BRASILEIRA
DE
São Paulo
2009
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ABRALIC
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Universidade Federal do Paraná
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REVISTA
BRASILEIRA
DE
ISSN 0103-6963
Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.15 p. 1-195 2009
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963)
é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura
Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega
professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura
Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.
ISSN 0103-6963
CDD 809.005
CDU 82.091 (05)
Sumário
Apresentação
Luís Bueno
Mauricio Cardozo 7
Artigos
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto
dos estudos portugueses e latino-americanos na Alemanha
Ligia Chiappini 9
Pareceristas 190
Apresentação
Luís Bueno
Mauricio Cardozo
9
Em memória de Marlyse
1 language, curriculum reform, closure chair
Meyer. A literatura proveniente da América Latina tem
*
Professora catedrática de direito a ser considerada no mesmo nível que ou-
Literatura e Cultura Brasileiras tras literaturas, não deveria ser lida somente como
do Instituto Latino-Americano
veículo de informações sobre o país. Não é preciso
da Universidade Livre de
Berlim, entre 1997 e 2010. acentuar que uma obra literária transmite muitos
Atualmente trabalhando na elementos procedentes de outra cultura na ficção
orientação de teses no mesmo e desperta para outras formas de viver e de pensar.
Instituto, bem como na
pesquisa, junto ao Centro de
Porém os preconceitos ou, digamos, os clichês, que
Pesquisas Brasileiras, do qual é influenciam o diálogo entre o autor traduzido e o
co-fundadora.
10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
7
As recentes reformas orientação de mestrados e doutorados, a organização de
implicaram o fechamento simpósios, ciclo de palestras e publicações, o estabeleci-
de departamentos inteiros
de português em toda a
mento e gerenciamento de convênios internacionais com
Alemanha. Em Berlim, a outras instituições dedicadas à cultura e à língua brasileiras
Universidade Humboldt no Brasil e na Europa –, planejou-se e, em menos de cinco
encerrou mais radicalmente
esses estudos. A Universidade
anos, decretou-se o seu desaparecimento no âmbito mais
Livre tem mais condições hoje geral seja da Lusitanística, ao nível do BA,7 seja no âmbito
de manter uma parte deles, dos Estudos Culturais Latino-Americanos, ao nível do
mas o máximo que conseguiu
foi fazê-los sobreviver como Master.8
diploma complementar aos Ao nível do Bacharelado, a língua e a literatura bra-
Bachalerados da Romanística,
sileiras deslocaram-se para o departamento de Filologia
com um BA de estudos
brasileiros e portugueses Românica, como parte do BA de Estudos portugueses e
(valendo 60 pontos e não 90, brasileiros, enquanto a disciplina de Latino-americanística,
como os outros), o que significa
menos carga horária, menos
da qual fazia parte a Brasilianística como uma subárea,
disciplinas, menos professores: passou para o mesmo departamento, mas estranhamente
ou seja, uma formação mais assimilada ao BA de Filologia Espanhola, o que significa,
superficial na área.
concretamente, a exclusão do Brasil da América Latina ou,
8
O Master do Instituto prevê
um primeiro ano comum, com
então, a assimilação de uma língua de quase 200.000.000
cinco módulos obrigatórios de falantes, o português brasileiro, ao espanhol da Amé-
e alguns opcionais. Os rica. Motivos? Ao que parece, mais econômicos que
básicos são: Constituição da
América Latina; Conceitos
científicos.
e métodos da pesquisa sobre Não apenas a literatura brasileira se vê ameaçada.
América Latina; América Os “dilemas da institucionalização” ameaçam também a
Latina no contexto global;
Poder e diferença, além de um variante europeia da língua e os respectivos estudos literá-
módulo para desenvolvimento rios e culturais específicos da lusitanística. Como também
de projetos. Num segundo
previu Briesemeister, “torna-se impossível conciliar as
ano, os alunos podem
optar entre cinco áreas de necessidades da diferenciação adequada com os critérios
concentração: Transformação didáticos de aprendizagem e as relações histórico-culturais
e desenvolvimento; Literaturas
nas dinâmicas culturais da
dos países do mundo lusófono” (2000, p. 350). Ele enun-
América Latina; Antropologia ciou, em face disso, uma necessidade que estamos longe
cultural; Brasil no contexto de preencher:
global: literatura, cultura
e sociedade; Relações de
Sem dúvida, a especialização é absolutamente necessária,
gênero, formas de vida,
transformações. Esse master inevitável e urgente, não só para garantir, em nível institu-
começou em outubro de 2005, cional, a qualidade da pesquisa científica, mas também para
quando os novos bacharelados ajustar a formação profissional dos jovens universitários às
já haviam começado e hoje
já se evidencia em ambos a
exigências de hoje (Briesemeister, 2000).
necessidade urgente de serem
repensados e reformulados..
