoje me surpreendo quando tenho um sonho nítido. Em geral
são apenas sequências de eventos representativos. Acordo sabendo com o que sonhei, porém
sem me recordar de cenas específicas. Rostos me são especialmente enigmáticos e meus atores
oníricos quase sempre são desprovidos desse traço. Às vezes demoro semanas até fixar na
memória o rosto de um novo interesse amoroso.
Em suma, meu Atlas não poderia ser composto apenas de imagens, sob pena de divergir
dramaticamente de meu processo criativo. Portanto, para a construção desse projeto, acabei me
baseando em um Atlas simbólico, conceitual. Em outras palavras, listas.
Alguém poderia argumentar que uma lista de filmes não deixa de constituir um Atlas
visual. Mas é diferente. Quando leio o nome de um filme, não me recordo de um ator específico,
uma cena marcante ou se as cores escolhidas pelo diretor de arte eram todas variações do mesmo
azul. Leio o nome e me vem uma ideia à cabeça, como que uma soma de tudo o que aquela
produção representou para mim.
Segue assim, sem mais delongas, o Atlas usado para esse projeto. Optei por elencar
nesta seção apenas as listas em si, sem explicar pormenorizadamente como cada um de seus
itens me influenciou, até porque na maior parte das vezes essa influência intangível é difícil de
precisar. Na seção reservada às sinopses (2.2) retomei alguns dos itens deste Atlas, mas dessa
vez tendo em vista especificamente cada conto do manuscrito. Por fim, no capítulo das
Referências (5), expus de forma mais detalhada como cada uma das principais obras
mencionadas aqui acabou impactando a escrita deste projeto.

1.4.1 Conceitos
1. Realidade, sonho, fantasia, delírios, estados alterados de percepção. (filosofia,
neurologia, psicologia)
2. Existência, propósito, verdade. (filosofia, teologia)
3. Identidade (o eu) e comunicação (o eu e o outro). (psicologia, antropologia,
semiótica)
4. Origem, criação, evolução. (biologia, filosofia, teologia, antropologia)
5. Mitos bíblicos e religiosos em geral. (teologia)
6. Seres que tramitam “à margem” (especialmente sociopatias, doenças mentais em

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geral, tricksters). (criminologia, psicologia, psiquiatria, antropologia)
7. Traumas. (psicologia, psiquiatria)
8. Ciclos e eternidade. Repetição. Prisão. Rompimento do ciclo. Liberdade.
(filosofia, teologia)

Figura 1 - Ouroboros

Fonte: Pixels (2019)1.

1.4.2 Livros (e contos etc.)


1. Hoffmann – O homem da areia
2. Borges – O Aleph; O livro dos Seres Imaginários
3. Cortázar – Todos os fogos o fogo, Bestiário
4. Quiroga – Contos de amor, loucura e morte

1
https://pixels.com/featured/ouroboros-with-vegvisir-creativemotions.html
18
5. Lovecraft – contos diversos
6. Camus – A peste; O Estrangeiro
7. Henry James – A Volta do Parafuso; A Fera na Selva
8. Juan Rulfo – Pedro Páramo
9. Harari – Homo Deus
10. Conrad – Coração das Trevas
11. Kafka – Metamorfose, O castelo; contos diversos
Figura 2 – Metamorfose

Fonte: I.pinimg (2019)2.

12. Ishiguro – O Gigante Enterrado


13. Thomas Mann – A morte em Veneza
14. Murakami – Kafka à beira mar; O incolor Tsukuru Tazaki
15. Guy de Maupassant – O Horla; A Cabeleira; A mão; O Colar
16. Stephen king – Torre Negra (série)
17. Karen Blixen – Sete narrativas Góticas
18. Gabriel Garcia Marquez – Cem anos de solidão
19. Salinger – Nove Histórias (Teddy; Um dia perfeito para peixes-banana)
20. Roberto Bolaño – Putas Assassinas
21. Gustave Flaubert – Três contos

2
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19
22. Neil Gaiman – Coraline
Figura 3 – Coraline

Fonte: ImgIx.Bustle (2019)3.

23. Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho
Figura 4 – Alice no País das Maravilhas

Fonte: Thecollectionshop (2019)4.

3
https://imgix.bustle.com/uploads/image/2018/9/24/e661888c-51fb-4804-8f3a-3699f69a550b-
motherwithbutton.png?w=970&h=546&fit=crop&crop=faces&auto=format&q=70
4
https://www.thecollectionshop.com/Image_Resize_Detail_Image.asp?MiscImage=CEASMILETR
20
24. Algo do Edgar Allan Poe
25. Karen Blixen – Sete narrativas Góticas
26. Felipe Castilho – Serpentário
27. Mariana Enríquez – As coisas que perdemos no fogo

1.4.3 Séries (e animes etc.)


1. Love death robots

Figura 5 - Love Death Robots

Fonte: Cdn.vox (2019)5.

2. Boneca russa
3. The Sinner

5https://cdn.vox-cdn.com/thumbor/JGHyk7l8xqNZ1acPoarc8-wUQg=/1400x1400/filters:format(jpeg)/cdn.vox-
cdn.com/uploads/chorus_asset/file/13759445/LDR_Quad_04_HighRes.jpg
21
4. Maniac
5. Lost
6. Black Mirror
7. Twin Peaks
8. Westworld
9. The Twilight Zone
10. The O.A.
11. Ergo Proxy

Figura 6 - Ergo Proxy

Fonte: Wallpaperplay (2019)6.

12. Filhos das Baleias


13. Death Note
14. Madoka Magica
15. Dark
16. Stranger Things
17. A frequência Kirlian
18. Alias Grace

6 https://wallpaperplay.com/walls/full/b/b/7/234192.jpg
22
1.4.4 Filmes
1. Your name
2. A Origem
3. O Lugar prometido em nossa juventude
4. O bebê de Rosemary

Figura 7 – O bebê de Rosemary

Fonte: M.media-amazon (2019)7.

5. Os outros
6. Ilha do medo
7. A viagem de chihiro

7https://m.mediaamazon.com/images/M/MV5BZmEwZGU2NzctYzlmNi00MGJkLWE3N2MtYjBlN2ZhMGJkZ

TZiXkEyXkFqcGdeQXVyMTQxNzMzNDI@._V1_.jpg
23
8. Blame! Big Fish & Begonia
9. A bruxa
10. O cidadão ilustre
11. Hereditário
12. The Perfection
13. A chegada
Figura 8 - A chegada

Fonte: Fictiontofac (2019)8.

14. Aniquilação
15. O Enigma de Outro Mundo
16. O exorcista
17. Um contratempo
18. O amigo oculto
19. Seven – Os Sete crimes capitais
20. Clube da Luta
21. Matrix (trilogia)
22. Midsommar
23. Donnie Darko
24. Doze Macacos

8
http://www.fictiontofact.com/files/media/52165/tumblr_oraeeyClWd1rhhef8o2_540.gif
24
25. Fragmentado

Figura 9 – Fragmentado

Fonte: Img.vixdata (2019)9.


26. Minority Report
27. Mad Max – Estrada da Fúria
28. 7 Minutos depois da meia noite
29. Kubo e as Cordas Mágicas
30. Akira
31. Pássaro do Oriente
32. Coringa
33. Amnésia
34. Wall-E
35. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
36. O Iluminado
37. Blade Runner, o Caçador de Andróides
38. O Silêncio dos Inocentes
39. Deixa ela entrar
40. O Babadook
41. Um Lugar Silencioso

9
https://img.vixdata.io/pd/jpg-large/pt/sites/default/files/f/fragmentado-0317-1400x800-3.jpg
25
42. O Labirinto do Fauno

Figura 10 – O Labirinto do Fauno

Fonte: Artfiles.alphacoders (2019)10.

1.4.5 Jogos
1. Demon’s Souls
2. Persona 5

10
https://artfiles.alphacoders.com/983/98309.jpg
26
3. What Remains of Edith Finch
4. Bloodborne

Figura 11 – Bloodborne

Fonte: Media.kotaku.foxtrot.future (2019)11.

5. Zelda: Majora’s Mask e Ocarina of Time


6. Horizon Zero Dawn
7. Oddworld Abe’s Oddysee
8. Final Fantasy X e XII
9. Until Dawn
10. Heavy Rain
11. Dark Souls I, II e III
12. The Talos Principle
13. The Witcher III: Wild Hunt
14. The Elder Scrolls V: Skyrim
15. Divinity: Original Sin
16. Dragon Age: Inquisition
17. Heroes of Might and Magic II
18. Pillars of Eternity

11
http://media.kotaku.foxtrot.future.net.uk/wp-content/uploads/sites/52/2016/12/22.jpg
27
19. Castlevania: Curse of Darkness
20. Journey

Figura 12 – Journey

Fonte: I.redd.it (2019)12.

21. Detroit: become human


22. Ni no Kuni II
23. Nioh
24. Banjo-Tooie
25. Super Mario 64
26. Beyond: Two Souls
27. Dishonored

12
https://i.redd.it/kig1cgqdikf31.png
28
28. Nier: Automata
Figura 13 – Nier: Automata

Fonte: Cdnproducts.eneba (2019)13.

1.4.6 Episódios “pessoais”


1. A queda no pasto (perda de memória)
2. Epilepsia mioclônica juvenil
3. Morte do avô materno (cena com o enfermeiro)
4. Ruínas em Brotas (engenho)
5. Os cadernos de correspondências falsas com a Raquel
6. Apendicite e infecção
7. A briga no jardim (pique-bandeira)
8. A destruição da maquete
9. As tardes de terror (zé do caixão)
10. O mito do mago (irmão)
11. Os transes espirituais (renovação carismática)
12. O cativeiro da Dona Cecília

13
https://cdnproducts.eneba.com/products/ykgwjsaIMk9HakGVNdlRjv4KgSaqkrwaA4QR_p8snuw.jpeg
29
2 LINHAS GERAIS
Nesse Capítulo será analisada a estrutura geral de cada conto do projeto.

2.1 STORYLINE
O primeiro elemento a ser descrito será a Storyline, entendida aqui como o enredo
concisamente elaborado de cada conto. Abaixo delas, seguirá a linha temática
predominantemente explorada naquela história (desconexão ou inércia ou ambas), tendo em
mente a sequência escolhida para ordenar a obra (conforme descrito no item 1.2).

2.1.1 A coisa do lado de fora da janela


Conto sobre alguém que só dorme, se desloca e trabalha, fadado a repetir o ciclo dia
após dia, sem nunca chegar a lugar algum (expressão parisiense do “Métro, boulot, dodo”).
Linha temática: inércia; desconexão.

2.1.2 Intocável
Conto sobre um grupo de jovens dividindo experiências passadas ao redor de uma
fogueira. Um deles fala sobre o primo com alodinia. O protagonista narra a história de como
perdeu o pai.
Linha temática: desconexão.

2.1.3 Progressão
Conto sobre um casal que acaba por adotar um Anjo. A relação dos dois esfria e o
protagonista foge de casa, em busca de algo diferente em outro lugar.
Linha temática: inércia.

2.1.4 Km 72
Conto sobre dois jovens que viajam sempre juntos para o interior e resolvem pregar
peças nas pessoas para quem dão carona, até que um dia acabam indo longe demais.
Linha temática: inércia; desconexão.

2.1.5 Depois da Comunhão


Conto sobre um padre suicida. Se passa depois da comunhão, quando as pessoas voltam
aos bancos e fazem suas preces particulares.

30
Linha temática: desconexão.

2.1.6 Dia de mudança


Conto sobre o último dia de um rapaz na cidade em que vive.
Linha temática: inércia.

2.1.7 O garoto encapuzado


Conto sobre um viajante perdido, que encontra um garoto encapuzado enquanto
caminha de volta para casa.
Linha temática: inércia; desconexão.

2.1.8 Lua cadente


Conto sobre dois jovens que acordam no meio da madrugada e descobrem que a loucura
tomou conta do mundo. Passam a noite juntos, tentando entender o que está acontecendo.
Linha temática: desconexão.

2.1.9 Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva


Conto sobre a vida do imortal Alberto, que passa pelas estações e pelas décadas sem
nunca se alterar, em que pese o mundo todo se alterar em volta dele.
Linha temática: inércia.

2.2 SINOPSE
A seguir será descrita, de forma um pouco mais analítica, a linha de eventos de cada
conto, acompanhada dos elementos do Atlas (item 1.4) utilizados com maior enfoque naquela
história.

2.2.1 A coisa do lado de fora da janela


O conto se inicia com a coisa estacionando do lado de fora da janela do quarto do
protagonista. No início, ele sequer se dá conta de sua presença que, a bem da verdade, não passa
de uma ausência materializada. Ele prossegue com sua rotina, porque é só isso que sabe fazer:
acordar, pegar o metrô, trabalhar, repetir. Só que a coisa o desperta no dia seguinte, antes do
horário programado. E o que sai dos planos acaba arrastando os planos todos consigo para o
nada.

31
O padrão se repete e ele chega a ir inclusive ao médico, se queixando daquele tipo
incomum de insônia. Até que decide fazer um experimento para descobrir se está acordando
sozinho ou se algo fora de si é responsável pelo infortúnio. O experimento consiste em passar
a noite em claro e de manhã ficar atento a influências e barulhos. É assim que ele percebe o
assobio da coisa e por extensão a coisa em si.
Coincidentemente (se é que existem coincidências) no mesmo dia a notícia de um
acidente estranho o deixa perturbado: vinte e sete pessoas desapareceram de dentro de um vagão
do metrô. Juntos (se é que são diferentes), o desaparecimento e a coisa irão levá-lo ao
esquecimento que tanto procura. Conforme entra em contato e desenvolve uma relação quase
simbionte com o ser (ou não-ser) que o observa, passa ele mesmo a se tornar como ele, ou seja,
a se tornar algo que simplesmente não-é. Um não-ser.
Em outras palavras, ele se transforma em coisa. E precisa encontrar uma janela onde
possa estacionar.

Atlas:
Conceitos: Ciclos e eternidade. Repetição. Prisão.
Filmes: A chegada; Coringa.
Livros: Borges – O Aleph; Kafka – Metamorfose; Murakami – O incolor Tsukuru
Tazaki; Camus – O Estrangeiro.
Linha temática: inércia; desconexão.

2.2.2 Intocável
O conto se passa inteiro no meio de uma floresta, em que um grupo de amigos – Alan,
Ângela, Camila, Daniel e o narrador, João -- está acampando. Provocados por Ângela, eles
começam a dividir experiências e histórias trágicas. Camila é a primeira, seguida por Daniel,
que conta sobre seu primo, Marcos.
Marcos sofreu um acidente de carro e apresentou uma sequela específica após as
cirurgias e tratamentos a que teve de ser submetido: a alodinia. Desta forma, passou a reagir de
forma desproporcional a estímulos táteis, sentindo muita dor em suas mãos ou pés mesmo
diante do contato mais leve ou do carinho mais delicado. Sua mãe, tia de Daniel, tenta curar o
filho de todas as maneiras possíveis, até que o leva até uma curandeira no Paraná. Daniel
acompanha os parentes e presencia o tratamento, que acaba dando resultado e acabando com a
sensibilidade de Marcos, mas ao mesmo tempo destruindo sua mente. O garoto enlouquece.

32
Essa história parece dar título ao conto. Contudo, ela apenas deve servir de chave de
leitura para a segunda história, essa sim a principal. Enquanto na história de Daniel um trauma
físico acaba modificando o modo como Marcos passa a reagir aos estímulos físicos da realidade,
na segunda história, contada pelo narrador João, um trauma psicológico acaba deturpando
completamente o modo como ele interpreta os estímulos emocionais e intelectuais da realidade.
Nessa história, o leitor descobre que João teve uma criação no mínimo peculiar por sua
mãe, que o protegia demasiadamente de tudo, inclusive do pai. Daí o título do conto,
“Intocável”. Essa criação acaba fazendo com que João antagonize com a figura de seu pai, a
quem acaba assassinando em uma briga doméstica.
O conto se encerra com João projetando em seu melhor amigo, Alan, todas as frustrações
que sentiu com o pai e planejando matá-lo também, possivelmente antes que o dia amanheça.

Atlas:
Conceitos: Fantasia, delírios; Seres que tramitam “à margem”; Traumas.
Livros: Hoffmann – O homem da areia; Lovecraft – contos diversos; Henry James – A
Volta do Parafuso; Quiroga – Contos de amor, loucura e morte; Conrad – Coração das Trevas;
Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho; Roberto Bolaño –
Putas Assassinas.
Séries: The Sinner; Maniac; A frequência Kirlian; Alias Grace.
Filmes: O labirinto do fauno; Ilha do medo; A bruxa; Hereditário; The Perfection; O
amigo oculto; Fragmentado; Pássaro do Oriente; Coringa.
Jogos: Persona 5; What Remains of Edith Finch.
Linha temática: desconexão.

2.2.3 Progressão
A história é narrada do ponto de vista de Pedro. Os capítulos estão ligeiramente fora de
ordem: primeiro em uma progressão geométrica crescente (um, dois, quatro, oito) e depois em
uma progressão aritmética decadente (seis, três, zero), de modo que o conto termina onde se
inicia, com o encontro de Pedro e Helena, o desenvolvimento do relacionamento entre os dois
e a fuga do protagonista.
Na verdade, aqui se pretende trabalhar a ideia de (falta de) avanço (daí o título e a
estrutura do conto), ou como a existência humana tende aos círculos ou mesmo como não se
encontra nada quando não se sabe o que se está procurando. Afinal, Pedro se move e se move

33
(ele passa o conto inteiro em movimento) e não sai do lugar.
O Anjo surge, portanto, apenas como catalisador das inseguranças de Pedro: quando o
relacionamento com Helena começa a esfriar, eles tentam incorporar um terceiro elemento à
casa, na tentativa de salvá-lo. Mas o Anjo termina de ruir com a estrutura da relação dos dois,
e força o protagonista a abandonar o lar, fugindo no meio da madrugada. Nem ele mesmo
entende ao certo do que foge.
No fim (o capítulo 8, localizado no meio do conto, é o que encerra cronologicamente a
história) Pedro se conforma com sua nova vida, que não passa de um simulacro da vida anterior.
Até sua nova amante, uma “garota metálica” montada a partir dos restos de um androide, não
passa de um consolo seguro e confortável para sua personalidade covarde. Ela vive elogiando
sua aparência e astúcia, sendo que é cega e desprovida de inteligência. No fundo, Pedro tem
medo do futuro, de crescer, de avançar.
Pedro tem medo de progressão.

Atlas:
Conceitos: Ciclos e eternidade. Repetição. Prisão. Rompimento do ciclo. Liberdade;
Origem, criação, evolução; Mitos bíblicos e religiosos em geral.
Livros: Cortázar – Bestiário; Kafka – Metamorfose; Henry James – A Fera na Selva;
Gabriel Garcia Marquez – Cem anos de solidão; Salinger – Nove Histórias (Teddy); Gustave
Flaubert – Três contos.
Séries: Love death robots; The Sinner; Maniac; The O.A.; Ergo Proxy.
Filmes: Donnie Darko; 7 Minutos depois da meia noite.
Jogos: Journey.
Linha temática: inércia.

2.2.4 Km 72
Lauro e Eduardo são dois amigos de infância que moram em São Paulo e sempre vão
juntos para o interior, passar o final de semana com suas respectivas famílias. Eles costumam
dar caronas para estranhos através das redes sociais, e Eduardo sugere que passem a brincar
com elas.
O jogo é simples: ele e Lauro (cujo apelido é Juca), devem manter uma conversa entre
si sobre algum assunto bizarro e inverossímil, mas com a maior naturalidade possível. O
objetivo é fazer com que as caronas acreditem em coisas absurdas. Às vezes funciona (por

34
exemplo, quando Eduardo inventa que acabou de voltar de sua viagem para Niolanda), outras
não (por exemplo, quando Eduardo inventa que está fazendo aulas sobre como melhor estourar
bolhas de sabão).
O problema surge quando tentam enganar um garoto chamado Tomás, contando sobre
sonhos premonitórios, e o menino acaba se identificando com o mito: ele próprio tem pesadelos
recorrentes que parecem querer alertá-lo sobre alguma coisa.
No fim, Juca e Eduardo descobrem que Tomás é vítima de abusos sexuais constantes
por parte de seu tio, com quem vive. O problema é que o próprio menino passa a ter consciência
disso, e não resiste ao impacto de saber que sua única família restante (já que os pais e a tia
morreram) o molesta repetidamente.

Atlas:
Conceitos: Realidade, sonho, fantasia; Traumas.
Livros: Hoffmann – O homem da areia; Quiroga – Contos de amor, loucura e morte;
Thomas Mann – A morte em Veneza; Cortázar – Todos os fogos o fogo; Ishiguro – O Gigante
Enterrado; Salinger – Nove Histórias (Um dia perfeito para peixes-banana); Roberto Bolaño –
Putas Assassinas.
Séries: Boneca russa; The Sinner; Maniac.
Filmes: O bebê de Rosemary; Regressão; Fragmentado; Pássaro do Oriente.
Jogos: Persona 5; Heavy Rain.
Linha temática: inércia; desconexão.

2.2.5 Depois da Comunhão


A história se passa depois da comunhão, quando as pessoas voltam aos bancos e fazem
suas preces particulares. As preces “escuras” do padre, cuja fé não se perdeu, mas foi deturpada
pela depressão e pela melancolia, se intercalam com as preces cotidianas da congregação. Essa
estrutura se mantém do início ao fim, com um parágrafo explorando as profundezas do
pensamento sacerdotal e o seguinte tornando à superfície das banalidades da vida laica. Entre
eles persiste uma espécie de cordão temático, com o parágrafo seguinte deturpando (no caso da
voz do padre) ou redimindo (no caso da voz do povo) ideias do anterior. No fim, o leitor se dá
conta de que o padre planeja algo terrível: no dia seguinte, ele irá se suicidar.

Atlas:

35
Conceitos: Existência, propósito, verdade; Mitos bíblicos e religiosos em geral.
Livros: Conrad – Coração das Trevas.
Séries: The Sinner.
Filmes: O exorcista.
Linha temática: desconexão.

2.2.6 Dia de mudança


A história do último dia do protagonista na cidade em que vive. Ao longo do conto se
percebe que ele está incomodado com a falta de avanço em sua vida já há algum tempo e por
isso decide se mudar. Quase se arrepende da decisão que tomou, uma vez que ao longo do dia
ele repara que a cidade em si é outra, e continua a surpreendê-lo, o que o faz questionar qual o
tipo de progresso pelo qual ele tanto anseia. No fundo, ele sabe que o problema sempre foi ele
próprio, não o mundo que o cerca. Uma cigana às avessas o faz perceber com mais nitidez esse
fato. Mas a decisão foi tomada e ele segue em frente com seus planos, procurando encontrar
nos cacos de um espelho quebrado sua identidade fraturada.

Atlas:
Conceitos: Ciclos e eternidade. Repetição. Prisão. Rompimento do ciclo. Liberdade;
Existência, propósito, verdade; Identidade (o eu) e comunicação (o eu e o outro).
Livros: Cortázar – Bestiário; Kafka – Metamorfose e contos diversos; Henry James – A
Fera na Selva.
Séries: Boneca russa.
Filme: O Lugar prometido em nossa juventude; Fragmentado; Pássaro do Oriente.
Jogos: What Remains of Edith Finch.
Linha temática: inércia.

2.2.7 O garoto encapuzado


A história de um soldado voltando para casa depois da guerra. O problema é que a guerra
já acabou há muito tempo e ele ainda está perdido na estrada. Até que esbarra com um garoto
encapuzado, a quem dá o nome de Diego.
Diego e ele passam a morar juntos, em uma mansão abandonada no meio da floresta.
Diego é o responsável pela caça, o soldado pelos afazeres domésticos, ao menos até que intrusos
começam a depredar a propriedade e a ameaçar a existência dos dois. Desse ponto em diante,

36
Diego começa a ensinar o soldado as técnicas necessárias à sobrevivência. Por mais que o
soldado tivesse lutado na guerra, ele não sabe como vencer por conta própria, já que uma batalha
se ganha sempre em pelotão, nunca sozinho. Então Diego precisa primeiro desconstruir as
tendências do veterano à empatia e ao grupo, para reconstruí-lo enquanto indivíduo que só se
importa consigo mesmo.
Não funciona. O soldado sofre com o aprendizado e decide partir quando julga que as
coisas foram longe demais. Nesse momento, Diego revela a verdade: não há para onde ir, eles
já estão vivendo na antiga casa da família do soldado, onde ele sempre quisera chegar. Diego
mostra ainda que o último habitante da residência ainda vive, aprisionado, no porão. Um
inventor, velho e debilitado, mas a única esperança do veterano.
Há um embate final entre o soldado e o garoto, e o último tenta atear fogo à residência
e levar tudo consigo para o abismo. Sobram os alicerces e o inventor. O que é o bastante para
o soldado conseguir, aos poucos, reconstruir sua casa.

Atlas:
Conceitos: Identidade (o eu) e comunicação (o eu e o outro).
Livros: Henry James – A Fera na Selva; Neil Gaiman – Coraline.
Filmes: O labirinto do fauno; O amigo oculto.
Linha temática: inércia; desconexão.

2.2.8 Lua cadente


A história se inicia com Arthur despertando no meio da madrugada com batidas na porta.
Em sua versão, as batidas se tornam tambores. É noite de eclipse e a lua de sangue transborda
pela janela. Mia, vizinha do protagonista, veio assistir ao fenômeno com ele. A garota, ainda
virgem, está apaixonada por ele; ele sente um desejo incontrolável de possui-la, alimentado por
sua imaginação desde o primeiro encontro malsucedido que tiveram, há vários meses.
Só que as coisas não correm como planejado: Mia, insegura e desconfiada, pressente o
desastre quando estão no sofá e desiste no meio do caminho. Arthur, consumido por meses de
desejo e pela proximidade do corpo de Mia, não aceita a desistência. Ele continua beijando-a,
mesmo quando ela tenta o empurrar para longe, mesmo quando ela o estapeia, mesmo enquanto
as unhas dela esfolam suas costas. E se a dor física o impulsiona, a dor psicológica reparte sua
psique, e ele tenta lidar com o que fez do melhor modo que consegue: simultaneamente negando
o acontecido e culpando a garota pelo ato.

37
Assim, o conto todo é um delírio, ou uma forma da mente perturbada de Arthur de lidar
com o que fez.
Em sua versão deturpada, a que narra para si mesmo, os dois se aventuram juntos por
uma cidade assombrada pelo brilho rubro do luar, uma referência tanto ao próprio eclipse
quanto à virgindade de Mia, que ele irá romper à força.
Se encontram com sacerdotisas nuas e tocadores de tambor, todos parte de um ritual
secreto e carnal. Surge Davi, um garoto muito similar a Arthur, porque não passa da
personificação de seu desejo. Davi “socorre” Arthur e conduz os dois à consumação do ato, em
uma igreja abandonada no centro da cidade.
Lá, um sacerdote corrompido toma o lugar de Davi e do próprio Arthur. É o desejo em
sua forma mais perversa, mais violenta. O estupro se concretiza e o pesadelo se encerra.
Meses depois, Arthur descobre que Mia está grávida.

Atlas:
Conceitos: Realidade, sonho, fantasia, delírios, estados alterados de percepção;
Traumas.
Livros: Hoffmann – O homem da areia; Quiroga – Contos de amor, loucura e morte;
Lovecraft – contos diversos; Henry James – A Volta do Parafuso; Thomas Mann – A morte em
Veneza; Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho; Neil Gaiman
– Coraline; Salinger – Nove Histórias (Um dia perfeito para peixes-banana); Roberto Bolaño –
Putas Assassinas.
Séries: Boneca russa; The Sinner; Maniac; A frequência Kirlian; Alias Grace.
Filmes: O bebê de Rosemary; O Labirinto do Fauno; Ilha do Medo; Clube da Luta;
Hereditário; Midsommar; O amigo oculto; Fragmentado; Pássaro do Oriente.
Jogos: Bloodborne; Persona 5; What Remains of Edith Finch; Until Dawn.
Linha temática: desconexão.

2.2.9 Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva


Conto sobre a vida do imortal Alberto, que passa pelas estações e pelas décadas sem
nunca se alterar, em que pese o mundo todo se alterar em volta dele. Essa letargia (quase)
involuntária acaba lhe custando seu relacionamento com João, única coisa que descobriu
valorizar em sua longa vida.
A história de Alberto se passa em quatro tempos diferentes, representados pelas quatro

38
estações: primavera (tempos atuais); verão (futuro próximo e calamitoso); outono (futuro
distante e tecnológico); e inverno (futuro muito distante e pós-apocalíptico). A temperatura,
contudo, nunca varia muito, uma alusão tanto às terras natais de Alberto quanto ao aquecimento
global. O efeito é o de constância, de perda da noção da passagem do tempo.
Alberto está, desta forma, preso entre sua vocação para a resignação e a permanência e
seu desejo de avanço, especialmente depois que perde João para o passado, justamente pela sua
incapacidade de mudança. O dilema entre o que ele é e o que deseja ser só é resolvido quando
decide abdicar de suas lembranças.

Atlas:
Conceitos: Ciclos e eternidade. Repetição. Prisão. Rompimento do ciclo. Liberdade;
Existência, propósito, verdade; Origem, criação, evolução.
Livros: Cortázar – Bestiário; Kafka – Metamorfose e contos diversos; Henry James – A
Fera na Selva; Philip K. Dick – O tempo desconjuntado; Gabriel Garcia Marquez – Cem anos
de solidão; Salinger – Nove Histórias (Teddy).
Séries: Love death robots; Black Mirror; Westworld; Dark; Boneca russa; Ergo Proxy.
Filme: O Lugar prometido em nossa juventude; Fragmentado; Mad Max – Estrada da
Fúria; Akira.
Jogos: What Remains of Edith Finch; Nier: Automata; Horizon Zero Dawn; Journey.
Linha temática: inércia.

2.3 DESCRIÇÃO DE PERSONAGENS


Por fim, nesse tópico serão descritos brevemente cada personagem de cada conto, em
ordem de aparição e com maior destaque para os protagonistas.

2.3.1 A coisa do lado de fora da janela


A – O protagonista: sem nome, ele vaga pela cidade e não encontra vontade em nada do
que faz. Até que um acidente no metrô acaba por modificá-lo, despertando em si o desejo
desesperado pelo desaparecimento.
B – A coisa: ao mesmo tempo clara e escura, esférica e sem forma, minúscula e infinita,
transparente e translúcida, invisível e impossível de ser ignorada. Ela surge do lado de fora da
janela do protagonista e passa a assobiar, acordando-o nas horas mais inapropriadas e
convidando-o a se tornar coisa também.

39
2.3.2 Intocável
A – João: o protagonista e narrador do conto, apesar de apenas se revelar enquanto
narrador na metade final da história. João foi criado quase que exclusivamente pela mãe, que o
tomou à força do pai e ocupou a totalidade de sua infância. Ingênuo e impressionável, ele
carrega traumas reais e imaginados em sua memória. Foi ensinado a desconfiar das aparências,
a questionar constantemente a realidade. Acabou cismado, partido, irremediavelmente separado
do mundo. As coisas da terra, ele as absorve através de um filtro poluído e difuso, que foi
implantado em seus olhos por sua mãe. Tem dificuldade em lidar com mudanças em si mesmo
e nos outros, acredita que a constância e a coerência sejam as únicas grandes virtudes possíveis
aos homens. Ironicamente, sua criação profundamente cética e questionadora acabou por
permitir que ele crescesse tão descrente do real que passou a conjecturar demais sobre o que se
esconde por trás dele, o que abriu espaço para que todo tipo de fantasia se tornasse crível.
Rancoroso, violento e convicto dos absurdos que sua mente concebe, ele costuma reagir de
maneira imprevisível e desproporcional a dissabores cotidianos.
B – Alan: de certa forma o antagonista do conto, Alan costumava ser um menino
desordeiro, agitado, travesso, avesso a banhos e a boas maneiras. Sincero e ao mesmo tempo
mentiroso, era dotado de uma personalidade moldada para a liderança. O que ele sugeria, os
outros acatavam, tamanha a energia que parecia irradiar dele. Com a idade, contudo, acabou
sossegando. Saciou o apetite sexual prematuro da melhor forma que pôde e encontrou
sentimentos onde antes havia apenas ânsia. Descobriu as vantagens da ordem pois, afinal,
galhos espalhados não constituem uma fogueira. E, assim, despertou a desconfiança de João,
que não podia compreender que o amigo amadurecera.
C – Daniel: distraído, bem-disposto, confiável e fácil de conquistar, Daniel era um
menino companheiro e leal até o incidente com o primo. Mesmo depois disso, continua sendo
considerado uma pessoa querida e amorosa pelos amigos, apesar da dor que a experiência
trouxe ao seu costumeiro bom humor. Assim, passou a exibir um humor “dolorido”, “calejado”,
“receoso”, e um tanto bipolar. Dado a crises de riso e acessos de choro. Mas esses só aparecem
quando está sozinho em casa. Em público, segue exibindo a solidez de sempre.
D – Camila: observadora, fofoqueira, ávida por julgamentos e vexames, Camila é o
radar do grupo. Sabe de tudo e todos sabem de tudo através dela. Dramática, adora quando é o
centro das atenções e sente inveja das pessoas a quem coisas realmente interessantes acontecem.
Sente que sua vida é extremamente entediante, então costuma exagerar ou inventar uma boa

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dose dos “fatos” que conta aos seus amigos.
E – Ângela: a líder atual do grupo, ocupando o trono invisível deixado vazio por Alan e
seu acesso de maturidade. O sadismo supera qualquer outro traço de personalidade que possa
ter cultivado ao longo dos anos, salvo talvez o charme sedutor que aprendeu a empregar para
conseguir o que deseja. O psicólogo e ela mesma pensam que ambos têm algo a ver com os
vários animes violentos que costumava ver quando menor. Só seu pai sabe a verdade, que
aprendeu ao observar a filha brincando de médica com suas bonecas, muito antes de adquirir o
gosto por animações japonesas: Ângela já nasceu estragada.
F – Marcos: primo de Daniel, sofreu um acidente de carro aos 15 anos de idade. Depois
das cirurgias, acabou desenvolvendo uma condição chamada “alodinia”. Antes um rapaz
independente, mimado e desobediente, se fechou em si mesmo depois do ocorrido, levado pela
dor a fugir do mundo. Sua mãe e Daniel acabam piorando tudo ao tentar um tratamento inovador
para suas aflições.
G – Mãe de João: uma mulher muito inteligente, mas instável e deprimida, arrependida
de absolutamente todas as escolhas que já fez na vida. Acaba concentrando todo seu amor,
esperança e ambições no único filho que o marido lhe concede. Como uma joia rara, decide
protegê-lo do resto do mundo, inclusive do pai, de quem ambos acabam se afastando
paulatinamente.
H – Pai de João: antigamente um executivo de uma grande empresa multinacional, ele
perdeu o emprego e o vigor depois do nascimento do filho. Sentindo (ou pressentindo) que
daquele momento em diante nunca mais teria sua esposa de volta para si, decide se entregar à
bebida e a outros prazeres, mais fáceis, menos profundos. Aos poucos, acaba exibindo um certo
desleixo em relação a todos os aspectos de sua vida, salvo quanto à organização da casa, onde
seu aperto cada vez maior parece indicar alguma forma distorcida de compensação. Como se
controlando o ambiente doméstico, pudesse domar a mulher, o filho e o rumo que perdeu em
sua existência.

