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PANNENBERG, Wolfhart. Capítulo 2 – A recepção cristã do platonismo.

In: Filosofia e
Teologia – tensões e convergências de uma busca comum. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 33-.

p. 33 –
Nenhuma outra filosofia da Antiguidade marcou tão profundamente a teologia cristã na época
do seu surgimento e desenvolvimento inicial quanto o platonismo [...]. Contudo, isso que foi
entendido como platonismo cristão foi também descrito com razão como “equivalente à
história da Igreja antiga, ao menos da igreja grega como um todo. No caso do platonismo
cristão, trata-se da “cristianização pura e simples do mundo grego, da compreensão cristã da
sua verdade”. O pensamento platônico prestava-se, de modo especial, para a apropriação
cristã do espírito grego, particularmente da filosofia grega, mas também, inversamente, a
renascença de Platão, que se desenrolou no segundo século cristão [...].
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Havia, então, uma afinidade interna entre platonismo e cristianismo? [...]. Heinrich Dörrie
pode descrever o platonismo da Antiguidade Tardia praticamente como alternativa ao
cristianismo, como uma outra forma de aquela época voltar-se para a transcendência. Dörrie
apontou [...] para o fato de que os Padres da Igreja não encaravam as teorias de Platão como o
critério último da verdade, e sim apenas como um encaminhamento para ela [...], isso não
significa que [...] ideias platônicas não tenham também influenciado a interpretação da Bíblia
e dos dogmas cristãos [...]. Entretanto, de todas as formas o platonismo “não é nenhuma
grandeza unitária, nenhum sistema unitário fechado[...], mas uma corrente intelectual”, de
moldes muito diferenciados quanto à sua forma tanto dentro quanto fora do cristianismo [...].
Assim, logo após a morte de Platão já ocorreu a primeira “ruptura” na sua escola, quando esta
se voltou para o ceticismo em oposição à formação do sistema estoico, para assim preservar o
momento crítico do interrogar socrático original como o aspecto decisivo.
Na história da escola platônica, distinguem-se três fases principais: a primeira é a da
“Academia” propriamente dita, que Platão fundou, em 385 a.C. [...]. Ela tinha a forma de uma
associação cúltica a Apolo e às musas. Cerca de meio século após a morte do fundador (348
a.C.), a escola voltou-se para o ceticismo [...] com Arcesilau. Após a destruição dos prédios
da escola durante a tomada de Atenas pelo romano Sula, em 86 a.C., a continuidade da escola
foi interrompida. Poucos anos depois, porém, ela foi renovada como “Nova Academia” por
Antíoco de Ascalon, que, em oposição à fase ceticista da escola, quis retornar aos primórdios
platônicos, acolhendo, com isso, também teorias de procedência estoica e aristotélica [...].
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Em segundo lugar, para diferenciar da tradição escolar da Academia ligada a Atenas,
designam-se de “médio-platonismo” as formulações teóricas da fase inicial do Império que se
reportam a Platão, situadas antes do início do assim chamado neoplatonismo com Plotino [...].
O neoplatonismo [...], como terceira fase no desenvolvimento do platonismo antigo, foi
fundado no século III d.C por Amônio Sacas, em Alexandria, e sobretudo por seu aluno
Plotino, que em 244 abriu uma escola própria em Roma [...]. Apesar de sua grande influência,
a teoria de Plotino, que inclui as ideias do noûs e diferencia deste o Uno como princípio
supremo, encontrou acolhida na atividade docente da Academia em Atenas somente a partir
do ano 410. Nesta, ainda no século V, se transmitia uma interpretação da teoria de Platão
contrária ao cristianismo. Seu último representante de renome foi Proclo (falecido em 485).
No ano de 529, a escola foi fechada pelo imperador Justiniano.