18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
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25
A imagem do Brasil e a
literatura brasileira na Hungria
Ferenc Pál*
lê sobre um sapo luminoso que “irradia uma luz fosfores- Segunda parte: “[...] a
13
cente” e “canta de noite nos interiores, [...] às vezes tão peruiak, brazíliaiak mind csupa
ezüsttel fizetnek...” (Jókai, s/d).
alto que sua voz suplanta a dos cantores e da orquestra na
14
Primeira parte: “A senki
ópera” (Jókai, s/d) –, o romancista fala largamente sobre
szigete” (“Ilha de ninguém”):
as relações comerciais entre a Austro-Hungria e o Brasil. “Brazília fvárosa Rio de
No romance Fekete gyémántok (Diamantes pretos, 1870), Janeiro. Onnan hozzák a
gyapotot meg a dohányt,
por exemplo, escreve que “os peruanos e os brasileiros
ott vannak a leghíresebb
sempre pagam com prata”.13 E mesmo em Az arany ember gyémántbányák” (Jókai, s/d).
informa que “A capital do Brasil é o Rio de Janeiro. É de lá Primeira parte: “Amíg
15
Sob outro prisma, obras como Trópusi Indiánok között. A zöld pokol. Budapeste:
44
Táncsics, 1959.
Brazíliai útijegyzetek (Entre índios do trópico. Notas de
viagem do Brasil), do etnólogo húngaro Lajos Boglár,
apresentam o Brasil dos trópicos, da selva e dos índios, esti-
mulando, assim, o interesse por outros aspectos desse país,
sublinhados aqueles que o distinguem da Europa. Será essa
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 39
Budapeste: Európa, 1967. obras das mais diversas naturezas, mormente direcionadas
Máglyák az serdben.
49 aos intelectuais. Essa forma de publicação “velada”, um
Budapeste: Móra, 1970. pouco contrária à política cultural oficial, caracteriza em
primeiro lugar a revista de literatura mundial Nagyvilág e
algumas antologias de poesia e de prosa. Destinadas a um
público seleto, surgem nessas publicações, de forma espo-
rádica, muitos autores de valor da literatura brasileira.
Publicações como Dél keresztje (Cruzeiro do Sul, 1957),
Kígyóöl ének (Canto de matar cobras, 1973), Hesperidák
kertje (Jardim das Hespérides, 1971), Járom és csillag (Jugo e
estrela, 1984) divulgam a poesia latino-americana. Os poe-
mas são acompanhados de notas biográficas e bibliográficas;
dessa forma, em torno de 40 grandes poetas brasileiros são
publicados na Hungria. Essas antologias seguem o princípio
da antologia de Paulo Rónai, ou seja, selecionam os poemas
apenas pelo seu valor poético e estético e não demonstram
o menor interesse em ilustrar o desenvolvimento da história
literária brasileira. Fazem falta, por exemplo, poemas que
caracterizem os primeiros anos do Modernismo, ou do
Concretismo e de outras tendências experimentalistas.
Nesse mesmo contexto, publicaram-se contos de
Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa e Jorge Amado
em antologias de prosa latino-americana: Ördögszakadék
(Abismo de diabo, 1966), Dél-amerikai elbeszélk (Narra-
dores latino-americanos, 1970), Az üldöz (O perseguidor,
novelas latino-americanas, 1972).