2.3.3 Progressão
A – Pedro: o protagonista, ele é irresponsável, preguiçoso, imaturo, indeciso e
impulsivo. Sem saber ao certo o que procura, está fadado a nunca (se) encontrar. Se apaixona
por Helena por algum tempo, mas até isso lhe escapa depois que o Anjo aparece. Sente-se
exposto, incapaz e fraco ao se comparar com outras figuras masculinas, salvo as muito débeis
para representar qualquer tipo de ameaça.

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B – O Anjo: folgado, complacente, arrogante, misericordioso e acomodado, o Anjo é
uma entidade de sabedoria plena. Repleto de penas mas de modos escassos, ele se instala no
apartamento de Helena e Pedro, com quem passa a dividir o espaço físico e emocional.
Simpático, belo e talentoso ao extremo (na verdade, o Anjo é um artista plástico e suas penas
são sua bagunça), ele inspira um sentimento natural de culpa nas pessoas que o cercam, com
exceção das que nada devem. Helena parece quase imune aos seus efeitos mais nocivos,
enquanto Pedro sucumbe inteiramente a eles.
C – Helena: uma moça trabalhadora, prática e decidida, que não suporta meias verdades.
Para ela, qualquer mergulho é um mergulho de cabeça. Não existe comprometimento pela
metade. Por algum motivo que nem ela entende, acaba se interessando por Pedro, o completo
oposto de sua personalidade pragmática. Isso inevitavelmente ocasiona uma série de choques
entre os dois, que eles pensam que talvez se resolvam ao adicionar uma terceira pessoa no
relacionamento.

2.3.4 Km 72
A – Lauro (conhecido como Juca): Amigo de Eduardo desde a infância, sempre admirou
a inventividade e a criatividade do amigo. Não que Eduardo as colocasse em uso de forma
produtiva. Criava problemas, não soluções. Mas era divertido. O dia a dia de Juca já era repleto
de pessoas obcecadas por soluções, o que acabou por contaminá-lo. Eduardo vinha como um
respiro. Quando criança, fora capaz de invadir os universos bolados pelo amigo e pincelá-los
com suas próprias fantasias. Atualmente, o máximo que consegue fazer é embarcar no mesmo
jogo que ele, enquanto faz o possível para prestar atenção na estrada. Sua natureza
simultaneamente responsável e avessa a conflitos torna-o propenso a fazer vista grossa para
questões incômodas, como quando Eduardo ultrapassa os limites do aceitável com suas
brincadeiras. Foram estes, aliás, os traços de sua personalidade que o levaram a se tornar bem-
sucedido no mundo coorporativo, enquanto a carreira do amigo reluta em decolar.
B – Eduardo: Inquieto, desassossegado, impaciente, agitado, inimigo da paz. Se entedia
facilmente, então está sempre sugerindo atividades aos que encontra ao seu redor. Viciado em
hobbies, e especificamente em jogos de videogame ou de tabuleiro. Prefere uma conversa ou
um filme a um livro, porque tem dificuldade em permanecer sentado ou parado por muito tempo
no mesmo lugar. As viagens para o interior costumavam ser uma tortura antes de ele encontrar
meios de preenchê-las. Às vezes sente como se nada de divertido acontecesse em sua vida, e
tem inveja dos outros, a quem todo tipo de acontecimento incomum parece se passar. Ainda

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não encontrou algo que realmente goste de fazer profissionalmente. Sua última empreitada está
sendo a de desenvolver jogos para celular, embora poucos saibam disso. Aliás, a maior parte
das pessoas, inclusive Juca, ainda acha que ele trabalha na consultoria onde foi contratado logo
que saiu da faculdade. Uma ilusão que Eduardo achou mais confortável manter do que quebrar,
pois se aborrece tremendamente com assuntos práticos como demissões e novos empregos.
C – Carona 1: Uma garota bonita de cabelos cacheados. Gosta de ouvir música,
especialmente quando é forçada a pegar carona com homens. Homens adoram puxar papo com
ela, e ela adora fingir que não os escuta por causa dos fones de ouvido.
D – Carona 2 (casal): Ele é mais velho e trabalha numa empresa qualquer da cidade; ela
é mais nova, e estuda numa universidade qualquer da cidade. Os dois nasceram no interior e
vieram para a metrópole aos dezoito anos, porque é isso que fazem as pessoas.
E – Carona 3: Um senhor engravatado de meia-idade. Perdeu a carteira de motorista
(por multas) nos últimos meses, mas tem achado divertido pegar caronas com pessoas mais
jovens, da idade de seus filhos. Sempre tem algo a ensinar para essa molecada.
F – Carona 4: Uma garota de cabelos cor de rosa, estudou com Eduardo na faculdade.
Sente saudade de quando era mais nova. Atualmente, colocou toda sua criatividade a serviço
de uma agência de publicidade.
G – Carona 5 (Tomás): Belo, “bonito demais para um garoto”, delicado, agradável e
gentil, Tomás atrai involuntariamente homens e mulheres em seu caminho. Não apenas
sexualmente. Ele tem uma aparência frágil e preciosa que faz com que as pessoas queiram
protegê-lo, como a uma obra de arte, ou a um filhote de pássaro cuja espécie está em extinção.
Perdeu os pais muito cedo e mora com o tio desde então (também perdeu a tia muito cedo). O
tio diz que é muito parecido com sua falecida esposa (de quem era sobrinho). Os dois acabaram
criando uma relação simbiótica de mútua dependência: Tomás ocupou o espaço deixado pela
tia; o tio ocupou o espaço deixado pelos pais. Tão avesso a conflitos quanto Juca (e nesse ponto
Juca acaba por se identificar muito com ele), ele prefere não enxergar a violência, a escuridão,
o desconforto. Até a enxerga, mas desvia rápido o olhar. Até que Eduardo segura sua cabeça
fixa e o força e encarar todo o mal que lhe foi feito. O débil rapaz, já saturado de traumas, acaba
sucumbindo diante dessa revelação.

2.3.5 Depois da Comunhão


A – O Padre: Introspectivo e deprimido, ele deixou que sua fé se afundasse nas trevas.
Não que a tenha perdido. Ele apenas deixou que as sombras a escondessem. Assim, encontra

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dificuldade em encontrar justificativas para a existência e desiste de tentar. Despreza a
humanidade, especialmente os que se dizem fiéis a Deus. Apesar de se sentir superior a todos
os demais, sua suposta sabedoria lhe traz apenas desespero.
B – Senhora 1: Mãe e dona de casa, criada para exercer tais papéis e feliz ao exercê-los,
em que pese desconfiar de que algo talvez não esteja certo na forma como ela, seu marido e
seus filhos se comportam.
C – Jovem Universitário: Tímido, ansioso, pessimista, obcecado. No momento, está
muito preocupado com as provas finais. E com uma garota que conheceu recentemente.
D – Senhora 2: Viúva, muito tradicional e conservadora, muito apegada à família, que
agora se resume à sua irmã. A irmã, ao contrário, sempre foi muito liberal e contrária aos valores
familiares tradicionais. A ironia é dupla: doente e acamada, a irmã liberal agora depende da
conservadora para sobreviver, justamente porque nunca cultivou vínculos pela vida. Por outro
lado, a outra, que o fez, foi condenada a continuar viva e sozinha depois que a morte decidiu
levar todos os seus entes queridos.
E – Seu Rubens: Aposentado, vive precariamente com um salário mínimo mensal. Toda
a sua existência resume-se à Igreja, onde participa de todo tipo de evento ou pastoral. Se
preocupa com o padre e com toda a comunidade no geral. Mas na verdade prefere se preocupar
com os outros como forma de se distrair da própria melancolia que tomou posse de toda sua
vida.
F – Garoto homossexual: Indeciso, criado em um lar conservador, ele não sabe mais o
que é certo e o que é errado. Foi forçado a criar uma rede de mentiras para se esconder, mas
sempre aprendeu que mentir é o maior pecado de todos. A dúvida e o medo o paralisam. Acaba
encontrando justamente na fé um norte para se desvencilhar do ódio humano.
G – Homem e mulher: muito similares, apesar de nem se conhecerem. Um é a versão
do sexo oposto do outro. Foram treinados a pensarem que se importam muito com as tragédias
cotidianas que acometem o mundo, quando de fato não se importam de verdade com nada.
H – Irmã Cleide: pura, casta e boa até os ossos, irmã Cleide é uma freira cegada pela
luz. Criada desde a infância no convento, ela não aprendeu os meandros do Mal, e por isso
sequer consegue reconhecê-lo. A dela é uma bondade inútil e inocente: não serve a mais
ninguém, e nem a si mesma.

2.3.6 Dia de mudança


A – O protagonista: solitário e entediado, ele é um caminhante sem rumo. Se ressente

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de coisas que nunca fez, do irmão que nunca foi concebido, da vida que nunca teve. Está
constantemente arrependido de não ter se arrependido mais. É levado pelo marasmo do
cotidiano a tomar uma decisão drástica.
B – A cigana: uma vidente “às avessas”, ela faz o próprio protagonista se enxergar. Sua
identidade perde relevância no conto, ao passo em que ela se torna um mero conduíte para as
revelações que o protagonista precisa compreender antes de ir.

2.3.7 O Garoto Encapuzado


A – O soldado: o protagonista do conto, ele está voltando para casa há muito tempo,
desde que a guerra acabou. Já foi corajoso, inteligente, orgulhoso, próspero, altivo e belo. Hoje,
é apenas uma carcaça cansada de sua forma original. Ferido e traumatizado, ele deixou que os
atos terríveis que foi forçado a realizar enquanto algoz (e também os que suportou enquanto
vítima) modificassem sua feição e redefinissem-no. Enquanto vaga perdido pela estrada, ele
acaba se deixando agarrar pela força do garoto encapuzado, que o convence que seu pior receio
se concretizou: o mundo inteiro seguiu em frente e ele ficou para trás.
B – O garoto encapuzado (Diego): inominado inicialmente, mas logo apelidado de
“Diego” pelo soldado, o garoto-que-não-é-garoto jamais abandona suas vestes imundas. Ele é
vingativo, rancoroso, violento, (auto)destrutivo, fatalista, mentiroso e manipulador. Mas sua
agressividade, esperteza, vontade e senso de proteção em relação ao soldado fazem dele um
parceiro inestimável para o protagonista nesse momento difícil, em que todos os outros parecem
tê-lo abandonado. Sua especialidade é a sobrevivência, e portanto ele adquiriu um gosto sádico
pela caça.
C – O inventor: criativo e inteligente, ele foi feito prisioneiro por Diego. Sua força é a
das palavras, seu encanto é a luz. Nada mais natural, então, que tenha sucumbido ao poder físico
das sombras do garoto encapuzado. Apenas o fogo pode libertá-lo agora.

2.3.8 Lua cadente


A – Mia: Ansiosa, tímida, receosa, ela demora para confiar em uma pessoa, mas quando
confia acaba por se entregar demais a ela. Por causa de toda essa insegurança, ela ainda é
virgem, apesar da idade (Mia tem 20 anos) e da beleza estonteante. Vizinha de Arthur, está
apaixonada por ele há vários meses. O rapaz logo percebeu que a vizinha se interessava por ele
e convidou-a para um jantar. Naquela noite, ele tentou demais muito cedo. Ela se recusou, ficou
ofendida, brigaram, ela praticamente fugiu do apartamento dele. Demorou muito tempo para

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que eles se aproximassem de novo, mas ela nunca deixou de amar Arthur. Até que, exultante
pela promessa de assistir a um eclipse lunar juntos, ela aparece no meio da madrugada no
apartamento do vizinho.
B – Arthur: Instável, bipolar ou esquizofrênico, Arthur nunca foi um exemplo de saúde
mental, porém tampouco foi diagnosticado com algum distúrbio. Talvez nem seja bipolar ou
esquizofrênico. Talvez seja apenas um rapaz desequilibrado, e que não sabe domar os próprios
impulsos. De qualquer forma, uma coisa é certa: Arthur é incapaz de sentir empatia, de se
colocar no lugar dos outros. Egoísta e egocêntrico, pensa que o mundo todo gira ao seu redor.
Também tem baixíssima tolerância à frustração. A primeira noite com Mia, quando ela disse
“não”, foi quase demais para que suportasse. Nem sequer compreendia a recusa. Pensou que
houvesse algo errado com ele, com seu cheiro, sua aparência. Reviveu aquela noite por várias
outras, insone sobre os lençóis suados. Aos poucos, o que era uma atração física se tornou uma
obsessão, mesmo que nem ele próprio tivesse se dado conta dessa transição. Quando Mia se
reaproxima dele falando sobre o eclipse, ele nem hesita. Sabe que dessa vez ele não a deixará
escapar. Sabe que se há algo errado, então a culpa é dela. Ele repete esse mantra mentalmente
enquanto se deita: se ela vier, se ela aparecer mesmo em seu apartamento no meio da madrugada
sob o pretexto de observar um astro encobrindo outro, é porque quer ser encoberta.
C – Davi: um garoto pálido, “tão alto quanto Arthur”. Na verdade, ele é o próprio Arthur,
ou ao menos uma parte de sua personalidade. Ele é a personificação do desejo de Arthur, ele
representa o ímpeto juvenil, a falta de controle, o impulso sexual incontido. Em que pese haver
se destacado da autonomia racional de Arthur, ele ainda tem rosto, nome, corpo, idade.
Atributos definidos, porque ele próprio ainda é conhecido, palpável, reside logo atrás do ego de
Arthur. Exibe um físico perfeito (corpo, cabelo, rosto) justamente porque ele é todo físico, todo
desejo, todo sexualidade. E conduz Mia até o ato, seduzindo-a, segurando sua mão, criando
falsos elos de confiança para se saciar dentro dela.
D – O sacerdote: uma figura misteriosa, terrível, tão antiga quanto o mal que repousa
dentro de cada ser humano. Ele é a perversão do desejo de Arthur, é o desejo deturpado, depois
de receber a negativa de Mia e decidir seguir em frente assim mesmo. Onde Davi tenta a
sedução e falha, o sacerdote se impõe pela força e prossegue, finalizando o que os outros (Arthur
enquanto razão, Davi enquanto emoção) começaram antes dele. É apenas uma forma
encapuzada, quase inteiramente desprovida de humanidade. Diferente de Davi, que ao menos é
uma entidade “honesta”, no sentido de que representa algo que existe dentro de Arthur em seu
estado puro (no sentido de não-deturpado, não no sentido de que é bom ou inocente), o sacerdote

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é o desejo em sua viés violenta, distorcendo os fatos, corrompendo a vontade, tentando justificar
o injustificável.

2.3.9 Vida e Esquecimento de Alberto Pereira da Silva


A – Alberto: Imortal, permanente, resignado, estático. Ele está preso dentro de si
mesmo, entediado com a falta de avanço em sua vida e nas coisas. Primeiro aos poucos e depois
desesperadamente (quando perde João), anseia por mudança, por sentido, por evolução. Sua
vontade está em constante oposição às suas tendências naturais, à sua vocação para a
imutabilidade. Só consegue se redimir (com João e consigo mesmo) quando abdica de suas
lembranças e deixa o passado para trás.
B – Diana: bem-humorada e carinhosa, uma das amigas de Alberto, da época da
faculdade. Dada a trocadilhos.
C – João: indeciso e inseguro inicialmente, ele é o interesse amoroso de Alberto. Os
dois acabam rompendo quando o último não consegue se comprometer. Comprometer-se
implica em dar um passo em alguma direção, e Alberto é incapaz de andar. João acaba
assombrando o resto da vida de Alberto.
D – Garoto vesgo que lembra o João: uma réplica vazia e fria de João, que Alberto
encontrou muito depois e tentou usar para preencher o vazio deixado por aquele.

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3 MANUSCRITO DA OBRA
Na ordem já mencionada (item 1.2), seguem os contos abaixo.

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3.1 A COISA DO LADO DE FORA DA JANELA

A coisa estacionou ali numa manhã chuvosa e fria. No início era tranquila e leitosa, e
badalava com o ritmo das gotas. O ar passava por dentro dela e um leve assobio arrebitava as
orelhas dos cães da vizinhança. Foram eles os primeiros a notarem-lhe a presença. Para o rapaz,
aquilo não era nada. Desligou o despertador do celular, com a serenidade dos derrotados, e
vestiu-se rapidamente para ganhar a rua. Entorpecido de sono, abriu o guarda-chuva
amaldiçoando o ânimo do vendedor de bolos da esquina. Deixou a coisa para trás.
A estação estava intransitável. A pressa distinguia os que a usavam como abrigo dos
que a viam como mero trampolim. Aqueles interrompiam o trajeto dos últimos, pedindo auxílio,
comida, bilhetes, alienando fones de ouvido, carteiras de couro, mais guarda-chuvas. Uma
bagunça, mas o rapaz já estava acostumado. Esguio, ele se furtava à presença dos obstáculos ao
seu redor e permeava entre as pessoas em movimento, como lama entre os dedos ligeiros de um
artesão.
O cartão estava sem crédito. Desgraça. E depois de toda a fila até as catracas. Teve de
voltar, cabisbaixo, agora sim começando a se preocupar com o horário. As máquinas e as
bilheterias exibiam longos tentáculos humanos diante de si e ele escolheu o que julgou ser o
mais curto. Mera ilusão. A senhora à frente não sabia operar os botões e precisou ser auxiliada
por um funcionário não tão solícito da companhia. Decidiu mudar de fila.
No fim das contas, chegou ao escritório quase meia hora atrasado. Culpou a chuva, era
o que todos faziam. “Mas você não vem de metrô?”, alguém muito prestativo se lembrou. Claro,
porque a água só servia de auxílio aos que dependiam do trânsito. Os que caminhavam e
percorriam as profundezas da terra eram aparentemente imunes ao seu efeito letárgico. Seu
chefe, felizmente, fazia parte do primeiro grupo, e não pôde averiguar pessoalmente a que horas
o “menino das olheiras” tinha chegado. Ele estava, afinal, preso na marginal. Aquilo era uma
metonímia? Preso na marginal. No máximo, estava preso dentro de seu carro, que por sua vez
estava impossibilitado de se movimentar por conta de outros carros. A marginal Tietê, uma
localidade acidental. No fim, não estava preso de forma alguma. E por outro lado, não estavam
todos?
O dia passou por ele como um suspiro e foi suspirando o dia que ele se deitou. Tinha
sido longo e enfadonho. Ou muito curto, pensando bem. Custara a terminar, por causa do clima,
porém findo era como se nunca tivesse ocorrido. Na verdade, sequer conseguia se lembrar de
algo relevante que presenciara desde quando botara os pés para fora do prédio. Tinha sido hoje

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o acidente de moto na esquina da sorveteria? Não, não, fora ontem ou mesmo anteontem. Hoje
não acontecera nada, estava seguro. A reunião! Claro, a reunião. Sacudiu a cabeça, esboçando
um sorriso cansado para o travesseiro. A reunião era só semana que vem. Já a repassara e a
imaginara tantas vezes em sua ansiedade exausta que às vezes tinha a impressão de já tê-la
vivido. Ainda não. Infelizmente.
Acordou minutos antes do despertador. Estava seguro de ter escutado alguma coisa do
lado de fora. Afinal, seria tolice desperdiçar aqueles segundos preciosos. Ele estava ciente de
que precisava otimizar suas horas de sono, fora o que o médico lhe dissera. Precisava dormir
mais, e com qualidade, fosse lá o que isso significasse. Era um contrassenso ter se levantado
antes do necessário. Ou talvez fosse um reflexo do atraso do dia anterior. Como se seu
organismo, bem adestrado, quisesse compensar a falha pretérita e se precaver para o caso da
chuva e do bilhete único repetirem suas proezas. Não foi o que aconteceu e ele encontrou o
escritório completamente vazio quando desabou sobre sua mesa. Tampouco pôde levar crédito
por isso, já que o chefe só chegou uma hora depois.
Quando voltou para casa, percebeu que havia uma espécie de sombra parada na lateral
do edifício. Aliás, se não estava enganado, aquela era exatamente a sua janela. Um, dois, três,
quatro, cinco. Exato. Havia uma sombra circular gravando o espaço que havia entre seu prédio
e o vizinho. E a marca flutuante estava localizada bem diante do seu quarto, no quinto andar.
Balançou a cabeça e deu de ombros. Devia estar ficando louco. Eram nove horas da noite. Não
havia sombra alguma ali, apenas escuridão. A mesma escuridão que inundava todo o hiato que
separava as torres irmãs, e que só muito ocasionalmente era rompida pelo raio azulado de um
televisor ou pelo brilho mais juvenil de uma lâmpada de LED. Sombras estacionadas no ar. Era
só o que faltava.
A manhã seguinte o premiou novamente com aquele despertar prematuro. E a seguinte.
E a outra depois dela. Até que finalmente ele decidiu adiantar o despertador quinze minutos,
para checar se havia algo errado com seu relógio biológico. Em vão. Ele passou a acordar antes
do novo horário, como se alguma parte de seu cérebro zombasse de seu esforço de descansar
do mundo, ainda que por tão pouco tempo.
Tentou o experimento inverso. Atrasou o relógio, correndo o risco de perder hora e levar
outra bronca do chefe. Seria a terceira aquela semana, ainda que não mais pudesse se recordar
exatamente do motivo das outras duas. De qualquer forma, a técnica falhou miseravelmente.
Dessa vez, acordou quase uma hora antes do que era preciso.
– Você tem sentido mais alguma coisa? – o médico perguntou. Era o mesmo médico de

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antes, o que recomendara mais sono e com maior qualidade. Só estava um pouco mais
embaçado dessa vez.
– Nada. Não sinto nada, nunca senti. Só quero voltar a despertar corretamente.
– Não consegue pensar em nenhum motivo para que isso esteja acontecendo?
– Nenhum. Acho que simplesmente desaprendi a abrir os olhos no momento certo.
Ele receitou alguns remédios fitoterápicos para ansiedade e outro para insônia. Eram
fracos, se voltasse a ter problemas, deveria marcar outra consulta. Foi então que decidiu checar
uma última hipótese, antes de se reconhecer enfermo.
Passaria a madrugada toda em pé. Sequer piscaria, se preciso fosse. Estivera convencido
desde o início de que havia algum outro fator atuando ali, alguma coisa externa a si mesmo que
o forçava a abandonar os refúgios oníricos dos lençóis e a se perpetuar pela cidade, tropeçando
pelas ladeiras até a estação e de volta para cima. A sombra parada em frente à janela.
Abriu as cortinas, o vidro e a veneziana. Respirou fundo. Mais tarde choveria, mas agora
a noite estava clara e agradável, carregava um distante rumor do mar em suas brisas taciturnas.
Estendeu os braços pelo espaço além da fronteira do quarto e pensou ter sentido os dedos
roçarem alguma coisa. Repetiu o gesto e percebeu a insanidade se apossando de sua mente. Não
havia nada ali, que tolice. E que tolice ainda maior insistir no contrário.
Prosseguiu, contudo, com sua experiência. Leu, escreveu um pouco, assistiu a sete
episódios de sua série favorita seguidos. As pálpebras pesavam sob o ruído das gotas batendo
contra o chão e ele precisou comer alguma coisa para permanecer desperto. E depois imaginar
que comia outra. A tática funcionou, a chuva se foi e a manhã o encontrou consciente no sofá.
Teve um sobressalto quando percebeu que tudo seria inútil se estivesse no lugar errado. Correu
até o quarto, deitou-se na cama, simulou o que estaria fazendo se aquele fosse um dia normal.
Coincidentemente, não haveria nada de normal naquele dia. Mas ele ainda não sabia disso
quando ouviu o assobio.
Era nítido e simultaneamente duvidoso. Como se tivesse alucinado com suas notas
agudas em seu desespero por se provar são. Se fosse mesmo real, teria sido alto o suficiente
para acordá-lo? Tinha de ser, fora intenso o bastante para que se virasse subitamente em sua
direção. A força do barulho era sempre proporcional ao silêncio que o antecedia, do mesmo
modo que uma expectativa não realizada feria muito mais que a frustração aguardada.
Abriu novamente a janela. Quase nunca o fazia, ainda mais logo cedo, quando o fulgor
solar queimava sua visão. Contudo, fora de lá que viera o fiapo de som esganiçado e ele
precisava checar mais uma vez se não havia mesmo nada ali. E para sua surpresa, deu de cara

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com a sombra. A mesma que avistara antes, a partir da rua. Só que agora estava travestida de
luminescência. Como se concentrasse e depois dispersasse os raios dourados que eram jogados
em sua direção, vibrando levemente enquanto o fazia. Ele se lembrou de asfalto quente. E de
moinhos de vento. A coisa ruminava luz.
Não sabia precisar por quanto tempo permaneceu ali, analisando a imagem translúcida
da coisa. Podia ver o outro prédio perfeitamente através dela, mas sabia que estava ali,
observando-o. Um anel sorrateiro de radiação. Um eclipse invertido. Pensou no olho sem
pálpebras dos filmes que adorava assistir. Aqui, entretanto, exibiam-se pálpebras sem olho.
Como se alguém lhes tivesse tomado a vista. Ou cavado um buraco no vazio.
O que era? E por que assobiava?
O despertador o alertou de que era recomendável que se encerrassem as reflexões e
começasse a se vestir. Obedeceu, mas outra vez sem propósito.
A estação estava interditada. Tinha havido um acidente, na noite anterior. As pessoas
acumulavam-se ao redor das escadarias, seus corpos inertes protestando mudos contra a falta
de alternativas de transporte viáveis àquela hora. Um senhor comentava com outro que fora
algo grave, e que a polícia estava varrendo as plataformas e os túneis de cima a baixo em busca
de respostas. E quais eram as perguntas? O celular logo soube esclarecer. Vinte e sete pessoas
desaparecidas de dentro de um trem. O comboio partira às 00:22 carregando os últimos
passageiros do dia e de alguma forma perdera cada um deles antes da parada seguinte. Restara
apenas o condutor.
– Terroristas – alguém concluiu, categórico.
– Certamente.
Foram necessários dois ônibus e muitos passos a mais do que normalmente seriam dados
para que atingisse o decimo quinto andar, atrasado o suficiente para que o chefe dessa vez o
notasse e repreendesse. Bastou, no entanto, que explicasse o motivo da demora e não se falava
mais em outra coisa no escritório. Nem todos tinham visto a notícia ainda. O resto do período
foi gasto em grande parte com especulações e teorias mirabolantes sobre onde estavam e o que
tinha acontecido com os vinte e sete desaparecidos. Foi construída alguma unanimidade em
torno da afirmação de que estavam todos mortos, provavelmente. Alienígenas e máfias
estrangeiras também foram cogitados. Sequestro coletivo, por incrível que parecesse, era uma
das hipóteses menos valorizadas.
De qualquer forma, houve pouco espaço para que ele mencionasse a coisa sibilante
estacionada fora de sua janela para algum dos poucos colegas de trabalho com quem gostava

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de dividir o almoço. Preferiu acompanhar a vontade da multidão e levantar ele próprio algumas
suposições absurdas sobre o paradeiro atual dos passageiros sumidos.
Portanto, ao menos em um primeiro momento, a inveja que sentia era do evento em si,
e não de suas vítimas. Pois fora o acontecimento que o impedira de revelar que estava sendo
importunado por um círculo de luz e sombra (a depender do período em que era observado) que
insistia em assobiar e despertá-lo nas horas mais impróprias. Sentia que se tivesse tido a chance
de debater o tema naquela manhã com alguém, a coisa teria se dissipado. Como se o mero ato
de discuti-la em voz alta a incorporasse na realidade de forma tão concreta que ela não pudesse
resisti-lo e se dissolvesse. Um riso ou dois diante da estranheza do fato bastaria para sepultá-lo.
Não foi o que se sucedeu, tudo graças ao sumiço do metrô. Impedido de comentar a
coisa, foi obrigado a carregá-la consigo, no interior de sua mente, onde assobiava sem cessar,
zombando de sua sanidade. De modo que, no dia seguinte, com a estação reativada e as notícias
ainda girando em torno dos vinte e sete, sentiu-se verdadeiramente ridículo em sequer ter
cogitado incomodar alguém com seus problemas. Teria de lidar com eles sozinho, sempre fora
assim. A coisa estava parada do lado de fora da sua janela, afinal de contas. Se fosse um assunto
público com certeza teria escolhido outro local para se acomodar, como por exemplo a enorme
abertura lateral que servia de respiro ao escritório, tal qual uma brânquia de vidro.
Tentou ignorá-la, sem sucesso. Os silvos tornavam-se mais intensos conforme pretendia
fingir que se calavam. E mais frequentes. Aos poucos, passou a despertar também no meio da
madrugada. Depois, quase de hora em hora. A vantagem era que estava sempre tão cansado que
bastava se virar para o outro lado e logo adormecia novamente. O lado ruim era que os cochilos
também passaram a assombrá-lo em locais impróprios, como no meio de um relatório, nos
bancos do vagão ou mesmo sobre o vaso sanitário.
Sucedeu-lhe que deveria confrontá-la. Se por omissão ela não partiria, então quem sabe
fosse preciso reagir. Ela não passava de uma presença, afinal. Semitransparente, abstrata, turva
e disforme. Ele, ao revés, era um ser humano, vivo, de carne e osso, e dotado de mais palavras
que um simples assobio. Haveria de vencer. Iria triunfar sobre o plano nefasto que a coisa
colocara em prática.
Perdeu. Foi derrotado pela constância inconstante do halo ruminante de luz. Ele
argumentava, mas a coisa rebatia sem palavras e o superava. Bastava um sibilo para que
percebesse sua tolice. E a futilidade do que estava fazendo. Como poderia avançar se não sabia
com que estava lidando? Nem para onde pretendia ir? Era inútil, era tudo inútil. O mais sábio
era capitular e se entregar à vontade da coisa. Tinha de se conformar com o fato de que ela não

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iria embora. Teria de suportar aquela assombração pelo tempo que durasse.
Foi nessa época que começou a fantasiar que sumia. Vinte e sete pessoas tinham
conseguido realizar essa proeza de uma só vez, numa noite qualquer, numa estação anônima da
linha azul do metrô. Por que não ele? Imaginava-se no lugar de uma delas. Entrando no vagão,
cansado, os ombros caídos sob o peso do cotidiano. Repleto de problemas cuja solução não
importava a ninguém, nem a ele mesmo. E então, puff! Ninguém chegava do outro lado. O trem
abria as portas na parada seguinte e ninguém descia. De repente, os problemas deixavam de
existir, o que era muito melhor do que se fossem simplesmente solucionados. Responder a uma
pergunta era dar-lhe importância e reconhecer sua existência. Abolir sua lembrança, por seu
turno, equivalia a apagar a mácula originalmente impingida e emergir purificado no outro polo.
Convenceu-se de que era disso que precisava. Passou a frequentar a estação todas as
noites e a embarcar no último trem, refém da esperança de que o evento até o momento não
solucionado pelas autoridades se repetiria. Depois, voltava para casa desapontado e
simultaneamente ansioso pela noite seguinte, quando tornaria a buscar pela benção que fora
concedida aos vinte e sete. Aqueles malditos vinte e sete que agora tanto invejava! Era injusto
que não fizesse parte do grupo. Logo ele, que morava tão próximo do local dos fatos. Sentia-se
como se todos tivessem sido convidados para uma festa, menos ele. Uma festa que tinha sido
celebrada bem debaixo de seu nariz.
Paulatinamente, foi perdendo forma. A coisa seguia lá, firme e forte e assobiando, um
símbolo admirável de estabilidade. Na realidade, pressentia algo mais. Sabia que ela estava
cada vez mais sólida, apresentando contornos mais definidos, silvando com mais nitidez. Ele,
contudo, era vítima do fenômeno oposto. Talvez fosse decorrência de seu intenso desejo de
desaparecer. De se juntar aos vinte e sete passageiros, estivessem lá onde estivessem. Quiçá se
relacionasse ao próprio surgimento da coisa e de sua persistência do lado de fora da janela.
Como se ela, enquanto o observasse, o despisse também de toda cor, substância, vigor.
Drenando-o para si, convocando-o para que se unisse a ela, no exterior do mundo.
Era um apelo grande demais, alto demais para se ignorar. Especialmente no caso dele,
que a esse ponto já não conseguia se concentrar em mais nada que não fossem notícias e novos
desdobramentos do estranho caso que se registrara a quatrocentos metros de sua casa. Não foi
nenhuma surpresa, portanto, que quando a polícia decidiu arquivar o inquérito e encerrar as
investigações, ele também tenha decidido desistir, sintonizado com o humor das autoridades.
Quantos dias levaram para perceber sua ausência no trabalho não sabia precisar.
Prescindia da informação, por óbvio. Estava inteiramente absorto com outras questões.

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Devagar, aprendeu a fazer com que os raios de sol o atravessassem, quase sem desviar de sua
trajetória. Ainda era possível distinguir um corpo ali, uma singela presença de algo inominável.
Daria um jeito nisso, com o tempo.
O próximo passo era o reverso do primeiro. Tinha de conseguir condensar as sombras
ao seu redor, quando já não havia luz que o transpassasse. Foi relativamente fácil. A escuridão
era mais comportada e menos agitada que a claridade. Era macia e suave, e irritava menos sua
pele agora tão fragilizada pelo processo que sofria. Sem muito esforço, pôde manipulá-la como
um tecido, articulando-a em torno de si.
Por último, ensinaram-lhe a assobiar. No início, era um som débil e diminuto, mais
patético que o mais insignificante dos chiados. Teve de praticar por muitos meses até que
conseguisse canalizar o ar por dentro de si de tal forma que emergisse um verdadeiro estrondo
agudo na outra extremidade. Satisfeito, declarou-se pronto para a missão de que fora
encarregado. Estava formado, ou melhor, destituído de qualquer forma. Já não era gente. Era
coisa.
Só restava escolher uma janela para assombrar.