[...]. A perspectiva norteadora será [...] conferida com a pergunta pelos temas da filosofia
platônica que fundamentavam, em primeira linha, o interesse dos teólogos cristãos da
primeira fase do cristianismo e seu sentido de afinidade por ela. Trata-se, aqui, de três âmbitos
temáticos, entre os quais, pela sua importância, deve ser mencionada, em primeiro lugar, a
teoria platônica de Deus [...]. Em segundo lugar, é preciso tratar um tema que também se
tornou extraordinariamente importante para a teologia cristã: o ideal platônico de vida como
equiparação a Deus [...]
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O terceiro âmbito temático a ser mencionado, no qual a teologia cristã deve impulsos
decisivos ao pensamento platônico, é, por fim, a conexão entre teoria do conhecimento e
teoria da graça [...].

A ideia de Deus e a teoria platônica dos princípios


Por que o pensamento cristão do século II em diante sentiu mais afinidade com o platonismo
do que com outras escolas da filosofia antiga? [...]. A fascinação da filosofia platônica para a
teologia cristã, como antes disso já para um judeu helenista como Fílon de Alexandria, partia,
em primeira linha, da ideia do Deus único, distinto do mundo visível, “espiritual”, que, ao
mesmo tempo, teria sido o autor desse mundo visível. O estoicismo, a tendência filosófica que
ainda predominava no século II no mundo cultural helenista-romano, concebia Deus como o
Logos inerente ao mundo material, como que animando este mundo [...]. A escola de Epicuro,
em contrapartida, refutava tanto a ideia da Providência quanto a do destino e afirmava que os
deuses se entregam totalmente ao desfrute de sua bem aventurança e nem se preocupam com
o mundo e os seres humanos. Os platônicos, porém, distinguem Deus como um ser eterno,
espiritual, do mundo material. Eles associaram a ideia da Providência, desenvolvida pelo
estoicismo, com a de um Deus espiritual, postado acima do mundo.
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Assim, resultou uma concepção de Deus em muitos aspectos semelhante à da ideia bíblica de
Deus, e também a ideia da criação podia ser localizada na filosofia platônica [...].
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A concepção platônica de Deus constituía de longe a razão predominante para que os teólogos
cristãos se sentissem especialmente atraídos por essa filosofia [...].
No que se refere à intuição da Trindade por parte dos platônicos, Agostinho certamente estava
pensando na teoria dos princípios do neoplatonismo com sua hierarquia em três níveis, a
saber: o Uno, o noûs e a alma cósmica que move o mundo material. De fato, a analogia com a
unidade hierárquica de Pai, Filho (Logos) e Espírito Santo, na doutrina cristã de Deus, não é
casual.
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Antes, pode-se conceber o desenvolvimento da doutrina da Trindade na Igreja antiga, que do
ponto de vista cristão naturalmente deve ser entendido, em primeira linha, como interpretação
da relação de Jesus com o Pai, também como uma ramificação da história da teoria dos
princípios do platonismo.
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No entanto, em Platão mesmo se encontram apenas primeiros indícios do desenvolvimento
que levou à teoria neoplatônica dos princípios, e se nos ativermos, em Platão, apenas à figura
do demiurgo, presente no Timeu, que era especialmente importante para os teólogos cristãos
por causa da analogia com o Deus criador do Antigo Testamento, não é possível reconhecer
nenhuma conexão com a posterior doutrina trinitária de Deus do cristianismo [...].
O conceito platônico da ideia tem a sua origem na pergunta socrática pela aretè, a forma ideal
específica de cada coisa, que para esta mesma coisa representa o bem, por permitir que cada
coisa seja o que é, e assim constituir a sua causa, “que ligue e dê coesão a todas as coisas”
[...].