40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
A edição de Nove, novena, de Osman Lins,51 revela Kilenc és kilenced. Trad. Judit
51
certa perplexidade provocada por este câmbio de para- Xantus. Budapest: Európa,
1985.
digma no gosto dos divulgadores. O autor do posfácio,
ilustre estudioso e tradutor, evoca, um tanto indeciso, a
obra nordestina de Jorge Amado, a ambientação sulista de
Verissimo e as fortes cores mineiras de Guimarães Rosa,
lamentando que “os enérgicos elementos linguísticos deste 52
Járom és csillag (Jugo e
último faltem na obra de Osman Lins” (Benyhe, 1985, p. estrela), seleção, prefácio
e notas por János Benyhe.
211). Aqui aparece novamente, como referência, o ele- Budapeste: Kozmosz, 1984.
mento exótico, representado, neste caso, por Jorge Amado Na antologia aparecem
e Guimarães Rosa. poemas de Mário de Andrade,
Augusto dos Anjos, Manuel
Essas palavras do literato e tradutor János Benyhe no- Bandeira, Olavo Bilac, Raul
vamente aludem às contradições da “oferta e da procura” Bopp, Geir Campos, Ronald
da literatura brasileira na Hungria. Num debate transmi- de Carvalho, Vicente de
Carvalho, Francisco Antônio
tido pela rádio, um representante da velha estirpe pôs em de Carvalho Júnior, Antônio
confronto com a literatura de fortes cores brasileiras uma de Castro Alves, Raimundo
Correia, Bernardino da
literatura classicizante, pastoril, que se cultiva nos recantos
Costa Lopes, João da Cruz e
ocultos do Brasil e que conserva valores eternos, segundo Sousa, Luís Delfino, Teófilo
ele. Tal princípio distintivo, que se mantém quase intacto Dias, Carlos Drummond de
Andrade, Ascenso Ferreira,
desde a antologia de 1939, Mensagem do Brasil, predomina Antônio Cândido Gonçalves
igualmente numa antologia de 1984,52 a maior antologia Crespo, Alphonsus de
húngara da poesia latino-americana publicada até os dias Guimaraens, Sebastião Cínero
dos Guimarãens Passos, Luís
de hoje. O que surpreende é que a lista dos poetas moder- José Junqueira Freire, Jorge
nos é quase igual à da seleção de meio século atrás (apenas de Lima, Joaquim Maria
Ascenso Ferreira, Raúl Bopp e Vinícius de Morais são os Machado de Assis, Gregório
de Matos, Cecília Meireles,
nomes novos) e assim mesmo há muitas coincidências na Vinícius de Morais, Alberto de
escolha dos poemas. Oliveira, Rui Ribeiro Couto,
Augusto Frederico Schmidt.
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 43
Referências
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Az üldöz. Budapeste: Európa, 1972.
BALINT, György. Brazília üzen. Magyarország, Budapeste, n. 225,
p. 7, 1939a.
46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
surpreendente pela espantosa de esse “saber outro” que, no caso, estava se produzindo
atualidade das traduções:
Esaú e Jacob, de Machado
gerado precisamente por aquele encontro.
de Assis, por exemplo, cuja Algumas dessas questões dizem respeito a um mape-
primeira edição no Brasil é amento qualitativo da literatura brasileira no exterior que
de 1904, foi traduzido para o
espanhol só um ano depois, seria bem interessante fazer, além do mapeamento quan-
em 1905. Essa sincronia titativo. A identificação dessas questões e a elaboração
é, por sua vez, evidência
de respostas para elas, assim como a criação de redes de
de um intenso diálogo
entre a literatura argentina pesquisadores e de contatos e fluxos de saberes é, sem dúvi-
e brasileira no período, da, um dos grandes ganhos de encontros daquela natureza
principalmente durante os
anos do Romantismo. É no
em termos teóricos, além do fato pragmático – também
segundo período, no entanto, importante – de facilitação dessa rede e desses contatos.
quando a tradução mostra Fica claro que, ao se falar da difusão da literatura
seus vínculos com as políticas
estatais e com as a alianças
brasileira no exterior, é importante analisar os tempos e
políticas e ideológicas de contextos dessa difusão, levando em conta as diferentes
esquerda que nasceram do condições de possibilidade que esses tempos e contextos
exílio na Argentina de Luiz
Carlos Prestes e Jorge Amado. têm oferecido para o conhecimento da literatura brasileira
Um terceiro período, que em países estrangeiros.