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3.2 INTOCÁVEL

“(...) ele havia esquecido que a vida inteira é apenas um conjunto de imagens no
cérebro, e que para este não há diferença entre as que nascem de coisas reais e as que são
geradas de devaneios introspectivos, e que portanto não há motivo para valorizar uma acima
da outra.” (LOVECRAFT, H. P., A Chave de Prata)

“– Como é que você pode falar em acordá-lo – disse Tweedledum – se você não é
mais que uma imagem dentro do sonho dele? É inútil. Você sabe muito bem que você não é
real.
– Eu sou real sim! – disse Alice, e começou a chorar.
– Não é chorando que você vai ficar mais real – observou Tweedledee. – Além disso,
não vejo por que chorar.
– Se eu não fosse real – respondeu Alice, meio rindo entre as lágrimas, porque aquilo
tudo parecia tão ridículo – não seria capaz de chorar.
– Espero que você não esteja pensando que essas lágrimas são reais, ou está?”
(CARROLL, Lewis, Alice no País das Maravilhas)

“Se uma árvore cai na floresta, mas ninguém está perto para ouvir, ela faz barulho?”
(antigo dilema filosófico)

“E se todos ouvem o barulho de uma árvore a cair, mas não há floresta, a árvore
existe?”

Alan voltou com as ripas de madeira e as depositou na fogueira. Uma sobre a outra, com
cuidado, como se montasse o sentido da vida. Alan, que gostava do cheiro da desordem do seu
quarto, organizando pedaços de matéria orgânica morta em padrões geométricos! Os outros três
mal perceberam a compulsão com que realizara a atividade. Não que Daniel prestasse atenção
a qualquer coisa que escapasse ao alcance dos próprios braços. Mas talvez Camila percebesse
algo estranho, algo a mais. Um peixe boiando sobre as águas, sem se mexer, indício de que a
lagoa deixara-se contaminar. Entretanto, estavam todos envoltos na história. Na história e no
frescor do ar noturno. Ângela e suas unhas roxas eram as culpadas. Ela os incitara a uma rodada
de relatos “malpassados”, como gostava de se referir a eles. Qualquer coisa servia. Desde que

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fosse real. Fazia parte da própria definição do que entendia por malpassado. Uma narrativa só
poderia ter resquícios daquele suco essencial se já tivesse sangrado de verdade um dia. E Camila
fora a primeira a morder a isca.
Frase após frase, ela pontuava a desgraça que acometera uma família qualquer da cidade
com falsos suspiros e exclamações retóricas, insistindo repetidas vezes que eles não sabiam.
Como se estivesse surpresa com o que ela mesma contava. A cada simulação de espanto, seus
óculos flertavam com a gravidade, escorriam nariz abaixo, planejavam um salto, que ela
frustrava com uma manobra rápida e senil liderada pela ponta do indicador. Os outros lhe
concediam esse tanto, empolgados demais com o teor da fofoca para se incomodar com a forma
que assumia. Até que acabou, e puderam notar o quão fútil fora toda a empreitada.
– Muito bem, muito bem, muito bem. – Ângela a socorreu, harmonizando a tríade de
incentivos com três palmas vagarosas. – Era disso que estava falando. Quem mais?
Ficaram todos em silêncio, observando os arredores, cada um esperando a boa vontade
dos demais.
A floresta onde o acampamento fora montado ficava a poucos quilômetros do perímetro
urbano. Ela rodeava a represa local e atraía os jovens da região tal qual lixo atrai vermes. Havia
algo de sedutor, quase sexual, na promessa de um lago oculto em meio a uma reserva de
vegetação virgem. Os ranchos só eram permitidos mais além, na outra margem. Do lado de cá,
grupos esparsos de aventureiros mantinham-se o mais isolados que podiam uns dos outros.
Fazia parte da ilusão de isolamento respeitar o isolamento alheio.
– Ok. Se ninguém quer se voluntariar, vamos transformar isso num jogo.
Ângela prometeu um prêmio à melhor história da noite. Ela explicava as regras
conforme caminhava devagar ao redor do grupo, traçando um círculo provocante entre o fogo
e os que ele esquentava. Quem causasse o maior impacto na audiência ficaria com a maior
barraca. Nada mais justo. Nada mais proporcional. Uma coruja piou ao longe em concordância.
Havia mais. O felizardo ou a felizarda poderia povoar a barraca como bem quisesse. Sozinho.
Acompanhado. Repleto de companhia. Ela piscou. Todos riram. Menos Alan.
– Só há uma condição. A mesma, já sabem: tem que ter acontecido. Deve ser real – ela
salivava ao pronunciar a palavra.
– E como vamos medir o “maior” impacto? – Camila quis saber, suas mechas loiras
refletindo a sedução das chamas.
– Eu não me preocuparia muito com isso. Todos saberemos, eu suponho. Tem de ser
unânime. Nossos estômagos nos dirão.

57
– Eu tenho uma história – Daniel começou e se interrompeu para beber um gole de
cerveja. – Aconteceu com um primo meu. Sei que é verdade, porque uma parte presenciei, e o
resto ouvi da boca dele.
– Seu primo? – Camila interrompeu. – O louco?
– Ele mesmo.
– Pois bem – Ângela se sentou e o convidou a continuar com um gesto.

***

O primo em questão se chamava Marcos e ainda estava no terceiro ano do ensino médio.
Ou ao menos estaria, Daniel se corrigiu, se as coisas tivessem ocorrido de outro modo. Acontece
que o menino não era muito dado a respeitar normas pré-estabelecidas e insistia em dirigir o
sedan dos pais sempre que surgia uma oportunidade. E, sendo filho de um médico e uma
advogada, elas surgiam abundantemente.
O acidente acontecera dois anos antes. Uma capivara na estrada. Um bicho gordo,
grande feito uma vaca e suicida. Permaneceu imóvel mesmo com o farol alto e as buzinas.
Marcos estava sozinho. Não conseguiu frear a tempo. Jurava que não ia assim tão veloz. Culpou
a noite. E a inexperiência. E a depressão da capivara.
Ele acabou sofrendo diversas fraturas e passou semanas no hospital por conta das
cirurgias. Lá mesmo se iniciaram as infinitas sessões de fisioterapia, que persistiram por meses
depois da alta. Até que finalmente podia se movimentar de novo como uma pessoa normal. Ou
quase. Havia um efeito colateral que nenhum dos tratamentos parecia capaz de reverter.
Chamava-se alodinia. Os médicos atribuíam a condição aos traumas sofridos e aos próprios
procedimentos que se fizeram necessários por conta deles. Ninguém sabia ao certo porque o
corpo de alguns indivíduos reagia desta maneira. O fato era que tanto as mãos quanto os pés de
Marcos foram amaldiçoados permanentemente pelo acidente.
– Minha avó tem isso. Ela vive repetindo que está sendo punida por Deus. Que pecou
muito em vidas passadas – Camila comentou.
Por alodinia se entendia uma condição em que a percepção da dor pela pessoa se
alterava. Uma simples pluma roçando a pele das palmas da mão de Marcos podia se passar por
um pedaço de arame farpado, num dia ruim. Mesmo num dia bom, deixava uma sensação de
esfolamento ou queimadura. Os terrores da fisiologia humana surpreendiam até a mente mais
criativa.

58
Marcos passou por fisioterapeutas, ortomoleculares, pesquisadores, homeopatas,
psicólogos, padres, médiuns, xamãs. Ninguém pôde ajudá-lo. Andar era um processo difícil,
que envolvia abraçar os pés em camadas de tecido e protegê-los em sapatos especiais como
quem segura um bebê. Exigia cuidado e paciência, mas era possível. O real problema passava
pela interação com o mundo e com os outros, que compunham o mundo. As mãos, ferramentas
da carne, obstavam-no de escrever, de cozinhar, de se apoiar, de operar os utensílios eletrônicos
que a modernidade tanto se orgulhava de haver produzido. Para ele, equivaliam a espadas e
lâminas sem cabo; úteis, no entanto inalcançáveis. O mero calor que produziam as máquinas e
os humanos incendiava-lhe as palmas, num oceano de dor que o privava de qualquer contato.
Luvas auxiliavam, mas não resolviam. Precisavam ser grossas, sobrepostas, duplas, triplas,
luvas dentro de luvas. Mal podia sentir a pele da namorada ao acariciá-la. Se sentisse, a pressão
do toque o afastava com um grito de assombro. Nem era preciso mencionar que tantas camadas
entre ele e o universo impediam-no de digitar a mais simples das palavras em um teclado ou
mesmo de realizar uma ligação. Se resignou.
Até que um dia o levaram à presença de uma vidente. A mãe ouvira falar dela pela
televisão. Estava sendo investigada por charlatanismo pelo Ministério Público, aparentemente
causara prejuízo a centenas de pessoas no interior do Paraná. O interessante era que nenhuma
dessas pessoas queria prestar queixas ou testemunhar em seu desfavor. Nesse ponto, o douto
representante do “parquet” divergia da população por cujos interesses em tese zelava. E
tamanha divergência emperrara o inquérito, atraindo, por sua vez, a atenção midiática. Um
fenômeno irônico que trouxera renovada fama a alguém cujos métodos de trabalho eram tidos
como potencialmente nocivos aos cidadãos. Cidadãos estes que, em sua maioria, só foram
atraídos à vidente justamente pela teimosia da promotoria. A serpente devorava a própria cauda.
Posto que se recusasse veementemente o tio, Daniel acompanhara o primo e a tia ao
covil da feiticeira, numa cidade anônima perto da fronteira com a Argentina. O cheiro era o
mesmo das missas solenes. Até as velas assimilavam-se, decompondo a sétima cor do arco-íris
em todas as suas variantes. A casa fora transformada num labirinto de tapetes e cortinas que
envelhecia o ar e liquefazia a atmosfera. Daniel teve um acesso de espirros diante da mera
lembrança.
A mãe foi proibida de ficar com o filho muito além da entrada. Para isso o primo estava
ali. O contato materno poderia prejudicar o tratamento. Marcos suava frio. Tinha uma ideia do
que o aguardava. As reportagens recentes sobre o assunto haviam sido muito instrutivas. Daniel
tentou confortá-lo. Que não se preocupasse, a cura dependia do enfermo e da enfermidade.

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Portanto, variava muito caso a caso. Com certeza não fariam nada violento com ele. Marcos
discordava. Era uma bruxa, não uma médica. Não tinham como ter certeza de nada. De fato,
não tinham. O instinto de Daniel na verdade lhe dizia para correr, fugir daquele lugar, enquanto
ainda podiam. Ao invés disso, sacudiu a cabeça. Precisava ser racional. Prometera esse tanto à
tia.
– Ela é uma vidente, não uma bruxa – ele se lembrava de ter dito – e posso te garantir
que não vai te machucar. Não é louca, já está sendo processada, se acontecer algo ruim contigo
ela vai para a cadeia. Fica tranquilo.
Foram conduzidos por acólitos encapuzados até os fundos da residência. Passaram por
corredores estreitos, cômodos sufocados em escuridão, imagens sagradas penduradas pelas
paredes, vozes femininas que entoavam cânticos e orações. Acabaram chegando a um diminuto
pátio externo, circundado por muros baixos de um lado e grades do outro. Através destas, podia-
se vislumbrar a mata mais além, um obstáculo negro destacado no horizonte crepuscular da
cidade. A bruxa ainda não aparecera. Só surgiria com a lua. Instruíram os dois a aguardar
sentados num banco, debaixo dos galhos de uma mangueira. A árvore reinava solitária ali,
rivalizando com a soberba da floresta do lado de fora. As outras plantas do quintal resumiam-
se a ervas e trepadeiras, contidas por vasos ou agarradas ao sustento do concreto.
Passados alguns minutos, vieram buscar Marcos. Era necessário que se vestisse
adequadamente para a cerimônia. Ele se inquietou. Cerimônia? Para o tratamento,
esclareceram. Ele não queria ir, não sozinho. Daniel foi com ele, ajudou-o a se despir, para que
não precisasse tocar em nada. Entregaram-lhes uma túnica branca. O primo torceu para que a
iluminação difusa do lugar evitasse que o enfermo enxergasse as manchas escuras que a
pontilhavam. Deus permitisse que fosse somente terra ou algo do gênero. Pelo menos Marcos
não pareceu notar nada. Tornaram ao pátio.
A noite agora ganhara proporção e o astro de prata aparecera num canto qualquer do
firmamento. Como que por reflexo dele, a vidente os esperava toda revestida de luz. Seu manto
decompunha-se em faíscas conforme se movimentava, quase presentificando a regência
inatingível da lua. Saudou-os com um aceno mudo e indicou a mesa que fora montada à sua
frente. Deram uma bebida a Marcos, ele olhou para o primo, procurando aquiescência, Daniel
sorriu, ele entornou o líquido escuro contorcendo-se em caretas. Depois, ajudaram-no a subir
na mesa, onde se deitou, barriga para cima, os pés apontando para o muro. Com delicadeza, a
mulher se adiantou e retirou primeiro as meias, depois as luvas do menino. Ele se queixou
baixinho, mas deixou que suas extremidades tão sensíveis se expusessem. Ela então murmurou

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algumas palavras ininteligíveis e veio até Daniel, que observava a certa distância.
– Você é da família? – ela teria perguntado.
Ele limpou a garganta e respondeu que sim, era primo dele. Ao que ela o questionou se
estava ciente de como seria a terapia. Nesse ponto ele percebeu que haviam vendado Marcos e
estavam amarrando seus braços e pernas. Ele choramingava e chamava pela mãe. Daniel
balançou a cabeça negativamente. Ninguém tinha lhes dito nada. Pediu licença, ia até o primo,
para acalmá-lo. Ela o segurou pela manga da camiseta. Queria saber se a tia não o colocara a
par do método que seria utilizado. Ele tornou a negar. Não colocara. Mas dissera que podia
confiar na senhora. Ela franziu a testa. Seu advogado a instruíra a dar completa ciência de tudo
às testemunhas. Naquele centro de ocultismo não eram nada senão transparentes. Daniel riu
diante do próprio trocadilho. Ou talvez frente à lembrança do sarcasmo daquela afirmação. Era
um riso triste, de qualquer forma.
– Ele está chamando por mim – teria sido sua resposta.
– Só mais um instante, sim? – ela rebatera. – Quanto ao tratamento. O segredo, veja
bem, é não nos deixarmos conduzir pelo medo. O medo leva à parcimônia e essa é inimiga da
cura. Pegue como exemplo os fisioterapeutas. Eles tentam aos poucos, aos goles, com suas
penas e suas carícias. E o que eles alcançaram? Nada. Aqui nós iremos a ferro e fogo.
Ele então repetira as últimas palavras em tom de dúvida, querendo saber se seria apenas
um modo de dizer. Ela retrucou que era avessa a expressões idiomáticas.
– E você não pensou em impedi-la nessa hora?! – Camila interrompeu novamente.
– Minha tia sabia de tudo que seria feito com o filho dela. E tinha me implorado para
acompanhá-lo e ajudá-lo a passar por aquilo. Vocês têm de entender, era a última opção. A
alternativa era admitir que o resto da vida de Marcos se resumiria a uma lista extensa de aflições.
Ele já estava se isolando e não tinha nem dezoito anos. Eu apenas obedeci. Cumpri o que tinha
prometido. Fiquei ao lado dele até o fim.
Daniel aproveitou a quebra para urinar e se reabastecer de cerveja. Os demais o
imitaram, o que prolongou o intervalo. As garotas fizeram questão de se deslocar até os
banheiros do camping, que ficavam a um quilômetro de distância. Elas diziam que a alternativa
era desagradável demais e se queixaram da desigualdade morfológica. Mais tarde, com mais
algumas garrafas, elas também acabariam cedendo ao apelo da selva.
– Claro que questionei a velha – Daniel finalmente continuou, quando retornaram. –
Quis saber se já tinham recebido algum paciente com alodinia antes. Ela disse que não. Marcos
era o primeiro.

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Aquela circunstância, por outro lado, seria irrelevante para as divindades. Segundo a
curandeira, a sabedoria era atemporal. A cura independia da experiência. Bastava a fé. Daniel
cogitara retroceder nesse momento. Seguir sua intuição, levar o primo embora dali. Mas ele
demorou demais para tomar uma atitude e elas iniciaram a cerimônia.
Quatro moças cercaram o altar improvisado com danças e labaredas de sons
indecifráveis. Na Igreja Católica, aquilo seria o equivalente a “falar em línguas”. Só Deus sabia
o que significava naquele contexto. Estavam parcialmente nuas, apenas os rostos se ocultavam
atrás de véus. Os cabelos fartos e os seios murchos balançavam com a ondulação da sinfonia, o
que fez Daniel se questionar qual sua idade exata. A um sinal da bruxa, elas se detiveram tão
subitamente quanto principiaram e se jogaram ao chão. Marcos chorava abertamente agora.
– Vai ficar tudo bem, estou aqui – Daniel teria tentado assegurá-lo. O sopro da frase, no
entanto, se espalhou pelo ar feito um presságio de desastre. Ao longe, um cachorro latia.
A vidente então se aproximou e tocou com a unha do indicador a palma da mão direita
do menino. O uivo que se seguiu contraiu todos os músculos de Daniel. Ela seguiu adiante,
tocando uma única vez cada mão e cada pé, para um total de quatro gritos estridentes. Então,
as moças se aproximaram. Cada uma portava uma vela pequenina. Seus olhos brilhavam à luz
das chamas e o primo do doente teria visto neles um lampejo de excitação. Imaginou que
sorriam por baixo dos panos que lhes serviam de abrigo. Já estava certo de que aquilo terminaria
mal, que redenção nenhuma seria alcançada por métodos tão terríveis, que só fariam agravar o
sofrimento do infeliz. Sabia, em algum nível. Porém, de novo, nada fez. Nada podia fazer.
Tivera a nítida impressão de que fosse lá o que precisasse acontecer naquela noite, na verdade
já tinha acontecido. E, portanto, tanto quanto não se movia o passado, achava-se incapaz de
frustrar o avanço do ritual. Encarou-o como uma fatalidade. O máximo que podia era tentar
amenizar a dor do desgraçado.
– Confia em mim, vai te fazer bem – foi o que disse, extraindo as palavras à força de
dentro de si e acariciando os cabelos do primo vendado. Ele gemia.
O ritual encaminhou-se para o fim. Daniel elevava o tom da voz ao recordar, as frases
perdiam a cadência cronológica que lhes seria natural. Sobravam lacunas, que precisavam ser
preenchidas. As quatro sombras nuas teriam avançado com o fogo em riste. As mãos e os pés
de Marcos reluziam. Tão frágeis, tão sensíveis. Como se ansiassem pela agressão. O calor da
proximidade foi suficiente para que o menino urrasse e esperneasse. As cordas resistiram. A
feiticeira cantava, imponente, superando os protestos da vítima. Até sonoramente ele era
suplantado. Nem esta piedade lhe concederam. As quatro avançaram uma vez mais. A primeira

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bolha se insinuava na pele, Daniel não se lembrava se da mão direita ou esquerda. O barulho se
espalhava como uma torrente, confundindo-se e arrastando-o numa enxurrada de martírios.
Quase engrossou o coro ele mesmo, queria que calassem todas a boca, pelo menos que
deixassem seu primo gritar sozinho, era o mínimo que merecia. O vermelho daquela noite iria
inundá-lo por muitas outras. Vinha na forma circular. Corria pelas extremidades. Tingia o
branco, substituindo a inocência pela culpa. O cheiro quase imperceptível. Os sentidos
toleravam uma certa quantidade de estímulo. Por isso que se abaixava o volume do rádio quando
se ia estacionar. Além desse limite, o cérebro parecia ter dificuldade em lidar com o acúmulo
de informações a serem processadas. Talvez fosse esse o princípio científico por trás daquele
tratamento. Daniel riu. Obviamente tivera sua sanidade afetada pelo incidente. Ciência.
Estavam no covil das bruxas e ele cogitando ciência. O cheiro de carne queimada. Quem teria
vomitado primeiro? Provavelmente fora Marcos. Tiveram de interromper a cerimônia, virá-lo
para o lado, para que não sufocasse. Então trouxeram as tesouras. Honestamente, Daniel não
sabia mais ao certo se eram tesouras ou facas ou qualquer outro utensílio afiado. Ele não
aguentou muito depois disso. À visão dos cortes iniciais, do sangue enegrecido, daquela pasta
aquecida e esticada pelas chamas, agora rompida e esquartejada, enquanto uma melodia de
gemidos femininos enchia os arredores de uma insinuação horrenda de prazer, ele desfaleceu.
Quem teria desfalecido primeiro?
– Que horror – Camila conseguiu comentar. O resto da roda desviava o olhar,
constrangidos. Exceto Alan. Alan observava absorto o fogo crepitante. Como se pudesse escutar
os gritos de Marcos em meio às labaredas.
– Sinto muito, Dan – Ângela disse, uma mão apoiada sobre o ombro do amigo. – Não
sabia. Nenhum de nós sabia.
– Vocês não têm nada de que se desculpar. Todos foram ótimos comigo quando ele foi
internado.
– Só tenho uma pergunta – ela anunciou, as unhas roxas destacadas na camiseta branca
de Daniel, feito moscas num cadáver. – Não precisa responder se não quiser.
Ela aguardou, ele assentiu.
– Deu certo?
– Ângela! – Camila protestou.
– Ué! Pode ter funcionado!
O debate que se ensaiou foi interrompido sumariamente pelo próprio Daniel.
– Ela tem razão. Só porque a mente dele não aguentou, não significa que... bom, é difícil

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saber. Os médicos dizem que sim. Ele não sente mais nada nas extremidades. Alguns vão além.
Dizem que não sente mais dor. Em lugar algum. O que é um problema, pois está sempre
machucado lá no sanatório e ninguém consegue explicar como se machucou. Tampouco avisa
as enfermeiras. Acho que é seguro afirmar que a alodinia se foi. Então sim. Em determinado
sentido, deu certo.
– E a vidente?
– Continua solta por aí, eu presumo. O inquérito foi arquivado, pelo que dizia a última
notícia que li. Minha tia nunca prestou queixas. Foi um dos motivos do divórcio.
– Eu consigo fazer melhor que isso – declarei, em parte para mudar de assunto, em parte
induzido pela menção ao divórcio. Todos se viraram em minha direção. Mesmo Alan, tão
excessivamente ocupado com a fogueira nos segundos anteriores, parecia interessado em ouvir
o que eu tinha a dizer. – Vou contar sobre os meus pais.
Os quatro remexiam-se desconfortáveis em seus bancos. Compreensível, afinal, o fim
da história era de conhecimento público. Mamãe, presa, histérica, um borrão de lágrimas e
súplicas. Meu pai, ou o que quer que tivesse sobrado dele, enterrado no cemitério da Rua dos
Pigmeus. Mamãe novamente, no fórum, jurando perante seus pares, perante o juiz, perante Deus
e todo o resto, mamãe e o advogado, mamãe feliz, mamãe solta, mamãe livre e de volta, eu e
mamãe seguindo em frente, como nos recomendaram o psicólogo, as vizinhas, os parentes, as
professoras. Mamãe e eu esquecendo tudo aquilo. Mas era difícil esquecer.
– Vai nos dar a honra de sua companhia novamente? Desistiu de ficar longe do calor? –
Camila provocou.
– Está mais calmo, João? – Alan perguntou, conforme eu me reaproximava deles.
Alan. Alan e seu recém-adquirido bom caráter. Me desvencilhei de seu toque, sacudi os
ombros, desconsiderei-o.
– Sei que pensam que já sabem tudo. Garanto que não. Sabem apenas a versão oficial.
A versão dos jornais. No fim da noite, eu estarei dormindo na maior barraca.
– Se não quiser, não precisa nos contar – Alan insistia. – Sabemos que é uma história
muito pessoal. E muito trágica. Talvez rememorá-la não vá te fazer bem.
Ignorei-o uma vez mais.
– Para entenderem o que de fato aconteceu naquela noite, preciso que saibam que minha
mãe não era a única de quem meu pai abusava. Na verdade, antes de tudo, é melhor deixar claro
quem era – ou não era – meu pai.

64
***

Tudo começou em 2001. Eu tinha então sete anos de idade. Na verdade, começou bem
antes, mas não sei precisar exatamente quando. Portanto, deixemos assim. Começou em 2001.
É prático fixar o passado em torno desse ano. Foi o ano dos atentados. Aviões colidindo
com prédios. Prédios em chamas. Prédios caindo. A imaginação de uma criança inflama-se tão
facilmente quanto as Torres Gêmeas. E resiste. Fica em pé. Custa a ser demolida. Desconhece
a implosão. Assim, de certa forma, esse marco atrai para si diversos outros. E eu estabeleci
2001 como o ano em que os mitos morreram.
Sempre amei a Páscoa e o Natal. Adorava chocolate, adorava presentes, mas gostava
muito mais da magia envolvida nas datas. Um animal de pelos brancos invadia sua casa ao
alvorecer, deixava pegadas, escondia ovos, roía cenouras pela metade. Um senhor idoso e obeso
fazia o mesmo no meio da madrugada, sem destrancar ou arrombar porta alguma, ciente dos
seus desejos mais profundos, e também dos seus pecados mais perversos, uma espécie de
balança humana, mas ele nem humano era, e deixava o que julgava do seu mérito sob uma
árvore artificial de luzes e miniaturas angelicais. A coisa toda era muito absurda. E justamente
por isso maravilhosa.
Naquele ano, perto do dia dos pais, mamãe achou que eu já estava crescido o bastante.
Vivia queixando-se de meus comportamentos excessivamente infantis para a idade. Me
chamava de bestinha, ainda que carinhosamente. Me deixava de castigo quando errava a
pronúncia de certas palavras. Sou muito grato a ela. Se hoje alcancei o domínio que tenho sobre
a língua, o mérito foi todo dela. E quem domina a linguagem domina todas as coisas, ela sempre
me dizia. Afinal, ninguém conhece as coisas. Só o reflexo delas. E a linguagem é o espelho do
mundo. Um mundo em que coelhos encantados e velhos de capuzes vermelhos não habitavam.
– É que a linguagem não é um espelho comum, meu filho – ela dizia. – Às vezes, ela
reflete algo que não está ali. Como uma miragem. As mentiras só são possíveis por causa dela.
E temo que seus ídolos sejam todos uma farsa.
Eu não entendi direito de primeira. Ela me chamou de bestinha e explicou melhor. O
coelho da Páscoa não existia. Toda a ideia em torno dele era muito estúpida, na verdade. Se
você parasse para pensar. E era mesmo. Achei graça. Ri descontroladamente quando me dei
conta do quão bobo tinha me tornado. Ela me deu água, para que me acalmasse. Tinha
revelações mais sérias a fazer.
– Todas essas datas, meu filho, são construídas em torno de mentiras. São arbitrárias,

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como a regra do seu pai sobre não entrar na sala de chinelos.
– Arbitrárias – eu repeti. – Não fazem sentido.
– Exatamente. E é justamente sobre o papai que quero falar.
– O Papai Noel? – perguntei. Eu custava a compreender o que se passava naquela época.
– Isso. E o outro. O que você chama de papai.
– O dia dos pais também é arbitrário?
Ela sorriu, satisfeita, como há muito não sorria.
– Exato. E esse ano, não vamos comprar presente para o seu pai. Porque ele não existe,
igual ao Papai Noel. Seu pai também é uma mentira.
Dessa vez eu precisei de vários minutos para assimilar o que ela me contava. Que o
Papai Noel não passava de invenção, tal qual o coelho da Páscoa, isso já me soava óbvio. Mas
a associação que ela fizera não fora entre coelho e Noel, fora entre papais. E o meu pai era real,
disso estava seguro. Podia enxergá-lo com meus olhos, escutá-lo com meus ouvidos, abraçá-lo
com meus braços, beijá-lo com minha boca, senti-lo em meu coração. O papai existia. Estava
diante de um dilema. Porque mamãe não mentia. Mamãe nunca mentia. Isso era outro fato, tão
inderrogável quanto o primeiro. Então se ela afirmava a farsa de papai, era eu que não devia
estar acompanhando o raciocínio. Alguma palavra me teria fugido. Alguma nuance de sentido.
Já tinha ouvido alguém dizer uma vez para outra pessoa que ela não existia. Isso parecia soar
até como elogio. Talvez fosse o caso. Bestinha.
– Mas o papai está trabalhando – foi tudo o que consegui falar.
– E como você pode ter certeza disso?
Ela elaborou. Eu não podia. Ninguém podia. Se faziam necessárias investigações,
muitas investigações. Observações atentas da realidade. Comparação com o que passou.
Reavivar memórias antigas. Por mais doloroso que fosse. Mamãe era uma mulher muito triste.
Vivia chorando quando estávamos a sós. Nunca na frente de papai, nunca. Eu não entendia por
quê. Gostava da nossa casa, da escola, da comida, dela, de papai, do Tobby. Ela me convenceria
a me desfazer do Tobby mais tarde naquele ano. Dizia ser perigoso, que um cachorro era um
repositório de pragas as mais diversas. Ele colocava a saúde de todos em risco. Na fazenda, no
sítio da vovó, ele ficaria mais contente. E mesmo depois que conseguia o que queria, mamãe
seguia infeliz. Eu tentava consolá-la. Embora fosse quase impossível, quando descobri o motivo
por trás de toda a tragédia.
– Seu pai não é mais seu pai.
Não tinha notado nada estranho? Nadinha mesmo? Especialmente nos últimos meses?