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No caso da aretè, tratava-se, em primeira linha, da essência do ser humano, mais
precisamente, do ser humano individual como ser comunitário no contexto da polis. Assim
como a maldade moral, em oposição à virtude, representa “a negação da essência da alma”,
assim a virtude é a realização da essência da alma. Isso vale, primeiramente, para a virtude
mais abrangente da justiça, que é “a posse do que pertence a cada um e a execução do que lhe
compete” [...]. Aplicando isso às três partes da alma do ser humano, que estão radicadas nas
três regiões do corpo, resultam as virtudes isoladas [...]: a razão, residente na cabeça, ao fazer
o que lhe compete, aperfeiçoa, na sabedoria, o elemento da coragem, que habita o peito;
aperfeiçoa, na valentia, as concupiscências, que, atuando nas vísceras, aperfeiçoam a
moderação, a essas três partes da alma do indivíduo correspondem os três estados da vida da
polis – os artífices e comerciantes, os guerreiros e os “conselheiros e guardiões” da cidade, ou
seja, os governantes – com as virtudes que lhes são específicas [...]. Desse modo, a realização
da essência do ser humano como indivíduo e na comunidade da polis é sintetizada pelo
conceito de justiça [...].
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No grande mito do Fedro [...], as ideias, o existente imutável, são designadas como aquilo que
confere aos próprios deuses a sua divindade, ou seja, a sua eternidade [...], pois é do
conhecimento do que é verdadeiro que se nutre a razão divina [...].
Desse modo, dos três princípios do neoplatonismo, o do meio, o noûs divino, derivado do
ensino do próprio Platão, está estreitamente ligado com as ideias [...]. Só se consegue entender
a concepção platônica da alma cósmica quando se leva em consideração que Platão concebeu
o cosmo em seu todo como um ser vivo animado [...]. Isso, por sua vez, tem a ver com a ideia
de que, segundo Platão, todo movimento corporal tem sua origem em uma alma [...].
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Plotino substituiu essa tríade por outra. Para ele, o Uno, o noûs e a alma [...] constituíam os
princípios divinos do cosmo visível. As ideias não aparecem mais como grandeza própria,
porque foram ligadas à concepção do noûs [...]. Em compensação, eleva-se agora acima do
noûs, cuja esfera é caracterizada pela diferença entre o que conhece e o que é conhecido,
como primeiro princípio, o Uno indiviso [...].
No seu período final [...] Platão procura dar à sua teoria uma formulação simplificada e mais
rigorosa por meio de, por assim dizer, uma teoria matemática do surgimento do mundo: o
primeiro princípio é a unidade, a partir da qual se formam todos os números pela
multiplicação [...]. Os números correspondem às ideias, sendo que cada número é limitado em
relação aos demais por um “mais” ou “menos” [...]. Porém, pelo fato de cada número
adicional não constituir apenas um múltiplo do número um, mas também formar, por sua vez,
uma unidade numérica, a unidade da qual tudo provém corresponde ao Uno, que é o bem, que
[...] é a ideia das ideias.
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Só que desde cedo já havia, na escola platônica, opiniões diferentes sobre a questão se o Uno
é idêntico tanto ao bem quanto ao noûs. Já o segundo sucessor de Platão na direção da
Academia, Xenócrates (falecido em 314), defendia essa concepção e parece que, além disso,
considerava que as ideias não existem independentemente do noûs, mas que existem dentro
do noûs divino. Esse parecer foi renovado mais tarde por Albino e depois assumido por
Plotino [...].
Contudo, justamente por causa da dualidade entre sujeito e objeto do conhecimento, contida
na identidade de noûs e ideias, Plotino estabeleceu a distinção entre o Uno e a esfera do noûs.
O Uno até está presente no noûs, pelo fato de conhecer a si mesmo no conhecimento de suas
ideias e, desse modo, ser uno consigo mesmo, mas o noûs não é o Uno, porque a este é
inerente a diferença formal entre cognoscente e conhecido [...].
A vinculação da concepção platônica da alma cósmica com o Logos estoico que rege o cosmo
já se encontra em Fílon de Alexandria, que, ao mesmo tempo, concebia também o Logos
como suma das ideias.