Sorá denomina mercantil,
O antropólogo Gustavo Sorá começou a pensar
vai de 1945 a 1985 e exibe
a hegemonia do mercado algumas dessas questões para o contexto da Argentina
na seleção e produção da durante o século XX no seu importante livro Traducir el
tradução. Caberia ressaltar
a importância que nos anos
Brasil (2003). Partindo de uma pesquisa empírica sobre
sessenta adquirem questões as traduções de escritores brasileiros para o espanhol re-
ideológicas e o tipo de alizadas na Argentina, Sorá demonstrou que a tradução
problemas para os quais os
estudos sociais brasileiros vão
de autores brasileiros tem sido muito mais importante
ser tomados como modelos e constante na Argentina – segundo algumas variáveis
a observar, como se pode históricas – do que na maioria dos outros paises.3 Mas a
concluir da relevância que os
temas do desenvolvimento pesquisa demonstrou também outra consequência mais
econômico e social adquiririam relevante – e lamentável – ainda para a história cultural
nesse momento. Por
da Argentina e do Brasil: a de que a efetiva tradução de
último, um quarto período,
que Sorá denomina de autores brasileiros na Argentina não tem sempre ajudado
internacionalização, inicia-se a reduzir o mútuo desconhecimento entre os dois países.
em 1985, quando as relações
entre a cultura argentina
A pouca reedição e circulação desses livros é um dado
e brasileira resultam em incontestável: dos canônicos e importantíssimos livros
grande parte da mediação de brasileiros traduzidos pela Biblioteca La Nación – uma
intercâmbios internacionais
nas feiras de Frankfurt,
importante editora universalista – nas primeiras décadas
Barcelona, e dos circuitos do século XX, por exemplo (autores como os já na época
construtores do mercado afamados Machado de Assis, José de Alencar ou Aluísio
editorial internacional.
Azevedo), nenhum deles teve reedição alguma, muito
54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
Referências
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Valen-
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so, 1991.
60 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
1.
avançada” do “centro” pilha talvez porque, kantianamente guiados pelo ponto de vista
as obras da “periferia” para
as incluir em repertórios
filantrópico universal, não acreditamos que os estudos pos-
internacionais, vai a “terras sam ser domésticos ou nacionais sem ao menos aspirarem
distantes” à procura do que a à condição universal. Pode, aliás, residir nessa aspiração
faz menos provinciana e por
isso não se importa de ignorar a razão última por que muitos académicos se dedicam a
a história e o contexto, desde estudar a literatura de países onde não nasceram, onde
que obtenha proventos fáceis
não viveram, aonde nunca foram, ou que só visitaram jus-
(cf. Schwarz, 2006, p. 66).
tamente porque se interessaram pela respectiva literatura
3
Certa tradição académica
chama “portugueses” – talvez alguma convicção de que a literatura, tendo país,
justamente àqueles estudos de no sentido em que pertence a este ou àquele aglomerado
língua, literatura ou cultura
nacional, em rigor não tem país, e ainda querendo tê-lo
portuguesa que no estrangeiro
são conduzidos por não muito fortemente, é sempre pouco para quem vive neste
portugueses; mas estes, como ou naquele aglomerado nacional.2 Então, esses académi-
cidadãos, evidentemente não
cos, que viajam por causa da literatura que não se fez na
se tornam portugueses. O
mesmo se passa de resto com sua terra, ilustram este princípio estranho: as pessoas têm
os brasileiros: um brasilianista necessidade de viajar porque as ideias e os estudos, não se
é alguém que se dedica aos
“estudos brasileiros”, e as
prendendo a nenhum espaço delimitado por fronteiras, não
universidades em princípio podem nem precisam de viajar. Nesse sentido, aqueles que,
não confundem brasilianistas literal ou figuradamente, vão de um país a outro por causa
com brasileiros. Isto, que vale
para as pessoas, não parece da literatura, nunca serão estrangeiros, mas hóspedes, e em
valer para as organizações nem princípio hóspedes de honra, quase cidadãos honorários.3
para os estudos. Um “Instituto
Note-se que, sem eles, é provável que hoje pagássemos a
de Estudos Brasileiros”, cheio
de brasilianistas ou cheio de Berlusconi para ler a Divina comédia, modalidade decerto
brasileiros, tanto pode estar muito inconveniente de prestar tributo ao princípio de
sediado em Roma como em S.
nacionalidade em literatura.