66
Bestinha.
Ela prosseguiu elencando todas as evidências. E a cada prova, eu me derrubava. Seu
argumento era infalível, eu não tinha como resistir. Ao final, estava plenamente convencido.
Ele não comia mais como comera antes. Não jogava mais futebol com os amigos aos finais de
semana. Não entrava na piscina com o sol a pino. Não ajudava com as lições de casa. Não
cozinhava, não limpava, não lavava a louça. Passara a faltar ocasionalmente ao trabalho. E
ficava na sala, vendo programas estranhos na televisão. Programas inapropriados. O que me
forçava a passar as tardes no quarto, estudando ou lendo. Ele não gostava dos livros. Dizia que
precisava sair, brincar, fazer o que as outras crianças faziam. Mamãe discordava, ela sempre
discordava. Ele não sabia como educar um filho. Soubera, mas desaprendera. E o que ela
suspeitara que fosse apenas esquecimento, tinha se revelado algo muito maior. Como uma
doença grave, que se descobre a partir do sintoma mais banal. Uma tosse, um espirro. Febre
baixa. Ele apresentava quadros de febre amena todas as noites. De manhã, a febre partia. Salvo
nos dias em que ficava em casa. Nesses dias, a febre persistia. Os banhos frios ajudavam. Ele,
que sempre amara o banheiro envolto no vapor do chuveiro. Para onde partira o homem que a
arrematava pela cintura e a erguia no ar? Onde estava o marido que comprava flores todas as
sextas, para enfeitar a mesa da copa? O que tinha acontecido com o executivo agressivo e
contumaz, que jamais perdia uma discussão? Essas perguntas atormentaram a mente de mamãe
por muitos meses, ou até anos. Até que ela chegou a uma conclusão. A única a que podia chegar.
– E quando ele foi... trocado? – eu perguntei, ainda meio atônito com tudo aquilo. Do
coelho da Páscoa e do Papai Noel eu podia prescindir. De papai... bem, essa era uma ausência
que eu jamais cogitara.
– Suspeito que tenha sido na última viagem para o Pantanal. Os índios de lá participam
de seitas espúrias, dançam e idolatram divindades sombrias, banidas há muito do paraíso. Eles
estão acostumados a partir e a regressar dos próprios corpos todas as noites, em sonho. Seu pai
deve ter tomado parte numa dessas celebrações. Inocentemente, eu suponho. Ele nunca foi
muito esperto para perceber quando os outros o enganavam. Pouco importa, agora. Agora que
ele se foi.
Mas se papai se fora, quem tomara seu lugar? Era isso que ela não sabia. Esse enigma
persistia sem resolução. Contudo, fosse lá qual fosse a natureza da criatura que o substituíra,
tinham de assumir seu perigo. Uma entidade benévola não se passaria por outra pessoa por tanto
tempo, sem alertar ninguém. Era óbvio que ela pretendia enganá-los. Despistá-los. Com qual
intuito, só podiam especular. Mamãe achava que tinha a ver comigo. Ela insistiu para que nunca

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ficasse sozinho com ele. Com o impostor. Ela temia por mim. Sempre temeu, agora mais do
que nunca. Minha segurança fora sua prioridade desde o nascimento, como me amava, como
me ama aquela mulher! E eu a ela. Pensando em retrospectiva, as coisas não podiam mesmo ter
terminado de outra maneira. Ocasionalmente, a proteção vem sob a forma de agressão. O
escudo se transfigura em espada, sem deixar de resguardar. E desde esse dia eu afiei o meu.
O simulacro de papai se comportava quase como um adulto normal. Quase. O
observador mais atento poderia notar o modo como ele falhava em sustentar o peso do corpo
sobre as duas pernas. Estava sempre apoiado ora em uma, ora em outra, feito uma gangorra.
Gaguejava ao contar piadas, era alérgico a frutos do mar, obcecado por organização. Conforme
as estações passavam, suas regras multiplicavam-se. Dos chinelos na sala aos horários cada vez
mais restritos para almoçar, lanchar e dormir. Da forma como as jarras de água deviam
permanecer arranjadas na geladeira ao padrão das flores no quintal. Tudo nele controlava-se,
tudo nele era prisão. Certamente por conta do esforço constante para parecer algo diverso do
que realmente constituía sua essência.
Comigo, ele foi perdendo aos poucos a intimidade. No início, ainda fazia questão de
agir como se fosse mesmo meu pai. Comparecia às reuniões escolares, às apresentações do
grupo de teatro, ajudava nas festas de aniversário. Conforme vieram as brigas, tudo isso foi
minguando. E o espaço que ele deixou, mamãe ocupou. Ela se expandia abertamente, enquanto
ele se retraía. Eu chegava a ter pena da figura, lá na sala, isolado, e nós logo ali ao lado,
conversando como se não soubéssemos do esquema que ele arquitetara. Eu me perguntava
quem estaria enganando quem. Nesses momentos, cogitava explodir, gritar com os dois, expor
a farsa como ela era, forçá-los ao confronto aberto. Bastava de segredos, de cochichos, de
desculpas esfarrapadas quando me via sozinho com ele no quarto. Mas essa coragem e essa
piedade logo desapareciam. Tão logo a lua tomasse a posição do sol, ele se fortalecia e revelava
sua verdadeira face.
Não era todas as noites. Pelo menos não no início. Ele bebia. Tudo bem, todos os pais
bebem. Nós bebemos. É normal. Mas ele não era meu pai. Portanto, cada ato que ele praticava
vinha impregnado de maldade, de segundas intenções que todos menos ele ignoravam. Mamãe
quisera engravidar de novo, ela me confessara, em certa ocasião. Eu já sabia como se faziam os
bebês. Ele recusara. Isso fora logo depois que eu nasci. Desde então, como justa punição, ela
se negava a se deitar com ele. Dormiam em quartos separados, mesmo ela dizendo que ainda o
amava, mesmo naquela fase, antes da troca. Só que, depois da troca, ele passou a visitá-la em
seus aposentos. Só quando bebia, o que era cada vez mais frequentemente. Eu os ouvia pelas

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paredes. Ele pensava que eu dormia, ou não se importava. Mas eu os ouvia pelas paredes.
Mamãe gritava, lutava, soluçava. Ele grunhia, um som áspero, arrancado, controlado como suas
regras. Ficavam nesse estado por menos de meia hora. Me lembro de contar os minutos. Quase
nunca superavam os vinte e cinco. Então, derivado do silêncio, ouvia-se o barulho da porta se
abrindo, se fechando, passos no corredor, a água caindo no copo na cozinha, passos de volta,
outra porta se cerrando. Três batidas na parede indicavam que mamãe sobrevivera. Era o nosso
código. Eu finalmente podia adormecer.
A situação beirava o limite. De modo tão constante quanto insistente. Caminhávamos
cada vez mais próximos ao abismo, sem coragem de descer, sem forças para o salto. O meu
crescimento romperia a corda precária sobre a qual nos equilibrávamos debilmente e nos
obrigaria a atingir uma resolução. A malha do fio que nos ligava só comportava um certo nível
de tensão, que minha adolescência veio corroer. Aos quinze anos, já era maior que ele. Aos
quinze anos, já gritava mais alto do que ele. Socava mais forte do que ele. Não o tolerava mais
em meu quarto. Podia impedi-lo em suas incursões noturnas ao quarto de mamãe. Desafiá-lo
em suas normas domésticas. Aos quinze anos, eu estava de saco cheio de dividir o lar com o
desconhecido.
Não que pudesse derrubá-lo tão facilmente. Ele ainda imperava, ainda ocupava a chefia
da família, uma família que não lhe pertencia. Mamãe chorava abertamente pelos cantos
naqueles que foram os últimos dias. Eu a consolava, dizia que estávamos por um triz. Um passo
em falso, uma decisão equivocada, e ele deixaria exposto o flanco. Tão logo surgisse a
oportunidade, eu atacaria. Ela tentava me dissuadir. Perigoso, perigoso demais. Não sabíamos
do que ele era capaz. O que se escondia por debaixo da pele. Que tipo de artimanhas ele tramava.
Com que espécie de espíritos confabulava. Os índios do Pantanal permaneciam vivos na
imaginação de mamãe. Ela os temia de coração. Temia tudo o que vinha do mundo natural,
como se referia às florestas e aos campos. Talvez por isso não se dera com Tobby. E o devolvera
ao planeta. Ela sugeria uma solução similar com o duplo de papai. Se, de alguma forma,
pudéssemos devolvê-lo à natureza. Ao lugar de onde saíra, de onde se originara. Apenas um
óbice: tanto quanto ele nos era obscuro, suas circunstâncias também nos escapavam. Então eu
bolei meu próprio plano.
Foi num domingo à noite, depois da missa. A febre veio e ele bebia. Bêbado, ele ousava
mais e seus reflexos amanteigavam-se. Me fogem as palavras de nossa derradeira conversa na
sala. Algo sobre o jogo de futebol. Um comentário amargo de mamãe sobre a falta de opções
de lazer decentes naquela cidade. Uma discussão antiga sobre escolhas de vida, de profissão,

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de abandono, de pretendentes. Antiga e perene, jamais saciada, mesmo quando papai era o
executivo contumaz. Eu me saturava de impossibilidades. O ódio deles se impregnava em mim,
uma mancha que só apaguei a muito custo. Quem quebrou o copo foi mamãe. Foi um acidente,
ela jurava. Foi um acidente, Moacir, foi um acidente. Ele praguejava. As pupilas curvadas sob
o peso do sangue. Ela se aproximou, foi um acidente. Por que estava tão preocupada com aquilo
que se dizia seu marido? Ele a empurrou, ela se chocou contra a mesinha do abajur. Foi um
acidente, ela implorava. Seu choro confundia-se com o meu. Me levantei, fui até a cozinha.
Tive um último surto de piedade irracional. Os finais de semana nas montanhas, no sítio. Antes
da troca, antes do Pantanal. As lágrimas turvavam minha visão e eu pensei ter visto nós três
correndo pelo gramado, o riso agudo da criança atingindo seu pico quando um ou outro adulto
a apanhava e a erguia no ar, como um prêmio. Era tão leve, quando foi que ganhara tanto peso?
Hoje ninguém mais poderia me aguentar. Não daquele jeito. Me perdi entre as opções. A
obviedade da faca, a surpresa tática do martelo. Armei-me em duplicidade, para o caso de o
bicho revelar alguma astúcia imprevisível na hora do confronto.
– João, o que você está fazendo?! – mamãe gritava.
Papai ria. Não, não papai. O impostor. Ele gargalhava, zombava de mim, zombava de
nós dois. Perguntava se ela percebia. Se percebia o que tinha feito, o quanto tinha errado.
Comigo, com nós todos. Se estava satisfeita. Ela berrava a cada vez que eu ameaçava. A cada
investida. Gritos suplicantes, estava fora de si. Ficaria feliz ao término. Aliviada. Mas o velho
era ágil, mais veloz do que eu estimara. Tentou sair, me pus em seu caminho, arremessou o
abajur, já em pedaços por conta da queda de mamãe, em minha direção. A pancada, ao invés
de me aplacar, me incentivou. Um impulso de dor num oceano de rancor. Já não distinguia mais
a voz de ninguém, nem a minha própria. A cacofonia de desespero servia para atenuar o conflito,
acolchoando meus sentidos. Foi só quando o espetei pela primeira vez que ele revelou sua forma
primordial.
Tentáculos surgiram de suas costas e barriga, espalhando-se pela sala e derrubando os
livros da estante. Negros e vermelhos, sujavam o tapete, a tela do aparelho de tevê, respingavam
nos meus punhos. Um deles se enrolou ao redor de meu tornozelo e me derrubou. Serrei-o para
que pudesse me levantar. Mamãe desaparecera, em sua lacuna só se viam estilhaços. Preparei-
me para uma nova estocada. Asas reptilianas abriram-se pelas laterais de seu corpo. A criatura
guinchava, com uma estridência que partia as taças e garrafas do ambiente. E rezava. Em uma
língua estrangeira, proibida, ela pedia ajuda às profundezas. Precisava finalizá-la antes que seus
aliados chegassem. Afinal, era apenas um jovem, apenas um, apenas humano. Não poderia

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derrotar o sobrenatural em sua pluralidade. A queda daquele oponente já me demandaria em
excesso. Entreguei-me, solícito, à vontade de mamãe. Aos anos em que vivêramos encurralados
dentro da própria casa. Sem poder pedir ajuda a ninguém, pois quem nos daria crédito? Eu nos
vingava, e em minha vingança nos libertava. Cortei-lhe as asas, elas caíram ao chão
estrebuchando. Por fim, vieram os olhos. Eles pipocaram pela superfície paterna feito uma maré
visionária, para depois se fundir em torno de um único globo gigantesco. Ele pairava
centímetros acima do solo, uma aberração ocular com cílios viscosos. Usei o martelo. Primeiro,
ceguei-o. Então, desprovido de sua principal vantagem, foi fácil despedaçá-lo.

***

– Vencida a batalha, mamãe me encontrou, semiconsciente, em meio aos escombros e


vísceras daquele ser alienígena. O resto, vocês já sabem.
Por alguns segundos, eles permaneceram quietos. Foi Ângela quem criou coragem
primeiro:
– Então, foi você que o matou?
Balancei a cabeça confirmando e sorri. Eu acabara de contar sobre como abatera um
monstro hediondo e era isso que tinha capturado a atenção deles?
– Por quê? – Camila indagou.
– Ela quis me proteger. Me poupar.
Alan veio até mim e se sentou ao meu lado. Não disse nada, só se deixou ficar ali.
Provavelmente pensava que desse modo me dava algum apoio. Mas eu já desvendara o que se
passava.
– Acho que podemos concordar que venci.
– Venceu? – Daniel perguntou.
– Venci. O jogo de Ângela.
Eles nem se lembravam mais do jogo. Perturbados, me entregaram a maior barraca. Um
modelo profissional, verde chumbo, adquirido pela idealizadora da competição em pessoa.
Fizemos as mudanças necessárias, trocamos as mochilas e colchões. Ela comportava
tranquilamente quatro pessoas. Eu só desejava uma.
– O Alan – escolhi.
– O quê? – Camila questionou. Ele próprio, contudo, já recolhia seus pertences e se
dirigia à tenda do campeão.

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– Ele me escolheu – explicou, ao cruzar o olhar com o das companheiras. Ângela se
precipitou, parecia querer se opor. Daniel já se deitara. Camila fitava Ângela, em dúvida. –
Fiquem tranquilas, ficaremos bem. Boa noite.
Logo, ele já sabia. Conforme entrava e se deixava cair ao meu lado, ele já estava ciente
de que seu segredo fora descoberto. Alan, um dos poucos que realmente poderia considerar
meu amigo. Estivéramos juntos desde a troca. Ele segurara minha mão nos anos incertos que
transcorreram entre 2001 e a luta final. Portanto, ninguém melhor do que eu para perceber. Eu
o conhecia bem demais. Sabia do seu gosto por carne sangrando, cerveja barata e garotas
morenas. Compartilháramos diversas experiências inaugurais. Admirava seu caráter franco e
ocasionalmente desonesto. Havia o episódio da padaria, que ele furtara toda semana durante as
férias para castigar o dono, seu vizinho, por não ter lhe devolvido a bola. Ou quando namorou
aquela menina do outro colégio por longos meses enquanto saía com metade da nossa sala
simultaneamente. O Alan não era bom. Ele se opunha ao meu pai, enquanto conceito.
Desorganizado, caótico, sujo. E eu gostava disso nele. Em casa, sentia-me sufocado. Seu
descaso me deixava respirar. Mas a fogueira o denunciara. A preocupação, o zelo e o método
confirmaram minhas suspeitas. Minhas piores suspeitas.
– Estou cansado – ele declarou. – Até amanhã.
E se virou para o outro lado, dando-me as costas. As costas que não eram mais as dele.
Apertei o canivete em minha mão com certa nostalgia.
– Durma bem – respondi.

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3.3 PROGRESSÃO

UM

Foi na época em que o Anjo morava com a gente. Já não aguentava mais varrer as penas.
Que seu quarto fosse um ninho impregnado daquele odor celestial, eu não me importava. Passei
a me incomodar quando levei um cara qualquer para passar a noite e uma auréola suja tinha
sido deixada sobre o sofá. Ele me perguntou o que era, tive de explicar toda a história. A
longuíssima e aborrecidíssima história. De como nos conhecêramos, a visão do paraíso se
abrindo, o esplendor divino, a aparição etc. etc. Como esperado, aquilo acabou com todo o
clima e passamos o resto da noite discutindo teologia. Eu já não suportava mais o assunto. Mas
você não pode ir, não pode me deixar sozinha com ele. Minha colega de quarto mais mundana
passava o dia inteiro fora, no escritório. Era de se esperar que ficasse aflita com minha ausência
repentina. Expliquei que seria só um mês. Precisava dar uma espairecida, longe daquele
ambiente miraculoso que se tornara nosso apartamento. Como vou fazer para cuidar dele
sozinha?! Ora, ele faz tudo praticamente por conta própria. Basta trocar a água de manhã e à
noite e abastecer a geladeira de avocados maduros, sua comida favorita. Mentiras. Eu estava
bem ciente da trabalheira que ela iria ter com ele. Concebido em outro plano existencial, o Anjo
estava acostumado a receber o melhor tratamento e a passar horas, dias, às vezes semanas a fio
em serena contemplação. O que contemplava? Difícil dizer. Algo como a beleza da criação.
Qualquer coisa sobre como a face de Deus resplandecia em cada silhueta terrena. Eu então
questionava o gosto estético divino. Especialmente quando negligenciávamos a louça e
brotavam aquelas larvinhas que se contorciam pela pia. De qualquer forma, enquanto ele
contemplava, os afazeres domésticos se acumulavam. Sem minha ajuda, Helena sofreria.

DOIS

Achei por bem não me despedir de ninguém. Tinha medo de que me impedissem. Fugi
durante a madrugada, por assim dizer. O Anjo estava acordado, pois não dormia. Deve ter
fingido não notar, em sua infinita bondade. Aliás, podia muito bem ter ficado preso em alguma
meditação ou prece noturna e se distraído tanto que não percebeu o barulho das rodinhas da
mala sobre o assoalho, ou mesmo o tropeção que me rendeu uma mancha arroxeada no joelho
e uma exclamação emputecida que fora banida da residência desde que decidíramos dar abrigo

73
ao ser iluminado de nome terminado em “el”. Engraçado como jamais decorei como se
chamava. Miguel, Gabriel, Rafael, os nomes angelicais me soavam todos iguais. Apelidei-o de
“Fel”, durante uma confraternização em que ficáramos os dois especialmente bêbados. Ele
gargalhara, algo na linha de como jamais compreenderia os meandros do pensamento humano.
Aquela pose perene de superioridade criacional que me tirava do sério. Porra, podia de vez em
quando fingir que existia em pé de igualdade conosco. Só de vez em quando, pedia muito?
Achava que não. Ele concordava, mas nada mudava. Talvez não pudesse mudar, feito planta
que insiste em mirar o sol por mais que se vire o vaso.

QUATRO

Quando ganhei o mundo simultaneamente me perdi. Ou, ao contrário, para ganhar o


mundo eu precisava me perder nele. Foi o que fiz. Ao cabo de uma quinzena já nem sabia onde
me encontrava.
– Sem códigos e metáforas, Pedro. Onde diabos você está?
– Ui, diabos. Ele deve estar na cozinha.
– Estou ligando do escritório.
– Não sei onde estou.
– Como assim não sabe?!
– Peguei o metrô, depois o trem, depois um ônibus e desci quando achei que estava
distante o suficiente de mim mesmo. Estou andando a esmo há meia hora. Não reconheço nem
os postes da rua.
– Quer dizer que ainda está na cidade?
– Talvez. Não dá pra ter certeza. Me lembro de um aeroporto, em algum ponto. Mas
nem disso estou seguro. Pode ter sido somente o barulho de um avião.
Coincidentemente, a força do acaso quis que fosse parar numa igreja. Uma capela
carcomida, construída apoiada no morro, tão à margem do que se entendia como igreja quanto
a rua de terra batida que levava até ela. Seus bancos vazios me irritaram. Na realidade, o eco
produzido pelo espaço abandonado foi o que me enervou. No fim das contas, me percebi com
raiva da própria voz. Não que o sentimento autodestrutivo me fosse estranho. Só pensei que era
inapropriado que surgisse ali, tão fora de circunstância. Tão longe do cotidiano. Saí.

OITO

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No verão piorava. As sucatas vibravam com o calor, transpiravam, desprendiam-se. O
resultado vinha no formato de ondas opacas de luz malcheirosa. O ferro velho ficava inteiro
empesteado daquele odor, e não se podia escapar dele mesmo nos trilhos do trem, mais além,
por onde caminhávamos sem objetivo nos dias mais quentes. “Você é hilário”, ela me disse.
Achei a observação exagerada. Segui me equilibrando sobre a linha, me esforçando para não
cair. Hilário era que estivesse há tantos anos vagando e tivesse me acomodado ali, entre todos
os lugares que poderia ter escolhido. E que houvessem me arrumado uma companheira tão
similar a Helena, com quem dividira uma vida diferente, mesmo que apenas na superfície.
Desde que destruíra o celular, perdera a noção de proximidade. Embora me fosse permitido
usar o aparelho da sede, contanto que compensasse em serviço as palavras trocadas. Fiz meus
cálculos e decidi que não valia a pena. Preferia matar o tempo com aquela garota metálica que
se movia desajeitadamente para cima e para baixo, sempre me seguindo. “Você é brilhante”,
ela me disse. Sorri e notei que um de seus olhos tinha se soltado e caído alguns metros para trás.
Voltei, apanhei-o, limpei-o com a barra da camiseta e ajudei-a a encaixá-lo de volta na órbita.
Ela prescindia deles para enxergar, se é que realmente enxergava. Por outro lado, consistiam
em uma porção vital de seus parcos recursos de expressão. Sem eles, as sobrancelhas riscadas
a giz ficariam ainda mais patéticas. Alcançamos o limite da propriedade, marcado pela
encruzilhada. Dali em diante morava o perigo, pois as locomotivas ainda perambulavam
desgovernadas desde o apagão. De um jeito ou de outro, o pai a proibira de cruzar a fronteira.
E eu me recusava a prosseguir sozinho. Então voltamos, mais devagar do que fomos. “Você é
lindo”, ela me disse.

SEIS

Me encontraram dormindo na calçada. Sem que eu notasse, tamanho o estado de


desidratação a que chegara, me puseram para dentro e jogaram meu corpo inerte sobre algo que
já fora uma cama, mas que agora era uma piada de mau gosto. Lembrava-me de ter aceitado
comida e água. Muita água. Aos poucos, fui voltando a mim. Nunca totalmente, nunca por
completo. Alcancei um estágio intermediário de ciência das coisas e nele permaneci. Me
apresentaram o ferro velho, explicaram como se ganhava dinheiro por ali, como se sobrevivia.
Muito solícitos, muito educados, os funcionários do empreendimento mequetrefe acabaram
descobrindo que me chamava Pedro e que tinha fugido de casa. A fuga era mentira, ou no

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máximo uma aproximação, porém explicar a situação nos detalhes exigia um esforço que não
estava disposto a realizar. Eles me acolheram e me levaram até o pai. O pai dominava o local.
O pai mandava, os demais ouviam e obedeciam. Ele me recordava o Anjo, mas às avessas. Não
que mostrasse sinais de impiedade ou sadismo. Mais pela miséria em que vivia, mais pelo fato
de que precisava se impor, quando o Anjo conseguia que todos o servissem sem que se fizesse
necessária uma só solicitação. Cogitei me rebelar contra sua autoridade. Ele me dissuadiu
quando montou a garota metálica a partir dos restos de um androide desativado e me deu-a de
presente.

TRÊS

Logo que saí do apartamento, não soube como agir. Faltavam-me planos. Só os
elaborara até ali, até a rua. Meu primeiro reflexo fora abrir um aplicativo e chamar um motorista.
Todavia, esse tipo de procedimento deixava um rastro e eu já pretendia desaparecer desde
aquele momento. Não sabia que levaria tanto tempo para retornar. Um mês arrastaria consigo
o resto do ano, e o próximo, e o seguinte, até que me esquecesse do caminho de volta. E, depois,
não fazia mais sentido voltar. Por mais que o Anjo tivesse ido -- por mais que já tivesse
ascendido, ou sido acolhido novamente junto à plenitude celeste, alçado voo, desaparecido,
reencarnado ou o que quer que fosse que os anjos faziam quando partiam -- Helena
provavelmente teria seguido em frente. Arrumado outros colegas de quarto, para repor a
ausência dos que a abandonaram. Então eu também segui em frente. Andei até a estação, e de
repente o metrô se convertera num barco pesqueiro que me dera carona a contragosto para que
atravessasse o canal. Escutara rumores de que havia esperança na outra margem. Em
retrospectiva, devia ter desconfiado de meus ouvidos. Bebia abundantemente num bar do porto,
na companhia de cinquenta homens e pouquíssimas mulheres, portanto o desespero se
constituía na voz que ladrava mais alto no recinto. E onde reina o pânico, a esperança não
demora a ser mencionada, pintada de ouro, travestida de princesa, alardeada aos quatro ventos
como a terra prometida. O lado de lá do canal era igual ao de cá.

ZERO

Conheci Helena na feira. Eu comprava bananas, ela carregava um exemplar de cada


legume ou fruta já inventado, feito uma arca de Noé para vegetais. Foi como puxei assunto,

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ajudando com as sacolas. A miríade de sacolas que somente não se rompiam por compaixão.
Acompanhei-a até onde morava, só cinco minutos caminhando moço, se pudesse ajudá-la
agradeceria muitíssimo, deixei-me levar por seu papo mole e busto farto. Sempre tive um fraco
por mulheres diretas e rapazes tímidos. Ela me pediu para que entrasse, por óbvio. Podia deixar
ali na cozinha, muito obrigada. Em semanas morávamos juntos, sem nunca ter havido um
pedido de namoro, nem nada. Seria sempre assim entre a gente, passos apressados que não
levavam a parte alguma. Até que o que tínhamos, e que eu jamais soube identificar, esfriasse e
eventualmente morresse. Mesmo quando passamos a dividir os rapazes tímidos, não foi
suficiente para nos resgatar. Ela decerto esperara que eu arrumasse um emprego decente, que
estudasse, que me tornasse alguém na vida. Queria filhos, brigávamos constantemente por causa
daquele papo insuportável de filhos. Foi o que trouxe o frio para dentro de casa. E depois,
ironicamente, o Anjo, com seus modos escassos e penas sobressalentes. Uma benção deturpada,
porque de súbito tínhamos um filho crescido e o que me horrorizava eram os bebês. Passamos
de amantes a meros colegas de habitação, unidos pela responsabilidade que nos fora imposta.
E eu decidi fugir.

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3.4 KM 72

Km 72 da Rodovia dos Bandeirantes. O parque de um lado da estrada, o outlet do outro,


o posto bem em cima de suas cabeças. Quase um convite para o inusitado. Era ali que Lauro e
Eduardo costumavam por seu plano em prática. O trânsito em geral deixado para trás, a timidez
inicial já amaciada pela primeira hora de viagem, a noite consolidada lá fora, a velocidade
constante como em um exercício de física básica. Condições ideais de temperatura e pressão.
Até que um dos dois amigos de infância rompesse o equilíbrio.
– E como estão indo suas aulas? – Lauro perguntou. Com a outra metade do cérebro ele
xingava o carro da frente por não lhe dar passagem.
Dessa vez não tinham combinado nenhum assunto em especial. Na verdade, nas últimas
viagens, o improviso tinha prevalecido. Depois de tantas rodadas ensaiadas, perceberam que a
autenticidade da curiosidade colaborava com o quadro que pintavam. O que surtia um efeito
mais intenso na vítima, que se consistia na figura de uma garota ligeiramente esnobe. Nem lhes
dera boa noite.
– Estão boas, Juca, estão boas – Edu respondeu. – Ontem aprendemos a fazer com que
durem horas sem estourar.
Quase ninguém o conhecia por Lauro. Não desde que tinha idade o suficiente para achar
o nome uma perversão simplória e infeliz de sua versão feminina. Lauro propagara seu apelido
de infância até entre os colegas da faculdade e do trabalho. E com sucesso. Atualmente, poucos
sabiam da escolha triste de sua mãe. Edu o conhecera assim, mas respeitava o colega o bastante
para fingir que se esquecera de sua denominação original. A maioria se contentava com Juca.
Por que Juca, nem ele mesmo se recordava exatamente. Algo a ver com seu tio, dono da
mercearia, com quem sempre guardou uma semelhança perturbadora. Ou então por conta
daquele jogador de futebol. Impossível ter certeza, o fato era que gostava de Juca e detestava
Lauro.
– Ah é? Existe uma técnica para isso? – Juca prosseguiu.
– Claro. Existe uma técnica para tudo.
– E você conseguiu?
– Consegui o que?
– Dominar a técnica?
– Evidentemente. Não é tão difícil. É uma questão de dosagem. E de paciência.
Edu sabia mostrar sem revelar, jateando a divisória simbólica que os separava do banco

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de trás com habilidade. Se estava estarrecido tentando adivinhar do que falavam, só podia supor
que a beldade de cabelos encaracolados sentada ali também estaria. O que consistia
precisamente no objetivo maior daquele experimento. Sim, porque no fundo, não passava de
um experimento. Antropológico, psicológico, sociológico, que chamassem como quisessem.
Experimentavam e isso bastava.
– O professor é bom?
– Professora – ele corrigiu, destacando a pronúncia da última vogal. – E sim, é muito
boa. Compartilhou com a turma a receita milenar da avó dela. Acho que só por isso deu certo.
– A receita... para que não estourem? – arriscou, com base nas pistas que possuía.
– Isso. Qual a proporção correta entre água e detergente. Qual o tipo mais adequado, o
PH, a marca, essas coisas. Até que devemos usar água gelada, direto do freezer, ela nos revelou.
Interfere na densidade das bolhas.
Bolhas, pronto. Então era isso. Ele tinha se superado. Talvez até exagerado. Ninguém
faria aulas sobre como melhor soprar bolhas. Possivelmente por tal razão ainda não tinham
obtido nenhuma reação por parte da passageira. Distraída, ela observava o tráfego pelo vidro.
Até que notou. A moça levava fones nos ouvidos. Daqueles brancos, sem fio, que vinham
impregnando as orelhas da juventude. Não que ele próprio não se enquadrasse no público alvo
daquelas tranqueiras. Mas se recusava a tomar parte no esquema. Nada justificava o preço que
cobravam. Nem a estética, nem a praticidade, muito menos a qualidade do som. De qualquer
forma, ela não os escutava. Estava presa em sua própria bolha. Praguejou.
– O que foi? – Edu quis saber.
– Fones.
– Ah.
Ele soava tão desapontado quanto o motorista.
– Talvez quando ela os tirar? No posto? – Juca sugeriu.
– Nah – Edu resmungou. – Agora perdeu a graça.

***

A ideia tinha sido de Edu. Juca dirigia, jamais teria tempo para conceber algo do gênero.
Mentes práticas se dedicavam à resolução de problemas. Mentes mais abertas, menos
laboriosas, e portanto menos úteis, como as de Edu, inventavam jogos como aquele. Criavam
problemas de solução ignorada ou desnecessária. Feito as irmãs do evangelho.

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Fora numa das primeiras viagens em que resolveram oferecer carona nas redes sociais.
Deste modo, duas pessoas tinham surgido onde antes reinavam solitárias as mochilas dos
meninos. Um casal, ele trabalhava, ela estudava, os dois iam passar o feriado com o família, no
interior. Típico, tanto quanto todo o resto. Edu se entediava facilmente. Esperara que as caronas
fossem indivíduos interessantes. Indivíduos, no mínimo. Não aquelas aglomerações de
expectativas previsíveis sentadas em silêncio e oferecendo água e balas de hortelã. Ansiava por
histórias, por episódios arrebatadores, por alteridade. Não mais do mesmo, não mais de si
mesmo. Insubordinara-se contra a mediocridade do que, de fato, acabou reconhecendo como
inevitável. Afinal, bastava que se analisassem a origem e o destino do grupo. Da metrópole ao
campo e do campo de volta à metrópole. Saindo na sexta e voltando na segunda feira à noite,
Dia da Independência. Os enredos projetáveis sob aquelas conjunturas específicas e miseráveis
eram finitos. E, portanto, fadados à repetição. Ele próprio mais um ponto na reta aborrecida que
traçavam. Justamente por isso buscara o incomum. Sua sede pela ruptura vinha do azul
monótono que revestia o céu de sua rotina. Uma única nuvem. Bastava uma simples nuvenzinha
para quebrar o padrão. Nem que precisasse inventá-la e jurar com os pés juntos que chovia.
– Ela me atacou de novo hoje – ele dissera.
– O quê? – Juca perguntara.
– A Priscila, sabe? Que mora no meu corredor.
Ele sabia, sabia muito bem. Todos os amigos de Edu suavam frio quando a porta do
elevador se abria. Todos tinham aprendido a avaliar à distância se o apartamento vizinho estava
aberto. E, em caso positivo, feito antílopes na savana, todos acostumaram-se a correr
desembestados com o pinscher de vinte e poucos centímetros ladrando em seus calcanhares.
– Você devia reclamar com o síndico. É um absurdo.
O componente masculino do casal precipitara-se suavemente. Da cabeça ao tórax ele já
renunciara ao apoio do encosto e preferira fixar o queixo sobre o polegar, que por sua vez se
sustentava pelo cotovelo, o qual por fim se afundava em sua coxa. Edu disfarçou o sorriso.
– Já reclamei mil vezes. Não adianta.
– Pois reclame mil e uma. Tem que ter algo que vocês possam fazer. Alguma multa, não
sei.
– Pensei em chamar a vigilância sanitária. Você sabe que apesar de pequena não é limpa.
E ela pode machucar alguém um dia desses.
– É tão suja que inclusive fede.
Agora a mulher também manifestava indícios de interesse. Sutis e delicados,

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condizentes com sua compleição. Embora inegáveis. Estava na forma como permanecia quieta,
interrompendo o assunto inexistente que insistira em manter ativo com seu noivo até então.
Sugeria-se na maneira como se arrastara ligeiramente para o meio. Evidenciava-se conforme
procurava o olhar dos dois pelo retrovisor. Fora capturada, Edu tinha certeza. Só lamentou a
costumeira lentidão de raciocínio de Juca. De sua parte, não estava seguro de que o colega
compreendera o que faziam.
– Só que hoje ela extrapolou todos os limites do aceitável. Acredita que ela foi tão rápida
que entrou no meu apartamento? Quando me dei conta, já estava lá dentro. E por mais que eu
insistisse, não queria sair.
– Ela é completamente louca. O que você fez?
Ele percebera. Pelo modo discreto com que torcera os lábios evitando uma risada, ele
percebera. Edu se acalmou.
– Olha, considerando o rumo que as coisas estão levando, pensei até em chamar a
polícia. Mas me contive. E no fim, ela acabou se cansando e saiu por conta própria.
– Inacreditável. E nem é como se você já tivesse dado bola pra ela alguma vez. Com a
gente ela costuma ser agressiva, e com você esse grude. E dos dois jeitos é ruim.
– Olha, acho que preferia a agressividade. Antes de sair, ela fez xixi na sala.
Deixaram a conversa morrer ali. O casal parecia insatisfeito, porém não ousaram fazer
perguntas nos segundos de silêncio que se seguiram e Juca aumentou o volume do rádio logo
após. Eles jamais saberiam quem era Priscila.

***

Certa vez, levavam um senhor de meia-idade. Grisalho, terno negro, camisa clara. A
gravata ele arrancara com um suspiro e guardara em sua pasta. Não carregava nenhuma outra
bagagem física, contudo exibia os sinais característicos da maturidade. Um alvo arriscado.
Arriscado e despropositado, pois finalmente aparecera alguém que destoava dos demais. Mas
Edu se deixou seduzir pelo desafio. E pelo vício. E pelo tédio. A atividade sempre o ajudava a
suportar melhor a duração mesmérica da viagem.
– Mal cheguei e lá vou eu outra vez.
– Pra onde você foi mesmo? – Juca fingiu profundo interesse.
– Niolanda. É uma ilha pequena, fica no Mar de Java, na Indonésia.
– Foi a trabalho?

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– Isso. Uma agência local quer atrair mais turistas brasileiros para lá.
– Não têm chineses o bastante?
– Quase não recebem chineses. Um misto de incompatibilidades políticas, étnicas e
religiosas. Querem brasileiros. Brasileiros são quase neutros em todos esses pontos. Insípidos
como água potável, nas palavras da Sra. Adelia.
– Sra. Adelia?
– Foi quem me recebeu. E com quem passei a maior parte do tempo. Uma mulher
adorável. Podia ter qualquer coisa entre trinta e setenta anos.
Juca se interrompeu para uma ultrapassagem. Um caminhão se pusera no caminho deles
repentinamente e ele fora forçado a usar a faixa da esquerda para evitar a colisão. Nem a
manobra nem o relato da viagem pareciam impressionar o passageiro. Ele digitava no celular e
ajeitava os óculos no nariz a cada dois minutos, como se fosse alérgico à armação. Edu
precisaria ser mais ousado.
– A pior parte foi que me mandaram para lá bem na época do Festival da Colheita.
– Que azar. O que é esse festival?
– Eu comentei com você. Que eles não podem conversar durante o dia? E das libélulas.
Das libélulas eu falei com certeza.
Edu pensou ter visto um brilho qualquer cruzar o olhar do homem. Era só uma
estimativa, feita a partir do pouco que o retrovisor interno mostrava. Tinha de insistir.
– Não me lembro... essa semana foi um pandemônio lá no escritório.
– Bom, resumindo, os locais estão proibidos de conversar durante o Festival. Mesmo
gestos não são tolerados. Só podem se comunicar à noite. Por duas semanas. Você pode
imaginar o caos que isso gera.
– Eita. E você, como fez?
– Não era local, então podia fazer o que bem entendesse. Só que, depois de um tempo,
fica chato falar sozinho, então me adequei aos costumes.
– Não encontrou outros estrangeiros para te fazer companhia?
– Não. E com meu chefe, que foi comigo, não falava nem de noite.
– Deve ser bizarro.
– Olha, no começo, é estranho mesmo. Mas você se acostuma. Aprende a guardar o que
importa e a voltar ao tópico quando o sol desaparece. A maior parte dos assuntos se revelam
opacos e acabam esquecidos, perdidos com a luz do dia. Descobri que falamos demais
normalmente. O ser humano viceja na introspecção.