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Esses pensamentos foram, então, assumidos e desenvolvidos pelos teólogos cristãos, a
começar pelos apologistas do segundo século, visando a interpretar o conceito do Logos do
evangelho de João [...] como designação da relação de Jesus com o Pai.
p. 43 –
A proveniência do Logos [...] da razão divina transcendente veio a ser o tema central da
cristologia do Logos, que possibilitou ao pensamento cristão conceber Jesus como Deus sem
ter de identifica-lo com o Pai. Sendo que, na patrística cristã, diferentemente do que ocorreu
na cosmologia do estoicismo, o Logos tornou-se uma grandeza transcendente ao mundo [...].
Algo correspondente vale também do Espírito de Deus, embora ele, assim como o Logos,
desde a criação esteja presente e operante nas escrituras. Fato é que a Trindade cristã não
constitui uma transição gradual para o mundo visível, como é o caso da tríade platônica dos
princípios Uno, noûs, alma cósmica, mas em seu conjunto confronta-se com as coisas finitas
como seu princípio livre, criador [...].
Essas diferenças [...] têm a ver com aquela uma diferença entre o pensamento neoplatônico e
a teologia cristã que [...] deve ser designada como fundamental: para Plotino, um “Deus [...]
que se revela e que, como causa e princípio, seria simultaneamente o Primeiro e o Uno, não é
concebível”. Perceberemos a conexão entre as duas coisas se ponderarmos que o Deus da
Bíblia, como Deus Criador, é também o Deus que se revela, porque ele, como Criador,
destinou a criatura a ter comunhão com ele próprio [...].
p. 43/44 –
Em decorrência disso, o pensamento trinitário cristão, indo além de Plotino, teve de refletir de
maneira nova sobre a relação entre unidade e multiplicidade e, por essa razão, também sobre a
própria ideia da unidade.
p. 44 –
Esse modelo de argumentação, que marcou a teoria especulativa de Deus do Ocidente cristão
até Hegel e Schelling e mesmo depois deles, retrocedeu, em certo sentido, a um estágio
anterior à posição de Plotino, representado pela teoria de Deus do médio-platonismo, que
havia concebido o noûs divino como o Primeiro [...]. Primeiras tentativas nesse sentido
encontram-se no Pseudo-Dionísio Areopagita e mais tarde em João Erígena, mas sobretudo
em Nicolau de Cusa. O pano de fundo para isso é formado pela dialética própria da ideia do
Uno, que Platão havia desdobrado em seu diálogo Parmênides: o Uno é, e também não é [...];
ele está em tudo, mas é diferente de tudo. Plotino havia interligado esses dois aspectos do
conceito do Uno por meio da ideia de que o Uno se apercebe de si mesmo no outro –
mediante o noûs. Mas foi só na especulação trinitária de Thierry de Chartres e de Nicolau de
Cusa que foi adicionada a igualdade [...] do Uno em si mesmo com a apercepção de si mesmo
no outro como momento constitutivo da ideia da unidade. Esses pensamentos foram
concebidos como expressão formalizada da doutrina cristã da Trindade e, simultaneamente,
como definição mais precisa da unidade divina: a tríade não apenas se mantém coesa na
unidade, mas é condição para a própria ideia da unidade absoluta. Nesse tocante, a noção
cristã a respeito desse assunto foi além do esquema neoplatônico de níveis por meio da ênfase
na aequalitas entre os diferentes momentos presentes no conceito da unidade, correspondente
ao dogma da Trindade.
p. 44/45 –
Quanto ao teor, isso já estava dado no dogma trinitário desde a declaração da homousia do
Filho pelo Concílio de Niceia em 325.
p. 45 –
Não é para menos que, no século IV, houve discussões tão demoradas e penosas em torno
dessa afirmação, pois uma igualdade de essência das três hipóstases devia soar como algo
impossível para um pensador versado no platonismo e, de fato, somente séculos posteriores
esse enunciado foi até certo ponto alcançado pela reflexão dos teólogos e filósofos cristãos
sobre a unidade do Deus trinitário.

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