Paulo. Talvez se possa inferir do
exemplo que os estudos, porque Dir-se-á, por outro lado, que estes que viajam, filan-
de algum modo se dedicam ao tropos embora, se deslocam sempre para o território que
Brasil, são brasileiros sem serem
brasileiros e que se chamam
outros, por sua vez, chamam interior, casa, espaço domésti-
brasileiros precisamente na co, e que provincianismo é ver o exterior só como exterior,
medida em que estão no não como “o lar de outras pessoas”.4 Sem dúvida. Estamos
exterior do Brasil e num
interior que não se chama sempre em algum lugar – em algum local. A imediata con-
Brasil. sequência a extrair seria que o universal não existe, pela
4
Colho esta expressão na simples razão de que ninguém o pode habitar. A segunda
tradução para português da consequência é que, sem universal em que se apoie, o
conferência proferida por
Michael Wood num colóquio
cosmopolita pode estar condenado à errância eterna, o
sobre Machado de Assis na maior risco, sendo o menor, mas mais quotidiano, o de se
Universidade de Princeton, em ver obrigado a esbarrar em regras que lhe são adversas ou
janeiro de 2009 (Wood, 2009,
p. 187). a tolerar convicções que lhe repugnam.
64 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
2.
3.
4.
5.
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2003.
_____. O livro agreste. Campinas: Unicamp, 2005.
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 87
ela pode ser sua madrasta ou sua irmã, o leitor não o saberá
jamais. Dinaura, leitora de romances e igualmente sensível
ao mito indígena da Cidade Encantada, desaparece pouco
tempo depois da morte de Amando, pai de Arminto. Este
último, obcecado pelo desejo por essa “mulher encanta-
da”, que depois do seu desaparecimento se transformou
em lenda para os habitantes da cidade, não cessa de ter
visões e sonhar com ela. Arminto sonha com a mulher da
mesma forma que a população pobre da cidade sonha com
a Cidade Encantada, “uma cidade que brilhava de tanto
ouro e luz” (Hatoum, 2008, p. 64). O Eldorado naufraga,
Arminto gasta a fortuna herdada do pai e vende todas as
suas propriedades: a casa de Manaus, a mansão branca
de Vila Bela, a fazenda Boa Vida, que teve as plantações
de cacau destruídas pelas pragas (Hatoum, 2008, p. 67).
A crônica da decrepitude moral de Arminto e da deca-
dência de uma família é também a da Amazônia, região
que alterna períodos de fausto e de declínio. Mas o mito
indígena da Cidade Encantada é atemporal e persiste,
confundindo-se com o mito do Eldorado: “Houve tempo
em que Manaus, ou Manoa, era sinônimo de Eldorado, a
cidade prodigiosa que atiçava os sonhos febris dos nave-
gantes e conquistadores europeus ao mesmo tempo que se
4
Apresentação do romance furtava a todo esforço de localização”.4 Mitos e culturas
pela editora (orelha do livro). viajam e se entrecruzam.5 Contrastando com a miséria que
Ver também p. 99.
assola a cidade real, a utopia de um lugar ideal persiste no
5
“Mitos que fazem parte da imaginário amazônico:
cultura indo-européia, mas
também da ameríndia e de
muitas outras. Porque mitos, A Cidade Encantada era uma lenda antiga, a mesma que
assim como culturas, viajam e eu tinha escutado na infância. Surgia na mente de quase
estão entrelaçados. Pertencem todo mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem
à História e à memória
escondidas num lugar encantado. Ulisses Tupi queria que
coletiva” (HATOUM, 2008, p.
106). eu conversasse com um pajé: o espírito dele podia ir até o
fundo das águas para quebrar o encanto e trazer Dinaura
para o nosso mundo. Sugeriu que eu fosse atrás de dom
Antelmo, o grande curandeiro xamã de Maués. Ele co-
nhecia os segredos do fundo do rio e podia conversar com
Uiara, chefes de todos os encantados que viviam na cidade
submersa (Hatoum, 2008, p. 64).
96 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
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Normas da revista
• Artigo de jornal
TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São
Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.
• Trabalho publicado em anais
CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Ma-
ria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e
Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.
• Publicação on-line – Internet
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e
geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos
Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517-
106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6
fev. 2009.