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– E o que é que têm as libélulas?
– Ah, sim. Elas são sagradas para eles. E com elas, podem conversar, mas só durante o
Festival. Quinze dias por ano em que podem ter contato com o divino sem intermediários.
Edu seguiu tecendo comentários acerca da mitologia Niolandesa, explicando o
inexplicável, sempre atento à figura paternal que voltara a ignorá-los no banco de trás. A lenda
da Libélula Primordial. Como toda vida derivava daqueles insetos alados, desde as baleias até
os seres humanos. Ele próprio se converteu em uma enquanto falava. Planava, o bater de suas
asas imperceptível em sua rapidez, baixava, tocava a superfície da lagoa por uma fração de
segundo, tornava a subir. E sua boca seguia seca. Ensaiava outra investida. A Sra. Adélia levara-
o conhecer os famosos viveiros de libélulas de Niolanda. Sim, porque apesar de sagradas,
libélulas não eram muito evoluídas ou adaptadas ao mundo atual. Então precisavam de uma
ajudazinha na hora de se reproduzir. Edu e ela foram acompanhados de toda uma comitiva de
vestais, se embrenharam na mata virgem, doze túnicas brancas velejando um vento tão puro
quanto as vestais, a mata, o próprio branco das túnicas. O que fez Edu achar graça quando viram
a revoada imensa de bichos, todos em grau perene de acasalamento. Voavam, manobravam,
entre galhos e poças d’água, com a mesma graça e delicadeza que empregavam na solidão, só
que aos pares. Octógonos de asas, espalhados por todos os cantos da redoma. Um bacanal de
artrópodes. A Sra. Adélia o censurara, quebrando a regra da comunicação. Por uma boa causa.
Explicou-lhe, entre cochichos, que na verdade não se podia conversar livremente com elas. Só
era permitido responder. Ficaram, assim, tal qual crianças no mar, esperando a onda.
– Que loucura – Juca comentou.
– Também achei. Até que escutei um sussurro no silêncio vibrante que nos cercava. Na
hora, olhei para trás, incrédulo. Pois pensei que uma das vestais ousara quebrar o pacto do
Festival, me dirigindo a palavra. Justo elas, as mais castas e devotas da ilha. Engano meu. Elas
estavam longe, tinham ficado do lado de fora do vidro. Ali dentro, éramos só eu e a Sra. Adélia.
E ela não tinha sido, o sussurro viera da direção oposta. Se é que viera mesmo. Passei a duvidar
de que tinha escutado algo. O farfalhar perene das libélulas anulava todos os outros sons, que
já não eram muitos, e se dilatava, saturando a atmosfera. Fazia menção de sair quando ouvi de
novo.
Outro sussurro, mais forte dessa vez. E mais delineado, conquanto ainda turvo. Edu
contou que imaginou inclusive uma palavra, descrita sem contornos definidos, como se
composta de névoa. Xanali. Não tinha ideia do que significava, mas ouviu de novo. Xanali.
Olhou para a Sra. Adélia de relance, em busca de auxílio. Ela estava perdida num transe

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tragicômico de braços e pernas balançantes. Sozinho, Edu inquirira suas interlocutoras.
Grosseiras, mesmo em tal situação elas persistiram na prática do ato em que foram
surpreendidas. Duplas e mais duplas delas se amontoavam em torno do estrangeiro. Zumbindo,
sempre zumbindo, num rufar incessante e desnorteador. O sussurro permanecia. Xanali, xanali,
xanali. Ele começou a respirar mais rápido, sua visão se turvou, precisou se sentar, molhou a
bunda numa poça, praguejou, elas se dispersaram, ariscas à heresia. Edu decidiu que bastava e
foi se unir às vestais, no exterior.
– Depois fiquei sabendo que “Xanali” significa “morte”, no idioma dos nativos.
– Que bobagem – o executivo disse.
– Oi? – Edu questionou.
– Você acha mesmo que uma libélula falou com você, meu amigo? Isso se chama
sugestão. Você deve ter escutado ou lido esse termo em algum lugar durante a viagem e ficou
hipnotizado pelo ritmo dos bichos.
– Pode ser – Edu admitiu, satisfeito. Não importava que ele não acreditasse no sussurro
dos deuses. Já tinha aceitado que existia algo como viveiros de libélulas, numa ilha chamada
Niolanda, que celebrava um Festival mudo em homenagem a insetos pré-históricos. E que
“Xanali” queria dizer “morte”. – De qualquer forma, passei o resto dos dias dentro do hotel.
Não quis fazer nenhuma das trilhas que meu chefe sugeriu. De repente, todas pareciam
perigosas demais.
– Vocês são muito supersticiosos hoje em dia. É essa porra de misticismo juvenil.
Quando você vai ter a chance de conhecer essa ilha aí de novo? Provavelmente nunca.
– Provavelmente nunca – Edu concordou.

***

Juca já se habituara aos enredos mirabolantes do amigo quando ele implorou para que
dessem um passo além. Era simples, ele garantira. Só que de simples não tinha nada. Envolvia
uma lista extensa separada entre frutas, cores e animais. Edu cogitara incluir formas
geométricas mas Juca rebateu que só teria a hora do almoço para decorar tudo aquilo. Maracujá,
jabuticaba, morango, amarelo, preto, vermelho, canário, gato, cachorro. Havia um padrão, para
facilitar. E se errassem uma também não teria problema. Era até aconselhável, inclusive. Daria
mais verossimilhança ao exercício. Pronto, ficou acertado que errariam uma, propositalmente.
A terceira, morango. Decidiram os últimos detalhes da brincadeira e quando deram por si lá

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estava a placa anunciando o quilômetro 72 da Bandeirantes.
– Vamos jogar alguma coisa? Aquele da telepatia? – Juca perguntou, em voz baixa o
bastante para que ficasse claro que a carona (uma garota de cabelos compridos tingidos de rosa)
não fora incluída, mas alta o suficiente para que ela ouvisse a proposta.
– Pode ser – Edu respondeu. – Qual o nosso recorde mesmo?
– Duas seguidas, quatro no total.
– Estou sentindo que hoje vamos quebrá-lo. Minha cabeça está bem airada.
– A minha também – Juca disse, uma mão segurando o volante, a outra dando leves
tapinhas no couro cabeludo. – É hoje que atingimos um nível Jean Grey de transmissão de
pensamento.
– Quem começa? Você?
– Pode ser.
– Vamos por categorias?
– Isso. Frutas?
– Frutas.
Juca pensou no maracujá. Sabia da fraude, mas decidiu se entregar e dar uma chance ao
mágico. Na medida em que podia, sem tirar os olhos da estrada, viu a casca, macia e por dentro
esbranquiçada. Um invólucro perfeito para dezenas ou centenas de sementinhas revestidas
daquela gosma azeda. Franziu o cenho. Tinha seis anos de idade e uma colher cheia de açúcar
entre os dedos. Equilibrou-se, opa, ia fazer sujeira no chão da avó, pronto, enfiou o doce no
meio do ácido e mexeu. Por que crianças gostavam tanto de mexer? Mexeu, mexeu tanto que
algumas sementes escorriam pela borda da fruta. Por sorte foram resgatadas pelo avô antes que
se soltassem. Provou, se arrependeu. Estava doce porém continuava ruim. Mal conteve um
arrepio. Voltou, encheu um copo de suco, coou o corpo de fundo poeirento e triturado, deu um
gole refrescante, sentiu o líquido frio descendo pela garganta. E havia a mousse. Sua mãe fazia
uma mousse digna de uma libélula.
– Maracujá? – Edu arriscou, inseguro.
– Boa!
– Vocês estão adivinhando o que o outro está pensando? – a menina quis saber. Sucesso.
E bem antes do que Edu teria estimado.
– Sim. Fazemos isso sempre, estamos ficando bons – ele explicou.
– Posso brincar também?
– Claro – Edu respondeu. – Quer adivinhar ou ser adivinhada?

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– Adivinhar. É a sua vez, certo?
– Certo. Frutas ainda?
– Aham – Juca concordou.
Edu simulou concentração, enquanto pensava no quanto aquela pessoa ficaria
aterrorizada quando eles acertassem palpite atrás de palpite. Nem se deu ao trabalho de
realmente pensar em jabuticabas. Pelo menos, não no início. Só que Juca demorava a adivinhar.
Provavelmente tinha se esquecido da palavra, não seria de se surpreender. Então, para que desse
mais alguns segundos ao colega, se recordou do pomar da Tia Luísa. A esposa de Tio Juca. Não
eram tios dele a não ser por proximidade afetiva. Ele e Lauro (naquela fase ainda era Lauro)
costumavam passar a tarde toda se escondendo entre as árvores. O cheiro das mangas e das
goiabas apodrecendo no chão se misturava e reinava sobre todos os outros. Eles preferiam
esmagar as folhas do limoeiro entre os dedos e sentir o frescor nas narinas. Descascar as
mexericas com o polegar e se deliciar com o aroma do sumo da casca e do suco dos gomos. Em
suas memórias, não havia algo como o conceito de época correta de cada variedade. As
lembranças se sobrepunham, recortes de um quebra-cabeça sem encaixes, e o resultado se
consolidava num bosque fértil em perene frutificação. Lá onde passavam uma tarde eterna, que
continha em si todas as outras, numa soma indissociável de sabores. E no centro geográfico
tanto do pomar quanto das recordações, havia a jabuticabeira. A única que os admitia livremente
em seus galhos. Escalá-la era um processo. Só podia ser feito quando os bolsões de bolinhas
negras das partes baixas tivessem sido todos consumidos. O que faziam com prazer, uma a uma,
um estouro entre os dentes, a língua que se intrometia pelo interior, aquela parede azedinha, em
contraste com o recheio suave, e pronto!, caroço engolido, casca cuspida, partiam para a
próxima.
– Jabuticaba? – a menina chutou.
Juca e Edu se entreolharam o máximo que a estrada movimentada permitia.
– Acertou – Edu declarou.
Ela comemorou batendo palminhas.
– Gostei! Vai, você agora.
Juca concordou com um murmúrio gutural, arrependido de ter esperado tanto tempo. É
que ficara ansioso com a participação da garota e acabara misturando a ordem da lista de Edu.
Precisara de uns segundos para ter certeza. Em nenhum momento pensou que não importava de
fato o que falassem, bastava que o outro afirmasse o acerto. A caronista jamais saberia, isso se
chegasse a acreditar no teatro. Todavia, o forte de Juca não era o raciocínio. Essa parte ele

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deixava com Edu, e se Edu lhe entregara uma lista, então era necessário decorar essa lista. E
falando em lista, a próxima palavra era... morango. Isso, morango. A última fruta, e a sua
favorita. Ficava boa com álcool, melhor ainda no açaí. Mas nada poderia superar o merengue
de sua tia. Tia Luísa, casada com Tio Juca, irmão do seu pai. Nada além de creme, suspiros
caseiros e...
– Morango? – ela perguntou, hesitante. Não era possível.
– Certo – Juca disse, a contragosto.
– Nossa, eu levo jeito pra isso.
Os dois continuaram, incentivados pela figura serelepe que ia com eles para o interior.
Cada vez mais rapidamente, ela adivinhava palavra por palavra da lista de Edu: amarelo, preto,
canário, gato. Só o vermelho que Juca conseguira praticamente gritar, histérico, antes dela.
– Acho que já chega dessa brincadeira – ele sugeriu. Edu notou que ele tremia
ligeiramente.
– Só mais uma, vai – a menina pediu. – A última.
Eles se entreolharam novamente. Edu o encorajou com um aceno.
– A última – Juca concordou.
Tinha de ser a última mesmo, porque depois dela a lista acabava. Juca estava abalado.
Acertar uma vez poderia ter sido coincidência. Cinco era demais. Algo de terrivelmente errado
acontecia ali. Aquela menina de cabelos coloridos e aparência inocente escondia algum segredo.
Ele queria que tivesse alguma maneira de abandoná-la, alguma desculpa de que pudessem se
valer para se livrar daquele projeto de vidente. Estava com medo, apesar de não querer admitir.
Talvez no posto, quando parassem para ir ao banheiro, pudessem despistá-la. Engraçado, Edu
não parecia tão preocupado quanto ele. Na verdade, parecia preocupado com ele, não com ela.
Não com aquela situação absurda em que os tinha colocado. E eles esperavam que pensasse na
última palavra. Podia sentir a expectativa da moça. Cachorro. De todos os animais, o Edu
deveria ter refletido melhor antes de incluir esse. Fora para facilitar, Juca entendia. Maracujá,
amarelo, canário. Jabuticaba, preto, gato. Morango, vermelho, Mel. Ele ganhara a Mel de
aniversário, quando tinha treze anos de idade. Um filhote de Shiba inu, de peito branco e lombo
acobreado. Se apaixonara por ela imediatamente. Tinha uma língua áspera e quente,
emoldurada por dentinhos finos que mordiam e arranhavam a pele dos dedos e dos calcanhares.
E não sabia nadar, por óbvio. Aos sete meses, cachorro algum sabia nadar. Se não fosse tão
distraído... se a empregada não tivesse saído mais cedo naquela tarde... se não fizesse tanto
calor... se não tivesse esquecido a toalha lá dentro... se Tia Luíza não tivesse ligado...

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– Esse está difícil – a menina comentou. – Cachorro? Mas, um cachorro em específico?
Como se chama aquela raça japonesa que parece uma raposinha?
– Shiba – ele entregou, derrotado.
– E eu consegui ver mais coisa. Vi que você ainda se culpa. Por ter deixado o portão
aberto. E teme que por isso jamais conseguirá ser pai. Deixe esses medos de lado. Não foi sua
culpa. Não foi culpa de ninguém.
Juca continuou dirigindo, a velocidade aprisionada pelo piloto automático. Seus lábios
tremiam e a testa exibia minúsculas gotículas de suor, apesar do display digital do ar
condicionado indicar 18ºC. Edu percebeu que tinha ido longe demais e forçou uma gargalhada
estridente.
– Você caiu direitinho! Ela é minha amiga da faculdade!
A garota também ria. Um riso baixo e constrangido. Juca acelerou, rompendo o limite
imposto por ele próprio ao calibrar o carro. Não se ouviu nada além do rádio durante o resto da
viagem.

***

Foram semanas até que voltassem a se falar. Meses para que Juca aceitasse Edu em seu
carro novamente. Um ano exatamente até a noite em que Edu o convenceu a voltar a brincar
com as caronas. Nenhum dos dois sabia que seria a última vez em que fariam isso.
O passageiro era um garoto jovem, Tomás, de dezessete anos. Tinha acabado de passar
no vestibular, cursava arquitetura, estava voltando para casa depois da primeira semana de aula.
Edu e Juca simpatizaram de pronto com ele. Havia uma certa inocência em sua voz, combinada
com sua aparência delicada e gentil, que tornava inconcebível que alguém um dia pudesse tê-
lo odiado. Mas fora o caso, na escola. Ele passara o início da viagem contando sobre o alívio
que era a faculdade se comparada com o ensino médio, onde sempre fora alvo de brincadeiras
desagradáveis. Juca teve pena dele, do mesmo modo que teria de uma garota. Aliás, desde que
pusera os olhos nele, esperando em pé com sua mochila de tons pastéis em frente à estação
Pinheiros, fora nisso que pensara. Que parecia uma menina. Era bonito demais para um menino.
Edu também se compadeceu, apesar de não ao ponto de desistir do plano. Se convenceu
de que o que eles faziam no carro em nada se assimilava ao tipo de coisa que ele sofrera no
colegial.
– Com saudade dos velhos? – Juca perguntou. Ainda estavam no Km 24.

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– Sim, muita. No meu caso, é só meu tio. Mas gosto muito dele. Devo tudo a ele.
Juca jamais teria coragem de questioná-lo além disso, então Edu assumiu as rédeas:
– Você mora com seu tio?
– Isso. Desde os oito anos de idade. Meus pais morreram, num acidente, indo para
Bauru. E minha tia se foi três anos depois. Sempre foi uma mulher enfermiça, ninguém se
surpreendeu. No fim, acabei sendo criado por ele.
– Nossa. Sinto muito – Juca conseguiu dizer.
– Está tudo bem. Já faz muito tempo, e meu tio me deu tudo que eu poderia querer. Na
verdade, provavelmente cresci meio mimado por conta do jeito que ele me trata. Vai ser difícil
me acostumar a morar sozinho.
– Sempre é – Edu concordou. – Ele era irmão do seu pai?
– Não. Não somos parentes de sangue. Minha tia era irmã da minha mãe. Ele vive
apontando como eu me pareço com ela.
– Entendi. E ele não se casou de novo?
Juca o censurou com o olhar. Edu não podia resistir. Finalmente davam carona para
alguém interessante. E muito diferente deles. O interrogatório continuaria até que ficasse claro
que Tomás se sentia desconfortável.
– Não. Nunca teve filhos também. Somos só nós dois. Ele costuma dizer que se não
fosse por mim, provavelmente seria um daqueles viúvos rabugentos com sete cachorros e uma
espingarda. Coincidência ou não, ele comprou um filhote de pastor alemão um mês antes de eu
me mudar para São Paulo.
Edu se empenhou para que o assunto não enveredasse por essa via canina, considerando
como terminara da outra vez com sua amiga e a história da Mel. Assim, falaram sobre a casa
em que o sobrinho e o tio moravam, afastada da cidade, a sede de um haras em que atualmente
só três cavalos pastavam. Discutiram brevemente a crise financeira e política. Tomás descreveu
suas impressões iniciais da universidade, dos colegas aos professores. Por fim, Edu perguntou
pelos outros parentes dele, se existiam, onde viviam. Eram poucos, Tomás explicou. Poucos e
afastados uns dos outros, de modo que não podiam dar sustentação a uma imagem de família
propriamente dita. Feito pregos diminutos espalhados longe demais entre si na parede, e sobre
os quais um quadro maior nunca poderia se equilibrar.
Depois, por alguns quilômetros, o silêncio prevaleceu. Uma expectativa muda, pois o
marco se aproximava.
– Os pesadelos voltaram – Edu disse, no momento oportuno.

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Juca levou alguns segundos para se situar.
– Eita. De novo?
– Sim. Essa semana sonhei que pegava um Uber e ele me deixava no meio de uma
estrada solitária. Havia um barranco, uma árvore, um poste e uma senhora. Tudo unitário. Me
aproximei da senhora, só que ela não queria conversar comigo. Fiquei insistindo, queria saber
pelo menos onde estávamos. O poste acabou me contando. Colado nele, havia um anúncio, e
no anúncio um endereço. Ficava longe de tudo o que eu conhecia. Estou sem usar o aplicativo
desde então. Nunca pensei que fosse voltar a andar de táxi.
– Você acha que vai ser como antes?
– Como assim, como antes? – Tomás quis saber. – Desculpa me intrometer, mas é que
também tenho pesadelos bem intensos.
– Os pesadelos de Edu são premonitórios – Juca explicou, conforme o combinado e
apesar de sua relutância em enganar o garoto.
– Premonitórios?
– Quer dizer que acontecem – Edu esclareceu. – E nunca é coisa boa.
Ele contou da vez em que sonhou com um rio. Ia de barco e de vez em quando a
correnteza ameaçava virá-lo. Por algum milagre onírico, chegou onde tinha que chegar. Uma
gruta de pedra, enfiada entre uma cachoeira e uma colina. Entrou, avisando que se aproximava.
Sabia que não estava sozinho. Que algo habitava a caverna. Se agasalhou com uma manta que
carregava, pois o hálito das rochas lhe dava calafrios. Encontrou quem procurava. Um velho
fiandeiro, que logo se mostrou acompanhado de dois irmãos. Um mais alto e esguio, outro mais
baixo e rechonchudo. Eles mostraram a tapeçaria que estavam cosendo. Não se enxergavam
nós nas linhas nem pontos no tecido. Como se estivessem meramente descobrindo seu padrão.
Um padrão que sempre estivera ali. A tapeçaria era xadrez e ao mesmo tempo negra e profunda
como o mar aberto. Edu teve medo de cair para dentro dela. Os velhos riram e com uma tesoura
dividiram-na em duas. Depois em quatro. E em oito. Até que só trapos restaram espalhados
pelo chão. Então eles recolheram os trapos num cesto e os queimaram.
– No dia seguinte, eu rasguei minha blusa favorita voltando pra casa do trabalho. Ela
enroscou num pedaço de arame no metrô e eu puxei por reflexo.
Tomás riu. Um riso melódico e agradável, que fez Juca querer rir com ele.
– Sério? É esse tipo de profecia que você recebe?
Edu estava ofendido. Não fora a reação que antecipara. Mas até aí, sua própria reação
foi divergente do que esperava e logo se viu rindo com eles.

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Quando pararam, Tomás disse:
– Os meus pesadelos são bem piores.
No fundo, e ironicamente, era como um sonho que se realizava. Enfim uma carona com
uma história autêntica e cativante. Edu prescindiu da invenção e se colocou na condição de
ouvinte. Juca já se entregara à narrativa de Tomás bem antes.
Os pesadelos tinham vindo logo após a morte dos pais. Tomás, na época uma criança
franzina e deprimida, acordava ao menos uma vez por semana aos berros. Os episódios eram
repetitivos. Tão repetitivos quanto seus componentes: a sensação de desastre iminente, um
abutre gigantesco que pairava sobre a cidade, e um velório eterno em que não se conhecia a
identidade dos defuntos, apenas dos convidados. E estes se enfileiravam de cada lado da rua,
aos prantos. A cena toda se apresentava colorida de cinza, como se tivessem apagado as luzes.
A variação vinha na dor. Em algum momento do sonho, não sempre o mesmo, uma dor
lancinante o despertava. Não chegava a acordar totalmente, ficava preso num estado de
intermitência, paralisado e convencido de que morria. Podia ter sido atingido por uma bala
perdida. Ou atravessado por uma lança enferrujada. Em geral, relacionava-se ao acidente. O
veículo capotava, suas pernas ficavam presas nas ferragens. Ao tentar se mover, acabava
ateando fogo ao próprio corpo.
– O mais constrangedor era que de manhã meu lençol às vezes estava sujo. Eu morria
de vergonha da minha tia.
Edu e Juca se entreolharam, sem conseguir evitar o sentimento de déjà vu que se seguiu.
Juca entortava o pescoço, inseguro. Outra peça de Edu? Não, ele não ousaria. E não teria
tamanho mau gosto.
Tomás ignorava a perplexidade dos companheiros e falava sem parar no banco de trás.
Sempre achou que conforme envelhecesse, os pesadelos se dissipariam. Seu tio lhe assegurava
que iam passar, que tinha sido exatamente assim com ele. A psicóloga da escola concordava.
De qualquer forma, ela nunca prestou muita atenção nele, até que desistiu de frequentá-la.
Decidiu encarar seus demônios noturnos de frente. Iria suportar a tortura enquanto precisasse.
Para se poupar do constrangimento que suas tripas assustadas lhe causavam, passou a usar o
banheiro todos os dias antes de se deitar. Funcionou. Mesmo quando eles vinham atormentá-
lo, não deixavam rastros fétidos na cama. Por um período, chegaram mesmo a rarear. Nunca
desapareceram totalmente, porém diminuíram de frequência e de intensidade.
Quando veio a puberdade, no entanto, os pesadelos voltaram com força redobrada,
potencializados pelos hormônios. Agora ele sabia perfeitamente que velavam os corpos de seus

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pais, destroçados pela carreta. Tinha a função de consolar cada um dos convidados às margens
da estrada, mesmo que fosse ele quem mais precisasse de consolo. Aqui e ali, manchas
sanguíneas quebravam a uniformidade cinzenta do mundo, tingindo de vermelho suas
memórias. Só a dor era constante, embora já não tão premente como fora em sua infância. Vinha
na forma de um arco e de uma flecha, que lhe feria o ventre e lhe torcia as entranhas. Surgia no
rastro cego de um trovão, que na lógica invertida dos sonhos antecipava o raio incandescente
que o fulminava. Por vezes era uma serpente peçonhenta, que se alojava dentro dele por falta
de abrigo melhor nos arredores.
– Só que meu sono ficava cada vez mais leve, e agora eu chegava a ficar consciente,
depois que meu tio me sacudisse um pouco.
– Seu tio dormia com você no quarto? – Edu não pôde deixar de perguntar.
– Não, não. Mas eu gritava muito quando eles vinham. Então quando acordava ele estava
sempre ali, do meu lado, para me consolar. Nessa fase, eu ainda chorava abraçado com ele até
adormecer de novo.
Juca estava nitidamente aflito. Suas mãos apertavam a direção desproporcionalmente,
os nós dos dedos tão brancos quanto as unhas. Edu diminuiu o ar condicionado para o mínimo,
tentando refrescar o ambiente.
– Acho melhor pararmos no posto – ele sugeriu.
– Falta meia hora para o próximo – Juca explicou.
– Também preciso ir ao banheiro – Tomás disse.
Edu limpou a garganta.
– Esses pesadelos – a rouquidão o obrigou a repetir o gesto – esses pesadelos
continuaram até quando?
– Nunca pararam – Tomás declarou com um conformismo quase alegre.
– Você os tem até hoje?
– Isso. Não sempre, mas pelo menos uma vez a cada quinze dias.
– Você já teve alguma vez em São Paulo?
– Ainda não. Mas faz só uma semana que me mudei.
Juca encarou Edu o máximo que a estrada deserta permitiu e balançou a cabeça em sinal
negativo. O amigo fingiu não notar:
– E hoje você vai ficar no haras, com seu tio? – ele perguntou, perplexo.
Tomás parecia confuso.
– Ora, onde mais eu ficaria? Fico lá até domingo, depois volto com vocês, se puderem

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me trazer de volta.
Chegaram no posto, Juca diminuiu, entrou, os pneus rangeram sobre o cascalho,
estacionaram. Tomás estava apertado e foi na frente. Os outros se deixaram ficar para trás. Juca
exibia manchas úmidas embaixo dos braços, no meio do peito e em pontos aleatórios da barriga.
Respirava sonoramente e tossia uma tosse seca e fútil. Edu se ofereceu para comprar uma água,
ele estendeu o braço e o impediu.
– Juca, você está bem? Você está me assustando.
Ele não se manifestava. Edu insistiu:
– Cara, a gente precisa fazer alguma coisa. Eu acho que o tio dele...
– Eu sei. Eu sei o que você acha – Juca interrompeu.
– E você não concorda que precisamos ajudá-lo? – ele retrucou, apoiando o tronco
contra o porta-malas. Juca o imitou antes de responder:
– Não é isso. Não é só isso, pelo menos. É que esse garoto me fez lembrar que eu já tive
uma fase assim. Eu também tinha sonhos estranhos quando era pequeno.
– Juca, o que você está dizendo?
– Não, não! Não esse tipo de sonho. Não era comigo. Era com minha mãe. Nossa, fazia
muito tempo que não pensava nisso.
Juca estava dobrado sobre o próprio corpo, as mãos apoiadas nas coxas. Edu se
aproximou, sem saber ao certo como agir. Tomás estava demorando muito para voltar.
– E como eram esses sonhos?
– Não sei que idade tinha. Era muito novo, novo demais pra entender o que acontecia.
Me lembro que meu pai nunca estava em casa. Como nunca esteve né, até hoje. Sempre
viajando, sempre trabalhando. Então meu tio, o tio Juca, vinha nos visitar regularmente, ajudar
minha mãe com essas coisas de homem. Eu gostava, ele me dava presentes e me tratava bem.
– Que coisas de homem?
– Você sabe. Arrumar a pia, o telhado, o jardim. Essas coisas.
– Não me lembro disso.
– Foi antes de a gente se conhecer, eu acho. De qualquer forma, ele sempre ia embora
antes de anoitecer e eu ficava em casa sozinho com minha mãe. Mas em certas ocasiões, depois
de dormir, ele voltava para assombrar minha imaginação.
– Juca, você acha que ele...?
– Eram sonhos sussurrados. Como se estivesse ouvindo algo proibido. Mamãe pedia a
ele que fosse mais silencioso, ele às vezes obedecia, às vezes fazia pouco caso. Dizia que eu

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era a fuça dele. Que meu pai iria perceber. Que alguém iria perceber.
– E alguém percebeu?
– Não importa, Eduardo. Não importa nem se realmente existe algo a ser percebido. A
semelhança é evidente, isso meu apelido deixa claro. Meu ponto é que essa sua brincadeira já
foi longe demais. Existem coisas que todos sabem que aconteceram, e que não precisam ser
ditas. Que é melhor que não sejam ditas. Então não faz sentido que você fique querendo dizer
coisas que ninguém sabe, porque nunca aconteceram. Seja grato pela mediocridade em sua vida
e siga em frente.
Juca nunca se mostrara tão firme, nem tão sincero.
Edu pensou em retrucar. Não era de sua natureza se deixar contrariar. Ele ainda
elaborava o argumento, algo no sentido de que suas intromissões acabavam fazendo a pessoa
lidar com problemas urgentes, quando Tomás voltou do banheiro chorando.
– Tem como eu dormir na casa de um de vocês hoje? – ele disse, depois de se acalmar
um pouco. – Para o caso de meus pesadelos também serem... premonitórios.
Edu cogitou corrigi-lo. Talvez pós, não premonitórios. Porém se lembrou da repreensão
de Juca e se conteve. Ele tinha razão, afinal. Tinha ultrapassado o limite.
Duas semanas mais tarde, ficariam sabendo que Tomás acabara se suicidando.
Nunca mais brincaram com as caronas novamente.

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3.5 DEPOIS DA COMUNHÃO

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito”, foi como o padre começou sua oração
particular.
As demais pessoas retornavam para os bancos, silenciosamente. Ali, alguém pedia pelo
esposo, pelos filhos, pela cachorra que estava sem defecar há dois dias. Deus sabia que o marido
era boa pessoa, boa mesmo, lá no fundo. Ele bebia, isso ele fazia, e Deus também sabia. Os
filhos choravam. Eles gritavam. Não, ele gritava, ela só retrucava. Perdão por retrucar, Senhor.
Ela queria ser mais paciente, mais calma, mais compreensiva. Todos os homens bebiam, não?
Mas o marido da Susana era tão companheiro, tão gentil. Ele lavava até a louça! Tinha ficado
em choque quando descobrira isso. Nunca nem passara pela sua cabeça que um homem pudesse
lavar a louça. Tinha que mudar, alguma coisa tinha que mudar, os dois tinham que mudar, o
marido, ela mesma, os filhos, os filhos! Os filhos iam se tornar iguais ao pai, se tudo continuasse
como estava. Ou piores. O tempo prejudicava as coisas, estragava as pessoas, do mesmo jeito
que estragava os alimentos. Será que o macarrão de ontem ainda estava bom? Isso tornaria o
almoço mais fácil, não estava com vontade de cozinhar. Divagava. Perdão, meu Deus, por
divagar. Pediu novamente pelo esposo e pelos filhos. Se esqueceu da cachorra.
“A escuridão se aglutina em torno de mim. Não. Seria mais preciso dizer que ela surge
a partir de mim. É concebida por mim. Mal posso enxergar os próprios dedos, por mais que os
balance em frente ao meu rosto roto. Sei que sou Vosso representante na Terra. Entretanto, a
Terra é opaca, perdida em trevas. Então perdão, Senhor, por já não resistir ao avanço das
sombras. Perdão, por já não me recordar de Vossa face.”
Um jovem universitário pedia pelas provas finais. Sabia que era algo banal para se pedir,
mas pedia assim mesmo. Não tinha algo mais sério para pedir, obrigado, Senhor, por isso.
Queria que as provas fossem fáceis, queria entender os textos que lia, queria guardar as
informações e saber processá-las sob tensão depois. Queria ficar calmo. Por que ficava tão
nervoso em situações tão banais? Quase arruinara tudo com ela. Porque ficara nervoso. Pediu
por ela também. Na verdade, pediu por ele, para que conseguisse chegar até ela. Tão linda, tão
inteligente. O que era ele perto disso? É claro que ficara nervoso. Era engraçado. Era mesmo?
Diziam que sim. Talvez fosse isso. Talvez fosse esse o segredo. Ia focar nisso, mas precisava
ficar calmo. Pediu pela calma.
“Pobres tolos. Tão castos, tão devotos. Infelizes também, na medida de sua devoção.
Estão além de qualquer auxílio. Tanto quanto estou aquém dele. Pois, afinal, é a mim que vem

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quando o buscam. No fim, caminhamos em sentidos opostos, rumo ao mesmo destino. E eles
nem desconfiam do que se passa. Nem vão notar nada. Não até que seja tarde.”
A senhora na primeira fileira pedia pela irmã. Eram só as duas agora, não podia perdê-
la. Achava que perder o marido seria a maior dor que iria sentir na vida. Estava errada. A irmã
tão doente, tão fraquinha. Tinha sido uma mulher tão deslumbrante, tão independente. Nunca
se casara. Sempre julgou mal a outra por tê-lo feito, porém nunca dissera isso em voz alta, era
gentil demais para tanto. E agora, estava naquela cama há três meses. Senhor, que ela consiga
voltar a se levantar. Que volte a ser como era antes. Que tudo volte a ser como era antes. Não.
Impossível. Que nós duas voltemos a ser felizes. Que ela se cure. Que ela se levante. Amém.
“O que teria pensado o Anjo antes de erguer-se? E depois, quando caiu? Teria cogitado
a danação? E prosseguido, mesmo diante do risco da perda? Aos homens falta essa coragem.
A coragem da entrega verdadeira. Não a mim. Já estou acostumado a ela desde o sacerdócio.
A mim já não me falta mais nada.”
Seu Rubens era figura conhecida ali na paróquia. Estava em todos os eventos,
quermesse, bazar, bingo, pastoral da criança, pastoral da catequese, a lista era extensa. Pedia
por todos os eles, pedia pelas pastorais, pedia pelas crianças, pedia pela Igreja. O padre tinha
estado tão desanimado, tão quieto - agora mesmo, lá no altar, com o olhar vidrado na
congregação abaixo, quase sem piscar, aquilo não era normal - pediu por ele também. O homem
era apenas um homem, afinal de contas. Os sacerdotes também precisavam de oração. De
oração e de apoio. Ainda que ninguém soubesse ao certo o que se passava com ele. Nunca tinha
visto um padre se manter tão distante da paróquia, e Seu Rubens já vira muitos padres em sua
vida. Estava magro demais, nisso todos concordavam, até a Irmã Cleide, que nunca via mal em
nada. Padres podiam ir ao psicólogo? Não sabia, ia se informar. Alguém precisava fazer alguma
coisa. Já tinha tantos outros projetos, o que era mais um? Voltou à oração, pediu pelo padre,
pela Igreja, pelas crianças, pelas pastorais, por todos eles.
“É um caminho solitário, o do comprometimento cego consigo mesmo. E por outro
lado, uma estrada batida. Percorrida por grandes e por insignificantes ao longo da história.
O próprio calvário. A jornada da cruz. A repetição. Toma a tua e me siga. A renúncia pessoal
como um erro interpretativo. Um engodo linguístico. Já não me deixo enganar. Os outros
podem falhar na compreensão. Eu atingirei a verdade. No que farei há martírio. Se a luz falta
é apenas porque me foi denegada. Quem sabe do outro lado do buraco da fechadura me
abundará o que me foi tirado deste.”
O garoto estava preso numa prece esquizofrênica. Não podia ter muito mais de quinze

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anos. Pedia perdão pelos seus sentimentos, estavam errados, não estavam? Mas o papa ainda
ontem dissera que Deus criou as pessoas assim, então não podia estar errado. Deus não errava,
certo? Era parte da definição de Deus, que ele não errava. Então como ele podia ser um erro?
Com certeza não escolhera aquilo, seria bem mais fácil se pudesse ficar com a Isabela. Tinha
até tentado. Os dois sabiam o fracasso que tinha sido aquela tentativa. Mudou o rumo da oração.
Pedia agora pelas outras pessoas, para que entendessem. Seus amigos, seus primos, seus irmãos.
Seus pais. Seus pais não iam entender. Observou-os de relance pelo canto do olho, com medo
de que pudessem estar ouvindo suas preces. Riu do absurdo daquele pensamento. Não. Não iam
entender. Por favor, Jesus, que entendam, algum dia.
“No princípio era o Verbo. Daí que tudo seria metáfora, tudo sacrifício. A morte daria
sentido à vida. Heresias. Heresias reveladas pelo fruto. Não o fruto da carne. Esse pouco pôde
fazer para alcançar a expiação. E no processo, teve de morrer para reforçar nossa condição
de mortais. O fruto da árvore. O fruto roubado. Entregue a nós por quem não lhe detinha a
posse. Deglutido, digerido e defecado. A origem da fé. Ou ao menos, da necessidade de se
pregar a fé. Pois desde então nos atraímos pela destruição, como moscas no pasto. De minha
parte, já não ouso resistir ao chamado das chamas. A culpa é fatal.”
Em dois cantos opostos da igreja, um homem e uma mulher pediam pelas vítimas da
recente tragédia. O vídeo era horrível, por que divulgaram aquilo? Precisava sair do grupo da
família. Precisava sair do grupo do trabalho. Não tinha como. E depois, aquele tipo de coisa
acabava chegando por outros meios. Hoje em dia não havia como se esquivar das notícias,
especialmente das tragédias. Que as vítimas encontrem paz no pós vida. Que as famílias sejam
consoladas. Não podia esquecer de enviar o valor da doação àquela ONG que apareceu na
televisão. Sentia remorso. Tanto remorso. Mas não era sua culpa. Era? De certa forma, era culpa
de todos. Perdão, Senhor, pelas omissões da sociedade.
“O ideal seria que todos me imitassem. São todos falhos. Todos incompletos. Uma
multidão dividida e desenraizada. Órfãos famintos. Crianças corrompidas. Unidos pelo mesmo
sangue que nos separa. Ovelhas. Pastores. Lobos. O que sou eu? Gosto de pensar que já
transcendi esse tipo de questão. E que, vazio e oco, posso vir a ser preenchido. Por mais que
um mero papel. Nem que para isso precise me alçar ao abismo. Com sorte, outros me seguirão.
Foi o que sempre fizeram.”
Irmã Cleide não sabia bem o que pedir. Ela amava tanto as pessoas, amava tanto o
mundo, contudo tinha dificuldade em concretizar em palavras seu amor. Deus, que era
infinitamente sábio e infinitamente bondoso, haveria de perscrutar seu interior. De adivinhar

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seus pensamentos, suas intenções. Ficava ali, estática, olhos fechados, respiração profunda e
pausada. E sentia. Sentia os outros rezando ao seu redor. Via as preces formuladas subirem aos
céus. Percebia algo errado, algo destoante no ar. No entanto, não conseguia se concentrar por
muito tempo em uma única oração. Era como tentar enxergar um ponto escuro numa sala repleta
de luz. As pupilas contraídas impediam que se distinguisse muito mais além da própria
existência da mácula. Franziu a testa. Voltou a relaxar. As pessoas se amavam. Algumas se
esqueciam disso. Era isso. Que as pessoas se recordem do Amor, Jesus Cristo. Do Teu Amor.
E voltem para Ele e alcancem a plenitude. Amém.
“Amanhã. De manhã. Antes que o sino reverbere. Não posso mais esperar. Não aguento
mais esperar.”
O cântico silenciara e as pessoas aguardavam o padre retomar a missa. Foram alguns
segundos desconfortáveis, pois o sacerdote permanecia imóvel.
“Amanhã.”
E retomou a celebração.

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3.6 DIA DE MUDANÇA

Uma nuvem avança sozinha pelo céu. A sombra que ela projeta – ou que o sol projeta
através dela – acompanha meu trajeto. Um cachorro de rua, pequeno e famélico, é o único a me
seguir. E mesmo ele mantém certa distância. Talvez algum trauma de filhote. De qualquer
forma, logo se cansa de meus passos compridos e se deixa ficar para trás, distraído em lamber
alguma ferida.
Entro na lanchonete e me sento em frente ao balcão. Na televisão, um programa sobre
surfistas. As ondas sobem, avançam, desabam. Eles se equilibram sobre a crista o quanto
podem. Sabem de antemão que a onda está fadada a estourar. Então se prolongam nas pranchas,
em ziguezague, dançando com a água. Quase ninguém nota quando caem.
O mar é sábio ao seu próprio modo. Dizem que em suas profundezas repousam segredos
indecifráveis, melhor se ignorados e não vislumbrados pela mente humana. Com efeito, em
tudo há sabedoria e ignorância. Nós ignoramos na medida em que sabemos. Há algo de místico
nisso, algo de místico em não saber, algo de transcendental na ignorância.
– Como vai querer a gema do ovo?
– Mole, por gentileza.
O dia anuncia com orgulho o fim de minhas divagações. Mais um dia, no fim de um
mês tão libertador. Só mais um dia. Amanhã, não estarei mais aqui.
– Aqui está.
Como, sem prestar atenção na comida. Minha língua anseia por sabores estrangeiros,
externos, despidos de significados compreensíveis. De repente, percebo que sou eu o
extraterreno ali, sou eu o que não pertence, o que não significa. Aborreço-me com o clichê.
Cheguei ao ponto em que eventualmente todos chegam. Levanto em choque, pago a conta, volto
a caminhar.
Sem rumo, paro em frente a uma padaria da minha infância. O prédio não se modificou
em nada, tudo é tal como me recordo, cada tijolo, cada mancha na parede. No entanto, a padaria
está em outra cidade, em outro tempo. Continuo, chateado e ao mesmo tempo satisfeito pelo
avanço do mundo. Queria saber caminhar assim, saber prosseguir dessa forma, feito um sino a
ressoar, uma voz a cantar, que nunca cessa, nunca se interrompe, não até que a canção se esgote.
Mas até os sinos precisam de alguém que os badale.
Paro na tenda de uma cigana. Ela me oferece uma pulseira de pedras rubras. Recuso,
pergunto se ela sabe ler a sorte da pessoa. Ela provavelmente improvisa e decide ganhar

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dinheiro fácil às minhas custas, respondendo positivamente, com ênfase desproporcional à
situação. Dou de ombros.
– O que você vê?
– Não é você quem deveria estar vendo algo?
Ela simplesmente segura minha mão e me olha nos olhos, aguardando minha resposta.
– Vejo uma cigana, que não vai ganhar 25 reais se não me disser o que meu futuro
reserva.
Ela sorri discretamente e solta minha mão.
– Você sabe o que seu futuro lhe oferece. Precisa apenas de alguém que o ajude a
interpretá-lo.
– Pois então faça isso.
– Preciso saber primeiro: o que você vê?
Hesito por mais alguns segundos antes de entregar a uma pessoa estranha e de
honestidade discutível uma porção do meu eu.
– Vejo uma nuvem. Vejo dois irmãos. Um escorpião, boca, seio, pernas, folhas. Duas
crianças saem para comprar balas, apenas uma volta à casa dos pais. Ela chora durante uma
semana sem parar. Os pais não parecem entender o motivo para todo aquele estardalhaço.
Tentam comprar o sorriso do único filho com brinquedos. Um palhaço dentro de uma caixa,
um carrinho, uma bicicleta. Nada funciona. Anos depois, o menino cresceu, mas ainda se
lembra do irmão esquecido por todos os outros.
Nesse momento, uma abelha entra na tenda e passa a zumbir em torno de minha cabeça.
Encolho-me.
– É alérgico? – ela pergunta com descaso.
– Sim – minto. – De qualquer forma, o que você vê agora?
– Ainda nada. Continue.
– O garoto que-não-é-mais-garoto percorre uma estrada de terra. Do seu lado direito as
plantações de cana-de-açúcar alcançam o horizonte e além. À esquerda, cafezais alternam-se
com pastos e rebanhos. Um corvo acompanha seu trajeto à distância. Ele percebe que é
observado, não só pelo corvo, mas por toda a paisagem. Prossegue assim mesmo, um passo
depois do outro, até que suas pernas não aguentem mais o esforço. Encontra então uma casa à
beira do caminho, onde se refugia durante a noite. A noite é longa e o fazendeiro oferece a ele
uma cama no celeiro. Porém, quando ele chega no celeiro, não encontra cama alguma, apenas
um amontoado de palha e correntes penduradas no teto. Percebe que sua jornada chegou ao fim

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e no dia seguinte se despede, fazendo o caminho inverso.
A cigana ainda não está satisfeita.
– Vamos fazer assim: volte amanhã, e continuaremos a sessão.
– Amanhã não posso.
– E depois de amanhã?
– Na verdade, hoje é meu último dia por aqui.
Ela hesita por alguns momentos antes de continuar.
– Entendo. E você está seguro disso? Tem certeza de que quer seguir viagem?
– Tenho. Preciso descobrir algumas coisas e esgotei as possibilidades de que dispunha
aqui. Como o garoto no celeiro.
– Mas você não está voltando, está?
– Não. Quer dizer, acho que não. Penso estar prosseguindo.
– A convicção é metade da estrada menino. Deus o abençoe e seja prudente com o corvo.
– O corvo?
– O corvo que o persegue pelo caminho.
– Ele não me persegue. Apenas me observa.
– Isto é o que você pensa.
Volto para casa confuso e realizado. Vinte anos nessa cidade e ela ainda me surpreende.
Talvez seja um erro partir. Talvez deva esperar mais alguns anos. Não. Já esperei demais.
O dia amanhece e eu resgato o duplo dentro do espelho. Mil cacos se partem diante de
mim e eu sei que em um deles está escondido o irmão que nunca tive, e ainda assim foi retirado
de mim. Procuro ardentemente em meio aos estilhaços por aquele que me ajudará a encontrá-
lo. Aguardo a reflexão surtir efeito. E me deixo levar por ela para longe dali.

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3.7 O GAROTO ENCAPUZADO

Ele estava voltando para casa. Mal podia acreditar. Os últimos meses tinham sido
dolorosos, por causa da distância. E da guerra, obviamente. Lá, no meio do deserto, onde os
deuses há muito tinham sido esquecidos, havia apenas cansaço. Cansaço e dor. E no fundo,
eram a mesma coisa.
As lembranças da terra natal carregavam-no desde a batalha final. Mesmo agora, no
caminho, eram elas que o conduziam. Passo a passo, vagarosamente. Mancava da perna direita,
valia-se de um pedaço podre de madeira para apoiar-se com as mãos feridas. Suspirava e
forçava o pé a repetir o movimento, arrastando-se através da poeira. Quanto tempo ficaria ali,
preso nas intermitências da paz e da morte, não sabia estimar. Desejava mais que tudo que
acabasse, almejava acordar, determinada manhã, e vislumbrar ao longe o telhado da residência
de seus pais. Então, saberia que estava quase no fim. Ou quase no começo, não importava.
Porém, a estrada que lhe parecera, no início, tão curta e tranquila, acabara revelando-se uma
senda tortuosa e cheia de armadilhas. Duas vezes torcera o tornozelo em buracos fugidios, que
jurara terem se materializado bem debaixo de sua pisada hesitante. Em outras três ocasiões fora
perseguido por bandidos, ávidos como estavam por tomar-lhe os poucos pertences que ainda
carregava junto a si. Levaram-lhe o cantil de água e agora a sede lhe parecia tão natural quanto
a fome.
Na manhã do décimo segundo dia, percebeu que a vegetação se alterara. As árvores o
saudaram com a lembrança do homem que tinha sido e ele ousou sorrir pela primeira vez em
anos. A floresta, no entanto, também significava que agora teria de se preocupar com animais.
Eles logo abundavam nas margens da rodovia. Lobos, serpentes, ursos ferozes. Eram mantidos,
como que por encanto, ao largo do caminho. Se recusavam a pisar ou a rastejar no asfalto
quente, atividades estas que, ao contrário, eram as únicas permitidas ao soldado. As bolhas na
sola de seus pés e na palma de suas mãos podiam atestá-lo. Assim, ao menos enquanto o brilho
do sol persistisse, contava com essa maldição e esse alento. Sofria, mas pelo menos andava em
segurança. O problema vinha na forma das noites.
Naquela parte do globo elas eram intermináveis. Principiavam devagar, pacientes,
isentas da pressa dos vivos. Tinham plena consciência da longa duração com que contavam
para torturar os insones. Pois adormecer ali, entre os uivos, silvos e rugidos tão próximos, seria
loucura. A lua, cúmplice do esquema tão bem arquitetado para aprisionar e enfraquecer, traçava
uma rota oblíqua pelo céu, rejeitando o zênite com uma falsa modéstia cheia de segundas

102
intenções. Sua luz era azulada e insuficiente para que o viajante realmente pudesse distinguir o
percurso à sua frente. Era forçado a tatear, a usar o cabo do cajado como instrumento de auxílio
para desbravar a escuridão e, mais incerto do que nunca, arriscar o próximo passo. Foi durante
uma dessas pequenas aventuras pelo breu difuso da madrugada que ele colidiu com o corpo do
menino.
Era uma criança, isso era certo. Um garoto grande, porém, ainda assim um garoto.
Estava deitado de atravessado pelas duas pistas, e ocupava todo o espaço disponível. Seria
forçado a desviar pelo acostamento, com todos os riscos que isso implicava. Estava na metade
da curva quando sentiu seu aperto ao redor das canelas, um braço fino e esbranquiçado
arremetendo dos mantos negros que lhe serviam de vestes e refúgio, como um fio de saliva
escorrendo entre os lábios de um predador.
“Não se vá”.
O apelo se apresentava anônimo demais para ser ignorado.
“Quem é você?”
“Não tenho nome.”
“Impossível. Todos temos.”
Ele hesitou antes de concordar com uma relutância indiferente.
“Pode me chamar do que quiser.”
Diego. Passaria a se chamar Diego. O menino deu de ombros, era um nome tão bom
quanto qualquer outro. Se não estava enganado, alguém já inclusive o chamara assim antes.
Ótimo, a familiaridade era essencial à nomeação. Queria saber por que estava lá, jogado, no
meio do nada. Ora, mas não estavam no meio do nada. Possuía uma casa próxima dali, no
coração da selva. Escondida dos olhares dos curiosos e protegida das bestas do vale. Se
quisesse, podia acompanhá-lo até lá. Muito obrigado, mas não, obrigado. Até queria,
praticamente podia sentir o alívio que uma gota d´água traria à sua garganta seca. Que um
punhado de arroz espalharia por sua barriga vazia. No entanto, tinha de prosseguir. Estava no
meio de uma jornada, não podia parar agora. Iria se atrasar, e já estava muito atrasado. Uma
jornada? Isso, uma viagem. E para onde? Ora, para casa. Estava voltando da guerra. Estivera
voltando já há algum tempo.
“Mas a guerra acabou há muitas estações.”
“Foi o que eu disse.”
Em resposta, o menino se levantou. Mesmo com o manto dentro do qual se ocultava, o
outro pôde perceber que os ombros dele se nivelavam aos seus. Não havia nada à mostra, até o

103
braço claro, quase translúcido, agora não passava de uma reminiscência. Restavam somente o
manto e o capuz, e dentro do capuz uma escuridão maior que a que os cercava. Mais profunda
do que a que existia sob a copa das árvores. Mais impenetrável do que o céu despido de estrelas.
“Você precisa vir comigo. É inútil continuar.”
“Minha família e meus amigos me aguardam. Não posso me atrasar, já disse.”
Uma gargalhada seca cortou o ar estático da noite.
“Acha mesmo que vão reconhecê-lo depois de tudo o que fez? Depois de todos esses
anos? Olhe para você. Suas vestes estão rasgadas, seu torso dilacerado, seu rosto arruinado.
Não passa de um andarilho. Quem vai lhe abrir a porta nesse estado?”
Ele tinha razão. Ninguém deixaria que entrasse em casa, mesmo que finalmente a
alcançasse. Então qual era o sentido de tentar? Deixou-se guiar por Diego através da mata. Ele
andava armado com um arco e flechas, de modo que os animais recuavam conforme passavam.
Uma única coruja tentou sobrevoá-los inofensivamente e acabou caindo sobre os galhos de uma
castanheira, transpassada por uma seta de bambu. Não se podia adivinhar onde estavam os
dedos que soltaram as plumas do projétil.
O garoto morava em uma mansão abandonada. Ele ocupara uma parte dos cômodos do
piso térreo e bloqueara o acesso aos demais, freando a abertura das portas com tábuas de jatobá.
Explicou que uma família próspera vivera ali em outra geração, mas que ninguém reivindicara
o terreno depois que o último de seus herdeiros perecera. E, afinal, o que estava vazio podia
ser invadido.
Passaram a coabitar o prédio em ruínas. O menino nunca se despia, permanecendo
oculto sob a túnica imunda até nas noites mais quentes. Dormiam em cômodos segregados,
embora fosse possível escutar o garoto resmungar durante o sono mesmo através das paredes
que os separavam.
Estabeleceram uma rotina de mútua dependência: Diego ficou responsável pela caça e
proteção do lugar, enquanto o outro limpava e organizava as salas e quartos, além de cozinhar.
A água vinha de um córrego lamacento que deslizava pelo bosque atrás da residência.
Persistiram assim por algum tempo, sobrevivendo no centro da floresta.
Um mês depois, os ataques começaram. Diego insistia que aquelas pichações nos muros
e os vidros quebrados das janelas eram obra de vagabundos que rondavam pela estrada e pelas
redondezas. Certo dia, ele reportou ter sido diretamente afrontado por um deles enquanto
recolhia a carcaça de um animal que abatera. Não tivera escolha a não ser reagir.
“Você o matou?”

104
“Não, foi apenas um tiro de alerta. Ele vai sofrer por um tempo, mas viverá.”
“Precisamos procurar as autoridades. Não me sinto mais seguro aqui.”
“Ninguém virá. Estamos por conta própria, você sabe disso.”
“Alguém pode vir. Não saberemos se não tentarmos.”
“Pensei que já tinha abandonado suas ilusões diurnas. Vejo que estava enganado.
Amanhã você vem comigo. Vamos caçar, e então você vai perceber.”
Mais uma vez, Diego estava certo. Eles percorreram trilhas antigas que atravessavam as
terras selvagens, subiam colinas e desbravavam vales inóspitos. Evitavam a rodovia principal,
porém exploraram todo o território que a circundava. Não havia nada. O único resquício de
vilarejo que encontraram fora há muito desertado. Surrupiaram mantimentos e ferramentas que
tinham sido deixados para trás e voltaram cabisbaixos para a mansão.
“Ainda precisamos matar alguma coisa. Nosso jantar depende disso.”
Encontraram um urso deformado tentando pescar nas margens do riacho. Ele exibia
apenas três patas, então tinha dificuldades em apanhar peixes. Seu corpo esguio coberto com
chumaços escassos de pelos refletia o estado famélico em que se achava. Abatê-lo seria um
verdadeiro ato de misericórdia.
“Este é um alvo fácil. Uma boa oportunidade para você praticar.”
Ele não queria, mas Diego insistiu. Se não o fizesse, estava fadado a morrer de fome
caso um dia se visse sozinho novamente. O garoto o ensinou como segurar o arco, apontar a
flecha, suspender a respiração e tensionar a corda. Só restava soltá-la. Ele o fez, com um
gemido. E o urso gritou.
“Ótimo, bem nas costas. Mais algumas e ele deve cair.”
Foram necessárias mais cinco até que a besta finalmente se curvasse. Sob a carcaça que
ainda respirava, o sangue escorria abundantemente e tingia a água de escarlate. O líquido era
espesso e se recusava a se dissolver na correnteza suave. Recolheram a carne e voltaram para
casa. Diego o censurou quando vomitou no meio da primeira atividade.
“Vai se acostumar. Vai endurecer.”
Os ataques acabaram por cessar, talvez graças à retaliação de Diego. Mesmo assim, este
insistiu para que passassem a caçar juntos, para que se fizessem companhia a maior parte do
tempo. O soldado resistia à ideia. O garoto apelou para as ameaças e chantagens condizentes
com sua idade. Dizia que se não fosse, também não iria, e os dois acabariam perecendo ou pior.
Seres humanos famintos se tornavam reféns de seus instintos. A palavra “canibalismo” nunca
chegou a ser pronunciada, mas foi suficientemente sugerida para que o terror que inspirava o

105
convencesse a obedecer a seu anfitrião. Ainda não sabia como era o rosto do menino e a imagem
de sua silhueta encapuzada debruçando-se sobre sua barriga para abocanhar-lhe a carne
constituía-se em incentivo o bastante para que concordasse.
As “excursões malditas”, como se referia em segredo às caminhadas vermelhas a que
Diego o conduzia, aconteciam nos dias ímpares. Ou que eles convencionaram chamar de
ímpares. Nos pares, os dois cuidavam dos afazeres domésticos e podiam se entregar a algo
remotamente próximo ao lazer. Só que era difícil desvencilhar-se das lembranças produzidas
no dia anterior para aproveitar apropriadamente o tempo livre. Uma vez, ele fora obrigado a
beber sangue de lobo, porque o líquido supostamente o curaria de suas constantes quedas de
pressão e fraquezas matinais. Noutra, teve de abocanhar, mastigar e engolir, contendo uma
infinidade de arrepios, pedaços de carne gordurosa de um filhote de urso pardo. Pedaços
retirados diretamente de sua carcaça recém-abatida. Ingerir carne crua e mantê-la quieta no
estômago era uma habilidade que todo homem em tese deveria aperfeiçoar. Quase um ofício.
Se o fogo faltasse, esse ofício o pouparia de uma morte antitética entre poças de alimento
regurgitado.
No entanto, por mais terríveis que fossem os atos que Diego cometia contra os animais,
a situação só se deterioraria de verdade muito depois, quando por acidente atingiram a esposa
de um transeunte na estrada. Tudo aconteceu num lampejo. Diego juraria, mais tarde, que a
flecha que matou a mulher fora disparada pelo arco de seu companheiro, o qual, portanto, lhe
devia gratidão por ter lidado com o marido. Não importava. O resultado permanecia o mesmo.
Um corpo feminino perfurado no peito. Um corpo masculino retalhado e decapitado. Carne
abundante e boa demais para ser desperdiçada. Quanto mais em se considerando a escassez de
caça naquela semana.
À noite, jantaram como reis, na avaliação do anfitrião encapuzado. O andarilho preferia
não refletir demasiado sobre a origem do alimento que consumiam.
Pela manhã, decidira partir.
Diego gargalhava.
“Então você ainda não notou?”
Balançou a cabeça, confuso. Sabia desde o primeiro dia que havia algo de terrível ali.
Algo de incompreensível. Um esquema, como o da lua ao enganar os insones. Só que não
chegara a decifrá-lo. De fato, tinha medo de se debruçar sobre o tema. De forma que preferia
ignorá-lo, como alguém ignora a ferida que sabe não ter cura. Mas agora ela infeccionara, e
desviar o olhar do corte purulento beirava a impossibilidade.

106
“Venha comigo. Preciso te mostrar uma coisa.”
Dirigiram-se receosos ao porão. A passada calculadamente lenta de Diego zombava do
ritmo genuinamente aflito empregado pelo veterano de guerra. De um jeito ou de outro, só se
escutava o ranger do assoalho conforme se moviam até as escadarias de pedra que desciam às
profundezas proibidas da mansão. Nenhum dos dois pusera os pés ali embaixo desde o encontro
na rodovia. Fosse lá o que houvesse dentro daquele recinto de vultos, não respirava o ar diurno
há décadas.
“Está pronto?”
A pergunta era retórica. Diego não esperou a resposta e abriu o cadeado que bloqueava
a passagem. A porta em si ruiu tão logo se viu desprendida daquele lacre de aço. Entraram.
Como as lâmpadas se recusassem a cooperar, o garoto acendeu um lampião e o entregou
ao companheiro. Instruiu-o a que prosseguisse sozinho e voltasse quando quisesse. Aguardaria
ali, sentado na saída.
A escuridão teimava antes de ceder às chamas bruxuleantes que o peregrino levava. Ou
talvez fosse sua mão que bruxuleava, não as chamas. Elas mostravam prateleiras repletas de
objetos obsoletos, escombros que se amontoavam ao redor da fundação da casa. Tropeçou em
um aglomerado de fios e se assustou com os ratos que fugiram diante dele. Máquinas
desativadas, motores desmontados, monitores apagados. A tecnologia era simultaneamente
familiar e absurda, como os resquícios de um sonho do qual já não se recordava. E, aos fundos
de tudo isso, um inventor.
Ele demorou para distinguir sua silhueta cabisbaixa. Os cabelos emaranhados, os
membros franzinos, a pele que reluzia num misto incompreensível de imundice e palidez. Uma
corrente lhe circundava o calcanhar. Não se podia enxergar ao que estava presa, apenas o que
prendia. E o prisioneiro parecia resignado com seu estado. Estático, ele observava o chão, e os
chumaços de barba e cabelo sufocavam suas feições. Apenas o movimento pendular dos ombros
denunciava que vivia.
“Olá?”
Ao som do intruso, o refém levantou o olhar. E quando seu brilho apagado cruzou com
o do soldado, a compreensão veio num estalo súbito. Como a primeira rachadura que rasgava a
barragem antes do rompimento. A promessa da loucura. O vislumbre do inimaginável. E no
entanto, nada de inesperado.
O lampião partiu-se sobre o solo e se apagou, mas seu portador já corria de volta à
superfície.

107
Passou por Diego o mais rápido que pôde. A manobra foi bem-sucedida e o menino não
se levantou a tempo para detê-lo. Subiu as escadas de pedra de dois em dois degraus e repetiu
o padrão com as de mármore, que levavam ao piso superior. Trancou-se no primeiro cômodo
desimpedido que encontrou.
Os socos na madeira vieram em seguida.
“O que você pensa que está fazendo?!”
A voz do garoto se transfigurara e atravessava a porta como uma lâmina enferrujada.
“Me protegendo de nós mesmos.”
Mais uma gargalhada. Ou ao menos presumiu que aqueles sibilos entrecortados
pudessem ser reunidos sob a unidade temática do humor sarcástico. Afinal, os animais riam?
“Você não pode ficar trancado para sempre.”
Ele devia supor que a constatação soava como uma ameaça.
“Eu não pretendo ficar. Vou sair tão logo você tenha partido.”
Diego mal conseguia falar, entre os risos descontrolados.
“Eu? Partido? Mas se é você o hóspede!”
Ele aguardou até que a nova onda tragicômica acompanhada das pancadas na porta se
encerrasse.
“Eu sou hóspede tanto quanto você é anfitrião.”
Silêncio.
“Você tem até a meia-noite para sair da minha casa. Intruso.”
Dessa vez Diego não riu, apenas voltou a bater.
“Pare com esse barulho infernal.”
“É inútil.”
“O que é inútil?”
“Tudo isso que você está fazendo. Essa casa já está há muito arruinada. É só uma questão
de tempo até que desmorone. Você precisa de mim.”
“Não preciso, nunca precisei. E não acredito em você. Ainda posso consertá-la,
desbloquear as passagens, arrumar o piso e o telhado. É você que não tem conserto.”
As batidas se detiveram.
“Diego?”
Como já não escutava nada há alguns minutos, arriscou entreabrir a porta. A fumaça
subia pelo vão da escada como um presságio.
Ele desceu aos saltos e encontrou Diego em meio ao corredor principal, dançando entre

108
as labaredas, seu manto flertando perigosamente com as curvas ígneas que o lambiam.
“Eu disse que estava tudo arruinado. Agora você percebe?”
O veterano deixou que uma lágrima descesse por seu rosto, consumida em seguida pelo
calor do incêndio. Se aproximou do garoto encapuzado, segurou seu tronco retorcido até que
ficasse quieto, e o abraçou. Ambos choravam agora, mas o menino também gritava e tentava se
soltar do aperto do guerreiro. Derrotado, Diego fez uma última investida em direção ao seu
pescoço e afundou os caninos na pele macia do oponente. Ficaram assim, unidos pelos braços
e pelo sangue enquanto o fogo se alastrava e a mansão ruía ao seu redor.
Pela manhã, o soldado despertou, nu e ferido, em meio às cinzas. Aos seus pés, o corpo
sinuoso de um réptil jazia inerte e descoberto. Os mantos que outrora o abrigaram deviam ter
finalmente cedido ao convite irresistível das chamas. Rastejou até o porão, sorrindo diante da
ironia. Exceto pela prisão subterrânea e pelo alicerce do edifício, tudo o mais havia sido
consumido pelo fogo. Encontrou o inventor em estado de choque e o libertou de sua corrente
presa ao nada. Precisaria de ajuda para a reconstrução.

109
3.8 LUA CADENTE

“A Sra. Griffin, no entanto, precisava de mais explicações.


– Por quem ela estava apaixonada?
– A história lhe dirá – decidi responder.
– Ora, não posso esperar a história!
– A história não dirá – corrigiu Douglas. – Pelo menos, não de modo claro ou
literal.” (JAMES, Henry, A Outra Volta do Parafuso)

Acordou com o rumor dos tambores. Por um instante não conseguiu delimitar de onde
vinham nem o que eram. O quarto transmutara-se numa colina ao pôr do sol. Imaginou que a
aurora estivesse irrompendo no horizonte. Deixara a janela aberta e a madrugada intrometera-
se em seus aposentos. Censurou-se.
Levantou-se e foi urinar resmungando. Acordar antes do despertador era sempre
inconveniente. Os tambores continuavam, fossem lá o que fossem. Tum, tum, tum. Repetiam-
se constantemente, como que a provar um ponto. Tum, tum, tum. Apertou a descarga, lavou as
mãos, voltou ao quarto.
TUM, TUM, TUM.
Alguém batia à porta. Teve de se sentar na cama para não cair com o sobressalto.
O celular marcava três da manhã, em nítida afronta ao véu escarlate que envolvia o
cômodo. Não tinha tempo para seguir nessa linha de conjecturas. A pessoa insistia. Quem podia
estar batendo em seu apartamento a essa hora?
Caminhou pelo corredor o mais silenciosamente possível e se aproximou da porta com
cautela. Espiou pelo olho mágico. Uma tempestade de cabelos louros agitava-se do outro lado.
Era Mia, sua vizinha. Impaciente, ela franzia a testa e os lábios numa expressão similar à que
fazia ao beijar e se preparava para mais uma série de golpes na madeira. Antecipando-se ao som
desagradável que viria, girou a chave e entreabriu a passagem, mantendo a trava de segurança
entre eles.
– O que você quer tão cedo? – ou tão tarde, não tinha certeza.
– Vim ver o eclipse com você.
Não. Não fora isso que ela dissera. Se tivesse sido só isso, nada mais faria sentido.
Reformulou:
– Você não ouviu? Tem alguma coisa acontecendo lá embaixo. Todos já desceram! –

110
ela estava à beira do histerismo. Agora sim, encontrara o tom correto. Se mantivesse essa
afinação o resto da noite, tudo o que se seguiu poderia ser justificado.
“Estou cansado. Nos vemos amanhã”.
– Pois então desça também e me deixe voltar a dormir – foi o que disse.
– Mas a gente combinou! Você não se lembra?
Quanta insistência. Forçou o aperto, distorceu as palavras. Precisava entender, e para
isso precisava que fosse incompreensível. Então o que ela dissera de fato foi:
– Você não está entendendo, Arthur! Algo não está certo.
Ele suspirou e fechou a porta. Realmente, algo estava muito errado, mas não estava
seguro de que queria descobrir exatamente o quê. Pensou ter escutado o choro de um bebê
misturado aos tambores. Retirou a trava. O estrago estava feito.
– Espere um pouco que vou colocar uma roupa. Se quiser beber um pouco de água
enquanto isso – ou colocar uma roupa mais apropriada você também – acho que te fará bem.
“Antes do amanhecer eu estarei profundamente arrependido de ter deixado ela entrar”.
Ela replicou que não se preocupasse, que estava ótima e ia esperar lá fora. Que estava
ótima era evidente. A camiseta do pijama e o jeans justo pontuavam exatamente cada curva da
sua saúde farta. Uma pena que mentalmente ela não gozasse das mesmas faculdades
privilegiadas. Uma garota como a Mia não deveria sair na rua àquela hora vestida daquele jeito.
O interruptor se recusou a responder quando inquirido. Não importava. A luz mortiça
que distorcia as linhas e as fronteiras dos objetos do quarto era luz assim mesmo. Tateando nas
sombras difusas do armário, encontrou a bermuda que vestira no dia anterior e uma camisa
confortável. Calçou seus tênis de corrida. Não sabia por que, mas tinha a sensação de que
andaria muito antes de voltar aos lençóis.
– Estou pronto. Vamos?
Mia avisou que tinham de descer pelas escadas, já que faltava energia. Não tinha
pensado nisso ainda. Vinte e um andares de escada no meio da noite. Aquele era o sonho.
– Damas na frente – e apontou o caminho.
Ela movia-se de maneira bipolar. Ora afoita em descobrir o que se passava nas vielas da
cidade, ora hesitante diante do potencial desestabilizador da descoberta. Dois degraus de cada
vez naquele lance. Quase meio por movimento no próximo. Podia ser o cansaço, somado à
insegurança. Ela ofegava enquanto contava como tudo tinha começado. Dormia pacificamente
na hora em que o ar condicionado desligou, o que por outro lado não lhe parecera tão estranho,
diante dos últimos apagões. Tentava se acostumar ao calor sufocante quando ouviu o primeiro

111
batuque. Em seguida, eles vieram.
Arthur sacudiu a cabeça para se livrar da imagem de Mia adormecida e suada em sua
cama.
– Eles quem?
Os vizinhos. Ela ouvira as portas se abrindo em sequência, e passos tomando o corredor.
Caminhavam devagar e sem fazer muito barulho. Não escutou ninguém falar nada, apenas
passos. E depois, novamente silêncio.
– Graças a Deus que tenho sono pesado.
Ela achava que ele não estava acreditando em sua versão. Pelo contrário. Apenas estava
refletindo se não era melhor subirem e esperarem amanhecer, caso as pessoas tivessem tido um
surto de demência coletiva, ou algo assim.
Sua resposta foi o riso. Não sabia que Arthur era tão medroso.
– Não estou preocupado comigo, mas com você, minha cara.
Riu de novo. O som quebrou um pouco da tensão que pairava no ar, dando um toque
mais corriqueiro àquilo tudo. De qualquer forma, não fora por causa dos vizinhos que resolvera
chamá-lo.
Ele já não se recordava do eclipse. Pensou que talvez... talvez ela quisesse o que ele
também queria. Improvável, com certeza, considerando como terminara o último encontro entre
eles. Contudo, chances se resumiam a cálculos e a matemática era seca demais para desvendar
assuntos úmidos. Ela prosseguiu. Supunha que Arthur já tinha visto por si mesmo. Afinal, sua
janela estava aberta. O vizinho discordou, desapontado. Não tinha visto. Não tinha se dado ao
trabalho de espiar por ela, quando se levantou. E agora que estava de pé, não conseguia pensar
em outra coisa. Cogitou a sugestão, pensou que pudesse deixá-la implícita em meia dúzia de
palavras inofensivas. Acompanhadas de algum gesto. Um bom gesto sempre ajudava. Mas
tinham chegado ao térreo, e a promessa da rua logo além derrubou a potência do assunto.
Pararam os dois maravilhados diante da majestade do fenômeno. O mundo tinha sido
tingido do mesmo tom vampírico que inundara seu quarto. A rua, as calçadas, os prédios ao
redor, todos deveriam estar absolutamente imersos nas sombras noturnas, especialmente porque
os postes estavam todos apagados. A Lua, todavia, negava-lhes essa privacidade. Arthur
permanecia estático em frente à portaria do condomínio, completamente hipnotizado pelo globo
luminoso no céu. Enorme, deformado, vermelho. O satélite ocupava o centro da vastidão
celeste. Seu brilho herético suplantara o das estrelas, as quais, tímidas, tinham se recolhido para
os confins do universo. Ele reinava então, solitário e absoluto, sobre a noite da cidade. Como

112
se o paraíso estivesse em chamas.
Já tinha lido sobre o assunto. E sobre a mitologia que o cercava. O que só distanciava
ainda mais aquilo tudo da realidade. Arthur se percebeu se afastando, perdendo o apoio das
coisas familiares. Fadado a flutuar, à deriva, sem rumo, até que finalmente o encontrassem.
Optou pela alternativa: Mia. Agarrou-se a ela, como a bem da verdade já estava agarrado há
algum tempo, e se resgatou do mergulho que ensaiava. Uma corda jogada ao mar. Uma corda
nova, nunca utilizada, branca feito a espuma das ondas. Imediatamente, notou a corrupção do
movimento se espalhando por seus membros. O receio cedendo espaço ao desejo. Uma
avalanche lenta e inexorável, apta a tragá-lo sem que se desse conta.
O choro distante de um bebê despertou-o de seu devaneio. Tum, tum, tum.
– Você acha – limpou a garganta – você acha que a Lua está por trás de tudo isso? – a
hipótese soava óbvia e ridícula simultaneamente.
Ela não sabia. Talvez as outras pessoas soubessem.
– E onde estão todos? – a rua estava deserta. Nem mesmo seu Zé, o mendigo que dormia
tradicionalmente no canteiro em frente ao prédio, estava onde deveria estar.
Bastava que seguissem os tambores. Aliviado por não ser o único escutando o ritmo
alucinado dos instrumentos, deixou que ela o conduzisse em direção à avenida. Estaria ela
também a par dos lamentos daquela criança desconsolada?
O passeio pela cidade rubra não era de todo desagradável. Os edifícios e as árvores
estavam meio ocultos, meio expostos pelo brilho lunático do satélite. O silêncio era quebrado
apenas pelos batuques ao fundo, os quais de alguma forma incorporavam-se a ele. O calor
opressivo do dia tinha sido derrotado pelo frescor da madrugada. E Mia perfumava o ar à sua
volta com um cheiro suave, adocicado e frugal. A ilusão de conforto, no entanto, logo
desmoronou.
– Arthur, não estou me sentindo muito bem – dessa vez a distorção coincidia com a
realidade. – Coisas de mulher, sabe? – e sorriu, constrangida. – É que nunca fiz isso antes. Acho
melhor pararmos. Vou voltar para o meu apartamento.
Ela se interrompera no meio do último quarteirão. Além da próxima esquina, a avenida
revelava uma movimentação profusa de vultos e vozes murmurantes. O som ribombante se
intensificara, vibrando o solo sob seus pés. Uma estrutura metálica, ainda parcialmente
encoberta pela curva, refletia a Lua em suas hastes. Ele interpretou sua suposta dor como medo.
Coisas de mulher, com certeza. A maioria ficava receosa em momentos como esse. Se é que
existiam outros momentos como esse.

113
– Fique tranquila. Tudo vai acabar bem – e segurou sua mão com uma firmeza
dissimulada. Ela queria fugir, ele notava pelo tremor em seu braço, pelo suor em seu pescoço
sardento, pelo modo como sua nuca se arrepiava. Insistiu no aperto e encarou-a com uma
coragem que ele próprio desconhecia possuir. O impulso da fuga foi contido e continuaram a
caminhar.
A avenida era ampla e estendia-se num vale urbano que dividia dois bairros importantes
da metrópole. Perto da esquina, quatro pilares do que parecia ser aço inoxidável tinham sido
erguidos em torno de uma plataforma do mesmo material. Degraus negros então subiam de cada
lado do quadrado artificialmente construído, e convergiam numa espécie de mesa alva em seu
centro. Atrás desta, uma estátua marmórea estranhamente familiar vigiava os insones. Como
uma imagem já vista em um sonho.
– Sejam bem-vindos ao Festival!
Mia praticamente saltou para trás ao som da saudação inesperada. Não de forma
despropositada. À sua frente, uma mulher mais alta que Arthur, vestida apenas com uma faixa
de tecido prateado sobre os ombros, erguia um cetro em direção ao céu, exibindo um corpo
moreno repleto de inscrições de significado desconhecido. Conforme ela se movia, a tinta das
tatuagens parecia refratar os raios crepusculares da Lua, num caleidoscópio terrível e
deslumbrante de tons de sangue.
– Arthur, você tinha razão, lá no início. Deixe-me ir embora, por favor – ela escondia-
se da beldade nua atrás do companheiro, sua voz quase inaudível em meio ao estardalhaço ao
redor.
– Não tenham medo! Esse é um momento de alegria e êxtase! A Profecia se consumará
esta noite! – e subiu os degraus até a estátua.
Ao longo da via, diversas estruturas iguais àquela tinham sido construídas. As pessoas,
algumas tão despidas quanto a sacerdotisa que os recebera, circulavam de maneira errática entre
os pilares de metal. Alternando-se com estes, homens calvos tão claros quanto as estátuas e
altos como a mulher tatuada tocavam tambores proporcionais às suas dimensões impossíveis.
Ao contrário daquela, contudo, seus corpos lisos refletiam a luz do luar de forma ininterrupta e
analfabeta, seus músculos contraindo-se musicalmente ao ritmo das batidas.
A mulher alcançara o topo do que agora Arthur identificara como um altar. Várias outras
mulheres idênticas faziam o mesmo pela extensão da avenida. Elas miraram seus cetros na
multidão abaixo e fez-se o silêncio. As batidas cessaram, as vozes emudeceram-se, os passos
paralisaram-se. Preocupado, Arthur checou seus batimentos cardíacos e não os encontrou.

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– Cosmo, Noite Eterna, Lua de Sangue! O Festival está aqui! – bradaram todas em
uníssono.
– Ilumine, Guie, Observe! – a congregação respondeu.
Cânticos explodiram ao longo do vale. O choro dos recém-nascidos assustados
agregava-se ao ruído e Arthur precisou tampar os ouvidos com as mãos por um instante.
Exultantes, os transeuntes dançavam e agitavam os braços para cima. Ele e Mia logo se viram
presos no centro de um círculo de bailarinos desvairados. Por mais que tentassem se
desvencilhar, seus avanços eram barrados pela melodia. Alguém tentava despi-los. A camisa
de Arthur logo se decompôs em trapos de sanidade no asfalto. A pele desprotegida de Mia
aparecia através de rasgos em sua calça e um de seus seios estava à mostra por um buraco na
camiseta fina do pijama.
– Venham comigo!
Um garoto de cabelos prateados rompera a prisão humana e agarrara o par de vizinhos
desesperados pelas mãos.
– Façam exatamente como eu fizer. E não olhem para trás!
Esbarrando em membros e uivos de prazer, o grupo desbravou a outra metade da avenida
e subiu por um beco até a próxima rua, já relativamente distante dos tambores e da música.
Ninguém pareceu notá-los em sua fuga.
– Quem é você? – Arthur perguntou para o menino e imediatamente se censurou. A
identidade do rapaz era menos importante que a verdade por trás do evento que presenciavam.
Se alguém poderia esclarecê-la, o garoto parecia ser um bom candidato para a tarefa. Porém,
ele persistia no mesmo estado de alerta que os arrebatara até ali, provavelmente para se
assegurar de que não tinham sido seguidos. – Eu te fiz uma pergunta.
Apesar de ser tão alto quanto Arthur, ele não podia ter mais de quinze anos. Não exibia
nenhuma falha em seu corpo desnudo. Seus olhos faiscavam entre um e outro interlocutor, tão
brilhantes quanto seus cabelos. Símbolos vermelhos tinham sido traçados em suas costas e
abdômen. Mia estava atraída pelo rapaz, Arthur tinha certeza. O infante sorriu antes de
anunciar:
– Meu nome é Davi. Fui enviado para resgatar vocês.
Suas palavras fundiam-se com as sombras do perímetro, a voz grave e jovial
enfeitiçando tudo à sua volta. Como uma pedra jogada num lago, em que por alguma inversão
quântica os círculos aquáticos produzissem-se em direção ao abalo. Arthur sentiu que até as
árvores da calçada inclinavam-se sobre ele, atentas ao que dissesse e sedentas por mais.

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– A maior parte das pessoas enlouqueceu, como vocês dois já devem ter notado. As
sacerdotisas estão por trás desse ritual. Vejam o que fizeram comigo – e exibiu seu torso
profanado pela tinta carmesim.
Mia fez menção de tocá-lo, aérea como uma criança. Enciumado, Arthur interrompeu-
os:
– E quem o enviou até nós?
– Uma mulher, uma sábia, uma das últimas de sua estirpe. Ela está reunindo as pessoas
sãs que sobraram em uma igreja no centro. Vou levá-los até lá. Sigam-me.
E disparou pela rua. Mia sequer hesitou e colocou-se em seu encalço. Arthur também
parecia impelido pela compleição esbelta do garoto, embora seus passos a princípio relutassem.
Em poucos segundos, contudo, já acompanhava os outros na mesma velocidade. A Lua os
observava com desdém. Parecia alternar de fase enquanto o fazia. Uma de suas extremidades
já estava sendo subtraída pela escuridão.
Percorreram sendas floridas rumo ao oeste. Petúnias das mais variadas colorações
abriam-se conforme investiam pela madrugada urbana, e mariposas colhedoras de pólen
infestavam os canteiros. Seu voo aparentemente inofensivo espalhava uma espécie de poeira
cinzenta entre os raios rubros do luar, o que conferia à atmosfera uma sensação de doçura tóxica.
Arthur procurou conter o ímpeto da respiração e surpreendeu-se com o sucesso da manobra.
Mesmo correndo, prescindia do ar para avançar. Sentia o vento deslizando por seu peito e
espalhando-se pela barriga, mas abdicava do fôlego. Mia, ao contrário, inspirava e expirava
profusamente, imune aos efeitos da neblina esporulada. Suas costas chegavam a se arquear com
o movimento, antes de tornar à posição inicial. Apenas Davi tossia de forma esporádica.
Pararam numa fonte para se refrescar. Mesmo desligada ela guardava resquícios da água
diurna em seu repositório inferior. Beberam os três antes de se lavar, conforme as
recomendações de Davi.
– Seria indelicado se chegássemos suados na igreja.
Contaminados com a transparência reluzente do líquido frio, prosseguiram. Viraram à
direita na próxima encruzilhada, à esquerda quatro quarteirões mais tarde, e novamente à
esquerda na esquina em que deveria estar localizada uma universidade, mas onde só se via a
vegetação rasteira que cobria um grande terreno baldio. Arthur deveria estar confundindo as
ruas, não seria a primeira vez. Desde que inventaram os aplicativos de mapas ele perdera a
capacidade de se localizar fora do mundo virtual. Só então se recordou do celular. Esquecera-o
sobre o criado-mudo. Que estúpido. Tanto fazia, Mia consolou-o. Estavam sem sinal, checar o

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telefone fora a primeira providência que tomara antes de sair do apartamento. Só por isso, aliás,
socorrera-se do vizinho. Porque se percebera desprovida de outros meios de comunicação além
da própria voz. Então ele não passara de um plano de contingência. Uma medida subsidiária.
Tanto fazia, ele se descobriu repetindo a vizinha. Neste ponto, tanto fazia. Depois que se está
na estrada há algum tempo, tornam-se irrelevantes os motivos que inauguraram a jornada.
Quando passaram pela segunda vez pelo mesmo terreno baldio ficou claro que Davi
estava perdido. Mia sugeriu que pedissem informações.
Mais fácil falar do que fazer. As calçadas, os prédios, os bares, tudo se apagava no vazio.
As pessoas deviam estar celebrando o Festival. Perambularam a esmo pelos arredores, até que
se depararam com um frentista solitário cochilando apoiado em uma bomba de combustível. O
posto funcionava vinte e quatro horas por dia e, sem clientes para atender, o senhor estava
embalado pelo tédio.
– Boa noite – Davi disse. – Estamos precisando de ajuda.
O frentista se recompôs com um salto e ajeitou o boné e a calça. Somados, os dois
delimitavam monocromaticamente a curta extensão do corpo do homem. A camiseta do
uniforme destoava do conjunto, tanto pelo tom de verde, quanto pela abundância de volume. A
figura assim expandia-se no sentido horizontal em detrimento do vertical.
– Boa noite. Vieram abastecer? – ele não parecia nem um pouco impressionado pela
nudez total ou parcial dos três.
– Não. Não temos carro – Davi pontuou o óbvio. – Estamos precisando de orientações.
– Também foram banidos do Festival? – ele perguntou, em tom de cumplicidade.
– Digamos que sim.
– E onde querem chegar?
– À estação. Sabe qual o caminho mais rápido?
Ele balançou a cabeça e estalou a língua quatro vezes.
– A pressa não os levará a nenhum lugar. A estação, como podem ver, está logo ali. Só
não a enxergaram antes justamente porque estão muito apressados.
Ele tinha razão. Perdidos no ímpeto juvenil, falharam em perceber a passagem estreita
que se comprimia entre dois edifícios e levava às escadas do metrô. Ninguém poderia culpá-los
pela juventude, no entanto. Tampouco coibi-los em seu furor noturno. Agradeceram pelo
auxílio e partiram, subterrâneo adentro.
A escuridão fez Arthur compreender que mais uma vez se equivocavam.
– Não adianta. Não tem força – ele comentou.

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Os dois não pareceram escutá-lo em sua marcha pelas escadarias.
– Ei! O metrô não estaria funcionando a essa hora mesmo se tivesse energia.
– Os trens estão circulando normalmente – Davi afirmou.
E de fato estavam. As catracas travadas precisaram ser puladas, mas Arthur pôde escutar
o som de um trem partindo tão logo se dirigiram ao local de embarque.
– Teremos de esperar o próximo – lamentou.
A plataforma estava imersa em trevas. A única luz vinha das claraboias centrais, que
deixavam uma pequena porção do brilho lunar invadir as profundezas da terra. Mesmo assim,
Arthur mal podia distinguir o contorno de Mia e Davi à sua frente. Era difícil estimar onde
terminava um e começava o outro. De repente, percebeu que não estavam sozinhos. Alguém
mais aguardava pelo trem.
Aproximou-se de Davi para alertá-lo da presença do estranho.
– Fique tranquilo menino, não lhes farei mal algum.
O vulto dirigia-se claramente a Arthur, mas foi Davi quem precisou responder:
– Também está aguardando o próximo trem?
A coisa assimilava-se a uma pessoa, mas algo em sua voz soava inumano. E ela se
arrastava para lá e para cá ao invés de caminhar. O barulho de algo áspero em atrito com o piso
arrepiava cada folículo do corpo de Arthur.
– Posso dizer que sim. Eu estou sempre aguardando o próximo trem. Sou o Vigia – ele
se apresentou. – Minha função é assegurar que todos que queiram embarcar consigam fazê-lo,
e que todos que não devam desembarcar nesta estação permaneçam no trem. É um trabalho
exaustivo, mas o único que sei realizar – e estalou a língua, emendando com um suspiro que só
podia ser adivinhado. Era isso. Sua desumanidade estava nisso. Não se ouvia a passagem do ar
pelos lábios quando ele se manifestava. – Falando nesse assunto, para onde estão indo tão tarde?
Ouvi dizer que o Festival já começou. Eu mesmo nunca posso comparecer, entendem, tenho de
continuar vigiando. Mas vocês três são tão jovens, deveriam estar lá em cima.
Davi segurou Arthur pelo braço para impedir que falasse. Ele entendeu o recado e
deixou o garoto tomar as rédeas novamente.
– Estamos indo para casa. Nossa amiga não está se sentindo muito bem.
O Vigia parecia ligeiramente insatisfeito com a resposta e redobrou o vigor com que se
rastejava pelo chão imundo da plataforma.
– Por favor, o senhor sabe que trem devemos pegar para chegar ao centro? – Davi tentou
acalmá-lo.

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– Eu suponho que todos os trens eventualmente cheguem ao Centro – ele replicou com
ironia.
Felizmente, nesse momento um apito irrompeu pela atmosfera tétrica do lugar e logo o
som da locomotiva arrastando-se pelos trilhos substituiu o do Vigia fazendo o mesmo pelo
pavimento. Arthur pensou também ter escutado um bebê aflito ao fundo, mas logo descartou a
ideia.
– O trem irá apenas diminuir a velocidade ao se aproximar. Vocês precisarão saltar para
dentro.
Davi já segurava os outros pela cintura. Um único farol iluminou a estação, e mesmo
isso mais ofuscava a visão que revelava efetivamente as portas dos vagões aos passageiros.
Arthur e Mia deixaram-se ser puxados pelo menino quando chegou a hora e de alguma maneira
logo se viram sãos e salvos dentro do trem. O Vigia despediu-se do trio com uma gargalhada
infinita, que ecoou pelos túneis subterrâneos por muito tempo depois de já não mais poderem
escutá-la.
– Quantas estações até lá? – Arthur perguntou.
– Não sei ao certo. Eu suponho que dependa da linha que nosso condutor utilizar.
Fiquem tranquilos, saberemos quando chegarmos.
Os assentos do vagão estavam todos ocupados, então eles permaneceram em pé, perto
da porta. O vento suave gerado pelo movimento da máquina aliviava a sensação de sufocamento
que o negrume dos túneis produzia. Uma pequena lamparina amarelenta no corredor era a única
fonte de iluminação de que dispunham. Arthur perguntava-se como o trem estava funcionando
quando sentiu o cheiro de fumaça.
– Não conversem com ninguém. Essas pessoas estão perdidas, eternamente em trânsito,
sem nunca desembarcar. Como não sabem onde vão, o Vigia as impede de descer na estação e
elas são condenadas a seguir viagem perenemente.
– Como você sabe tudo isso? – Arthur questionou.
– Ora – Davi começou, exibindo os dentes brancos num sorriso perfeito – já estive aqui
muitas vezes antes. E estarei aqui muito depois de vocês irem embora. De certa forma, também
estou preso aqui.
– Nós não estamos presos aqui – uma senhora num banco próximo protestou.
– Viemos por livre e espontânea vontade – outra voz emendou.
– E permanecemos porque assim desejamos – um terceiro passageiro finalizou.
Quebrando sua própria regra, Davi refutou:

119
– Então desçam na próxima estação. Eu os desafio – seu ar brincalhão e infantil conferia
um aspecto inocente à aposta. De modo que, tão logo a condução diminuiu o ritmo e alcançou
a plataforma seguinte, uma pobre senhora maltrapilha se levantou e tentou pular pela porta.
Ouviu-se um estalo e uma sombra ergueu-se em seu caminho, empurrando-a de volta para
dentro. Ela desabou sobre seu próprio peso e permaneceu inconsciente no corredor.
Davi sentou-se na cadeira que ela ocupava antes e cruzou as pernas, satisfeito consigo
mesmo.
– Mia – Arthur aproveitou a relativa distância do menino para confabular em sussurros
com a companheira – Mia, está me ouvindo? Não, não se vire pra mim. Apenas balance a cabeça
se entender.
Ela fez como ele pedia.
– Ótimo. Precisamos fugir, Mia. Não confio nesse garoto.
Ela se manteve estática.
– Mia, você me escutou? Há algo errado com o Davi. Ele não é normal, como nós. Não
veio parar aqui por engano, como acho que aconteceu conosco. Ele pertence a esse lugar,
entende o que eu digo? Ele deve ter nascido aqui, ou algo do tipo. Precisamos nos afastar dele
assim que subirmos de volta à superfície e então corremos de volta para nosso prédio. Leve o
tempo que levar.
Ela ainda não sinalizara qualquer resposta.
– Mia, se você compreendeu e concorda comigo, balance a cabeça.
Nada. O silêncio reinava no vagão, quebrado apenas ocasionalmente pelo apito da
locomotiva. Ele sussurrava em um volume quase inaudível, mas os dois estavam muito
próximos. Ela deveria ter entendido. Talvez a outra hipótese, então? Como que finalmente
respondendo a essa dúvida não externada pelo vizinho, Mia deslocou-se de súbito até Davi e
postou-se ao seu lado, apoiada no suporte que havia sobre seu banco.
Tudo estava perdido. Se perdera Mia, não tinha mais como encontrar o caminho de casa.
Sozinho, ficaria preso ali para sempre, tal qual os demais viajantes. Sem opções, imitou a amiga
e encostou-se junto dela.
Passaram-se várias horas. A monotonia da jornada era rompida cada vez mais
raramente, até os apitos começaram a escassear. Uma a uma, as pessoas adormeciam e
ronronavam o sono resignado dos que esperam a morte. Eles revezavam o assento, mais por
hábito que por necessidade. As pernas, como que sustentadas por um encanto onírico, não
doíam ou protestavam contra o esforço fútil de apoiar o corpo.

120
– Chegamos – anunciou Davi, sem cerimônia, quando o comboio se aproximava
devagar de uma bifurcação. Saltaram para a terra firme sem maiores dificuldades e o trem
desapareceu pelos túneis adiante.
A estação estava desativada há muitos anos. Poeira e fuligem acumulavam-se
indistintamente pelas paredes e pelo chão e os três deixavam pegadas perfeitamente delineadas
conforme andavam. O ar espesso os envolvia num abraço angustiante, que o brilho da superfície
acima revelava sem pudores. Estranhamente, ali não havia Vigia, apenas restos do que se
assemelhava a um cadáver retorcido.
Subiram até as catracas, mas as escadas além delas estavam bloqueadas. Em uma das
saídas uma parede de tijolos chegara a ser construída.
– Demoramos mais do que eu previa – queixou-se Davi. – Teremos de sair pelos esgotos.
Rastejaram pela tubulação na companhia apenas dos odores remanescentes de uma
época remota. Os canos, rancorosos, guardavam em sua superfície enferrujada a podridão
longínqua dos dias movimentados. Até os ratos acabaram por abandonar aquelas partes, em
busca de comida e abrigo em paragens mais recentes. Arthur mal pôde conter um gemido de
alívio ao ganharem a rua de novo.
Tinham saído atrás de uma igreja diferente de qualquer outra de que se recordava. A
vizinhança tampouco lhe era familiar.
– Estamos mesmo no centro?
– Essa é uma parte da cidade pouco frequentada pelos moradores de outras regiões –
Davi explicou. – Mas sim, é o lugar.
A construção em frente estava parcialmente em ruínas. Ela se dividia em duas partes
iguais. Os telhados inclinados de pedra vinham até o chão em ambos os lados, vazados
ocasionalmente por vitrais multicoloridos, em sua maioria estilhaçados. Entre os prédios, havia
uma torre tão alta que Arthur desequilibrou-se ao admirá-la, mas não pôde deixar de notar que
pedaços inteiros de alvenaria lhe faltavam nas bordas. Conforme circulavam a igreja, uma
terceira capela desenhou-se em frente das demais, ocultando a base da torre. Portas, finalmente.
Era por ali que se entrava na estrutura ciclópica.
– Não conheço aqueles santos – Arthur comentou, se referindo às figuras petrificadas
que adornavam toda a extensão das linhas superiores dos telhados, onde estes se dividiam.
Alguns espaços estavam vazios, indicando que nem todos os homenageados haviam resistido à
passagem das décadas.
Davi riu.

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– Deve reconhecer pelo menos dois ou três deles.
Arthur deu de ombros. Por mais que examinasse as estátuas, estavam muito longe para
que pudesse distingui-las de verdade. Não sabia por que tinha feito o primeiro comentário.
– As portas centrais estão trancadas. Se puderem esperar aqui, vou entrar pelos fundos
e venho abri-las para vocês.
Consentiram. Arthur esperou alguns segundos, até não escutar mais os passos firmes e
apressados do colega, antes de insistir uma derradeira vez.
– Mia, essa é nossa última chance. Eu devia ter te escutado antes. Por favor, vamos
embora. Vamos voltar para casa.
– Você mesmo disse, vizinho, agora já é tarde demais – mentiras.
– Sei que você pensa assim, mas está enganada! É verdade que já passamos por muita
coisa e que já não somos mais os mesmos, porém ainda não é tarde demais. Eu estava errado se
dei a entender isso.
Ela queria que esperassem, como Davi pedira. Seria rude partir naquele momento,
depois de tudo.
– Não sei o que você pensa que vê nesse garoto, Mia. Como queria dissipar a ilusão que
construiu em torno de sua imagem. Ele não é o que você espera.
– Que garoto, Arthur? – de fato, que garoto?
– Ora, que garoto! Ele não passa de um menino, você sabe disso.
Ela o ignorou e se sentou na sarjeta.
– Sente-se comigo, vizinho – de novo, a distorção cedia espaço. – Vamos observar a
Lua uma última vez juntos.
Arthur deixou uma lágrima patética escapar quando percebeu a inevitabilidade das
coisas. Soubera desde sempre que iria se arrepender de ter deixado ela entrar. Sentou-se ao seu
lado e passou o braço por seus ombros. A Lua seguia enorme, ainda que metade dela já houvesse
desaparecido. O que apenas confirmava seus presságios.
– Um dia, sentiremos saudade dessa noite – ela afirmou. Ele duvidava com cada grama
de seu ceticismo de que seria o caso.
Ficaram ali por mais algum tempo. Quando outro quarto do satélite havia sumido,
ouviram as portas apodrecidas de mogno rangerem em suas dobradiças desgastadas.
Uma mulher, a mais alta de todas que já tinham visto, estava parada no pórtico. Vestido
branco, véu e grinalda. Uma visão impossível para coroar uma sequência de episódios absurdos.
Em suas mãos, levava um buquê de tulipas secas, plantadas e colhidas por alguém morto há

122
muitos séculos. Sem dizer uma palavra, correu em direção a Mia e a abraçou, chorando
copiosamente. Ela não parecia nem um pouco sã, mas vestia roupas, o que de certa forma era
um alívio diante da nudez excessiva de Davi e deles próprios, e com a qual, na verdade, já
tinham se acostumado.
Tentando se recompor, ela fungou repetidamente, enxugou o rosto com a manga
encardida do vestido, respirou fundo e disse:
– Estive esperando por vocês toda a minha vida.
Algo naquela frase soava íntimo demais, excessivamente solene, uma confissão
estridente e bradada aos quatro ventos. Mia, entretanto, deixara-se convencer e chorava tanto
quanto a noiva. Irritado consigo mesmo, Arthur percebeu que Davi não estava à vista – e que
sentia falta do jovem.
– Entrem, entrem, por favor. Estamos todos aguardando há tempo demais.
Eles obedeceram e deixaram-se conduzir através das portas, que foram cerradas por
servos invisíveis às suas costas.
A igreja estava inteira iluminada por velas. Elas se espalhavam pelas laterais do prédio,
dos bancos e do altar, dispostas de maneira irregular entre poças de cera. Variavam em altura,
em curvatura, no grau de consumo pelo fogo. Projetavam mais sombras do que luz, aqueles
pedaços de preces inacabadas. E em meio a elas, os convidados aguardavam, sentados,
pacientemente.
O salão estava abarrotado. Nenhum assento livre, todas as vagas preenchidas. Ninguém
faltara à celebração. Enquanto caminhavam pelo corredor central, contudo, Arthur notou que
aquelas eram apenas vestes. Vestes vazias e esquecidas, que apenas pareciam estar sentadas.
Em choque, ele vislumbrou um veio de marfim em determinado ponto. Ossos. Ele errara ao
presumir a paciência dos convidados. A maior parte deles cansara-se de esperar.
Foi então que percebeu. A própria noiva exibia sinais de sua idade. As mãos trêmulas
que levavam o buquê transfiguraram-se em garras retorcidas e ressecadas, as veias aparentes
como tumores labirínticos. Seu rosto tinha sido deformado por alguma enfermidade senil, e
metade dele conservava-se completamente paralisado numa expressão de horror eterno. Saliva
vazava pelo canto da boca, e o ouvido atento podia discernir o chiado ritmado que ela fazia ao
sugá-la. De fato, eles tinham se atrasado.
Apenas os dois primeiros bancos estavam realmente preenchidos. A mulher os levou até
o limiar da escada que subia ao altar e elevou a voz à massa decadente que presenciava o evento:
– Obrigado a todos por comparecerem de tão longe. Obrigado especialmente pela

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paciência demonstrada e ofertada ao longo de todo esse período. Hoje, finalmente, a cerimônia
se encerra.
Os convidados cochichavam entre si, os olhos famintos atentos a qualquer movimento
de Mia. Arthur, por instinto, agarrou sua mão. A noiva se retirou, desaparecendo por uma
pequena passagem além do altar.
Um órgão iniciou sua lamúria gótica e universal. A música vinha de toda parte e de parte
alguma, os vitrais vibravam com a perturbação inesperada depois de tantos milênios de silêncio.
Um bebê chorou com o barulho repentino. Arthur compreendia que algo terrível estava prestes
a acontecer, porém tal compreensão incluía a de que nada poderia fazer para impedi-lo. Mia
também parecia conformada com o que o destino lhe reservara. Ensaiou um estremecimento,
engoliu em seco, esfregou os olhos com as costas das mãos. E se conteve. Os longos fios loiros
desciam por seus ombros, intocados pela trilha poeirenta que percorreram até chegar ali. Ela
devia sentir, tanto quanto Arthur, que tudo o que fizeram, cada decisão que tomaram, cada
saudação automática no corredor, os sorrisos trocados no elevador, o encontro fracassado, as
sacolas carregadas, o açúcar emprestado no meio da noite, eram passos que os levaram até
aquele momento. Resistir a ele se traduziria como uma resistência agourenta ao próprio destino.
Como se impedissem que o nó se desenrolasse, insistindo na constância da vontade irrealizada.
Ou ao menos foi isso que lhe foi sussurrado no escuro, e era nisso que ele queria que ela
acreditasse.
Um sacerdote surgiu. Uma figura antiga, imponente, tão arruinada e desproporcional
quanto a torre onde repousara desde épocas imemoriais. Suas feições de uma sabedoria
horrenda só podiam ser imaginadas, já que a túnica branca manchada da luz da Lua escondia
todo o seu ser. Ele deslizou ereto até a frente do altar, movendo-se sem dar um só passo. As
demais pessoas puseram-se em pé, e entoaram cânticos de louvor à sua imagem. Ele deixou que
o exaltassem por certa duração. Cumprido o protocolo, deu a ordem silenciosa que principiou
todo o resto.
– Arthur! Arthur, eu mudei de ideia!
Mia estava cercada por eles. A árvore proibida e isolada num jardim repleto de
serpentes. Suas mãos asquerosas só sabiam tocar e apalpar. Arthur estava distante, longe demais
para fazer alguma coisa, para impedir que aquilo se concretizasse. O restante das vestes da
garota foram arrancadas e espalhadas pelo chão. Milhares de línguas sibilantes perscrutavam
cada palmo de sua superfície salgada, intrometendo-se por suas reentrâncias, implorando para
que cedesse, para que se abrisse à possibilidade. Para que se unisse ao ritual. Os meses de

124
preparo, os ensaios, a organização. Um Festival daquele tamanho não se lançava sozinho pelas
ruas desabitadas da cidade. Era preciso fôlego, resiliência, força, insistência. A negativa
tornava-se algo esperado, um desvio calculado, com o qual se podia lidar. Aplicava-se pressão,
ocupava-se o espaço, assumiam-se papéis. Do contrário, inexistiria o avanço. A evolução, a
perpetuação, dependia da violência.
– Não! Arthur! Não! Por favor, por favor, por favor...
Eles a amarraram e levaram até a mesa sagrada, onde a deitaram.
– Por quê?! Eu não quero, já disse que não quero! Por favor...
O sacerdote se aproximou. Arthur pensou ter visto um vislumbre do rosto de Davi dentro
do capuz, depois percebeu que era o seu próprio rosto que via. Não. Não podia ser ele. Podia?
Ele estava longe, distante, perdido entre carcaças decompostas no último dos bancos. Ou será
que não estava?
– Eu faço qualquer coisa. Podemos fazer qualquer outra coisa! Eu prometo!
Já era tarde. Tarde demais, ela mesmo tinha dito e reconhecido isso. Ela tinha batido,
ela tinha pedido para entrar, tão tarde, tão inapropriado. Ele sabia que iria se arrepender, mas a
deixara entrar assim mesmo.
Ouviu-se um último grito quando o clérigo se deitou sobre Mia. Ela chorava, implorava,
isso, que fingisse, que emulasse a aversão, iria rompê-la, conquistá-la, dominá-la. Dera-lhe um
tapa, unhas, pele sob unhas, unhas nas costas, unhas nos braços, braços contidos, unhas tolhidas,
braços entre braços. Contida. Ninguém poderia ajudá-la. Seu corpo fechado, pernas tremendo,
o corpo tremendo, pernas fechadas, a fase errada da Lua, a fase certa da Lua, a Lua de sangue
entre suas pernas, pernas entre pernas. Aberta. Estavam todos dormindo, não estavam? Silêncio,
queixa, gemido. Silêncio, lágrima, suspiro. Silêncio, silêncio, silêncio. O ato se consumou em
poucos minutos.
Ficaram deitados, ela e o sacerdote no altar.
Beijaram-se, ela e Davi no pesadelo.
Beberam água, ela e Arthur na cama.
Um último beijo. Ela o amava, não era pra ter sido assim. As velas tremeluziram e se
apagaram. A Lua se espalhava por tudo, do lado de dentro. Do lado de fora, o astro vermelho
era apenas uma lembrança no céu. Despediram-se.
Só restou o choro do bebê.

***

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Meses se passaram até que a reminiscência daquela noite se dissolvesse nas brumas do
cotidiano. Nunca chegou a comentar com ninguém sobre o ocorrido, e esperava que Mia
propagasse sua resignação. Aos poucos, deixou que o trauma se misturasse ao anonimato das
lembranças devolutas, como um sonho ruim. Vivia, e encontrava alívio no fato de que o
pesadelo jamais se repetiu.
Era domingo, dia de faxina. Passou um pano em todo o apartamento, lavou a louça da
noite anterior, limpou o vaso sanitário. Ligou o aspirador de pó na tomada. Estranho. Não
escutava a agitação gêmea que normalmente invadia a quitinete da vizinha enquanto ela tomava
parte naquele mesmo circuito matinal.
Depois de finalizar, amarrou as sacolas de lixo e saiu para levá-las até a garagem. Mia
devia estar viajando.
– Bom dia.
Lá estava ela, também saindo de casa. Estava diferente, tinha mudado o corte de cabelo?
Não, talvez tivesse ganhado um pouco de peso. Parecia cansada. A saudação fora
excepcionalmente fria.
– Bom dia, vizinha! – respondeu Arthur, animado. Para falar a verdade, não sabia
quando tinha sido a última vez que os dois tinham se encontrado assim, por acaso, nos
corredores do prédio. – Como vai? Desistiu de fazer faxina aos domingos?
– Hoje estou um pouco indisposta – ela explicou, apática, sem sequer virar o rosto
conforme andava em direção aos elevadores. – E o médico sugeriu repouso, de qualquer forma.
– Entendi. Você está doente?
Ela revirou os olhos e soltou um risinho artificial, balançando a cabeça.
– É, acho que estou. Nem sei por que estou falando com você.
Os dois precipitaram-se juntos na hora de apertar o botão do elevador, e os dedos dele
roçaram nos dela por acidente. Imediatamente, como aquelas plantas que se fecham ao toque
humano, ela recuou e se encolheu.
– Mia, está tudo bem? Você tem estado tão distante...
Ela não respondeu.
O elevador chegou em alguns minutos. Uma das desvantagens de se morar no vigésimo
primeiro andar de um prédio com catorze apartamentos por nível. Mia fez menção de voltar ao
seu várias vezes, porém conteve-se e se conformou. Ela era boa nisso, em conformar-se.
Entraram juntos.

126
O visor marcava “12” quando ela sugeriu:
– Se quiser, pode colocar a mão na barriga.
– Colocar a mão na barriga?
– Isso, colocar a mão na barriga.
Confuso, mas receoso em contrariá-la nesse estado de humor, obedeceu e colocou a mão
sobre o próprio umbigo. Ela riu.
– Não, bobo. Pode colocar a mão sobre a minha barriga.
– Tudo bem.
Ele se aproximou com cuidado, para não a assustar. Ela levantou a camiseta. De fato,
tinha engordado muito nas últimas semanas.
A barriga dela estava quente. A pele se arrepiou ao seu toque. E então, lá no fundo, algo
se moveu e chutou a mão do pai.

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3.9 VIDA E ESQUECIMENTO DE ALBERTO PEREIRA DA SILVA

29ºC: Primavera

Começou a desconfiar de que algo estivesse errado no seu aniversário de trinta e cinco
anos. A maioria dos convidados apresentou-se casada, com filhos, noiva ou no mínimo
comprometida e dividindo um lar. Ele pertencia à minoria dos solteiros, com a distinta distinção
de que não se enquadrava nem a ela. Todos os outros exibiam cicatrizes de relacionamentos
malsucedidos. Uma ex-namorada cleptomaníaca aqui, um ex-marido manipulador ali.
Encontravam consolo na tragédia alheia. Alberto não. Alberto nunca experimentara um namoro
ou qualquer coisa que o valesse. O máximo que suportara vivenciar ao lado de outro ser humano
com quem ocasionalmente dividisse os lençóis foram três semanas -- e mesmo então contara
com o auxílio de um feriado prolongado de quatro dias, durante os quais não precisara fazer
contato com ninguém além do mar.
– Você não mudou nadinha! – Diana apontou, meio espantada, mas seguramente
pensando que fazia um elogio.
– É, todo mundo costuma comentar – Alberto abriu a boca num meio sorriso, enquanto
coçava o topo da cabeça com uma das mãos.
A bem da verdade, havia uma única diferença, pelo menos até onde o próprio Alberto
conseguira notar. Um singelo fio de cabelo branco, que insistia em crescer às polegadas, por
mais que o jovem teimasse em arrancá-lo. Sua presença ressequida destoava do conjunto negro
e liso ao redor e ele surgia, espetado, autêntico, inconformado, em meio a todos os outros.
Aquilo incomodava Alberto profundamente. Se fosse para permanecer inalterado, enquanto os
demais cresciam e encurvavam-se, que a constância fosse exprimida por cada centímetro de seu
corpo e de sua alma. Aquele pequeno pedaço de vida esmaecida o perturbava, como um
resquício de mortalidade a lhe recordar do que tinha deliberadamente se esquecido.
– E como vão as coisas?
– Eu suponho que bem – ele tinha que dar um jeito de se livrar de Diana. Amigos antigos
ansiavam por novidades, avanços, mudanças. Nada mais natural. Talvez não contassem com
outra ocasião para se atualizar, não até a primavera seguinte, quando se iniciava novamente a
temporada de aniversários. Só que nada em Alberto era natural.
– Estão indo, pelo menos?
– Indo?

128
– As coisas. Eu perguntei como elas vão.
Ah, um trocadilho. O bom humor de Diana era contagiante.
– Desculpa, mas tenho que dar uma olhada no João. Ele se queixa se o deixo muito
tempo sozinho.

35ºC: Verão

O posto de gasolina ficava na beira da estrada. O asfalto desprendera-se e a areia tomara


posse de tudo, do caminho à loja de conveniência. Mas o posto em si resistira bravamente. A
cobertura, por algum milagre, sustentara-se através dos anos, mesmo frente às últimas
tempestades de vento, cada vez mais comuns. Ajudava que a chuva em si tivesse desistido de
cair. O único problema vinha com as bombas: estavam todas vazias. Primeiro paulatinamente,
depois de súbito -- quando todos fugiram -- elas haviam se esgotado. Agora, nem uma gota de
combustível caía das mangueiras e João passara as últimas horas em busca de um estoque
secreto de óleo que diziam existir nos barracões além da pista.
– Você não vai me ajudar?! – ele perguntou, enquanto se aproximava. A exasperação
em sua voz não encontrava correspondente visível em seu rosto, ocultas como estavam suas
feições debaixo de camadas e mais camadas de poeira grudada em suor.
– Estou tranquilo – Alberto respondeu, e deixou que a fumaça saísse devagar por entre
os lábios.
– Eu sei que está! Esse é o problema, Beto. Você está sempre tranquilo! E nós não
podemos ficar aqui eternamente!
Outra baforada, então apagou o cigarro na pilastra em que se apoiava e deixou que caísse
no chão.
– E por que não?
Apesar do pó, apesar daquela segunda pele de terra, fuligem e areia que poderia indicar
há quantos meses eles estavam por conta própria, lutando para sobreviver no desamparo, tal
qual outrora fora possível calcular a idade de uma árvore a partir dos anéis em seu tronco,
Alberto percebeu o esforço que João fazia para se manter calmo. Ou pelo menos civilizado.
– Bom, para começar, nossa comida e água estão quase acabando. Eu sei, eu sei,
podemos voltar para a cidade e saquear algum mercado.
– Exatamente.
– Mas não é só isso, Beto! Todos os outros já partiram, você não percebe?

129
E, como que para pontuar o argumento, um urubu veio se empoleirar sobre a placa
enferrujada onde provavelmente se lera algo como “posto de serviços” antigamente.
– Nós fomos deixados para trás. E daí?
– Não, não. Se tivéssemos sido abandonados, como você diz, eu não estaria tão puto. O
foda é que nós escolhemos ficar. Nós não, você. Eu só acompanhei, eu acho. Nunca soube ao
certo o que fazer. Você, por outro lado, Beto! Tão seguro de si, tão permanente. Eu tinha outra
escolha? Me diz, eu tinha? – ao invés de responder, Alberto preferiu aguardar que ele
prosseguisse. – Prefiro acreditar que não. Que fui pego em sua aura de estagnação e era fraco
demais para me desvencilhar. Mal podia sacudir os ombros naquela época, que dirá o corpo
inteiro. Caralho, o tempo que você levou para reconhecer que tínhamos alguma coisa! – ele se
interrompeu para rir. Um riso seco, isolado, que implorava por uma continuação. Tal como
ficou, nem podia ser chamado de riso. – Engraçado como agora, mais cansado do que nunca,
eu resolva me rebelar.
– É isso que você está fazendo? Se rebelando?
Ele ficou pensativo por dois segundos antes de declarar:
– É. É isso sim.
– Pois então vá.
– Oi?
– Se está assim tão infeliz, pode ir.
– Não é isso que eu quero, Beto.
– Então o que é? Que porra você espera de mim?!
– Você é um egoísta filho de uma puta mesmo, Beto.

31ºC: Outono

Foi despertado pelo Sonho da Manhã de costume. Um lagarto banhando-se ao sol e


deixando, no ritmo verde dos répteis, que a língua detectasse a atmosfera úmida e repleta de
insetos em que se resumia o pântano. Com exceção do sol e da corruptela fabricada que fazia
as vezes de atmosfera naqueles dias, nenhuma daquelas coisas existia mais. O que trazia certo
alívio a Alberto. Por isso fora o sonho escolhido por ele ao programar o Despertador Onírico.
O escritório espalhava-se por todas as direções. Ele se dirigiu à mesa que lhe fora
designada e se pôs a trabalhar. O andar estava praticamente vazio. Conseguia distinguir a
senhora dos óculos dourados dez fileiras adiante e o rapaz sem queixo próximo às janelas. As

130
baias imediatamente à sua volta estavam desocupadas. Ativou o sistema, sincronizou-se com
os dados do período, entregou-se à análise, salvaguarda e descarte. Não que o ofício fosse
imprescindível à sociedade. Nenhuma atividade laboriosa o era. As máquinas davam conta de
tudo sozinhas. Aquilo era uma opção, e de certo modo um engodo. Mas se deixar enganar dava
no mesmo que não se deixar enganar. E Alberto julgava que os minutos se arrastavam com
menos letargia quando estava logado.
Depois do almoço, tinha se habituado a passear pelas margens do canal artificial que ali
atuava como rio. Às vezes, o garoto vesgo que lhe lembrava ligeiramente João se encontrava
com ele na segunda ponte.
– Você está atrasado – ele comentou, a censura das palavras ausente em sua entonação
apática.
– Como foi sua semana? – Alberto perguntou.
– Igual. E a sua?
– Também. Ontem descobri um defeito.
– Outro?
Alberto concordou com um aceno e se debruçou sobre o parapeito. O canal traçava uma
linha reta até os confins da cidade. A visão do sol resplandecente em suas águas era quase bela.
– A Liderança já consertou.
– Estranho, todos esses defeitos, e logo depois da Atualização. Será que terão de
regressar?
– Acho que não chegará a tanto.
– Tomara que não.
Mais tarde, no quarto de Alberto, o garoto queria saber, pela décima vez, qual o nome
do rapaz da foto.
– É muito parecido comigo. Eu mereço saber.
– É mesmo? Não tinha notado.
– Não desvia, Beto. Ele não é daqui.
– Não é.
– Não foi uma pergunta.
Alberto se levantou da cama e foi até a cozinha beber alguma coisa. Os cômodos,
contíguos e sem paredes que os separassem, não passavam de mera ficção.
– Se chamava João.
– Hum. Ninguém mais se chama João hoje em dia.

131
– Nem Alberto.
– Nem Alberto.
Ficaram em silêncio por alguns instantes. Alberto ligou o cigarro.
– Ele significava muito pra você?
– Não sei. Não sei o que é significado.
– Você o perdeu?
– Perdi. Há muito tempo. Achava que essa parte era óbvia.
– Você também vai me perder.
– Eu sei.
– Não te incomoda?
– Não mais.

33ºC: Inverno

Se as temperaturas variassem mais ajudaria. Pelo menos, haveria uma ilusão de


passagem do tempo. De avanço, como Diana tanto desejara, já não se recordava quantas
décadas atrás. Mas até isso o sol lhe negava. Onde quer que fossem, onde quer que se
escondessem, a constância do calor impregnava até os ossos. E agora, o que fora antes uma
exclusividade das terras tropicais que chamara de lar, parecia se estender mundo afora,
apagando as linhas imaginárias que dividiam latitudes, alturas, zonas climáticas, estações.
Agora, o verão se multiplicara e conquistara o ano todo, como uma praga. E se fisiologicamente
ele já estivesse acostumado com sua ubiquidade, sua mente ainda ansiava por uma quebra. Mas
ela nunca vinha.
Acompanhou a descida das corredeiras aos saltos. A trilha seguia o leito do rio o melhor
que podia. Só se deixou desviar e penetrou de volta na mata quando ficara claro que um abismo
se entrepunha entre ele e a vila de pescadores lá embaixo.
Lera num livro, durante a faculdade, que o tempo dava voltas em torno de si mesmo. Já
não se lembrava do título. Algo sobre a solidão. Sorriu e afastou um galho para o lado, os passos
largos cobrindo rapidamente a distância entre ele e seu objetivo. A frase carregava muita
verdade dentro de si. Podiam ser círculos crescentes, uma espiral ascendente (ou descendente,
tanto fazia), porém círculos assim mesmo. Queria que fosse diferente, gastara a vida toda
naquele desejo. Ou então, senão ela inteira, ao menos sua sobrevida, o período após a perda de
João, a fase do inconformismo. No entanto, ali estava ele, a demonstração fatal do axioma. A

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vila primitiva de pescadores não deixava que mentisse.
A floresta se transfigurara, renascera, plantas enormes tinham surgido graças à
abundância de carbono e de espaço. As algas cialúx, parentes distantes das algas que estudara
na escola, tinham despoluído (ou transpoluído, como diziam alguns) os córregos, lagos e mares.
Peixes e crustáceos de cores absurdas já perambulavam alegres por toda parte. Os animais
terrestres demorariam mais para retornar. Alguns insetos mais resilientes, contudo, já podiam
ser vistos durante a tarde e à noite, zumbindo ao redor das poças. Também tinham sofrido,
espremidos pela pressão do apocalipse, obrigados a se desvendar em outras possibilidades. E
foram bem-sucedidos. Adaptaram-se. O próprio vento vinha em golfadas inéditas até Alberto.
Cheirava e fluía de maneira desigual, desprendido do passado, ignorante acerca dos anos em
que sua pestilência fora suficiente para assassinar rebanhos inteiros. O ar renovado alardeava o
fracasso humano mais do que o resto. Começou a chover.
– Você está ensopado – a mulher disse, sem lhe dirigir o olhar. – Enxugue-se bem antes
de entrar, não quero o tapete fedendo a mofo por semanas de novo.
Ele obedeceu. Alcançara um estado próximo à felicidade naquela hospedaria, em meio
àqueles sobreviventes simplórios que durante o dia pescavam e durante a noite dormiam,
comendo entre um e outro período. Encontrara seu espaço entre eles, como explorador. Dera
um jeito de ficar responsável pela ampliação das fronteiras do diminuto aglomerado urbano.
Finalmente, algo que não o aborrecia. Corria, saltava, descobria cavernas e colinas. Uma vez,
vira um pássaro voando ao longe no horizonte. Ninguém acreditara, ele dera de ombros. Se
contentava em saber que ele estava lá, chocando seus ovos em um ninho solitário oculto pelas
copas das árvores. Sorrira e degustara da carne amarela em seu prato. Alberto sorria com
frequência desde que se instalara no lugar.
Quando achou que estava seco o bastante, subiu. Em seu quarto havia duas camas e um
armário. Seu colega de quarto já dormia, embalado pelo trabalho nas correntezas. Ele remava,
e os remadores estavam constantemente exaustos. Atravessou o aposento sem fazer muito
barulho e desabou sobre o colchão. Perdera a foto de João na etapa das calamidades. Tudo se
perdera durante aqueles anos. Até a humanidade se divorciara de seus antepassados, não podia
lamentar a perda de uma foto. Que soubesse o que era uma foto já se constituía quase num
milagre. Lamentava de qualquer forma. Queria pedir desculpas, voltar atrás, se comprometer.
Sentia tanto, sentia muitíssimo. Mas se ficasse preso ao remorso trocaria uma teia por outra e
seguiria estagnado.
Surpreso, se deu conta de que não conseguia mais visualizar o rosto dele. Como se a

133
poeira do posto tivesse borrado a memória. Fechou os olhos, disposto a adormecer. A
oportunidade perfeita. Se não progredisse agora jamais progrediria.

134
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os nove contos que compõem esse projeto foram escritos ao longo dos últimos dois
anos. “Depois da Comunhão” foi o primeiro deles, logo no início do curso, e foi entregue como
trabalho de conclusão de disciplina da minha orientadora Thais, no primeiro semestre de 2018.
“Lua Cadente” foi o próximo, também elaborado como parte de um trabalho de conclusão de
disciplina nesse mesmo semestre, desta vez do meu outro orientador, o professor Rodrigo.
Assim, de certa forma, eu estava fadado a escrever sobre a Síndrome do Espelho
Quebrado desde o começo. A escrita carrega muito dessa inevitabilidade, dessa compulsão pelo
destino autoproclamado. De modo que eu nunca tive escolha, nem escapatória. Eu precisava
escrever sobre esses temas, do mesmo jeito que eles precisavam ser escritos por mim. Como
disse na Introdução, eu mesmo estava inerte e desconectado quando iniciei esse trajeto. Os
Sintomas, sob esse ponto de vista, nunca tiveram uma chance.
É verdade que todos os trabalhos aproveitados de outras oportunidades para esse projeto
(além de “Depois da Comunhão” e “Lua Cadente”, “Garoto Encapuzado” e “Dia de Mudança”
foram escritos originalmente para minhas sessões de psicoterapia, a pedido de meu terapeuta)
foram alvo de intensa revisão e reescrita, com trechos inteiros acrescentados, suprimidos ou
modificados, o que implicou, em alguns casos (principalmente em “Lua Cadente”) em uma
completa reformulação da história original. Contudo, por mais que se alterassem a forma ou até
o conteúdo, a direção inicial, o vetor narrativo, por assim dizer, mantinha-se constante,
apontando sempre para o mesmo centro. E esse centro acabou crescendo, se expandindo para
além dos limites inocentemente imaginados para ele, até que tomou posse de todo o projeto.
Foi nesse momento que os Sintomas morreram. Ou, como prefiro pensar, foram
suprimidos e postergados, também fadados a ressurgir nos próximos anos, quando carregarem
em si tanta verdade que não possam mais ser evitados. O escritor conta com um talento inato
para a esquiva que, no entanto, se mostra absolutamente inútil quando diante da flecha disparada
pelo arco perfeito. O curioso é que o arqueiro é o próprio escritor, e ele raramente mira a si
mesmo. É o arco que precisa amadurecer, adquirir aquele balanço preciso que permitirá à flecha
acertar o alvo que sempre buscava, mesmo dentro da aljava. Espero estar pronto para encará-
los a todos quando esses Sintomas vierem novamente até mim.
Até lá, espero ter conseguido me desintoxicar o suficiente dessas duas problemáticas
(que no fundo são a mesma) trazidas aqui, ao longo dessas nove pequenas histórias. E então,
reconectado, possa avançar rumo ao desconhecido.

135
5 REFERÊNCIAS
Tendo em vista que já saciei o desejo do leitor por listas e mais listas com meu Atlas
(item 1.4), aqui optei por um método mais descritivo para elencar quais as obras que mais me
influenciaram na composição do projeto.

5.1 BIBLIOGRAFIA
A maioria das ferramentas usadas nesse projeto vieram de Kafka141516, e não poderia ser
diferente. Dele emprestei a estranheza, o alienígena, o não-pertencimento, a falta de sentido.
Em suma, todos os elementos que me eram imprescindíveis ao trabalhar o tema da desconexão,
ainda que sob uma ótica diferente da adotada pelo mestre do absurdo. Também dele vieram os
labirintos, os desafios lógicos, as impossibilidades, os círculos, as prisões (com ou sem grades
e muros). Em outras palavras, toda a atmosfera da inércia em que consiste o tema secundário
do projeto.
Falando em labirintos, foi em Borges17 que me aprofundei na sua criação. Com ele tentei
aprender a noção de infinito, para depois empregá-la quando fosse necessário, aprisionando
meus protagonistas na vastidão do vazio. Borges, portanto, me apresentou mais aos espaços
eternos que ao tempo ubíquo, se é que são eles dissociáveis. Supondo que sejam, ao menos para
fins didáticos, então foi com Gabriel Garcia Marquez 18 que aprendi a manipular o tempo
propriamente dito, girando, dançando, com suas ilusões de avanço e de retrocesso, sempre em
círculos, sem nunca sair do lugar.
Já sobre as prisões propriamente ditas, dessa vez com grades e muros, foi com
Camus 1920 que me debrucei mais pormenorizadamente sobre o absurdo da existência,
encontrando no escritor argelino toda a reflexão sobre a falta de propósito que me era tão
imprescindível ao enfrentar o tema periférico do projeto.
Os últimos recursos para enfrentar a inércia vieram da fera criada por Henry James21.
Aquela besta sempre à espreita, prestes a dar o bote, na iminência de algo que nunca se

14 KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo. Novo século. 2017. 94p. Trad. Caio Pereira.
15
KAFKA, Franz. O Castelo. São Paulo. Novo século. 2017. 335p. Trad. Deborah Stafussi.
16
KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo. Novo século. 2017. 271p. Trad. Caio Pereira.
17
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo. Companhia das Letras. 2008. 155p. Trad. Davi Arrigucci Jr.
18
MARQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. 108ª Ed. Record. Rio de Janeiro. 2019. 446p. Trad. Eric
Nepomuceno.
19
CAMUS, Albert. O estrangeiro. 42ª Ed. Record. Rio de Janeiro. 2017. 126p. Trad. Valerie Rumjanek.
20
CAMUS, Albert. A peste. 23ª Ed. Record. Rio de Janeiro. 2017. 287p. Trad. Valerie Rumjanek.
21
JAMES, Henry. A fera na selva. 1ª Ed. São Paulo, Rocco Jovens Leitores. 2011. 96p. Trad. Fernando Sabino.
136
concretiza. Mas foi dando voltas em parafusos22 que aprendi mesmo a explorar todo o potencial
que o tema da desconexão continha.
Com James, percebi que precisaria deixar a escuridão penetrar no vão que esses
personagens deixaram se abrir entre eles e o resto do mundo. A inevitabilidade desse caminho
descendente rumo às trevas da loucura me foi ensinada e demonstrada tanto por Conrad23 como
por Lovecraft 2425 , ainda que de maneiras bem discrepantes entre si. De Conrad levei a
construção de personagens e a estrutura da história em camadas. De Lovecraft apanhei a
construção de ambientes e a estrutura de enredos surpreendentes. De ambos emprestei a
atmosfera e a afinação do sombrio, afinal os dois têm uma predileção pelos cultos transtornados
que parecem surgir nos confins das florestas e dos mares.
Por fim, deixei que Cortázar2627 me auxiliasse com a estrutura do projeto, tanto de um
ponto de vista macroscópico (pensando nos contos em conjunto) quanto microscópico
(pensando em cada conto em si). Ele acabou fazendo muito mais que isso, com seus coelhos
regurgitados, seus apêndices infeccionados e seus congestionamentos eternos, e quando me dei
conta percebi que devia aos argentinos grande parte do projeto.

5.2 FILMOGRAFIA
Com os filmes e séries eu acabei percebendo uma tendência maior à exploração do tema
da desconexão, quase ao contrário do que aconteceu com os livros. Talvez porque filmes e
séries sobre inércia fossem muito aborrecidos de se assistir, então preferi me inspirar
principalmente nos seguintes: em The Sinner28 adquiri o gosto pela distorção da realidade, pelas
memórias deturpadas pelo trauma, pelo trauma enquanto fator que desconecta, que separa, que
afasta o indivíduo de si mesmo e dos outros; em The O.A.29 parte destas questões retornavam,
mas com um viés místico e transcendental que valorizo também em (certas) histórias minhas;

22
JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. São Paulo. Penguin. 2011. 200p. Trad. Paulo Henriques Britto.
23
CONRAD, Joseph. Coração das Trevas. São Paulo, Companhia de Bolso. 2008. 184 p. Trad. Sergio
Flaksman.
24
LOVECRAFT, H. P. (Howard Phillips). O Horror em Red Hook. São Paulo. Iluminuras. 2014. 232p. Trad.
Celso M. Paciornik.
25
LOVECRAFT, H.P. (Howard Phillips). A busca onírica por Kadath. Sâo Paulo. Hedra. 2012. 165p. Trad.
Guilherme da Silva Braga.
26
CORTÁZAR, Julio. Bestiário. São Paulo, Círculo do Livro S/A. 136p. Trad. Remy Gorga Filho.
27
CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. São Paulo, Círculo do Livro S/A. 201p. Trad. Gloria Rodrigues.
28
THE SINNER (seriado). Temp. 1 e 2. Desenvolvida por Derek Simonds. Produção: Jessica Biel, Michelle
Purple, Derek Simonds, Antonio Campos, Charlie Gogolak, Bradford Winters, John David Coles. Produtora:
NBCUniversal, 2017/2018, legendado.
29
THE O. A. (seriado). Temp. 1 e 2. Desenvolvida por Brit Marling e Zal Batmanglij. Produção: Brit Marling,
Zal Batmanglij, Brad Pitt, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Sarah Esberg, Michael Sugar, Alison Engel, Blair
Fetter, Nina Wolarsky. Produtora: Netflix, 2016/2019, legendado.
137
por fim, para encerrar esse ciclo de impossibilidade de aferição da verdade através da
lembrança, me vali de alguns recursos utilizados em Alias Grace30 e no anime Ergo Proxy31.
Em ambos, a distância temporal e o intenso impacto subjetivo que a verdade buscada promove
impedem os investigadores de encontrar uma versão pura dos fatos. É possível chegar a várias
versões deles, seguindo pistas e traços de informações cedidas pelos que presenciaram os
eventos originais, mas nunca se atinge o rigor absoluto que se espera da resposta correta.
Quanto aos filmes, O bebê de Rosemary32 serviu de inspiração direta para o motivo
condutor de Lua Cadente; O Labirinto do Fauno 33 me fez perceber que os assuntos mais
relevantes e psicologicamente intensos podiam ser enfrentados através da fantasia; Ilha do
Medo34 e Coringa35 mais uma vez trouxeram à tona a desconexão através da loucura, ou a
loucura causada pela desconexão; em O Cidadão Ilustre 36 e Pássaro do Oriente 37 aprendi a
manipular os fatos sob o ponto de vista de um protagonista não confiável (o que é mais raro de
se ver no cinema que na literatura); e em Donnie Darko38 percebi que a ordem dos eventos pode
ser tão importante quanto os eventos em si para se desvendar a realidade.

5.3 LUDOGRAFIA
Por fim, optei por fazer menção honrosa a alguns dos inúmeros jogos que joguei ao
longo dos últimos anos, e que realmente moldaram parte da minha escrita, aqui analisada
estritamente nos limites deste projeto: do maior deles, Bloodborne 39 , um jogo baseado
inteiramente na obra do próprio Lovecraft, percebi o potencial das histórias de estrutura
rizomática, contadas através de pequenas pistas e fragmentos aparentemente desconexos entre
si (em Bloodborne o protagonista acorda em meio a um pesadelo sem sentido, e é através de
pequenos diálogos, do encontro com certas entidades e da descrição de itens que aos poucos ele
é capaz de reconstruir a narrativa que o trouxe até ali). Também em Bloodborne pude vivenciar

30
ALIAS Grace (minissérie). Desenvolvida por Sarah Polley. Dirigida por Mary Harron. Produção: Margaret
Atwood, Marla Boltman, D. J. Carson, Noreen Halpern, Sarah Polley, Lori A. Waters, John Buchan, Mary
Harron. Produtora: CBC Television, Netflix, 2017, legendado.
31
ERGO Proxy (anime). Desenvolvido por Dai Sato. Dirigido por Shuko Murase. Produção: Akio Matsuda,
Satoshi Fujii, Hiroyuki Kitaura, Takashi Kochiyama. Produtora: Manglobe, 2006, legendado.
32
O BEBÊ de Rosemary. Roman Polanski. Paramount Pictures, 1968. (137min.), legendado.
33
O LABIRINTO do Fauno. Guillermo del Toro. Warner Bros., 2006. (112 min.), legendado.
34
ILHA do medo. Martin Scorsese. Paramount Pictures, 2010. (137 min.), legendado.
35
CORINGA. Todd Phillips. Warner Bros., 2019. (122 min.), legendado.
36
O CIDADÃO ilustre. Mariano Cohn e Gastón Duprat. Cineart Filmes, 2016. (118 min.), legendado.
37
PÁSSARO do oriente. Wash Westmoreland. Neflix, 2019. (107min.), legendado.
38
DONNIE Darko. Richard Kelly. Flashstar, 2000. (113 min.), legendado.
39
BLOODBORNE (jogo eletrônico). Dir. Hidetaka Miyazaki. Produção: Masaaki Yamagiwa, Teruyuki
Toriyama. Desenvolvido por FromSoftware. Pub.: Sony Computer Entertainment, 2015, versão em inglês.
Plataforma: PlayStation 4.
138
a atmosfera lovecratiana que até então só pudera imaginar, e percebi que a beleza deslocada
pode surtir um impacto de horror maior que a feiura exagerada. Por fim, Bloodborne também
me mostrou que as melhores histórias são aquelas que se passam muito tempo depois das
histórias em si, quando as últimas testemunhas vivas dos fatos já enlouqueceram, quando os
cadáveres já floresceram, quando os ossos já se tornaram pó, quando até os vermes
abandonaram as ruínas e os esqueletos (uma estratégia, aliás, em torno da qual gira o magnífico
romance mexicano Pedro Páramo40, também parte do Atlas deste projeto).
Essa questão temporal vem igualmente bem explorada em Nier: Automata 41 . Nesse
mundo de androides criados por humanos já extintos, e em perene estado de guerra contra
máquinas criadas por alienígenas também já mortos há muito, senti na pele o dilema do deus-
morto, o vazio que é descobrir a futilidade da existência, a desconexão (que, no jogo, ocorre de
forma literal, com as máquinas enlouquecendo ao se desconectarem do servidor central)
ocasionada pela falta de propósito, esta por sua vez retroalimentada pela própria desconexão.
Por fim, Persona 542 e What Remais of Edith Finch43 me mostraram o quanto o mundo
objetivo pode ser moldado ou influenciado pelas concepções do eu subjetivo. No primeiro,
certas falhas de caráter e psicoses acabam gerando uma tamanha distorção no modo que os
vilões do jogo enxergam o mundo, que o mundo se torna literalmente (através dos recursos
quase mágicos do universo do jogo) a distorção concebida por suas mentes doentes (e doentias).
No último, o destino fatal de toda uma família de indivíduos de saúde mental questionável é
selado quando cada um deles se convence de que a família foi amaldiçoada pela morte. Em
ambos, portanto, a desconexão acaba protagonizando uma série de acontecimentos trágicos, e
é o dever dos respectivos protagonistas emendá-la, reaproximando realidade objetiva e
concepção subjetiva.

40
RULFO, Juan. Pedro Páramo. 3ª Ed. Rio de Janeiro. Bestbolso. 2015. 137p. Trad. Eric Nepomuceno.
41
NIER: AUTOMATA (jogo eletrônico). Dir. Yoko Taro. Produção: Eijiro Nishimura, Yosuke Saito.
Desenvolvido por PlatinumGames. Pub.: Square Enix, 2017, versão em inglês. Plataforma: PlayStation 4.
42
PERSONA 5 (jogo eletrônico). Dir. Katsura Hashino. Produção: Katsura Hashino. Desenvolvido por P-
Studio. Pub.: Atlus, 2017, versão em inglês. Plataforma: PlayStation 4.
43
WHAT REMAINS OF EDITH FINCH (jogo eletrônico). Dir. Ian Dallas. Produção: Alvin Nelson, Michael
Fallik. Desenvolvido por Giant Sparrow. Pub.: Annapurna Interactive, 2017. Plataforma: PlayStation 4.
139

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